A marcha dos agrotóxicos continua no governo Lula: com novo ato, o total de liberações em 2023 é de 126

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No seu discurso da vitória o presidente Lula fez uma série de declarações de impacto, mas uma na qual prestei particular atenção foi a de iniciar uma transformação na agricultura brasileira no sentido da adoção de um modelo agroecológico que não mais previligiasse a dependência em venenos agrícolas como o que ocorreu no governo de Jair Bolsonaro.Passados quase cinco meses de governo, não vejo nenhum movimento consequente para iniciar um debate em torno de um novo modelo agrícola e, pior, a manutenção da política de aprovações de agrotóxicos, muitos deles banidos em outras partes do mundo. 

No dia de hoje, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) publicou um novo ato contendo a liberações de mais 23 agrotóxicos do tipo “produto técnico”, 22 deles produzidos por empresas chinesas. Com isso, o grande total já é de 126, o que somado aos venenos liberados no governo Bolsonaro chega a impressionantes 2.156 em apenas 53 meses segundo os dados acumulados no “Observatório dos Agrotóxicos” do Blog do Pedlowski.

Em meio à manutenção da política de liberar venenos agrícolas, ainda tivemos em mais de uma ocasião, declarações do ministro da Agricultura Carlos Fávaro dando declarações caluniosas contra o MST que hoje responde pela oferta de alimentos livres de agrotóxicos, a começar pelo arroz do qual o movimento é hoje o maior produtor brasileiro em áreas livres de agrotóxicos.

Como já disse em mais de uma ocasião, a questão dos agrotóxicos é uma espécie de biruta que mostra para que campo o governo Lula está se inclinando. E neste momento a inclinação não é para a agricultura familiar livre de agrotóxicos, mas sim para o latifúndio agro-exportador que depende de venenos agrícolas que estão envenenando nossos campos e cidades.

Agrotóxicos: um “Atlas” global expõe o desastre sobre solos, água, ar e seres humanos

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Um Atlas mundial, publicado no dia 16 de maio, traz uma série de dados sobre esses produtos tóxicos. As mulheres são as vítimas insuspeitas do uso de agrotóxicos em todo o mundo.

A reportagem é de Marie Astier, publicada por Reporterre 

Eles estão por toda parte e são invisíveis: na água, no ar e nos solos. Os efeitos nocivos dos agrotóxicos nos organismos vivos e na nossa saúde são conhecidos, mas o Atlas des Pesticides (Atlas dos Agrotóxicos), divulgado na terça-feira, 16 de maio na França, consegue nos surpreender. Publicado pela fundação alemã Heinrich Böll e pela La Fabrique Écologique, em colaboração com o coletivo de ONGs ambientais Nourrir e a associação Générations Futures, reúne em textos e gráficos uma série de dados sobre os agrotóxicos em nível mundial. É baseado em numerosos estudos científicos. Versões em inglês, alemão e italiano já foram lançadas em outras partes da Europa.

O documento é oportuno para identificar o fenômeno, enquanto um novo estudo acaba de lembrar que os agrotóxicos são os principais responsáveis pelo declínio das aves.

Reporterre mergulhou neste Atlas e destacou cinco fatos.

1 — O consumo mundial de agrotóxicos aumentou 80% desde 1990

A União Europeia gostaria de reduzir o consumo de agrotóxicos pela metade até 2030. Na França, o plano Écophyto tinha o mesmo objetivo. Mas tanto na França como na União Europeia, o consumo está estagnado em vez de cair. Em outras partes do mundo, alguns continentes concentram o aumento do consumo. Na América Latina, o consumo de agrotóxicos mais que dobrou (+119%) entre 1999 e 2020. No mesmo período, a África aumentou seu consumo em 67%.

A França permanece acima da média europeia em termos de uso de agrotóxicos. Atlas des Pesticides

A União Europeia afirma proibir os  agrotóxicos mais perigosos. No entanto, não impede de continuar a fabricá-los em seu solo e exportá-los. O Reino Unido, a Alemanha e a Itália são os três maiores exportadores desses agrotóxicos proibidos na Europa por serem muito perigosos. Eles são vendidos principalmente no Brasil, Ucrânia e África do Sul. Enquanto 195 agrotóxicos considerados “extremamente perigosos” pela ONG Pesticide Action Network são proibidos na União Europeia, apenas 20 são proibidos no Mali, 19 na Nigéria, 18 na Argentina. “É indigno”, sublinha Géraud Guibert, presidente da La Fabrique Écologique.

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2 – Quatro empresas controlam 70% do mercado global de agrotóxicos

A indústria de agrotóxicos está concentrada nas mãos de um punhado de empresas. Syngenta GroupBayerCorteva e BASF controlavam 70% do mercado global de agrotóxicos em 2018 (em comparação com 29% 25 anos antes). As mesmas detêm 57% do mercado de sementes.

O mercado de agrotóxicos cresce 4% ao ano desde 2015 e pode chegar a 130,7 bilhões de dólares (120 bilhões de euros) em 2023. Mas “a lucratividade do setor de agrotóxicos atualmente seria impossível sem o apoio público e a carga coletiva de impactos negativos”, estima o Atlas. Avalia que na França, em 2017, os lucros da indústria de agrotóxicos atingiram os 200 milhões de euros, mas que as despesas que geraram (despoluição das águas, tratamento das doenças que provocam, etc.) custaram 372 milhões de euros. Ou seja, praticamente o dobro.

3 – 80% dos solos europeus contaminados

“Na Europa, as análises mostraram que de 317 solos agrícolas testados, mais de 80% continham resíduos de agrotóxicos”, lembra o Atlas dos Agrotóxicos. O solo está contaminado e a água também. Também na União Europeia, “segundo um estudo da Agência Europeia do Ambiente (EEA), até um terço das estações europeias de monitoramento das águas superficiais apresentaram níveis de agrotóxicos superiores aos limiares nacionais entre 2013 e 2019”, acrescenta o Atlas. No ar, agrotóxicos foram encontrados a mais de 1.000 quilômetros de onde foram aplicados.

Os pesticidas estão em todas as partes. Atlas des Pesticides

4 – As mulheres são mais expostas aos perigos dos agrotóxicos

As mulheres, menos alfabetizadas no mundo, portanto menos capazes de ler rótulos e instruções de aplicação, são mais vulneráveis aos agrotóxicos, destaca o Atlas. Ele dá dois exemplos. No Nepal, 53% dos agricultores leem e entendem os rótulos, em comparação com 25% das agricultoras. Em Gana, 65% dos agricultores conhecem os  agrotóxicos proibidos, em comparação com 5% das agricultoras.

Ao nível da saúde, “o seu corpo é constituído por tecidos mais sensíveis aos hormônios” e, portanto, aos pesticidas desreguladores endócrinos. No entanto, as mulheres são parte da solução. “Nas zonas rurais dos países do Sul, (…) elas assumiram a luta contra os agrotóxicos”, indica o Atlas.

5 – Mudar o sistema agrícola seria mais barato

Conhecemos a solução para acabar com os agrotóxicos, mesmo que não seja simples. “É todo o sistema agrícola e alimentar que precisa ser mudado”, explica Mathilde Boitias, diretora da La Fabrique Écologique e coordenadora do Atlas. A agricultura orgânica é a única que garante a não utilização de agrotóxicos sintéticos. A União Europeia gostaria de triplicar o número de fazendas orgânicas até 2030. Isso custaria “1,85 bilhão de euros por ano, menos do que os custos sociais ligados aos pesticidas”, sublinha o Atlas.

A França é o país da União Europeia com maior área de plantação de orgânicos, à frente da Espanha e da Itália. 20% dos vinhedos, que consomem muitos agrotóxicos, são orgânicos. Mas se quisermos encorajar esta dinâmica “devemos colocar os meios”, insiste Géraud Guibert.

Na Europa, as populações de pássaros e borboletas, por exemplo, diminuíram mais de 30% desde 1990. Atlas des Pesticides

As últimas decisões do governo francês questionam sua capacidade de apoiar essa aspiração da sociedade de abandonar os agrotóxicos. A ajuda destinada pelo governo à agricultura orgânica em crise é insuficiente dependendo do setor. E o sucesso do orgânico provocou uma reação dos defensores da agroindústria. Um projeto de lei debatido no Senado no dia 16 de maio quer, em particular, colocar nas mãos do ministro da Agricultura uma série de poderes sobre a autorização ou retirada de agrotóxicos (atualmente sob a responsabilidade da ANSES, a Segurança Nacional da Saúde). “Seria um retrocesso terrível”, adverte Nadine Lauvergeat, delegada geral da organização Générations Futures.


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A versão em português deste texto foi inicialmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos [Aqui!].

40 anos do Parque dos Abrolhos: Estudo inédito levanta dados sobre biodiversidade da região

Levantamento realizado pela Conservação Internacional e Instituto Baleia Jubarte, analisou a distribuição de 635 espécies de peixes, corais, invertebrados, mamíferos, aves e tartarugas marinhas na Região dos Abrolhos

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Foto: Luciano Candisani/iLCP

Rio de Janeiro, 27 de abril de 2022 – Um levantamento inédito realizado na Região dos Abrolhos, no Extremo Sul da Bahia, apontou que uma em cada cinco espécies analisadas dentro do Parque Nacional Marinho (PARNAM) dos Abrolhos, encontra-se em alguma categoria de ameaça de extinção. No total, 635 espécies de peixes, corais, invertebrados, mamíferos, aves e tartarugas marinhas na Região dos Abrolhos foram analisadas no estudo realizado pela Conservação Internacional (CI-Brasil), Instituto Baleia Jubarte (IBJ) e pesquisadores do Instituto Coral Vivo e de universidades brasileiras.

“Desde 2005 que os dados sobre a biodiversidade da região dos Abrolhos não eram atualizados. Todos sabem que é a região com a maior biodiversidade marinha do Brasil, mas havia poucas informações detalhando a distribuição desta biodiversidade. O estudo atualiza os dados sobre os habitats e as espécies encontradas, e analisa as áreas onde essa biodiversidade está mais concentrada, contribuindo para o planejamento e priorização de ações de conservação na região” afirma Guilherme Dutra, diretor do Programa Marinho e Costeiro da CI-Brasil e um dos autores do estudo.

Com cerca de 88 mil hectares, o PARNAM dos Abrolhos protege pouco menos de 1% da Região dos Abrolhos. Apesar de pequeno comparado aos 9,5 milhões de hectares da região, a Unidade de Conservação é muito representativa para a biodiversidade. Das 635 espécies analisadas, 77% delas (491) são encontradas no parque. Só de espécies de peixes são cerca de 400, e outras 52 espécies do grupo dos corais. Essa riqueza torna a Região dos Abrolhos a mais biodiversa do oceano Atlântico Sul, com os maiores recifes de coral da costa brasileira e o maior banco de algas calcárias do mundo.

Mas Dutra destaca que apesar de sua importância, o parque dos Abrolhos não é suficiente para proteger a biodiversidade da região: “O Parque dos Abrolhos possui grande importância para a conservação de muitas espécies marinhas, mas nem todas as espécies que ocorrem no parque estão protegidas. Boa parte delas possui ampla distribuição, ou seja, transitam por toda a região ou pela costa brasileira. Se a espécie sofre ameaça na maior parte de sua área de ocorrência, uma pequena área de proteção, não será suficiente para sua recuperação.”

Eduardo Camargo, Diretor Executivo do Instituto Baleia Jubarte e co-autor do estudo complementa: “A ampliação do Parque de Abrolhos e a definição de sua Zona de Amortecimento, bem como a criação de novas áreas protegidas de uso sustentável abrangendo toda a Região dos Abrolhos são propostas há anos por ambientalistas e podem garantir a conservação e o uso sustentável das espécies marinhas da região.”

Para além das espécies, o PARNAM dos Abrolhos também é destaque quando o assunto são habitats marinhos. O estudo coletou dados sobre essas ocorrências. Os chapeirões – grandes recifes em forma de cogumelos, são uma formação recifal única da região e podem chegar a 20 metros de altura e 50 metros de diâmetro. Lá também são encontrados recifes em franja no entorno das ilhas, recifes rasos, recifes mesofóticos, bancos de gramas e algas marinhas, bancos de algas calcárias e fundos de areia. Essa diversidade de habitats ajuda a explicar a alta diversidade de espécies parque. 

Toda essa diversidade é constantemente ameaçada. Há pelo menos três décadas tentativas de explorar petróleo e gás natural e minerar o fundo marinho dos Abrolhos cercam a região. Desastres provenientes da ação humana, como o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana-MG, e o grande vazamento de óleo que atingiu a costa Brasileira em 2019 – com origem ainda hoje desconhecida, deixaram cicatrizes nos ambientes marinhos de Abrolhos. Da mesma forma, a sobrepesca ameaça as populações de organismos marinhos, muitas delas com risco de extinção, como mostra o estudo. A sociedade civil organizada se une em campanhas ambientais de conservação para tentar chamar atenção para os problems. As campanhas “Abram os Olhos”, “Adote Abrolhos” “Abrolhos sem Óleo” são exemplos.

40 anos do PARNAM Abrolhos
No dia 06 de abril de 2023, o PARNAM Abrolhos completou 40 anos de criação. Unidade de Conservação mais conhecida da região Extremo Sul da Bahia, o Parque é um dos principais destinos de mergulho do Brasil. Criado em 1983, o parque passou por muitas etapas de implementação, e hoje é um dos motores da economia na região. Parceiro da Futuri: Aliança pelo Turismo Regenerativo, a unidade vem atuando para além de suas fronteiras, por uma visão de desenvolvimento sustentável do turismo, que envolve cerca de 80 mil pessoas. O PARNAM é também uma importe área de procriação para muitas espécies marinhas, pescadas pelos mais de 20 mil pescadores artesanais de Abrolhos. 

“O Parque dos Abrolhos, após 40 anos, é parte da identidade e imaginário da região é uma área que tem uma relevância ambiental consolidada, mas, também passou ser relevante para cadeia do turismo regional, gerando ocupação e renda de forma direta e indireta e impulsionando outras cadeias econômicas. Muitas experiências de gestão estão consolidadas por quem nos antecedeu. Nossa equipe segue trabalhando com firmeza para a manutenção do legado conquistado e com um olhar no futuro buscando consolidar a implementação da unidade. Estamos muito felizes com o engajamento e por poder compartilhar este momento de comemoração com a comunidade local”, afirma Erismar Rocha, chefe do NGI ICMBio Abrolhos. 

Fazendas fornecedoras da Coca e Nestlé usam agrotóxicos que adoecem comunidades em SP

Coceira, manchas no corpo e dores no estômago fazem parte dos sintomas relatados pelas populações atingidas. Investigação exclusiva da Repórter Brasil e Lighthouse Reports mostra produtos que são jogados pelos ares em plantações em São Paulo

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Por Hélen Freitas e Beatriz Silva, da Repórter Brasil e da Lighthouse Reports 

Sabe aquele suco de laranja que te dá forças para começar o dia ou o chocolate que te acolhe em momentos difíceis? Eles podem ser responsáveis por uma verdadeira chuva tóxica que adoece adultos, idosos e crianças no interior de São Paulo.

Investigação da Repórter Brasil com a Lighthouse Reports revela que fazendas fornecedoras da Coca-Cola e Nestlé estão pulverizando de avião agrotóxicos perigosos, muitos deles capazes de gerar câncer e que são proibidos na Europa. Em alguns casos, os químicos caem diretamente sobre a pele de famílias que vivem no entorno, gerando sintomas de intoxicação aguda.

É o caso de Cristina dos Santos Silva. Ela e seu marido tiveram dor de cabeça, falta de apetite e dor no estômago depois de um avião agrícola sobrevoar sua casa em fevereiro deste ano. As sequelas são ainda piores para bebês e idosos. Bianca Lopes relata que sua mãe e sua filha, então com apenas 6 meses, desenvolveram um quadro de conjuntivite hemorrágica um dia depois que um avião jogou agrotóxicos perto da sua casa. Este caso ocorreu há sete anos.

Após a pulverização aérea sobre sua casa, Ivanete Santos relata que perdeu a visão de um olho e que sua neta, Izadora, teve conjuntivite hemorrágica e sofreu sequelas na córnea (Foto: Alexandre de Souza/ Repórter Brasil)

Não é raro que esses moradores sintam cheiro forte e gotículas na pele ao verem o avião contratado pela Usina Atena sobrevoar perto de suas casas. A usina é vizinha de assentamentos onde moram Cristina e Bianca, no município de Rancharia, a 500 km da capital paulista. A reportagem descobriu que a Usina Atena fornece açúcar para uma empresa chinesa que, por sua vez, revende para a Nestlé e Coca-Cola.

A filial britânica da fabricante de bebidas negou manter relações comerciais com o grupo chinês e a Usina Atena. Porém, a firma é citada como cliente no site da empresa chinesa. Além disso, fonte ouvida pela reportagem também confirmou a relação entre as duas companhias.

Em outros casos levantados pela equipe, fazendas de cana e laranja que pulverizam de avião agrotóxicos proibidos na Europa fornecem diretamente para Nestlé, Coca-Cola e PepsiCo. A base de dados com o nome das fazendas e os agrotóxicos utilizados foram obtidos pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Já o rastreamento de clientes dessas fazendas foi feito pela Repórter Brasil e Lighthouse Reports.

Proibidos na Europa, despejados pelo ar no Brasil

Os dados revelam que duas fornecedoras diretas da Nestlé, a Copersucar e a Usina São Martinho, pulverizaram agrotóxico fabricado pela Basf que é proibido na União Europeia. Câncer no fígado, problemas no sistema reprodutivo e no desenvolvimento do feto são algumas das possíveis sequelas da exposição ao epoxiconazol. Devido às evidências internacionais sobre seus riscos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está reavaliando a autorização para uso deste agrotóxico no Brasil.

A plantação de cana-de-açúcar da Usina Altena fica a cerca de 1km da porta da casa de Cristina Silva (Foto: Alexandre de Souza/ Repórter Brasil)

O epoxiconazol foi o agrotóxico suspeito de causar câncer mais pulverizado de avião pela cana no ano de 2019 em São Paulo. Foram 64 mil hectares, ou 64 mil campos de futebol, que receberam uma verdadeira chuva tóxica. Este estudo foi publicado pela Repórter Brasil em 2022, quando a Basf garantiu a segurança do produto. “O epoxiconazol continua sendo usado com segurança desde 1993 em mais de 60 países e contribui com sucesso para manter o potencial produtivo dos cultivos recomendados”.

Outra fornecedora da Nestlé investigada é a Tereos. Segunda maior produtora de açúcar do Brasil, o grupo tem fazendas nas regiões de Barretos e Presidente Prudente, onde morreram por câncer, em média, 214 e 180 homens a cada 100 mil habitantes, respectivamente, números maiores do que os valores do estado (138) e do país (120).

De acordo com os documentos, a empresa pulverizou o inseticida tiametoxam em suas plantações. Comercializado pela Syngenta, o produto é suspeito de causar problemas para o sistema reprodutivo e no desenvolvimento do feto, de acordo com a Agência Europeia de Produtos Químicos. A substância é proibida para uso na União Europeia devido aos seus efeitos nocivos às abelhas. O Ibama está reavaliando a sua permissão no Brasil.

A CropLife, associação que representa empresas produtoras de agrotóxicos como Basf, Bayer, FMC e Syngenta, afirma que embora os seus membros considerem cuidadosamente as decisões das autoridades reguladoras globais, não ser permitido para uso na União Europeia, não significa automaticamente que um produto não pode ser utilizado em outro país. “Os agrotóxicos não são automaticamente ‘mais perigosos’ ou ‘menos necessários’ porque não são autorizados na Europa”.

A Nestlé disse que realiza auditorias regulares em seus fornecedores e exige o “cumprimento de diretrizes e normas de fornecimento responsável, o que inclui políticas rigorosas referentes ao uso de bioquímicos”.

A São Martinho informou que a aplicação aérea de agrotóxicos é uma exceção e que quase não utiliza os químicos em sua produção. Já a Copersucar se limitou a dizer que segue as legislações nacionais e internacionais.

A Tereos Brasil afirmou que garante a total rastreabilidade dos voos a fim de analisar e garantir a aplicação mais precisa em suas plantações. Além disso, não negou sua relação com a Nestlé, nem com o mercado europeu. Já a Tereos francesa, utilizou de ironias para dizer quem seriam seus compradores. Sua assessoria de imprensa, entretanto, negou que o açúcar fornecido à Nestlé europeia seja brasileiro. Confira as respostas completas.

As produtoras e multinacionais contatadas pela reportagem não negaram suas relações comerciais.

Gilvan Silva, marido de Cristina, perdeu plantações com a pulverização aérea de agrotóxicos (Foto: Alexandre de Souza/ Repórter Brasil)

O lado amargo da laranja

Assim como o açúcar, os produtores de laranja também espalham agrotóxicos de forma descuidada pelos ares de São Paulo. Fornecedoras da Coca-Cola e PepsiCo pulverizaram inseticida com bifentrina em suas plantações. Este agrotóxico, produzido pela FMC, é proibido na União Europeia por ser classificado como cancerígeno e neurotóxico.

As responsáveis pela pulverização foram as fazendas da Citrosuco, fornecedora das duas multinacionais, e a Cutrale, da Coca-Cola. Nos últimos 10 anos, a Coca-Cola comprou mais de 3 mil toneladas de produtos da Cutrale. José Henrique Cutrale, um dos herdeiros da companhia, faz parte do conselho de administração da Coca-Cola Femsa, empresa mexicana de bebidas parceira de distribuição da The Coca-Cola Company.

A Cutrale já apareceu em outras investigações da Repórter Brasil. Apesar de afirmar que tem cláusulas em seus contratos sobre a necessidade de cumprimento da legislação trabalhista, trabalhadores acusaram um fornecedor de laranjas da empresa de trabalho escravo no ano passado Durante a pandemia, a Cutrale também cometeu outra violação ao demitir trabalhadoras grávidas, suspender vale-alimentação e não fornecer equipamento de proteção individual, que é fundamental sobretudo para trabalhadores em contato com agrotóxicos.

Por meio de sua assessoria, a Coca-Cola afirmou que todos os ingredientes utilizados contam com rigorosos protocolos de inspeção para avaliação do padrão de qualidade e segurança, levando em consideração as diretrizes globais da companhia. “Neste âmbito, a empresa destaca seus laboratórios para o controle dos insumos, a fim de garantir que estejam adequados aos critérios estabelecidos pelos órgãos reguladores no Brasil e autoridades competentes em cada país onde opera”.

Já a Citrosuco se limitou a dizer que cumpre a legislação nacional e internacional. Confira as respostas.

A Cutrale e PepsiCo foram procuradas, mas não responderam até o fechamento da reportagem.

Lobby tóxico

Diferentemente da Europa, onde a pulverização aérea é banida, sendo permitida apenas em casos excepcionais, no Brasil a prática é liberada e pouco fiscalizada. São poucos os municípios e apenas um estado, o Ceará, que proíbem essa aplicação. Mas essas decisões não são bem aceitas por gigantes do setor agrícola e de transporte aéreo, o que fez com que elas entrassem com ações no STF (Supremo Tribunal Federal) questionando a constitucionalidade das legislações.

O lobby da cana também é forte em São Paulo. Na região do Pontal do Paranapanema, oeste paulista, o Ministério Público estadual chegou a proibir a pulverização aérea devido a denúncias de assentados que perderam produções de seda em razão das usinas. O caso ocorreu em 2015 e a liminar foi derrubada três meses depois pela Justiça, a pedido dos produtores de cana investigados.

O município de Buriti, no Maranhão, é um dos poucos lugares onde a proibição de pulverização por avião resiste. O local foi palco de um dos mais escandalosos e recentes casos de intoxicação. Em abril de 2021, as vítimas filmaram agrotóxicos sendo jogados de avião sobre casas de uma comunidade rural. André Lucas, na época com 7 anos, sentiu as gotículas em sua pele, que logo começou a arder até que se abriram feridas. Dos 80 moradores, ao menos oito relataram sintomas de intoxicação, como coceiras, febre e manchas no corpo. As imagens do menino e de outras vítimas foram denunciadas pelaRepórter Brasil e viralizaram.

Tanto no caso do Maranhão como no do Pontal do Paranapanema, alguns dos agrotóxicos encontrados pelas autoridades nas fazendas são proibidos na União Europeia e fabricados por empresas com origem no continente. Ou seja, a Europa libera a produção de substâncias tóxicas que ela própria rejeita.

No Maranhão, foram identificados os produtos da Syngenta que tem o ingrediente tiametoxam e ciproconazol, ambos banidos na Europa. Esses produtos podem provocar irritação dos olhos e da pele, além de falta de ar. Mesmos sintomas relatados pela comunidade.

“Passei o ano inteiro sem produzir um cacho de banana”, conta Bianca Lopes, que virou líder comunitária dos assentamentos vizinhos à Usina Atena para proteger sua família da chuva tóxica (Foto: Alexandre de Souza/ Repórter Brasil)

Em São Paulo, o Ministério Público também encontrou o ciproconazol no depósito da Usina Atena, vizinha aos assentamentos onde vivem Cristina e Bianca. O órgão achou ainda os produtos feitos pelas empresas alemãs Basf e Bayer com os ingredientes fipronil e triflumurom, ambos proibidos na União Européia. A primeira substância é possivelmente cancerígena para humanos, de acordo com a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, e a segunda é classificada como perigosa ao meio ambiente.

Por meio de seu advogado, a Usina Atena afirmou que realiza pulverização aérea desde 2008, sempre respeitando a legislação vigente e as condições de voo e meteorológicas. Além disso, disse que os voos não foram realizados nas proximidades dos assentamentos. “Quando os aviões sobrevoam as proximidades do assentamento são exclusivamente para manobras ou transposição de áreas, jamais para pulverização”. Leia a resposta completa.

As vítimas invisíveis

Apesar de serem constantes as denúncias sobre pulverizações aéreas que atingem comunidades rurais, os casos ficam invisíveis. A primeira barreira é no sistema de saúde. Cristina e seu marido foram ao médico enquanto sentiam os sintomas e relataram o contato com o produto que caiu do avião agrícola. Mesmo assim, o médico deu o diagnóstico de infecção intestinal e descartou a possibilidade de intoxicação por agrotóxico.

O mesmo problema é relatado por Bianca, que virou líder comunitária para lutar por melhor controle de agrotóxicos após ver diversos casos de intoxicação se repetindo. “Num dia de atendimento, a médica chegou a atender 80 pessoas intoxicadas, mas pra ela era virose, conjuntivite, catapora”, afirma. De acordo com Bianca, os casos aparecem sempre após as pulverizações aéreas feitas pela Usina Atena.

Assentados de Rancharia (SP) relataram cheiro forte e outros sintomas após aviões da Usina Atena sobrevoarem a área (Foto: Arquivo Pessoal)

O promotor Gabriel Pires, que investiga casos de pulverização no interior de São Paulo, afirma que a subnotificação dificulta a sustentação dos casos na Justiça. Apesar de todas as denúncias que ele ouviu, o promotor diz ser difícil encontrar registros de intoxicações por agrotóxico no município. Em tese, quando há uma intoxicação, os médicos deveriam preencher um formulário que é enviado ao Ministério da Saúde. Estimativas da Organização Mundial da Saúde apontam que apenas uma em cada 50 intoxicações são registradas.

O registro não aconteceu sequer no caso do Maranhão, que ganhou repercussão nacional. Uma semana após as imagens do menino com feridas na pele terem sido divulgadas, o governo enviou a polícia e uma equipe de saúde para atender as vítimas. Mesmo assim, o caso nunca foi registrado como intoxicação por agrotóxico.

Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a demora em fazer testes nas vítimas e no ambiente prejudicou a produção de provas, já que nesse tempo os agrotóxicos podem ser dissipados ou expelidos do corpo. Apesar das imagens que revelam o avião passando por cima das casas, das imagens das crianças com problemas na pele e diversas denúncias feitas pelas vítimas sobre sintomas de intoxicação, o inquérito policial concluiu que as comunidades não sofreram intoxicação. Há outra investigação sendo conduzida pelo Ministério Público do Maranhão, que ainda não foi concluída.

Dois anos depois, Antônia Peres, mãe do menino atingido, conta que ele ainda tem marcas na pele que ficam mais evidentes quando estão aplicando agrotóxicos por trator, o que continua sendo permitido. Segundo ela, a pele do menino ficou grossa e ele nunca teve um atendimento com dermatologista para tratá-la.

Peres reclama da falta de comunicação dos órgãos sobre o andamento da ação. “O exame que a gente fez, a gente nunca recebeu o resultado, eles sumiram com o resultado. A gente procura, eles falam que ainda não chegou, que quando chegar eles vão entregar. Dois anos depois, a gente nunca recebeu um exame sequer”.


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Este texto foi inicialmente publicado pela Repórter Brasil [Aqui!].

Agrotóxicos, uma das esfinges que ameaçam devorar o governo Lula

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Ao escolher o senador e agropecuarista Marcos Fávero (PSD/MT) para chefiar o Ministério da Agricultura, o presidente Lula se afastou do seu compromisso com a criação de uma agricultura de bases ecológicas

Nesta 4a. feira, o Diário Oficial da União publicou o Ato No. 15 de 31 de março de 2023 por meio do qual foram autorizados mais 11 agrotóxicos para comercialização no território nacional. Com isso, o governo Lula já totaliza 59 agrotóxicos desde janeiro, em uma demonstração de que, apesar de mais lenta, a onda de liberações de agrotóxicos segue inabalada, em uma sinal de que os compromissos com o latifúdio agro-exportador e as corporações multinacionais também se mantém firmes e fortes.

Como já escrevi aqui neste mesmo blog, a questão dos agrotóxicos é uma espécie de farol de como efetivamente o governo Lula se comportaria, se mais próximo ou distante dos compromissos de campanha. Lembro ainda que no seu discurso da vitória, o presidente Luís Inácio Lula da Silva se comprometer a avançar um modelo de agricultura mais sintonizada com o meio ambiente, de modo a criar uma agricultura de bases ecológicas.

A primeira sinalização de que do discurso à prática haveria uma boa distância foi a nomeação do senador Marcos Fávero (/PSD/MT) para o cargo de Ministro da Agricultura. A questão é que Fávero, além de ter um histórico de proximidade com o latifúndio agro-exportador matogrossense, também apoia a implementação do Pacote do Veneno, legislação que enfraquecerá de forma ainda mais flagrante a liberação, venda, uso e manuseio de agrotóxicos no Brasil.  Em outras palavras, com Fávero na chefia do ministério da Agricultura, não é de se surpreender que a chuva de agrotóxicos continue.

Cartazes chamam políticos pró-flexibilização de agrotóxicos de 'bancada do  câncer' - 09/02/2022 - Ambiente - Folha

Cartazes nas ruas de Sâo Paulo chamam políticos pró-flexibilização de agrotóxicos de ‘bancada do câncer’

A questão mais importante é que, além de não se parar com a infindável liberação de agrotóxicos, a sinalização é que não haverá a necessária retomada de critérios mais realistas de definição de risco ou, tampouco, a retirada de substâncias que já se encontram banidas em outras partes do mundo por terem sido identificadas como causadoras de doenças graves como o câncer. Uma lista organizada pela professora Sônia Hess da Universidade Federal de Santa Catarina mostra cabalmente como os principais agrotóxicos do mercado brasileiro são responsáveis por uma grande lista de enfermidades que cada vez mais tomam ares de uma epidemia causada pelo envenenamento por agrotóxicos.

A conclusão a que podemos chegar é de que a disputa política com os setores que defendem o modelo agrícola ancorado no uso extensivo e intensivo de venenos agrícolas não terá nenhuma forma de apaziguamento sob o governo Lula. A saída será a continuidade das pesquisas que mostram o efeito catastrófico que essa dependência química traz para o meio ambiente e para a população brasileira. Mas pesquisas são só instrumentos de identificação do problema e, quando muito, de divulgação de resultados. Sem um claro engajamento de sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos, o problema vai apenas se agravar. 

Em suma, os agrotóxicos são uma das muitas esfinges que ameaçam devorar o governo Lula. E, pior,  a todos nós juntos.

Contaminação por chumbo continua adoecendo crianças na América do Sul

canos chumboNa América Latina há uma grande porcentagem de crianças com altos níveis de chumbo no sangue devido às diversas fontes de exposição. Na foto, meninas brincam sobre canos de chumbo ao ar livre em La Oroya, Peru. Crédito da imagem: Chiqaq News , sob licença da Creative Commons (CC BY 4.0

Por Pablo Corso para a SciDev

As concentrações de chumbo no sangue diminuíram consideravelmente nas últimas décadas em todo o mundo, mas na América Latina –particularmente no Peru e no México– a intoxicação por este metal pesado segue sendo um fenômeno preocupante que afeta principalmente as crianças .

Embora o tetraetilo de chumbo (TEL) não seja usado como aditivo de combustíveis para automóveis, outras fontes de exposição causam um dano persistente ao ambiente e à saúde humana, como o consumo de água contaminada de encanamentos antigos, as baterias ácidas, certas pinturas , os incêndios, a queima de resíduos e até mesmo a gasolina (gasolina com querosone usada na indústria aérea), detalha um artigo que será publicado na edição impressa de maio da revista Chemosphere .

Por sua toxicidade extrema, a OMS classifica o chumbo como uma das dez substâncias de maior preocupação para a saúde . Concentrações elevadas podem gerar alterações cognitivas e neuromotoras, com cerca de 600 milhões de casos anuais de incapacidade intelectual em crianças .

“Eles absorvem o chumbo rapidamente e eles podem nascer com déficits de desenvolvimento se suas mães foram expostas durante a gravidez”, explica via WhatsApp Abel Gilvonio, assessor da Plataforma Nacional de Pessoas Afetadas por Metais Tóxicos do Peru, onde o tema é especialmente sensível, já que mais de 10 milhões de pessoas (31% da população) estão expondo metais pesados ​​e outras substâncias químicas, segundo o próprio Ministério de Saúde. Eles podem nascer com déficits de desenvolvimento se suas mães tiverem sido expostas durante a gravidez. Destes, 80% são crianças de até onze anos de idade.

“O chumbo danifica todos os órgãos, mas tem uma afinidade particular com o cérebro”, acrescenta a pesquisadora mexicana Mara Téllez Rojo, uma das autoras de um estúdio que revelou que em 2020 em torno de 17% das crianças( 1,4 milhões) de entre um e quatro anos de seu país estavam intoxicadas por esse metal. “É um neurotóxico que gera problemas de comportamento, atenção e agressividade”, afirmou.

Também foram relatados condições cardiovasculares, respiratórias, hepáticas, renais e reprodutivas, e até mesmo efeitos cancerígenos.

“O chumbo danifica todos os órgãos, mas tem uma afinidade particular com o cérebro.”

Mara Téllez Rojo, Instituto Nacional de Saúde Pública, México

Após a eliminação do TEL,  houve um rápido declínio nos níveis atmosféricos globais, afirma em um correio eletrônico Diego Lacerda, um dos autores do trabalho publicado pela Chemosphere .

“Sem dúvida, as milhões de toneladas de toneladas emitidas se depositam no solo e seguem uma fonte de exposição” por meio de seu ingresso na cadeia alimentar.

“Em geral, os países que mais tardaram em eliminar o TEL são os que têm populações com maiores níveis de chumbo no sangue”, explica.

Na América Latina, esse processo começou no Brasil e na Colômbia (1991), para continuar na Argentina, Bolívia (1996), Equador, México (1997), Paraguai (2000), Chile (2001), Uruguai (2003), Peru e Venezuela ( 2005).

Fonte: Chemosphere .

Depois da África, a América do Sul é a região com as concentrações mais altas, especialmente em Porto Rico (10,6 microgramas por decilitro – μg/dl), México (10,5), Peru (8,7) e Uruguai (6, 2).

Enquanto os Estados Unidos consideram que os valores de 3,5 μg/dl são uma intervenção americana, a Organização Mundial de Saúde sustenta que não existem níveis de seguro.

É importante que os países monitorem a contaminação ambiental e humana”,  afirma Lacerda, para quem “a prevenção primária é a forma de reduzir a exposição”.

Em 2017, uma revisão de estudos sobre crianças latino-americanas sugeriu que a porcentagem de menores de idade estava subestimada. Este ano, um relatório atualizado descobriu que as concentrações de chumbo no sangue de crianças pequenas excedem os limites recomendados na metade dos estudos avaliados.

Fonte: Chemosphere .

Crianças com chumbo no Peru e no México

Durante mais de meio século, a minera estadounidense Cerro de Pasco operou no centro do Peru vertendo chumbo, mercúrio e outros minerais tóxicos no solo e na água , especialmente na cidade de La Oroya. Isso resultou em múltiplos casos de leucemia crônica, aplasia medular severa e diminuição do nível intelectual .

A intervenção de organismos internacionais de direitos humanos não tem sido suficiente para que o estado ou a atual concessionária (Volcan, de participação majoritária suíça) ofereça respostas satisfatórias.

A Comissão Multissetorial criada em 2020 para abordar a problemática “não está em funcionamento, porque está pendente a aprovação de seu regulamento”, explica Gilvonio, que critica a substituição dos técnicos ambientais “por pessoal com pouca experiência no assunto”.

Enquanto isso, a Defensoria do Pueblo segue reivindicando a implementação de um sistema de informação sobre a qualidade das fontes hídricas e a regulamentação de uma lei para fortalecer a atenção dos afetados.

No México, a situação não é melhor. Segundo o estudo de Téllez Rojo e seus colegas, a maioria das mães de crianças intoxicadas por chumbo havia usado utensílios de cerâmica vidrada durante a gravidez, uma tradição antiga que, há pouco tempo, é a principal fonte de contaminação no país.

A cerâmica de barro vidrado, uma tradição artesanal no México, é uma das principais vias de exposição ao chumbo no México. Crédito: Secretaría de Salud de México . Imagem de domínio público.

“O esmalte com o qual se vendem as peças é a base de chumbo”, precisa a investigadora. Como não está completamente fixado, as altas temperaturas dos alimentos fazem com que o pó se liberte e os contamine.

Diante desse panorama, o estado impulsa alianças com diversas organizações para capacitar os ceramistas na transição para esmaltes com metais inócuos, como o boro.

A investigadora também planeja a necessidade de indagar sobre outras fontes de exposição, como a exploração de minas e o trabalho em fundidoras, ladrilhadoras, com soldas ou pinturas.

Às vezes se combinou mais de um fator, como no caso de Puebla, onde a atividade do vulcão Popocatépetl e a contaminação da Barragem de Valsequillo chegaram a um alarmante 46 por cento de casos.

A nível governamental “se poderia fazer mais”, reconhece Téllez Rojo. “Em novembro de 2019 foi lançado um programa para atender o problema, mas se deveu à pandemia. Queremos que se retome, já que atualmente não há um sistema que monitore o chumbo no sangue e cuide das vítimas.”


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Este artigo foi produzido pela edição de América Latina e Caribe de  SciDev.Net e publicado [Aqui!] .

Pesquisadoras do Centro de Tecnologia Mineral analisam exposição ao mercúrio na Terra Indígena Yanomami

Vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Cetem enviou equipe para coletar amostras e analisar exposição ao mercúrio

unnamed (18)Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil)

Uma equipe formada por quatro pesquisadoras do Centro de Tecnologia Mineral (Cetem), instituto de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), está na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, para avaliar a exposição da população ao mercúrio, poluente usado no garimpo e de alta periculosidade para a saúde.

As pesquisadoras, que integram o Laboratório de Especiação de Mercúrio Ambiental, estão coletando amostras de cabelo da população indígena para analisar a quantidade de mercúrio presente. O trabalho faz parte das ações emergenciais de saúde e meio ambiente promovidas pelo governo federal.

Segundo a pesquisadora Zuleica Castilhos, a principal forma de contaminação humana por mercúrio é pelo consumo de peixe. As gestantes, ela acrescenta, formam o grupo mais vulnerável já que o metilmercúrio pode atravessar a placenta e causar efeitos neurológicos irreversíveis ao feto.

“As equipes do Ministério de Saúde estão produzindo material explicativo e documentos técnicos para o entendimento detalhado de todo o processo de coleta e de análise por parte das lideranças indígenas, visando a ativa participação das comunidades e o seu consentimento para a coleta de dados epidemiológicos e de cabelo para as análises de mercúrio dentro do território indígena”, explicou a pesquisadora.

Zuleica Castilho afirmou que o trabalho seguirá até o fim do mês de março, podendo ser prorrogado. “Os laudos individuais serão disponibilizados para o Ministério da Saúde, que fará o encaminhamento para o desenvolvimento de ações de vigilância e assistência à saúde.”

Também participam do trabalho as pesquisadoras Líllian Maria Borges Domingos, Jéssica Zickwolf Ramos e Thainá Farinchón.

Peixes com “níveis mais altos de herbicidas no mundo” são encontrados em bacia dominada por monoculturas de soja na Argentina

sabalo-Parana-996x567Curimbatás (Prochilodus lineatus) são altamente consumidos em toda a bacia do Paraná. Crédito da imagem: Jonas Techy Potrich/Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons (CC BY-SA 3.0)

Os peixes do Río Salado, afluente do Paraná (o maior rio sul-americano depois do Amazonas), mostrarão restos de novos inseticidas, herbicidas e fungicidas aplicados em cultivos transgênicos de soja, milho e algodão que abundam nessa bacia fluvial.

Embora os efeitos em peixes e humanos ainda não estejam completamente certos, os autores aconselham sobre a necessidade de medidas extremas de precaução em um dos cursos de água mais importantes do país, que provê alimento tanto no âmbito local como para exportação.Estudio planta que “se necessita urgentemente aumentar a distância entre os cultivos transgênicos dependentes de agrotóxicos e os ecossistemas aquáticos, assim como melhorar a abordagem dos riscos ambientais”. Rafael Lajmanovich, responsável pela pesquisa,  disse ao SciDev.Net que essa distância deveria ser de 1.000 metros como mínimo.

Os pesquisadores analisam sedimentos do rio, músculos e vísceras de 16  peixes comprados de pescadores ao longo de 100 quilômetros de alta produtividade agrícola.

No tecido muscular, há “concentrações muito altas” do inseticida cipermetrina (até 204 microgramas por quilo); do fungicida piraclostrobina (50 μg/kg); dos herbicidas glifosato (187 μg/kg), junto com seu ácido de degradação AMPA (3116 μg/kg), e glufosinato de amônia (677 μg/kg).

Antes deste trabalho, os maiores níveis de glifosato registrados em peixes eram “menores a 10 ug/k” e “não havia” informações sobre a presença de glufosinato, assegurou Lajmanovich em um correio eletrônico.

“É necessário aumentar urgentemente a distância entre os cultivos transgênicos dependentes de pesticidas e os ecossistemas aquáticos, assim como melhorar o tratamento dos riscos ambientais”.

Publicado em: “Cocteles de residuos de plaguicidas en peces Prochilodus lineatus del río Salado (América del Sur): Primer registro de altas concentraciones de herbicidas polares”.

Um estudo sobre os efeitos de herbicidas polares publicado em 2021 detectou níveis máximos de AMPA de 300 ug/k no tecido muscular e de 650 ug/k no fígado de peixes Hoplosternum littorale (mais conhecidos como cascudos) da mesma província, precisou em outro e-mail Andrea Rossi, uma das autoras. Embora não tenho sido encontradas  evidências de danos celulares ou efeitos neurotóxicos, é possível encontrar alterações nos parâmetros hematológicos dos espécimes amostrados.

A exposição aguda às quantidades encontradas nesta ocasião, sem nenhuma dúvida, poderia gerar efeitos “múltiplos”, tanto em peixes como em humanos, que incluíam genotoxicidade (capacidade de causar danos genéticos) e disrupção hormonal, associada ao aparecimento de tumores, malformações , disfunções do aparelho reprodutor, neurotoxicidade ou problemas imunológicos, explica Lajmanovich.

Entre 2019 e 2022, o mesmo investigador ―professor titular da Cátedra de Ecotoxicologia da Universidade Nacional do Litoral― fez várias advertências semelhantes sobre os efeitos combinados do glifosato com o arsénico e com os microplásticos .

Os autores reconhecem que a alta solubilidade dos agrotóxicos faz com que a determinação dos níveis de contaminantes seja “problemática”, embora essa mesma solubilidade provoca que sua toxicidade aumente em ambientes aquáticos, onde as membranas dos peixes facilitam a absorção.

Nesse sentido, o médico  Eric Speranza – que há 14 anos encontrou altos níveis de hidrocarbornetos em curimbatpas próximos da cidade de Buenos Aires – disse por telefone que está satisfeito que foi possível medir o glifosato e o glufosinato no tecido muscular do peixe.

“Está evidenciando o impacto da atividade agrícola sojeira”, avisou o investigador do Laboratório de Química Ambiental y Biogeoquímica das universidades argentinas de La Plata e Arturo Jauretche.

Em relação a uma possível vedação provincial sobre a pesca, Speranza é cautelosa, já que se trata de uma medida que “requer ter em conta fatores econômicos e sociais, como as próprias pessoas que vivem dessa atividade”.

Fontes do Servicio Nacional de Sanidad y Calidad Agroalimentaria –encarregado de controlar a segurança dos alimentos de origem animal e vegetal na Argentina – diz ao SciDev.Net que o relatório “recebeu relativa importância”, pois eles têm dúvidas sobre sua metodologia,  , por exemplo, em relação à quantidade de exemplares analisados.

A agência atualmente não mede vestígios de herbicidas em peixes; limites máximos de resíduos (LMR) são estabelecidos apenas para vegetais. Mesmo assim, eles sugerem que os valores encontrados não representam risco à saúde humana. No caso da soja para consumo, por exemplo, o LMR para glifosato é de 5.000 μg/kg.

No entanto, os autores do trabalho insistem em que “a contaminação por agrotóxicos do Rio Salado representa uma ameaça prejudicial à viabilidade da população de peixes e outros organismos aquáticos, e um grande risco para os consumidores”.

Propõe-se uma regulação clara sobre os níveis máximos toleráveis ​​para essas substâncias, permitindo uma melhor abordagem da situação.

Diversas tentativas da SciDev.Net para obter uma declaração oficial sobre medidas futuras por parte do governo de Santa Fé foram infrutíferos até o fechamento deste texto

Link para o resumo do artigo na Science of the Total Environment


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Este artigo foi produzido pela edição de América Latina e Caribe de  SciDev.Net [Aqui!].

Estudo mostra que o Rio Doce segue despejando metais pesados no oceano por causa do desastre de Mariana (MG)

metales-Rio-Doce-996x567Um dos trechos do Rio Doce afetados pelos rejeitos da barragem. Crédito da imagem: Felipe Werneck, Ibama, sob licença Creative Commons (CC BY-SA 2.0)

[RIO DE JANEIRO] As regiões costeiras ao norte e as áreas ao sul da desembocadura do Rio Doce no estado de Minas Gerais, ao sul do Brasil, devem seguir sendo monitoradas permanentemente para avaliar suas condições ambientais e biológicas por causa do desastre ambiental ocorrido no dia 5 de novembro de 2015 pelo colapso da represa de rejeitos do Fundão.

A ruptura liberou 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro, que deslocou centenas de famílias e afetou 41 cidades e rios, incluindo o rio Doce. A represa pertence à mineradora Samarco, controlada pelas mineradoras Vale e BHP Billiton.

Agora um novo estudo que será publicado na edição de março do  Marine Science Bulletin que mapeou as rotas dos metais quatro anos depois (novembro de 2019) de ter ocorrido o delito ambiental,  mostra que o rio continua sendo uma fonte de dispersão de metais  para o Oceano Atlântico.

Os resultados corroboram com o outro de 2019 que havia sinalizado a tendência de dispersão para o norte.

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Este texto escrito originalmente em espanhol foi publicado pela SciDev.Nert [Aqui!].

Fumo produzido no Sul do Brasil usa agrotóxicos banidos internacionalmente

Multinacionais do setor orientam fumicultores a aplicarem ao menos 11 produtos químicos com substâncias proibidas na União Europeia, que, apesar disso, é o principal comprador do tabaco nacional; agricultores relatam rotina de adoecimento e contaminação

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Por Poliana Dallabrida | Fotos: Fernando Martinho/Repórter Brasil 

Mais de 8 milhões de pessoas morrem todos os anos pela exposição à fumaça do cigarro, estima a Organização Mundial da Saúde. O que esse cálculo não inclui são os riscos à saúde para quem produz o tabaco. Substâncias que podem causar câncer, são tóxicas para a reprodução humana ou desregulam a produção hormonal do corpo estão presentes em parte dos agrotóxicos usados por fumicultores do Brasil, maior exportador mundial.

Uma investigação exclusiva da Repórter Brasil e da organização de jornalismo investigativo dinamarquesa Danwatch revela que 11 produtos usados nas lavouras brasileiras de fumo são feitos à base de substâncias – chamadas de ingredientes ativos – banidas na União Europeia. Mesmo assim, é justamente essa região o principal destino do tabaco exportado pelo Brasil. Em 2022, o bloco recebeu 40% das exportações brasileiras de tabaco. A Bélgica é o maior comprador, à frente da China e dos Estados Unidos.

Repórter Brasil teve acesso às listas de agrotóxicos prescritos pelas multinacionais Philip Morris e British American Tobacco (BAT) a seus fornecedores. Juntas, as empresas recomendam o uso de até 25 produtos químicos nas lavouras, entre eles os inseticidas Actara (com o ingrediente-ativo tiametoxam), Certero (triflumurom), Evidence 700 WG e Confidor Supra (imidacloprido), Nomolt 150 (teflubenzurom) e Talstar (bifentrina), os fungicidas Dithane NT, Ridomil Gold (mancozebe) e Rovral (iprodiona) e os herbicidas Boral 500 (sulfrentazona) e Yamato SC (piroxasulfona) – cujos ingredientes ativos são proibidos no bloco europeu por causarem danos à saúde.

“Admitir que usamos agrotóxicos cujos estudos já estão consolidados e apontam que fazem mal à saúde, é nos colocarmos como um país submisso num mercado global de commodities”, afirma o pesquisador Francco de Souza e Lima, do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). “Para priorizar a exportação, nos sujeitamos a passar mal, a adoecer, e morrer, porque o resultado da exposição a essas substâncias é adoecimento.” 

A reportagem visitou dez propriedades fumicultoras nos três estados da região Sul do país, responsável por 95% da produção nacional, e não encontrou nenhum trabalhador usando os equipamentos de proteção (EPIs) recomendados para uma aplicação, teoricamente, segura dos produtos químicos.

fumo 3fumo 4Trabalhador aplica agrotóxico para impedir o crescimento de brotos nos pés de tabaco sem os equipamentos indicados para a atividade, como luvas, máscara e macacão

Consultadas pela reportagem, as multinacionais processadoras de tabaco informaram que estão substituindo os produtos danosos – ou recomendando essa substituição aos agricultores com os quais têm contrato de fornecimento. A Japan Tabacco International (JTI), por exemplo, diz que substituiu o uso dos pesticidas Actara, Confidor Supra e Talstar e que não recomenda o produto Yamato SC. “Cada país ou região é responsável por liberar ou proibir o uso de qualquer ingrediente ativo”, complementa.

A BAT afirmou que seus fornecedores usam apenas “agroquímicos aprovados, com a menor toxicidade possível” e que devem evitar produtos classificados como altamente perigosos (highly hazardous pesticides ou HHPs, na sigla em inglês) pela Organização Mundial da Saúde. “Quaisquer agroquímicos classificados como HHPs, usados antes de 2018, foram substituídos ou retirados da cadeia de produção da BAT”.

A Philip Morris respondeu que “vem promovendo proativamente o uso de compostos biológicos em detrimento de produtos químicos, visando reduzir o uso de defensivos”. 

Já a Alliance One recomenda o uso de produtos químicos registrados pelos órgãos governamentais competentes. A Universal Leaf não respondeu aos questionamentos enviados até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras. Confira aqui a íntegra das respostas das empresas. 

Tabacolândia

O pórtico de entrada da cidade gaúcha de Santa Cruz do Sul traz, em destaque, a logomarca da fabricante de cigarros Souza Cruz, antigo nome da BAT Brasil. O detalhe não deixa dúvidas: o visitante está entrando na capital nacional do fumo. No município, localizado a 150 km de Porto Alegre e com pouco mais de 130 mil habitantes, estão instaladas as fábricas de multinacionais donas dos rótulos Marlboro (Philip Morris) e Lucky Strike (BAT).

O PIB per capita local é 5 vezes maior que a média do estado. O centro de Santa Cruz tem calçadas limpas repletas de canteiros de flores e uma praça com grama impecavelmente cortada, que é coroada por uma imponente igreja em estilo gótico construída por imigrantes alemães e italianos. As marcas do setor tabagista estão por todos os lados. Em novembro, quando a Repórter Brasil visitou o município, as principais avenidas estavam decoradas com bandeiras da Oktoberfest da cidade, e as multinacionais Philip Morris, BAT, a americana Universal Leaf e a japonesa JTI se destacavam entre as patrocinadoras da festa.

Distante apenas 35 km de Santa Cruz do Sul está Vale do Sol, município de 11 mil habitantes formado sobretudo por pequenas propriedades rurais fornecedoras de tabaco. O cenário ali é bem diferente da potência econômica da cidade vizinha: casas simples dominam a paisagem, onde ainda se pode ver carroças carregadas de folhas de fumo puxadas por bois e famílias inteiras dedicadas ao cultivo. São pequenos e médios municípios como Vale do Sol que garantem o fornecimento de tabaco para o mundo. O Brasil é o segundo maior produtor global, atrás apenas da China, e principal exportador.

No interior de Vale do Sol vive Daniel*, que produz tabaco junto com a esposa, o filho e a nora para a Universal Leaf. Consciente dos riscos que a aplicação incorreta de agrotóxicos pode trazer à sua saúde, ele admite que não consegue usar a roupa de proteção recomendada pelas empresas, que inclui uma segunda pele de mangas longas e calça comprida, mais um macacão de lona, botas e luvas e ainda uma máscara que cobre rosto e pescoço inteiramente. “Se botar a roupa, não aguenta de calor. Faz mais mal ainda”, resume Daniel*. Seu verdadeiro nome e de todos os fumicultores entrevistados serão ocultados para evitar represálias às famílias, como o cancelamento do contrato de venda de fumo.

Uma pesquisa publicada em 2017 mostra que o fumo usa, em média, 60 litros de agrotóxico por hectare plantado. Essa foi a maior média entre os 21 cultivos analisados no estudo, produzido por pesquisadores do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador da UFMT, referência em pesquisas sobre o tema. “Analisamos o uso do produto formulado, ou seja, que ainda não foi diluído, que é o que é vendido aos agricultores”, explica o pesquisador Francco Antonio Neri de Souza e Lima, um dos autores do trabalho.

Uma conclusão completamente oposta aparece numa pesquisa conduzida por dois professores da Esalq, a escola de agricultura da Universidade de São Paulo (USP), e amplamente compartilhada em materiais de divulgação do sindicato das indústrias do tabaco. Publicada em novembro de 2019, a pesquisa aponta que o tabaco, entre 19 culturas analisadas, demanda a menor quantidade de agrotóxicos. Tomate, maçã e batata inglesa são, proporcionalmente, as lavouras que mais utilizam, sustenta o documento. Nesse estudo, os pesquisadores fizeram os cálculos com base em quilogramas de ingrediente ativo por hectare cultivado.

Piscina de agrotóxicos

No caso do tabaco, a maior parte dos agrotóxicos é usada na produção das mudas, feitas em pequenos canteiros. Mas também há pulverização na etapa final de crescimento das plantas.

Em propriedade fornecedora da Philip Morris, piscina onde foram produzidas as mudas de tabaco, regadas com misturas de agrotóxicos, é deixada à céu aberto

Para a produção das mudas de fumo, as sementes são plantadas em bandejas de plástico dispostas lado a lado numa lona no chão. Cercada por tijolos ou tábuas de madeira, essa área, que os fumicultores chamam de “piscina”, é preenchida com até 10 centímetros de água e banhada com pesticidas, jogados com um regador de plantas. Quando as mudas atingem cinco centímetros, são retiradas das bandejas e plantadas na terra. 

Há riscos de contaminação do solo se a lona estiver furada ou não for corretamente descartada após a produção das mudas. Era esse o caso da propriedade de Joaquim* em Vale do Sol. Os 50 mil pés de fumo cultivados ali seriam futuramente vendidos para a Philip Morris. A piscina outrora usada para a produção de mudas estava cheia de água da chuva. Dentro, boiavam uma embalagem de fertilizante e um pequeno sapo morto.

A segunda situação de exposição mais intensa do fumicultor com os agrotóxicos se dá dias antes da colheita. Quando o tabaco está quase “no ponto”, como dizem, é preciso cortar os brotos que surgem no topo da planta. Enquanto um trabalhador quebra o broto do tabaco, outro despeja um jato do agrotóxico antibrotante no talo remanescente da planta. Para isso, tanto a Philip Morris como a BAT recomendam o uso dos produtos Deoro ou PrimePlus.

Numa manhã quente de novembro, o fumicultor Tiago*, fornecedor da JTI, fazia a mistura dos produtos sem sequer usar luvas. Os frascos estavam jogados no chão, ao lado do carrinho que levava a bomba costal usada para aplicação do produto e de galões com água usada para diluir o agrotóxico. Questionado sobre o uso do EPI, ele começou a gaguejar, constrangido. “A gente tem que ter, só que é muito quente. Eu estou acostumado a trabalhar assim. Só que se a firma me pegar..”, disse, sem conseguir terminar a frase. Por sua vez, a empresa informa que fornece, a preço de custo, “uma vestimenta produzida com tecido mais leve e que possui sistema de ventilação” para aplicação dos químicos. Leia as respostas na íntegra aqui.

A poucos metros dali, outro trabalhador sem máscara, luvas ou roupas impermeabilizantes aplicava o antibrotante com uma bomba costal. Nessa área, que pertence a Francisco*, pai de Tiago*, a produção costuma ser vendida para indústrias locais ou para “picaretas”, como são chamados os compradores de fumo que atuam como intermediários entre os produtores e as indústrias processadoras.

Francisco reconhece que são raras as ocasiões em que o equipamento completo é usado. “Usamos só quando estamos trabalhando na beira da estrada porque não sabemos quando o Ministério Público [do Trabalho, órgão responsável pela fiscalização das condições de trabalho no setor] vem. [Com a roupa] tu sua, sua, sua. Tu não aguenta”, diz.

Joaquim*, fornecedor da Philip Morris, mostrou à reportagem o pacote de EPIs fechado, apesar de garantir que faz uso do equipamento completo sempre que necessário. À Repórter Brasil, a empresa reforçou que o uso dos EPIs é “obrigatório e previsto contratualmente”, verificado em visitas técnicas e também por meio de auditorias externas. Leia as respostas na íntegra aqui.

Pacote com equipamentos de proteção são oferecidos a preço de custo para fumicultores, mas o calor e a redução da mobilidade dificultam uso no dia a dia

“Olha, acho que uns 10% dos produtores usam todo o equipamento que as empresas dão”, estima Maycon, jovem que cresceu numa família de fumicultores, mas que hoje atua numa cooperativa que produz sementes orgânicas em Santa Cruz do Sul. “O resto não usa. Ou só usa quando tem visita técnica”.

“O uso do EPI é uma realidade de um universo paralelo”, afirma o pesquisador Francco Antonio Neri de Souza e Lima, da UFMT. “O EPI é difícil de ser usado. São roupas de borracha, impermeáveis. O setor tem uma tentativa de responsabilizar o trabalhador: ‘é ele que não utiliza’, ‘é ele que não quer usar’. Mas as condições de trabalho são difíceis para usar o equipamento; é quente, atrapalha a mobilidade”, explica.

Intoxicação no trabalho

É comum ouvir histórias de intoxicações por agrotóxicos na produção de fumo. Maycon conta uma experiência recente com o antibrotante Primeplus. Um mês antes de conceder entrevista à reportagem, num sábado de sol, enquanto ele  desbrotava o fumo, o sogro aplicava o antibrotante Primeplus. “Eu só sentia o cheiro daquele produto. À noite começou a me dar dor de cabeça, vômito. No outro dia eu não aguentei mais e fui pro hospital. Fiquei meio dia lá, tomei soro, medicação. Tinha tanta dor na cabeça que meus olhos pareciam que iam pular pra fora”, relatou.

Pesquisas listam os riscos à saúde dos fumicultores com a exposição prolongada aos agrotóxicos usados no setor. Um estudo publicado em 2017 realizou entrevistas e exames clínicos em 46 produtores de tabaco de Rio Azul (PR), município com a sexta maior área de lavoura de fumo do país. Do grupo analisado, 20 fumicultores foram diagnosticados com intoxicação crônica por agrotóxicos – diferentemente da aguda, essa ocorre pela exposição aos produtos ao longo de vários anos.

Outro estudo, de 2014, aponta que a intoxicação por pesticidas e o uso de agrotóxicos, especialmente os da classe de organofosforados, aumentam a taxas de suicídio. No mesmo ano, uma pesquisa realizada com 2,4 mil fumicultores mostrou ainda que exposição à agrotóxicos em sete ou mais situações – como entrada na lavoura após aplicação dos produtos químicos ou mesmo contato com a roupa usada nesse processo – aumenta em 88% a possibilidade de desenvolvimento de transtornos psiquiátricos. 

A crise de saúde mental entre fumicultores é alarmante, com um uso indiscriminado de remédios antidepressivos, segundo profissionais de saúde de municípios produtores de tabaco ouvidos em reportagem da Agência Pública.

‘Eu só queria a minha vida de volta’

A história de Maycon e de outros fumicultores ouvidos pela Repórter Brasil em campo são, em geral, de intoxicações pontuais. Mas há quem carregue o trauma, as marcas e as dores da exposição aos agrotóxicos para sempre. “Eu só queria a minha vida de volta”, resume a ex-fumicultora Lídia Maria Bandacheski do Prado.

Lídia sofre de Polineuropatia Tardia Induzida por Organofosforados, doença que contraiu pela exposição aos agrotóxicos da lavoura de fumo. Com a enfermidade, ela gradualmente perdeu o movimento das pernas, teve o movimento dos braços limitado e passou a sofrer uma série de outras complicações. São mais de sete médicos especialistas que a agricultora consulta com frequência, além de acompanhamento com fisioterapeuta, massagista e psicólogo. “Eu sinto dores terríveis que começam nas mãos e vão subindo para os braços. Tem dias que acordo e estou toda inchada, mal consigo me mexer”, relata

A ex-fumicultora mora em Rio Azul (PR). Ainda criança, com 8 anos, começou a trabalhar com os pais. “Hoje as estufas estão mais modernas, mas no meu tempo a gente dormia nas pilhas de fumo, na pilha de veneno. A empresa sugava tanto que a nossa casa era dividida com o paiol de fumo. Sentíamos o cheiro da nicotina, do veneno.”

Depois de perder o movimento das pernas como efeito da doença causada pela exposição prolongada aos agrotóxicos usados na lavoura do tabaco, Lídia Mara precisa de ajuda da mãe (ao fundo) para realizar atividades básicas do dia a dia, como preparar o almoço

Os primeiros sintomas da doença começaram em 2007, mas o diagnóstico de intoxicação por agrotóxicos veio só em 2010, depois de uma saga por diversos médicos. Em 2015, um profissional de Rio Azul atestou que a doença que Lídia havia contraído fora causada pelo trabalho. O reconhecimento do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e a concessão da aposentadoria por invalidez chegou apenas em 2017.

Desde 2015 a ex-fumicultora trava uma batalha judicial contra a multinacional Alliance One, que mantinha contrato de compra e venda de fumo com Lídia e o esposo. Vânia Mara Moreira dos Santos, advogada de Lídia, explica que a empresa questiona o diagnóstico obtido em 2015 – o documento que associa a doença à exposição aos agrotóxicos usados no setor. 

O médico perito contratado pela Alliance One afirma que Lídia não tem polineuropatia. “Na perícia ele diz que ela tem várias outras coisas, inclusive obesidade mórbida, e que uma coisa vai ocasionando a outra, mas nada causado pelos agrotóxicos”.

O mesmo perito contratado pela Alliance One também foi coordenador de um estudo patrocinado pela Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja) para avaliar o risco da exposição de trabalhadores rurais ao paraquate, agrotóxico com potencial de causar mutações genéticas, danos renais e doença de Parkinson. A pesquisa tinha o objetivo de reverter a proibição do agrotóxico pela Anvisa, que aconteceria em setembro de 2020. 

Segundo a advogada de Lídia, a Alliance One questiona também sua responsabilidade com a ex-fornecedora de tabaco. “Eles dizem que o contrato deles é um contrato de compra e venda, portanto eles não seriam responsáveis”, afirma. “Não existe um vínculo empregatício, mas existe uma relação de trabalho. São eles que determinam tudo que é feito na safra. Desde o momento em que entregam os agrotóxicos até quando se faz a classificação [da qualidade do tabaco], tudo é determinado pela empresa”, completa Santos.

A ex-fumicultora ganhou o processo na primeira instância. O juiz responsável pela análise do caso reconheceu o nexo causal entre a doença e o trabalho na lavoura de fumo. Reconheceu também a relação de trabalho entre a agricultora e a Alliance One. A empresa recorreu da decisão. Enquanto o processo segue em tramitação, a multinacional precisa pagar mensalmente R$ 6,4 mil para cobrir os custos médicos de sua ex-fornecedora. 

Procurada pela reportagem, a Alliance One afirmou que “não se manifesta em relação a processos judiciais em andamento”. 

Além do uso de agrotóxicos com substâncias proibidas na União Europeia, os fumicultores estão expostos aos riscos que também acontecem durante a colheita do tabaco. Nesse período, a coleta de folhas de fumo úmidas, seja pela chuva, pelo orvalho da manhã ou pelo próprio suor do trabalhador, desprende altas quantidades de nicotina, causando uma espécie de overdose da substância.

Todos que atuam no setor sabem o nome desse tipo de intoxicação: é a Doença da Folha Verde do Tabaco, diagnosticada nos anos 1970, e que tem entre os sintomas dor de cabeça, náuseas, vômito e tonturas. “É uma coisa muito triste. Se você não vai para o hospital tomar soro, não passa”, explica José*, fumicultor em Santa Cruz do Sul e fornecedor da multinacional americana Alliance One.

Nas dez propriedades produtoras de fumo visitadas pela Repórter Brasil, a reportagem não encontrou nenhum produtor ou trabalhador contratado usando o EPI completo recomendado para realizar a colheita – luvas, blusa de manga comprida e o avental plástico que funciona como capa protetora, como usado por representantes de classe e políticos locais em foto tirada durante a abertura da colheita de fumo de 2017 e divulgada pela Associação de Fumicultores do Brasil, a Afubra.

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O uso de EPIs completos para colher as folhas úmidas do tabaco, como na primeira foto, registrada durante cerimônia de abertura da colheita de 2017, é cena rara nas lavouras brasileiras (Primeira foto: Junio Nunes/Divulgação Afubra)

“Tem uma capa plástica para colocar, mas o sol é quente demais. Imagina [trabalhar] embaixo de um plástico”, afirma Daniel*, o produtor de Vale do Sol (RS) que vende para a multinacional americana Universal Leaf. “A gente até tenta se vestir, mas não dá para aguentar o calor, então a gente vai assim mesmo”, diz ele, apontando para as próprias roupas.

A Alliance One informou que suas equipes orientam sobre o uso correto e completo dos EPIs e que a vestimenta de colheita de tabaco úmido ou molhado assegura uma diminuição de 98% da exposição dérmica. “Outras iniciativas setoriais para produção de EPI estão em andamento, ainda em fase de estudos”, completou. Leia a resposta na íntegra aqui.

A Universal Leaf não respondeu aos questionamentos enviados até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras. 

Esta reportagem foi realizada com o apoio do Journalismfund.eu


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Este texto foi inicialmente publicado pela Repórter Brasil [Aqui!].