Somos Amazônia: saberes, desafios e visão de futuro dos povos da floresta

Jogos Mundiais dos Povos Indígenas

Jogos Mundiais dos Povos Indígenas

Por André Baniwa, Gasodá Paiter Suruí, Beka Munduruku e Nadino Calapucha

Para os povos originários da Amazônia existe uma relação indissociável entre a criação do mundo e da humanidade. Tal relação fundamenta toda explicação dos Povos Indígenas sobre a terra, a floresta, os recursos da natureza, linguagem, crenças, espíritos, criador e criaturas terrestres. Esta relação é ressaltada na visão de mundo de muitos dos Povos Índígenas da Amazônia. Por exemplo, o povo Baniwa, pertencente à família linguística Aruak, se autodeclara “Somos Amazônia”. Os Paiter Suruí de Rondônia se autodenominam gente de verdade ou povo verdadeiro. Os indígenas da Kichwa Amazônica (Amazônia Equatoriana) tratam a floresta como “Madre Selva”, “Madre Terra” ou “Madre Natureza”, sendo uma fonte de conhecimento e ensinamento para a vida. Os Mundurukus, da região do Alto Tapajós, afirmam que tudo na floresta é sagrado e tem espírito. A cultura Indígena é, portanto, intimamente ligada com a floresta e rios.

Por esta intrínseca interação com a floresta, quando há destruição, a floresta sente dor e os indígenas também. Há múltiplas estratégias de ocupação desordenada da floresta e dos territórios Indígenas (TI). O garimpo de ouro tornou-se uma ameaça aos indígenas e outras populações vulneráveis, contaminando a floresta, os rios e peixes, e reduzindo a caça. Como efeito, o povo tem ficado doente. As hidrelétricas deslocam suas populações e alteram as condições básicas de seu sustento, como disponibilidade de peixes. Para muitos, a ocupação desordenada da floresta e das TI resultaram em vidas perdidas. Assassinato, escravidão e genocídios estão no modelo atual de desenvolvimento capitalista, o qual tem resultado em processos violentos contra os Indígenas. De fato, estudos do Conselho Indigenista Missionário mostraram que a cada dois dias um indígena morre por proteger a floresta.

Os Indígenas brasileiros viveram entre 2019 e 2022 um período de desrespeito, tempo ápice de destruição física e espiritual desde 1988. Atividades, tais como desmatamento, incêndios florestais, extrativismo insustentável de recursos minerais e biológicos, monocultura, extração de madeira estão desconectando os Indígenas da floresta. O desrespeito aos Povos Indígenas ultrapassou o limite territorial da Amazônia em 08 de janeiro de 2023. O ataque violento aos prédios públicos em Brasília representou uma séria ameaça aos direitos Indígenas e à democracia de modo geral.

A destruição ou ‘fim do mundo-florestas’, segundo a profecia Baniwa, ameaça acabar com os Povos Indígenas e o mundo inteiro. O aquecimento global e a crise climática são provas de que os caminhos de desenvolvimento para a Amazônia têm sido injustos e destrutivos. Isto tem gerado fuga das comunidades Indígenas, desaparecimento de línguas e perda de territórios. O resultado tem sido um perda de conhecimento inestimável, conduzindo a humanidade para um vazio de soluções para problemas que atingem a todos.

A demarcação e homologação das Terras Indígenas (TI) têm sido fundamental para evitar a destruição dos lugares sagrados. Para os Paiter Suruí, as ameaças a seu povo e a seu território surgiram a partir de 1969 após o primeiro contato com o não-indígena. Foi necessário integrar e aprender a cultura ocidental para evitar uma extinção causada pelos colonizadores. Eles conseguiram a demarcaçao do TI Sete de Setembro em 1976, com o reconhecimento de posse chegado sete anos mais tarde em 1983. Este TI de 248 mil hectares, embora represente um reconhecimento dos direitos Indígenas, não foi necessariamente suficiente para garantir todos os meios de subsistência do povo Paiter Suruí. Por exemplo, a taboca (Bambusa spp.) é uma planta essencial para a produção de arco e flecha. As áreas onde a taboca ocorre naturalmente hoje estão dentro de propriedades privadas, em fazendas sendo necessário aos Indígenas solicitar autorização de fazendeiros para extrair a taboca. Isto mostra como os povos Indígenas estão perdendo acesso a lugares sagrados onde espécies de plantas essenciais aos seus meios de vida ocorrem de forma natural.

Há grandes desafios na superação destes problemas, entre eles, a elaboração de planos de manejo para os territórios Indígenas e estratégias para proteção de tudo que descrevemos anteriormente. Os Povos Indígenas buscam alternativas para manter sua cultura. Por exemplo, o diagnóstico etnoambiental participativo da TI Sete de Setembro, realizado no ano de 2000, registrou características históricas, ritualísticas e medicinais dos Indígenas ligadas com a floresta. Atividades como reflorestamento, turismo, artesanato, música, história e pintura corporal foram inseridas nesse planejamento. Embora existam pensamentos divergentes na TI, a gestão destas atividades para fins de conservação da floresta e da cultura é valorizada por estes grupos.

Considerando o contexto do planeta-terra, da humanidade, do Brasil e da Amazônia, descrevemos aqui alguns desejos para Amazônia Indígena fundamentais para reconstrução do bem-viver e viver dos Povos Indígenas e para proteção das florestas, da biodiversidade, do conhecimento tradicional e combate às mudanças do clima.

A educação escolar Indígena é uma ferramenta fundamental para as lutas e diálogos interculturais. A necessidade de aprender o idioma português foi estimulada por gerações passadas na TI Alto Rio Negro, Aldeia Tucumã-Rupitã do rio Içana, em São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas, Brasil. A construção da escola indígena Baniwa no ano de 2000 em resposta às articulações institucionais ao longo da década de 1990 foi uma vitória do seu povo. Cursos de magistério Indígena foram iniciados. Professores das comunidades receberam capacitação para a educação Indígena e as escolas foram adaptadas. Mais de 100 professores Baniwa foram formados. Alguns Indígenas fizeram mestrado e agora querem fazer o doutorado. O ensino superior Indígena intercultural deve focar em processos de construção da vivência Indígena. Por exemplo, viabilizando o desenvolvimento de cestaria, pimenta, canoa, rede, roça, remo, segurança alimentar, gerando novos conhecimentos e parcerias. Jovens Indígenas têm um papel chave na propagação do conhecimento ancestral, e dão voz aos desejos e necessidades de seus povos. A timidez dos Indígenas, no entanto, em especial durante a juventude, é reconhecida por eles como um desafio intergeracional pela continuidade da luta por direitos, pela manutenção dos lugares sagrados junto com as lideranças.

A Amazônia protegida é uma obrigação moral e política. Queremos sustentar a harmonia com a floresta, Amazônia respeitada, venerada, que seja esperança da humanidade, coração biológico do planeta. É preciso diálogos concretos às questões urgentes, a fim de reconstruir princípios de Estado e sociedade. É preciso compromissos internacionais como o Acordo de Paris, Convenção da Biodiversidade e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável 2020-2030 que devem ser do tamanho do sonho de conservar a Amazônia.

A participação do Indígena na política é um anseio dos povos originários. A criação do Ministério dos Povos Indígenas no Brasil, como foi descrito pela ministra Sonia Guajajara, sinaliza para o mundo o compromisso do Estado brasileiro com a emergência e justiça climática. Tal ministério é inédito na história do Brasil, assim como uma Indígena na função de ministra de Estado. Não há dúvida que a política é essencial para reconhecer e valorizar o papel dos Povos Indígenas na conservação do clima e da biodiversidade, garantindo seu acesso à educação, saúde integral, demarcação e gestão de território, proteção ambiental e articulações interinstitucionais.

Os direitos Indígenas devem ser igualmente assumidos e respeitados internacionalmente. Os Povos Indígenas não vão salvar a Amazônia sozinhos. A união entre os povos Indígenas da Amazônia deve ser estimulada. O conhecimento Indígena pode sustentar o conhecimento científico. Esta combinação pode oferecer respostas concretas a problemas críticos da Amazônia, criando um esforço intergeracional: Indígenas e não Indígenas caminhando juntos no conhecimento.

A Amazônia preservada é garantia de proteção de vidas. Queremos que os rios e a florestas sejam protegidos para as futuras gerações. Uma Amazônia livre de assassinato Indígena. Uma Amazônia sem destruição e roubo de recursos naturais. Uma Amazônia cujo povo Indígena não seja extinto por proteger seu território. Queremos a sustentabilidade a partir de plantios de espécies nativas (por exemplo, castanha e copaíba) e apoio para organizar cadeias de produtos da floresta com valor agregado que gerem renda e bem-estar social às comunidades.

O sagrado-floresta deve ser cuidado com mais elevado conhecimento que o capitalismo. Pois, manter a floresta em pé e os rios fluindo é importante para a humanidade. Além disso, é preciso mais mensagem ambiental nos meios de comunicação como jornais, livros e teleconferência. A sociedade precisa ouvir Indígenas sobre o que estão dizendo ao mundo. A natureza tem avisado que a degradação ambiental não pode continuar. Que a natureza precisa de alegria. Neste sentido, o desenvolvimento sustentável deve ser com diálogo, respeitando vidas e construindo um futuro melhor para todos.

Sobre os autores

André Baniwa é Indígena, amazonense, empreendedor social, formado em Gestão Ambiental e Vice-Presidente da Organização Indígena da Bacia do Içana. Teve papel fundamental na criação da escola intercultural Baniwa e Koripako. É autor do livro Bem Viver e Viver Bem: Segundo o Povo Baniwa no Noroeste Amazônico Brasileiro. André é autor do capítulo 32 do Relatório de Avaliação da Amazônia 2021 produzido pelo Painel Científico para a Amazônia (PCA).

Gasodá Paiter Suruí é indígena do povo Paiter, pertencente ao grupo Gãmeb (maribondo preto). Nasceu na Terra Indígena Sete de Setembro, em Cacoal – Rondônia. Graduado em Turismo com mestrado em Geografia e doutorando em Geografia. Fundador e Coordenador do Centro Cultural Indígena Paiter Wagôh Pakob. Gasodá é autor do capítulo 10 do Relatório do PCA.

Beka Munduruku é Indígena do Povo Munduruku. Mora na Terra Indígena Sawré Muybu, na região do rio Tapajós, próximo dos municípios de Itaituba e Trairão, Pará Brasil. É uma das mais novas vozes da juventude Indígena. Beka é membro do comitê estratégico do PCA.

Nadino Calapucha é Indígena natural de Arajuno, Pastaza, Equador, é da etnia Indígena Kichwas Amazônia e Coordenador das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA). Nadino é autor do capítulo 34 do Relatório do PCA.

Este artigo faz parte de série de artigos publicados, conjuntamente, por Agência Bori e Nexo Políticas Públicas por meio de parceria com o Painel Científico para a Amazônia. Para reproduzi-lo em veículos de comunicação, é preciso informar que o texto foi originalmente publicado na Agência Bori e no Nexo Políticas Públicas [Aqui!  ]. 

Observatório BR-319 se posiciona após Ibama liberar Licença Prévia para obras na rodovia sem consulta aos povos da floresta

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Agosto começa com um dos maiores desafios que a questão socioambiental que a BR-319 já enfrentou nos últimos tempos: a liberação da Licença Prévia (LP) para o Trecho do Meio da rodovia. A medida, ao mesmo tempo que é o maior avanço que o processo de licenciamento da rodovia teve nos últimos 15 anos, também é um dos maiores retrocessos em termos de respeito aos direitos dos povos da floresta e à democracia. Isso porque a LP foi emitida sem a consulta prévia, livre e informada às populações mais vulneráveis aos impactos da repavimentação da BR-319, os povos indígenas e comunidades tradicionais, extrativistas e ribeirinhas.

A LP foi expedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), na quinta-feira (28/07), para a criação de projetos para obras no Trecho do Meio (entre os quilômetros 250 e 655,7) da BR-319.

“Salta aos olhos a violação dos direitos dos povos da floresta no processo de licenciamento das obras da BR-319. A gestão pública não pode cometer os mesmos erros do passado, na década de 1970, e ignorar indígenas e comunidades tradicionais. Isso coloca em risco o bom andamento do processo e abre brechas para judicializações e mais atrasos”, avalia a secretária executiva do Observatório BR-319 (OBR-319), Fernanda Meirelles. “Além disso, vemos com grande preocupação a emissão da Licença Prévia neste momento de disputa eleitoral, a decisão tem evidente motivação política e eleitoreira”, completa Meirelles.

O diretor da WCS Brasil, organização membro do OBR-319, Carlos César Durigan, diz que é impossível concordar com a viabilidade ambiental anuída pela LP. “Ainda existem pontas soltas no processo todo e, neste caso específico, basicamente não temos garantias das agências ambientais sobre as ações de fiscalização, controle e monitoramento, nem da obra em si e seus impactos diretos. Muito menos dos tantos problemas já registrados e relatados às instituições envolvidas, como tem sido o caso de abertura de ramais, ocupação de terras públicas destinadas – Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs) – e não destinadas, que têm levado a uma explosão da degradação e desmatamento em toda a área de influência da BR-319”, diz Durigan.

Ele alerta que a pressa sempre foi a inimiga do processo de licenciamento das obras na BR-319 e razão pela qual tem demorado tanto. “Ao longo de todo o processo, e nos últimos anos, o que temos visto é uma resistência dos órgãos envolvidos em fazer acontecer as etapas de levantamento de informações e as consultas prévias, livres e informadas aos povos indígenas e comunidades locais, como é preconizado pela Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, recorda. “Essas, inclusive, têm sido as principais causas de travamento do processo de asfaltamento e manutenção. Fazer direito já demandaria muito tempo e paciência, mas fazer de modo capenga vai levar a mais questionamentos e não deve agilizar o asfaltamento, e sim gerar aberturas a processos jurídicos. Além do que, irá repercutir de forma negativa no cenário nacional e internacional”, avalia Durigan. 

É importante deixar claro que o Observatório BR-319 não é contra a reconstrução da rodovia, mas se posiciona na defesa de um processo de licenciamento transparente, democrático e inclusivo, que ouça e dê voz a quem mora em territórios tradicionalmente ocupados ao longo da rodovia e que sofrerá as piores consequências de um processo marcado por violações. 

Também é importante que a sociedade não se deixe levar por narrativas enganosas, que colocam ambientalistas, cientistas e outros como vilões e inimigos do progresso. Entra governo e sai governo, a gestão das obras da BR-319 é deliberadamente confusa, irresponsável e incompetente, por isso elas atrasam, porque não cumprem a lei e deixam brechas para a judicialização do processo. Para deixar claro e embasado o que pensa o Observatório BR-319, o coletivo emitiu uma nota de posicionamento que explica pontos fundamentais dessa situação.

Leia a nota completa aqui[Aqui!] e saiba mais sobre o assunto no Informativo Observatório BR-319 [Aqui!]

Sobre o OBR-319 

O Observatório BR-319 é formado pelas organizações Casa do Rio, CNS (Conselho Nacional das Populações Agroextrativistas), Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), FAS (Fundação Amazônia Sustentável), FVA (Fundação Vitória Amazônica), Greenpeace Brasil, IEB (Instituto Internacional de Educação do Brasil), Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia), Opan (Operação Amazônia Nativa), Transparência Internacional Brasil, WCS Brasil e WWF-Brasil.