Por Douglas Barreto da Mata
Apesar de todas as minhas críticas, algumas com tom até deselegante, reconheço, uma coisa não se pode subtrair da biografia de Lula:
Sua incrível capacidade de perceber o ambiente ao seu redor, e de tomar decisões para influir nesse ambiente.
A despeito dos chavões e lugares comuns acerca da sua origem, e o quão inédito seria um migrante de pau de arara possuir tais “dons”, como se inteligência e sabedoria para viver fossem qualidades exclusivas dos ricos e letrados (mito despedaçado na ótima obra de Suassuna, O Auto da Compadecida), o fato é que o “baiano” (como era pejorativamente apelidado nos tempos de ABC) é um cabra arretado, quando se trata de sobreviver e mudar a realidade.
Talvez por isso, justamente por isso, que eu seja tão ríspido com ele, porque se ele fosse um imbecil qualquer, eu diria: “está dentro do previsto”.
Se fosse um FHC estava tudo certo, não dava para esperar muito daquele sujeito mesmo.
Mesmo toda essa genialidade política de Lula não o salvou de si mesmo.
Explico: Lula, como todo líder genial e carismático, é ameaçado constantemente pela sua própria figura, e Lula sendo Lula, com sua origem e sua carreira política, tende a ser massacrado pelas elites, e cobrado por sua base social.
O assédio das elites é auto explicativo, ainda que Lula tenha passado boa parte de seus anos e anos de vida pública tentando convencê-los de que é “confiável”.
Já o descontentamento da sua base social é diretamente ligado ao cumprimento ou a frustração das expectativas que ele mesmo, Lula, criou em torno de si.
Então, aqui um momento de pausa dramática:
Lula não é vítima, não é um coitado incompreendido que sofre por ser rejeitado pelos ricos, e acossado pelos mais à esquerda que ele, e/ou pelos pobres e classe média ingratos, como alguns querem acreditar.
Nem tampouco, é um refém da “governabilidade” ou de um tipo de fatalismo que o coloca como um boneco imóvel no cargo que ocupa.
Seu incômodo é resultante da conta política que ele fez, ao pretender ser o eterno conciliador, e com o seu sonho de ser um JK mais contundente, ou um Vargas menos autoritário. Não deu, não foi nem uma coisa, nem outra.
Por certo, não dá para colocar a culpa só nele, sim, há contingentes históricos poderosos, mas o fato que ele é a variável principal dessa equação, inclusive para alterar a realidade que o cerca.
Nesse quesito, Lula falhou ao se adequar a esta realidade, sem ao menos tentar propor um debate de desconstrução, de ineditismo institucional, e limitou-se a fazer o permitido, e mesmo assim, teve sua sucessora golpeada, com a mão de Obama que lhe deu tapas nas costas, e que cuja administração cevou e treinou os golpistas de togas e anéis de doutores que o prenderam.
Lula renunciou ao seu fazer histórico, que pode ser (mal) definido como a nossa capacidade de entender que há coisas que nos cercam, e nos empurram para uma direção, mas que há espaço para que assumamos certo controle para mudar estas coisas.
Ceder (sempre) à “governabilidade” é uma postura cretina, porque Lula sabe que a “governabilidade” é um saco sem fundo, que se alimenta do medo dos que não querem perdê-la, enquanto ela pede mais e mais concessões. Lula é assim, um desperdício, um desperdício calculado, porém.
Agora, nesse triste episódio no Rio Grande do Sul (RS), que era mais previsível e certo que a morte e os impostos, Lula faz uma aposta.
Como não conseguiu definir no seu terceiro mandato qualquer agenda política viável, nem mesmo a defesa de seu mandato, quando bárbaros assistidos, carinhosamente, por militares vandalizaram Brasília, Lula “entregou” a pauta à uma “defesa da democracia” para o judiciário.
O judiciário que anos antes alimentou esse mesmo pessoal, quando se omitiu na cassação de Dilma, e o sequestrou na sede da Polícia Federal no Paraná
Os militares? Bem, os militares acolheram de volta dos vândalos, logo depois dos crimes, em flagrante associação ou bando (Artigo 288 do Código Penal), e mesmo assim, nada. A cena de blindados das forças armadas impedindo os policiais de efetuarem prisões dos acampados (em frente ao Comando Militar) é o retrato trágico do governo Lula, que desde ali seria marcado para sempre, como está.
Dúbio, fraco, acovardado, acossado.
No RS, Lula enxergou a sua possibilidade de recuperar terreno. No Rio de Janeiro também.
Está em andamento uma estratégia que passa pela cassação do governador e dos seus aliados, e Lula imagina que o PT seria maior beneficiado, ao mesmo tempo que força Eduardo Paes a “convidar” um petista para a vice na chapa à prefeitura neste ano, pois desse modo, o PT herdaria a prefeitura em 2026, quando Paes renunciaria para concorrer ao governo do estado.
Como uma parte das grandes forças não sobreviverá no RJ para concorrer ao cargo de governador tampão nestas eleições extraordinárias, com a cassação do governador, vice e presidente da Alerj, o PT apresentaria um candidato em condições de se eleger, e tentar a reeleição em 2026, ou ceder a vaga para Paes, em uma acordo que garantiria a vice-governadoria para o PT (e espaço no governo), além de uma vaga na chapa de senador.
Pois bem, no Sul a jogada de Lula parece ser outra. É emotiva, é a pieguice com a qual Lula imagina dominar a cena. Os vídeos de Lula beijando e abraçando as pessoas no abrigo, com o fotógrafo onipresente Stuckert ensaiando os desabrigados para o melhor “take” destruíram até essa coisa cafona, porém genuína de Lula, o seu trato com os mais pobres. Ficou feio.
Esta mesma pieguice cafona, que contaminou a todos, que parece ser um fetiche do Brasil caboclo pelos seus compatriotas de sangue europeu e olhos azuis, se materializou em uma “semi intervenção” federal, com a criação de um ministério da reconstrução. Como assim? O resto do país perguntará? Está tudo certo nas terras da Amazônia? No Cerrado? No Nordeste?
Será que essas regiões precisam se auto imolar para que tenham tamanha atenção? Ué, não é o “agro” a solução de tudo?
Por que um estado que se orgulha de sua incansável capacidade de gerar riquezas, dentro da narrativa da herança de organização rigorosa alemã e italiana, de uma ética de perfeição, frente a um país de mamelucos preguiçosos e corruptos, não conseguiu impedir o cataclisma, e pior, não conseguiu planejar como sair do lamaçal onde eles mesmos se meteram?
Por que um dos estados mais “agro” do país não consegue se reerguer com as suas próprias pernas, sendo certo que os estragos foram muito mais violentos, justamente, por causa da devastação causada por essa atividade econômica?
Não seria justo debater que este setor ajude a pagar a conta com impostos de reparação?
Não seria papel do líder máximo do país ajudar, principalmente os mais pobres, e simultaneamente cobrar responsabilidades dos ricos que causaram a tragédia, ou ao menos, concorreram fortemente para que ela acontecesse?
Lula tenta suprir sua carência de afeto, alimento principal dos líderes carismáticos, com a exploração rasteira de um fenômeno que um governo chamado de esquerda, ou progressista, ou vá lá, responsável, deveria estudar, debater e propor saídas, sem repetir as velhas fórmulas popularescas de crianças no colo, algum dinheiro nas contas, e bilhões para empresas e contratos.
Até quando Lula vai seguir matando Lula?
Silêncio sepulcral nos Pampas, onde até o Minuano virou tornado.