Por Luciane Soares da Silva
Florestan Fernandes fez muito pelo Brasil. Além de uma obra fundamental para compreender o país, nos apresentou uma frase aparentemente fácil mas extremamente profunda; ‘o Brasil tem preconceito de ter preconceito”. Vários textos contemporâneos trataram a questão explicitando um país racista sem pessoas racistas. Não leremos em placas a proibição de entrada em uma barbearia, um shopping ou no Copacabana Palace. O professor Kabengele Munanga afirmava que nossa forma de resolver a questão racial, a engenharia de nosso racismo. era mais eficaz (e um tanto mais perversa) se comparada a outros países. E esta seria nossa marca, a disseminação ideológica da impossibilidade de ser este um país racista uma vez que a miscigenação teria abarcado todas as relações sociais e íntimas. A acomodação dos opostos nas formas mais próximas de relação que se estabeleciam na Casa Grande. E eis aí uma das teses mais interessantes e controversas de Gilberto Freire: este encontro que antes de ser separação era concertação, afeto. Contribuição da cultura africana ao Brasil “amolengando” os conflitos nas formas de apadrinhamento e miscigenação populacional.
Mas nossa construção imagética sobre um país sem racistas nos apresenta com muita frequência imagens que fundem cor e violência. Joel Zito trabalha esta ideia em seu livro e depois documentário, A negação de negro na telenovela. Mas qual a importância das imagens?
Quem já pisou em um museu com quadros africanos ou instrumentos de tortura usados na escravidão deve ter recebido imediatamente um tipo de estímulo. De pavor, dor, lamento ou raiva. Quase todos que leem este texto devem ter crescido com as representações de corpos negros sujeitos a condição do escravo ou do subalterno, ladrão, alcóolatra, boêmio, sensual, mutilado física ou psicologicamente.
Antônio Sérgio Guimarães ao discutir classe e raça, no livro Classes, Raças e Democracia, observa que no Brasil se tivemos certa dificuldade no tratamento de nossa condição de operário, conhecemos desde sempre o tratamento dispensado aos escravizados. E minha interpretação seria de que esta lembrança nos diz algo sobre continuidades históricas (o pensamento social brasileiro sempre nos lembra de nossa ausência de um processo revolucionário ( e isto merece um texto único ).
Seguindo este raciocínio não é estranha a afirmação da existência desta longa duração do tratamento dispensado aos descendentes de escravos quando observamos o tratamento dispensado aos moradores de favela “quase todos pretos, ou quase pretos de tão pobres”. Seguimos um debate sobre classe e raça que tem rendido importantes contribuições teóricas. E possibilitado que se avance na política de ações afirmativas, por exemplo
Durante a pesquisa nas favelas da Maré era preciso combinar um dia para poder entrar no território. Crianças sem aula por 42 dias, pessoas buscando medicação e calmantes para sobreviver à experiência do “caveirão do ar” aterrorizando moradores frequentemente, pessoas diariamente acossadas pelas forças policiais. Com medo contínuo e aquisição de trauma coletivo semelhante a populações expostas à guerra.
Os dados apresentados sobre aceitação da operação , dizem muitas coisas. Embora façam parte de um momento dramático e de alta pressão emocional, no passado recente já houve aceitação do uso de blindados, de outras operações como a do Jacarezinho. Trago uma única variável: a cor de quem é executado. E devemos observar ainda os casos de execuções com sinais de tortura. Seria errado dizer que é isto que a população fluminense está aprovando? Execuções com sinais de tortura de pessoas que sequer foram identificadas?
Mas gostaria de estabelecer aqui uma questão sobre metodologia de pesquisa (é o que fazemos, é o nosso ofício e isto não desqualifica pesquisadores em segurança pública). As pesquisas que sempre buscam seu grau de cientificidade em bases quantitativas sempre me lembram da limitação desta técnica. Especialmente com determinados grupos. Entre eles, os moradores de favela. Vamos fazer um exercício fácil. Mudar as questões e pensar em outros resultados. Se você perguntasse sobre o grau de confiança na polícia aos mesmos grupos pesquisados no dia 10 de outubro? Se você perguntasse sobre tapas na cara e outras formas de humilhação ? Se antes da operação, você perguntasse o que acham do governador ? E qual o peso das respostas de católicos e evangélicos ? E se você morasse em área de milícia, poderia responder o que pensa ? Já fiz entrevistas em favelas nas quais a pessoa só respondia com a cabeça porque ela sabia exatamente onde estavam as facções durante a UPP. Conclusão: você pode usar a estatística para obter resultados diferentes com o mesmo grupo. Depende de quando, como e o quê deseja obter como resposta.
Existem aqueles que se indignam com a injustiça representada pelas 121 mortes até aqui. E em minha trajetória como pesquisadora eu estaria neste grupo. Mas ao seguir metodologicamente o exercício de permanecer dentro das favelas e seguir cotidianamente aprofundando os diálogos, passei da relação formal de pesquisadora à experiência de imersão cotidiana junto aos moradores. Então tenho meus afetos a defendo que esta não é a variável que diminui nossa objetividade no fazer científico. A postura que exigiram de minha geração sempre retomava o afastamento como técnica de pesquisa para que não fosse perdida a objetividade. Os moradores de favela que entram na Universidade e que pretendo formar não serão menos capazes de manter a objetividade. Seria impossível aceitar que além de corpos estraçalhados, este exercício de manutenção da objetividade nos demandasse esquecer cada luta desde o Brasil Colônia. Que não foi outra coisa se não uma luta contra o extermínio que segue historicamente o mesmo modus operandi.
Nosso sentimento, daqueles que estão lá, têm parentes, temem pela vida de policiais expostos a estes eventos passa por tristeza, indignação. Mas não perco a objetividade quando observo os olhos de uma mãe cujo filho foi desaparecido pelo Estado. Eu ouvi mais de 30 mulheres, ouvi longamente suas histórias de vida. E muito do que tinham em comum, era comum às suas mães e avós. Um século de subemprego, um século de ausência de direitos, um século de mortes.
Esta condição vergonhosa é nosso legado, nossa face global. Nossa estatística diária de execuções e torturas. E acredito que ao fazer o registro deste cotidiano, ao ouvir estas histórias de vida, não deixamos de fazer uma ciência relevante. Que nunca permita o esquecimento da história. E que faça justiça aos mortos pelo Estado.
Luciane Soares da Silva é professora associada da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf)











