Soba batuta firme da ministra Tereza Cristina e do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil realizou uma das maiores ondas de aprovações de agrotóxicos da sua história, com resultados imprevisíveis sobre a saúde humana e o meio ambiente
Após um longo e exaustivo trabalho de compilação, o Observatório dos Agrotóxicos do Blog do Pedlowski divulga com exclusividade a base completa contendo os 2.030 agrotóxicos liberados pelo governo Bolsonaro entre janeiro de 2019 e dezembro de 2022. Além disso, divulgo outras seis planilhas relativas aos atos promulgados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) entre os meses de setembro e dezembro de 2022 (46, 50, 53, 63 e 64). A divulgação desses dados é voltada para informar a população e pesquisadores que estejam neste momento com sua atenção voltada ao estudo da economia política dos agrotóxicos em nível global e no Brasil, bem como seus efeitos sobre a saúde humana e o meio ambiente.
Uma nota de precaução é que apesar de todos os esforços, algumas informações mudaram e mudarão ao longo do tempo, especialmente no que se refere à condição de permissão dos agrotóxicos na União Europeia, pois os órgãos reguladores europeus estão constantemente ajustando padrões de segurança e observando datas limites de permissão de determinados agrotóxicos, o que implica em que alguns produtos que estejam habilitados a uso possam passar à condição de proibidos. Além disso, o fato de que apenas em dezembro de 2022 foram publicados 2 atos (aparentemente em correria pelos avaliadores) que apresentaram uma série de lacunas técnicas que deixam claro que há que se usar a base levando a presença de inconsistências. Entretanto, esse fato não diminui a riqueza de informações que foram compiladas a partir dos atos publicados pelo MAPA.
O Brasil se tornou o destino de agrotóxicos altamente perigosos que já estão proibidos em outras partes do mundo
Como já observei em postagens anteriores, o estudo inicial da base geral e das planilhas individuais mostra que o Brasil se tornou o destino de agrotóxicos altamente perigosos que já se encontram proibidos em outras partes do mundo, a começar pela União Europeia. Dentre estes produtos proibidos e que estão sendo amplamente utilizados no Brasil, ainda mais após o governo Bolsonaro, e que já estão tendo repercussões sobre a saúde humana e os ecossistemas naturais. A questão é que estas substâncias, apesar de estarem sendo usadas de forma ampla, geral e irrestrita, as conexões entre a sua presença e os impactos sobre a saúde humana não ainda estão claramente identificadas, o que gera um ambiente social de menosprezo das consequências com o contato, seja ele agudo ou crônico.
Um fato claro que emerge dos dados sobre os agrotóxicos liberados pelo governo Bolsonaro é que a maioria se destina a aumentar o uso já dominante em agriculturas de exportação, principalmente a soja, o milho, a cana de açúcar e o algodão. Isto não apenas reforça o caráter de economia dependente do Brasil, pois o principal fornecedor de agrotóxicos é também o principal comprador de diversas commodities agrícolas brasileiras, mas também o fato de que para sustentar o modelo agrícola exportador, o Brasil e sua população são transformados em uma latrina química para onde são enviados produtos que já estão rejeitados em países que recusam determinados agrotóxicos que são considerados altamente perigosos.
Representantes de empresas brasileiras fabricantes de agrotóxicos participam de conferência na China
Outro aspecto que fica claro é a dependência crescente do Brasil em relação à indústria chinesa de agrotóxicos, principalmente no fornecimento de agrotóxicos pós-patente ou genéricos onde estão concentradas as substâncias mais perigosas. Entretanto, empresas alemãs como a Basf e a Bayer foram beneficiadas com a aprovação de centenas de produtos, muitos deles proibidos na Europa onde as empresas estão sediadas.
Por outro lado, há que se frisar que houve a aprovação de um grande número de agrotóxicos biológicos, a maioria deles produzidos por empresas brasileiras ou de subsidiárias de multinacionais sediadas no Brasil. Esse é um elemento que deverá merecer uma análise mais profunda, na medida em que parece estar em curso um giro na indústria dos venenos agrícolas para fazer frente ao processo de crescimento de resistência aos agrotóxicos químicos.
Findo o governo Bolsonaro, o Observatório dos Agrotóxicos continuará seu trabalho
Apesar do governo Bolsonaro ter terminado, o Blog do Pedlowski continuará acompanhando a aprovação de agrotóxicos, pois a previsão é de que a pressão do latifúndio agro-exportador e das multinacionais produtores de veneno continuará sendo grande para que se aprovem ainda mais agrotóxicos.
Ainda que o presidente Luís Inácio Lula da Silva tenha apontado para um compromisso com o fortalecimento de um modelo agrícola de base ecológica e menos dependente de agrotóxicos, o fato é que o latifúndio agro-exportador es seus representantes no Congresso Nacional continuarão comprometido com um modelo agrícola dependente e altamente viciado em agrotóxicos. Assim, a avaliação é de que na questão do modelo agrícola repousa um dos maiores desafios do governo que assumiu em janeiro de 2023.
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A cana-de-açúcar, juntamente com a soja e o milho, são as três principais culturas agroindustriais que mais utilizam agrotóxicos em sua produção. No Brasil, juntos, eles usam 80% de todos os pesticidas aplicados. Crédito da imagem: Andrés Garzón/Flickr , sob licença Creative Commons (CC BY 2.0)
Por Washington Castilhos para a SciDev
[RIO DE JANEIRO]. Um dos grandes desafios de Luís Inácio Lula da Silva, que assumiu a presidência do Brasil em 1º de janeiro, será reduzir o uso indiscriminado dos chamados “defensivos agrícolas”, intensamente promovidos pelo governo de seu antecessor.
Só nos últimos quatro anos, 1.800 agrotóxicos foram introduzidos no mercado brasileiro, a maioria (59%) de origem chinesa, segundo dados de um novo estudopublicado na revista Third World Quarterly .
Um primeiro passo para o novo governo enfrentar essa situação seria revogar odecreto presidencial de 2021 , que antecipa disposições contidas no projeto de lei6.299, ainda em tramitação no Congresso Nacional, conhecido como “Lei do Veneno”.
É o que aponta ao SciDev.Net a toxicologista Karen Friedrich, pesquisadora do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz.
Ela garante que, se o projeto for aprovado, parte da legislação atual que proíbe o registro de substâncias que causam câncer, mutações ou distúrbios hormonais será eliminada e reduzirá o poder de órgãos de controle, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Para o geógrafo Marcos Pedlowski, as alternativas ao uso de agrotóxicos seriam a reforma agrária e o incentivo àagricultura familiar e à policultura.
“Estamos priorizando as monoculturas de exportação altamente dependentes de agrotóxicos. Precisamos sair dessa dependência do ciclo do veneno”, diz Pedlowski, pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) no Rio de Janeiro e um dos autores do estudo junto com pesquisadores da Universidade de Helsinki, ao SciDev. Net . Finlândia.
E Friedrich complementa: “O país precisa adotar um novo modelo agrícola baseado nos valores agroecológicos e na produção orgânica”.
Se forem considerados países com o mesmo padrão agrícola e dimensões territoriais comparáveis, e com base na razão de quilos de agrotóxicos por hectare (kg/ha), que é a metodologia utilizada pela Agência das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o Brasil –com 2,77 kg/ha– ocupa o segundo lugar entre os maiores consumidores do mundo, precedido apenas pela China (10,93 kg/ha) e seguido pelos Estados Unidos (2,38 kg/ha) e Argentina (2,37 kg/ha).
O uso de agrotóxicos no Brasil passou de 16 mil toneladas por ano para quase 500 mil em cinco décadas, segundo o referido estudo.
“Uma das consequências do uso dessa quantidade de agrotóxicos altamente nocivos é o aumento da exposição das pessoas a resíduos de produtos conhecidos por causarem diversos tipos de doenças ”, destaca Pedlowski.
Pesticidas e a UE
Do conjunto de agrotóxicos aprovados pelo governo anterior, um terço são proibidos na União Europeia. No entanto, muitos alimentos brasileiros tratados comagrotóxicos proibidos pela UE chegam ao mercado europeu, para o qual o Brasil é um dos mais importantes fornecedores de produtos agrícolas.
Pedlowski explica que a UE tem critérios muito mais restritivos para limites de resíduos em alimentos do que o Brasil, então, quando esses resíduos ultrapassam o permitido, os governos emitem alertas ou até suspendem a entrada de alimentos altamente contaminados. E lembre-se que há alguns anos a Rússia emitiu umalerta sobre o excesso de glifosato na soja brasileira.
Em seu relatório anualde 2022 sobre resíduos de pesticidas em alimentos, a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos revelou que metade das frutas e vegetais no mercado europeu está contaminadacom resíduos de pelo menos um pesticida, enquanto um quarto deles contém um coquetel de até 15 resíduos de agrotóxicos.
“Em breve, os parlamentos nacionais europeus terão que ratificar uma lei muito mais restritiva em relação aos alimentos contaminados com agrotóxicos. Essa será uma questão para a qual o Brasil deve se preparar”, prevê o pesquisador.
No entanto, entre os agrotóxicos introduzidos no Brasil nos últimos quatro anos, 4% vêm de empresas europeias. Ou seja, embora esses produtos sejam proibidos em países com regulamentações mais exigentes, eles continuam sendo vendidosem países do hemisfério sul com economias baseadas em grandes áreas de monoculturas de exportação, como Argentina e Brasil.
É o caso doglifosato e da atrazina, herbicidas que, apesar de proibidos na Europa, são os mais utilizados nos países tropicais “onde ocorrem 99% das intoxicações agudas associadas”, revela o estudo.
O efeito devastador do uso indiscriminado de agroquímicos na agricultura é retratado no minidocumentário argentino O custo humano dos pesticidas, que mostra as mutações genéticas e outras condições associadas à exposição ao glifosato que afetaram populações em várias províncias desse país.
Oito intoxicações diárias
No Brasil, de acordo com o Sistema de Informação de Agravos de Notificação Obrigatória (SINAN), 25.106 pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos entre 2007 e 2014, uma média de oito intoxicações por dia.
E de acordo com o mais recente relatórioda rede ambiental Friends of the Earth – Europe, a cada dois dias no Brasil uma pessoa morre por envenenamento por agrotóxicos. 20 por cento das vítimas são crianças e adolescentes até 19 anos de idade.
Os casos de intoxicação se concentram no centro e sul do Brasil, justamente onde estão as principais culturas do agronegócio, como soja, milho ou cana-de-açúcar. Juntas, essas três culturas usam 80% de todos os pesticidas aplicados.
Vários estudosnessas regiões apontam maior incidência de câncer, problemas reprodutivos, infertilidade masculina e malformações em bebês, principalmente devido à exposição ocupacional de trabalhadores rurais.
“A população em geral consome agrotóxicos tanto na água quanto nos alimentos. Estamos comendo e bebendo nossa dose diária de veneno.”
Karen Friedrich, Centro de Estudos em Saúde Ocupacional e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz
Karen Friedrich, que não participou do estudo do Third World Quarterly , lembra que pesquisas recentes encontraram vestígios de pesticidas não apenas nos alimentos, mas também na água, por meio da contaminação do solo e das águas subterrâneas.
“A população em geral consome agrotóxicos tanto na água quanto nos alimentos. Estamos comendo e bebendo nossa dose diária de veneno”, disse Friedrich ao SciDev.Net.
A pesquisadora alerta que corremos o risco de consumir alimentos que contenham agrotóxicos em doses acima do permitido (que são calculadas para cada agrotóxico), bem como um grande número de substâncias diferentes em um mesmo alimento.
“Ao longo do tempo, doses repetidas desses coquetéis constituem um alto risco à saúde da população”, acrescenta o médico biomédico.
Segundo os pesquisadores, a crença de que sem agrotóxicos é impossível manter o nível de produtividade agrícola exigido pela população humana é um mito.
“Trata-se mais de uma mudança na forma de produção do que de proteção contra pragas”, destaca Pedlowski. “Além disso, os altos custos desses insumos impactam na produção de alimentos”, conclui.
Especialistas ouvidos pela Repórter Brasil elegem 5 prioridades para reduzir o uso de veneno nas lavouras; revogar medidas de Bolsonaro, acabar com isenção de impostos e incentivar a agroecologia estão entre as sugestões
Por Hélen Freitas para a Repórter Brasil
Ao tomar posse como presidente da República em 1º de janeiro, Luiz Inácio Lula da Silva encontrará um país que viu1.800 novos agrotóxicosserem aprovados nos últimos quatro anos. Apesar desse recorde batido por Jair Bolsonaro, o brasileiro hoje sequer pode saber se seu prato está mais envenenado: desde 2020 o governo não divulga o monitoramento dos alimentos.
Nesse cenário, para cumprir sua promessa de combater a fome garantindo uma alimentação mais saudável,como já defendeu, Lula precisará reverter o “libera-geral” promovido por Bolsonaro no campo dos agrotóxicos. A Repórter Brasil conversou com diversos especialistas para saber quais medidas o novo governo precisa adotar para vencer esse desafio.
Lula tem defendido uma produção agrícola menos destrutiva, ao mesmo tempo em que busca se reaproximar do agronegócio (Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação)
O discurso de Lula na COP-27(Conferência das ONU sobre Mudanças Climáticas) trouxe alguma esperança para quem acompanhou com apreensão os anos de Bolsonaro. Nele, o futuro presidente afirmou que “a produção agrícola sem equilíbrio ambiental deve ser considerada uma ação do passado”. Lula defendeu ainda uma aliança estratégica com o agronegócio “na busca por uma agricultura regenerativa e sustentável, com investimento na ciência, tecnologia e educação no campo, valorizando os conhecimentos dos povos originários e comunidades locais”.
Ao mesmo tempo, nos 13 anos em que governou, o PT aprovou o mesmo tanto de agrotóxicos que Bolsonaro em seus 4 anos de mandato. O uso dos pesticidas aumentou, houve incentivos financeiros para grandes produtores e a permissão para o cultivo de novas sementes transgênicas.
Principal lobista dos agrotóxicos, o agronegócio foi forte aliado de Lula em seus mandatos anteriores, e o presidente eleito tem buscado renovar esses laços. Se não é razoável imaginar que o novo governo vai bater de frente com os interesses de um dos setores mais organizados do país, os especialistas consultados por essa reportagem lembram que a aliança de Lula com o agro sempre ocorreu em paralelo com o espaço para o debate e investimentos na produção alternativa, na agricultura familiar e nas pesquisas.
“Quando você tem a troca para um governo que se diz a favor do meio ambiente, a favor da mitigação da crise climática, que entende que ela existe, que não nega a importância da pesquisa, da ciência, você já tem uma atmosfera de fazer política completamente diferente”, avalia Marina Lacôrte, da Campanha de Agricultura e Alimentação do Greenpeace.
Confira as cinco ações consideradas prioritárias para reduzir a quantidade de agrotóxicos que chegam no prato no brasileiro:
1. Barrar o PL do Veneno
Uma das medidas mais urgentes a serem tomadas é barrar a tramitação do projeto de lei 1.459/2022, conhecido como PL do Veneno. O texto flexibiliza o uso dos agrotóxicos, deixa trabalhadores rurais mais expostos a riscos e diminui o papel de órgãos reguladores, como a Anvisa e o Ibama, no controle dessas substâncias.
O projeto é rejeitado pela comunidade científica e defensores dos direitos humanos e ambientais. Mais de 300 organizações, como Instituto Nacional do Câncer, Ministério Público Federal, Anvisa, Ibama, Fiocruz e até a Organização das Nações Unidas, já se manifestaram contra a sua aprovação, apontando ameaças à saúde e ao meio ambiente.
Após anos parada, a proposta ganhou força a partir de 2018 e, em fevereiro passado, foi aprovada na Câmara em votação a toque de caixa. O Senado ainda tentou fazer o texto passar no apagar das luzes da legislatura. Em 19 de dezembro, o projeto foi aprovado na única comissão designada a analisá-lo: a de Agricultura, espaço dominado pela bancada ruralista. Agora, o PL do Veneno aguarda votação no plenário da Casa, o que está previsto para o início de 2023.
Ruralistas buscam aprovação do ‘PL do Veneno’ para consolidar desmonte proporcionado pelo governo Bolsonaro (Foto: Charles Echer/Pixabay)
Na votação do último dia 19, membros da base de apoio de Lula se posicionaram contra a aprovação do projeto. “Isso [o agrotóxico] logo vai matando os peixes, matando as vidas nos rios, além do impacto que tem na saúde humana, na saúde pública”, declarou o senador Paulo Rocha (PT-PA). No entanto, nas últimas semanas, o tema chegou a causarembates dentro do governo de transição,opondo representantes da área ambiental com as vozes do agronegócio.
O adiamento da votação em plenário trouxe alívio para quem tenta impedir um retrocesso ainda maior na política para os agrotóxicos. “Durante a tramitação desse projeto de lei, a gente observou poucos espaços de debate. Esse momento de transição já trouxe a chance de poder falar, de se discutir tecnicamente”, afirma Karen Frederich, pesquisadora da Fiocruz e membro da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
Ter espaço para uma discussão mais democrática da proposta já é uma vitória, mas ganhar a batalha política ainda é desafio considerando a força do agronegócio. Caso eleja a pauta como prioritária, o novo governo tem a possibilidade de negociar com o Parlamento, por meio da articulação de sua base de apoio, para evitar a aprovação do projeto. Se, mesmo assim, o texto for aprovado, Lula também pode vetar seus pontos mais prejudiciais.
“Por mais que o Legislativo vá oferecer desafios e muitos obstáculos, existe toda uma estrutura do Executivo para reconstruir programas, sem necessariamente disputar leis no Congresso”, afirma Lacôrte.
2. Incentivar a produção mais saudável
Outro ponto considerado fundamental é o incentivo à agricultura orgânica e agroecológica.
“Ninguém é louco de fazer uma proposta de acabar com a agricultura brasileira. O problema é que a gente sabe que os produtos que estão sendo usados não estão funcionando mais. Não é à toa que cada vez se usa mais agrotóxicos”, ressalta Rogerio Dias, engenheiro agrônomo e presidente do Instituto Brasil Orgânico, se referindo ao aumento da resistência das pragas das lavouras aos pesticidas empregados hoje.
Para fomentar uma agricultura mais saudável, ressuscitar a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA) é uma das grandes apostas dos especialistas ouvidos pela Repórter Brasil. Transformada em projeto de lei em 2016, a proposta chegou a ser aprovada em uma comissão especial na Câmara, mas está parada desde 2018. Retomar a tramitação depende do interesse político do novo governo.
Para especialistas, discutir segurança alimentar no Brasil passa por incentivar a produção orgânica e agroecológica. (Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação)
A PNARA prevê a diminuição gradual do uso de agrotóxicos e o estímulo à transição agroecológica. A política também estipula que todas as substâncias autorizadas passem por uma avaliação, no mínimo, a cada 10 anos. Atualmente não há prazo definido para esse processo, o que faz com que, uma vez aprovado, um agrotóxico dificilmente saia do mercado, ainda que surjam novas evidências científicas contrárias a seu uso.
Além disso, o projeto reforça a proibição de aplicação de veneno próximo a áreas de proteção ambiental, recursos hídricos, plantações orgânicas e agroecológicas, moradias e escolas. Outro ponto é a previsão de redução gradual de pulverização aérea de agrotóxicos nas lavouras, prática já proibida na União Europeia por aumentar o risco de deriva – quando o vento carrega o veneno para casas, rios e outros locais próximos, trazendo prejuízos à saúde e ao meio ambiente. No Brasil, mais de 15 municípios e o estado do Ceará já proíbem a prática, apesar da grande pressão do agronegócio para rever as decisões.
A agroecologia, porém, “não é só produção sem agrotóxicos”, pondera Sarah Moreira, consultora junto à Articulação Nacional de Agroecologia, que lembra que a prática demanda garantias de acesso à terra e à água, apoio à agricultura familiar e conservação das sementes nativas do país, dentre outras medidas.
3. Fortalecer os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente
Três órgãos são responsáveis por fiscalizar o uso e realizar o monitoramento e o registro dos agrotóxicos no país: o Ministério da Agricultura, a Anvisa (vinculada ao Ministério da Saúde) e o Ibama (ligado ao Ministério do Meio Ambiente). Durante o governo Bolsonaro, as duas últimas agências sofreram diminuição de equipes e recursos – o orçamento previsto para o Ministério da Saúde em 2023, por exemplo, é o menor desde 2014.
Governo Bolsonaro paralisou o principal programa de monitoramento de agrotóxicos nos alimentos (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
O sucateamento prejudicou o trabalho desses órgãos, e o resultado foi um apagão de informações: pouco se sabe sobre o que está sendo usado nas lavouras e, por consequência, o que chega à mesa dos brasileiros. Desde 2020, a Anvisa não divulga o resultado do principal programa de monitoramento de veneno nos alimentos. Grande parte dos municípios do país não estão repassando ao Ministério da Saúde informações sobre aqualidade da águaque abastece as casas, incluindo sobre a quantidade de agrotóxicos que sai da torneira.
“A gente acredita que fortalecer os organismos e as agências para que cumpram seu papel de fiscalização, regulamentação e monitoramento, é sim uma prioridade”, afirma Rafael Rioja, coordenador de consumo sustentável do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
Depois dos ataques sofridos pelos órgãos nos últimos anos, Rioja vê uma sinalização para o fortalecimento dos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde no novo governo, mas acredita que o processo não se dará da noite para o dia. “A gente tem que entender que estamos partindo de um cenário de completa desconstrução desses órgãos e de todas as suas instâncias.”
4. Acabar com a isenção de impostos para os agrotóxicos
As isenções e reduções de impostos para venda de agrotóxicos é outro item que precisa ser revisto pelo novo governo, de acordo com os especialistas. Um estudo produzido pela Abrasco revelou que as empresas que produzem agrotóxicos deixaram de pagar quase R$ 10 bilhões por ano em impostos federais e estaduais em 2017, quase o dobro gasto no mesmo ano pelo Sistema de Saúde para tratar pacientes com câncer, uma das principais doenças resultantes do uso indiscriminado dessas substâncias.
Durante a pandemia, os governos estaduais prorrogaram pela 23ª veza isenção de ICMS dos agrotóxicos, sob a justificativa de incentivar a produção agrícola. Neste ano, Jair Bolsonaro concedeu isenção de 100% de IPI (Imposto sobre Produto Industrializado) para a maioria desses produtos, via decreto.
Economia da indústria dos agrotóxicos com impostos é maior do que gasto do SUS com o tratamento do câncer, doença associada ao uso do produto (Foto: Pixabay)
De acordo com as organizações ouvidas pela Repórter Brasil, o governo Lula poderia rever as leis e decretos que permitem as isenções fiscais e, no caso do ICMS que é definido pelos governos estaduais, enviar uma recomendação ao Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), solicitando a retomada da cobrança do tributo.
Rogerio Dias sabe, porém, que o tema enfrenta forte resistência do agronegócio. “Por mais que a gente tenha expectativa de ter outra perspectiva de governo, principalmente com as questões ambientais, sabemos que não vai ser fácil.”
5. Revogar normas publicadas por Bolsonaro
O governo Bolsonaro promoveu um verdadeiro “libera-geral”, com a publicação de medidas que facilitam o uso de agrotóxicos no Brasil e que precisam ser revistas. “A situação é tão caótica que a lista de revogações é imensa, porque realmente a gente está vivendo uma situação assustadora”, avalia Sarah Moreira.
Durante o governo Bolsonaro, novos agrotóxicos foram liberados, o uso foi facilitado e a classificação de risco de substâncias, reduzida (Foto: Alan Santos/PR)
O caso mais lembrado é o do Decreto 10.833/2021, que permitiu que pesticidas que causam doenças como câncer possam ser liberados no país caso exista um “limite seguro de exposição”. Ou seja, mesmo que um agrotóxico seja comprovadamente cancerígeno, ele pode ser aprovado caso avaliem que, ao ser utilizado da forma correta, o risco de desenvolver a doença é “aceitável”.
Na atual legislatura, também foram publicadas uma série de resoluções que alteraram os critérios para classificação de riscos e informação nos rótulos de agrotóxicos considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Levantamento feito pela Repórter Brasil e pela Agência Pública mostrou que 93 produtos formulados à base de glifosato tiveram a classificação de toxicidade reduzida, passando a ideia para os agricultores de que seu risco para a saúde é menor. Pesticida mais vendido no Brasil, ele é classificado como provavelmente cancerígeno pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc).
“Quando a gente fala de fome, a gente está falando de segurança alimentar, do modo como a agricultura está sendo promovida. A gente sabe que essa lógica de produção precisa mudar”, afirma o presidente do Instituto Brasil Orgânico. Sarah Moreira concorda. “Combater a fome não é dar qualquer comida, mas sim oferecer alimentos saudáveis.”
Este texto foi originalmente publicado pela Repórter Brasil [Aqui!].
Uma das áreas em que o governo de Jair Bolsonaro foi efetivo foi o do desmantelamento da legislação ambiental, incluindo a que regulava a aprovação de agrotóxicos. Nessa área, com a ajuda fundamental da ministra Tereza Cristina, o governo Bolsonaro literalmente passou o rodo nos brasileiros. O resultado dessa ação concertada entre fabricantes, latifundiários e membros do parlamento é que hoje estamos todos submetidos a um impacto inédito decorrente da ampla utilização de agrotóxicos banidos em outras partes do mundo.
Muito se fala do impacto que o latifúndio agro-exportador teve no desmatamento da Amazônia e do Cerrado, mas bem menos é abordado sobre a relação entre desmatamento e a transformação do Brasil em uma espécie de piscina química onde são despejados produtos que estão banidos em seus países de origem por serem tão perigosos que não compensam mais os eventuais ganhos que trazem na produção agrícola.
A verdade é que a questão da transformação do Brasil no principal mercado mundial de venenos agrícolas está na raiz da hegemonia política alcançada pelos latifundiários que hoje correm livres para desmatar e envenenar regiões inteiras da Amazônia, o que só é possível por causa de um grande acordo político com Jair Bolsonaro.
O presidente eleito Lula da Silva sinalizou no seu discurso da vitória um vago compromisso com uma nova forma de produzir alimentos, um que se baseie nos conceitos elaborados e sintetizados no que conhecemos como sendo “agroecologia”. Provavelmente a maioria não se ateve a essa parte do discurso vitorioso, mas ela é uma questão extremamente estratégica. É que além de todo o discurso de que o “agronegócio” brasileiro alimenta o mundo ser falacioso (pois não é nem próximo de ser verdade), o que temos em termos de produção agrícola não chega em sua maioria no prato dos brasileiros. Dados sobre a produção, aliás, mostram que uma porcentagem altamente significativa do principal grão produzido no Brasil, a soja, serve apenas como alimentação de porcos na China.
Assim, alimentar os brasileiros com comida saudável certamente entra em choque com o atual modelo agrícola ancorado no veneno e no alto nível de financiamento público. Reverter isso pode parecer secundário, mas é central. É que além de se defrontar com os representantes do latifúndio nacional, o governo Lula terá que se defrontar com o poder das grandes transnacionais produtoras de venenos agrícolas (por exemplo: Bayer/Monsanto, Basf, Syngenta/ChemChina, DowDupont) que gozaram de ampla liberdade durante o governo Bolsonaro para realizar seu lobby pró-veneno.
A boa notícia é que há cada vez mais um acordo em torno da necessidade de se reverter não apenas a forma de produção de alimentos no mundo, mas também dos mecanismos de circulação e distribuição.
Crianças e jovens que vivem em regiões com maior produção agrícola são mais propensos a desenvolver câncer, revela estudo. Alerta sobre riscos ligados à exposição já havia sido feito pelo Instituto Nacional do Câncer
Por Schirlei Alves, especial para o Joio e O Trigo e De Olho nos Ruralistas
O câncer infantojuvenil tem aumentado no Brasil e hoje já representa a primeira causa de morte por doença entre crianças, adolescentes e jovens entre 1 e 19 anos, correspondendo a 8% do total de óbitos nessa faixa etária. O dado é do Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca), ligado ao Ministério da Saúde.
Ao menos 12 estudos publicados nos últimos seis anos no Brasil buscam avaliar o efeito da exposição aos agrotóxicos nas células, como mostramos em uma das reportagens da série Brasil Sem Veneno. Os resultados indicaram que os agentes químicos podem provocar dano ao DNA e, por consequência, levar ao desenvolvimento de câncer. Um dos estudos revelou ainda que crianças e jovens que vivem em regiões com maior produção agrícola são mais propensas a desenvolver a doença.
Além do crescimento dos casos de câncer infantil, as malformações congênitas e imunodeficiências também têm aumentado, alerta a médica pediatra e pesquisadora Silvia Brandalise. Ela é fundadora do Centro Infantil Boldrini, em Campinas (SP), referência no combate ao câncer no Brasil.
De acordo com a especialista, tanto a exposição ambiental, como a inalação de agentes químicos, o consumo de alimentos ou água contaminados, a dedetização da casa ou o uso de produtos na pele que contenham derivados de benzeno ou glifosato, por exemplo, são lesivos a toda célula viva. As substâncias, segundo Brandalise, têm capacidade de agredir o DNA do material genético, o que pode alterar a proliferação ou a multiplicação da célula. A leucemia em crianças de até dois anos, por exemplo, pode ocorrer pela exposição materna ou paterna no ambiente de trabalho.
“Outra coisa que se vê é um aumento dos danos neurológicos, inclusive de autismo, que [as pesquisas] associam tanto a metais pesados contaminantes de alimento e água, como a presença de glifosato [um dos ingredientes usados em agrotóxicos], que possa estar neste material. São doenças crônicas que se expressam na criança e que, essas que eu mencionei, aparecem numa linha discretamente ascendente através das décadas, há publicações sobre isso em vários estudos internacionais”.
É importante ressaltar que o aparecimento ou não da doença, no entanto, depende de outros fatores externos e também genéticos, incluindo a capacidade do indivíduo em reparar esses danos. Todas essas variáveis são levadas em conta nos estudos. Pesquisas publicadas em anos anteriores e estudos internacionais já fizeram associação da exposição aos agrotóxicos ao desenvolvimento de câncer por meio de estudos epidemiológicos.
Polos do agronegócio lideram taxas de câncer infanto juvenil
Um dos estudos mais recentes, chamado “Câncer infantojuvenil: nas regiões mais produtoras e que mais usam agrotóxicos, maior é a morbidade e mortalidade no Mato Grosso”, foi publicado no ano passado, no livro Desastres Sócio-Sanitário-Ambientais do Agronegócio e Resistências Agroecológicas no Brasil, por pesquisadores do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador e do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (Neast/ISC/UFMT).
Como o próprio título revela, o estudo epidemiológico, do tipo ecológico, investiga a distribuição dos casos de câncer infantojuvenil (0 a 19 anos) pelo estado de Mato Grosso e a associação com o uso de agrotóxicos no território. O estudo cruza dados públicos, como internações e mortes por câncer infantojuvenil, do Sistema de Internações Hospitalares do Datasus e do Sistema de Informação sobre Mortalidade, com informações coletadas por macrorregião de economia agropecuária (IMEA) e sobre a área plantada, extraídas da Produção Agrícola Municipal do IBGE/Sidra. Os números são de 2008 a 2017.
Mato Grosso lidera taxas de câncer infantojuvenil. (Foto: Divulgação/NIH)
Ao longo dos oito anos analisados, Mato Grosso registrou mais de 10,9 mil internações por câncer infantojuvenil, sendo que 30% são crianças de 0 a 4 anos. Além disso, 406 pessoas de 0 a 19 anos morreram por câncer, dos quais 30,7% foram adolescentes e jovens de 15 a 19 anos. As leucemias foram os tipos de câncer mais presentes entre os pacientes internados, correspondendo a 50,2% dos casos. A leucemia linfóide (quando surge um linfócito imaturo e danificado na medula óssea) causou 37,2% das mortes.
O estudo observou correlação positiva entre o uso médio de agrotóxicos em litros e a média de mortes e internações por câncer infantojuvenil. É importante deixar claro que a análise leva em conta os 138 municípios onde há produção agrícola. Cuiabá, Rondonópolis e Várzea Grande, por serem polos industriais, comerciais e conglomerados urbanos, foram excluídos da análise.
De acordo com o especialista em saúde pública e pesquisador que participou da elaboração do estudo, Wanderlei Pignati, os resultados dessa e de outras pesquisas evidenciam o aumento de casos de câncer infantojuvenil no Brasil, principalmente a leucemia – câncer relacionado à produção de glóbulos brancos, de defesa do organismo, que se reproduzem muito rapidamente no nosso corpo. E um dos fatores para o desenvolvimento dessa doença, na avaliação dele, é o agrotóxico.
“Tem agrotóxicos que inibem a produção de hormônio e vários deles [provocam] mutação genética, que altera o DNA. E isso vai [resultar] na produção de células com malformação. Uma parte [das malformações] é rapidamente descartada pelo fígado, mas a outra vai se reproduzir muito, porque tem agrotóxicos que também baixam a imunidade. Então, somam-se vários fatores: mutação, desequilíbrio hormonal, baixa imunidade. Você tem as células cancerígenas se reproduzindo e não tem um sistema de imunidade para ir lá retirar aquela célula com malformação”, explicou Pignati.
Segundo a pesquisa da UFMT, mais de 1 trilhão de litros de agrotóxicos foram aplicados em 117 milhões de hectares de área plantada, entre 2008 e 2017, em Mato Grosso. Um fato curioso apontado na análise é que o número de casos de internação e mortes acompanha a migração das áreas destinadas às culturas agrícolas. Em 2008, quando as extensões de terras plantadas encontravam-se em maior parte nas regiões Oeste, Médio-norte e Sudeste do estado, os casos de internações e mortes também concentravam-se nessas regiões. Já em 2017, o maior uso de agrotóxicos e número de casos ocorreu na região Nordeste do estado, que até então não havia registrado casos de câncer infantojuvenil. O que ocorreu, segundo os pesquisadores, é que houve migração da atividade do agronegócio para essa região, num processo de expansão da fronteira agrícola em direção ao Tocantins.
Desafios da pesquisa científica
A sanitarista Mariana Soares, autora principal dessa pesquisa, acredita que é possível avaliar a influência do território no processo de adoecimento dos indivíduos por conta das exposições ambientais, ocupacionais e fatores genéticos e hereditários. Ainda assim, ela ressalta, esse tipo de estudo tem limitações, devido à subnotificação dos registros públicos e à impossibilidade de estabelecer uma relação direta de causa e efeito.
“O que a gente tem divulgado no âmbito do Neast/UFMT, são estudos epidemiológicos de cunho ecológico. Nesse caso, a gente encontrou a associação de que nos municípios onde têm maior produção agrícola é onde ocorreu maior aumento de casos de câncer infantojuvenil”, explicou. “O estudo de cunho ecológico, no entanto, não permite uma avaliação individual. Por isso, a gente vem avançando nas nossas pesquisas. Inclusive, a minha tese de doutorado é avaliar a exposição dos pais e a exposição individual da criança ou do adolescente e o adoecimento por câncer”, completou.
Efeitos de exposição a agrotóxicos são tema de pesquisa (Foto: Divulgação)
A médica e pesquisadora Silvia Brandalise explica que a associação do câncer com a exposição aos agrotóxicos só é possível de ser feita por meios estatísticos, como ocorreu com a pesquisa da UFMT, uma vez que não é possível colocar humanos em laboratórios para fazer testes. Além disso, vários outros fatores podem influenciar o desenvolvimento da doença, como os hábitos alimentares e o consumo de cigarro, álcool e outras drogas.
“Não existe um teste que você possa fazer para mostrar essa associação. A associação é epidemiológica, porque o indivíduo não vive sozinho exposto àquele produto, ele está exposto a uma série de outros produtos. Então, a única evidência é através de estudos epidemiológicos, nos quais você pega uma pessoa doente para dois ou quatro controles [não doentes], variados por sexo, idade e ano, na mesma região [e faz a comparação]”, completa Brandalise.
Outro estudo, desenvolvido na Costa Rica e publicado na Revista Científica National Library of Medicine, sugeriu que a exposição precoce a pesticidas dentro de casa, antes e depois da gestação, pode estar associada à leucemia infantil. Os pesquisadores costa-riquenhos também identificaram risco aumentado para as gestantes que moram perto de fazendas.
Um estudo ainda mais ousado, que começou em 2005 e está em andamento, propõe acompanhar os filhos de 1 milhão de gestantes ao longo de 18 anos para examinar as associações entre exposições ambientais e a incidência de câncer infantil. A pesquisa colaborativa, chamadaInternational Childhood Cancer Cohort Consortium (Consórcio Internacional de Coorte de Câncer Infantil, na tradução livre), envolve equipes de pesquisa de 15 países em quatro continentes, inclusive a equipe da médica e pesquisadora Silvia Brandalise, em Campinas.
Sem dar entrevistas, INCA se posiciona contra os agrotóxicos
A reportagem procurou o Instituto Nacional do Câncer para comentar a associação entre exposição aos agrotóxicos e incidência de câncer, especialmente em crianças, uma vez que o órgão já abordou essa questão em suas publicações, mas não conseguimos nenhuma entrevista. A primeira tentativa ocorreu em março e a segunda, em junho. A justificativa na primeira vez foi falta de tempo. Na segunda, a pessoa responsável nos disse que não poderia dar entrevista em decorrência do período eleitoral. Alguns documentos também foram retirados do ar por conta das eleições. A mensagem deixada no site é a seguinte: “até o encerramento das eleições, diversos materiais do Instituto, como livros, folhetos e cartilhas ficarão indisponíveis”.
De qualquer forma, a assessoria de imprensa compartilhou alguns desses documentos que ainda estão públicos, entre eles o posicionamento do Inca em relação aos agrotóxicos. Na carta de cinco páginas, publicada em 2020, o Inca demarca a sua posição contrária às práticas de uso de agrotóxicos e ressalta os riscos à saúde. O órgão critica o atual modelo de cultivo, com intensa aplicação de agrotóxicos, e a liberação de sementes transgênicas. De acordo com a carta, essa liberação teria sido responsável por colocar o país “no primeiro lugar do ranking de consumo de agrotóxicos”, já que o cultivo das sementes geneticamente modificadas permite o uso de grandes quantidades desses venenos.
A instituição menciona as intoxicações agudas, que geralmente ocorrem pela exposição ocupacional, e causam irritação da pele e dos olhos, coceira, vômitos e diarréias. E também aborda as intoxicações crônicas, que ocorrem pela presença de resíduos de agrotóxicos nos alimentos e no meio ambiente. Mesmo que as doses de agrotóxicos sejam baixas, o Inca afirma que os efeitos podem aparecer muito tempo após a exposição, o que dificulta a correlação com o agente. “Dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos podem ser citados infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer”, afirma o documento.
Na carta, o Inca faz ainda um alerta sobre os resultados do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA), da Anvisa, que revelaram amostras de alimentos com resíduos de agrotóxicos em quantidades acima do permitido e com presença de substâncias não autorizadas.
Em 2019, o instituto publicouuma nota se posicionando contrária ao Projeto de Lei 6.299/2002, mais conhecido como o “Pacote do Veneno”, que propõe flexibilizar a autorização e o registro de agrotóxicos no país.
Defesa da Agroecologia
O Inca não só criticou o uso de agrotóxicos como defendeu a substituição do modelo de agronegócio pela produção agroecológica, prevista na Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Segundo a instituição, a agroecologia otimiza a integração entre capacidade produtiva e conservação da biodiversidade, além de funcionar como uma alternativa aos agrotóxicos.
O engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo explica que o modelo atual de produção em larga escala não é possível sem o uso de veneno. É inviável para o produtor identificar uma praga que surgiu em um cantinho de uma plantação cuja área equivale a milhares de campos de futebol. O veneno, portanto, é aplicado preventivamente sobre toda a lavoura. “Ele aplica o veneno por via das dúvidas, porque ele não pode permitir que a infestação se transforme em um dano econômico relevante”. Só que, ao aplicar o veneno, muitas vezes por pulverização aérea, ele contamina não só os alimentos, mas a água, o solo, os mananciais e até a produção orgânica do vizinho.
Retomada de políticas para produção agroecológica e camponesa é prioridade de movimentos sociais. (Foto: Reprodução)
Para implementar um sistema agroecológico, segundo Melgarejo, seria necessário estabelecer um tamanho máximo da propriedade, condicionado à capacidade de gerenciamento dos trabalhadores, o que, afirma ele, levaria a uma reforma agrária.
“O que nós consumimos de um pé de café, por exemplo, corresponde a 0,2%. Todo o resto é lixo para o agronegócio do café. Na lavoura de arroz, aquelas montanhas de palha viram lixo, é coisa para ser queimada. Para o pequeno produtor, tudo o que a natureza produz é matéria orgânica e insumo para controlar a velocidade de escorrimento da água e o teor de matéria orgânica no solo. Tem que ser reincorporado. E a agroecologia tem diversas maneiras de trabalhar isso”, completa.
A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, citada na carta do Inca, foi instituída em 2012, durante o governo de Dilma Rousseff, com o apoio de organizações da sociedade civil, para estimular a oferta de alimentos saudáveis e o uso sustentável dos recursos naturais. A Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), criada para articular essas políticas, foi extinta no governo de Jair Bolsonaro. No Painel do Orçamento Federal, é possível encontrar ao menos 14 políticas públicas relacionadas à agroecologia, produção orgânica ou agrobiodiversidade. Apenas uma delas ainda persiste. Mesmo quando em vigor, no entanto, as demais políticas encontradas no painel não contavam com orçamentos expressivos.
Procurado, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) afirmou que instituiu por meio de portaria, em 2 de dezembro de 2021, o Grupo de Trabalho do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) e novas instâncias de gestão para voltar a avançar no tema. “Neste momento, os documentos produzidos no GT estão em análise para posterior publicação”, informou via assessoria de imprensa. Sobre as políticas públicas, o Mapa alega que há três programas, sendo que um deles conta com quatro ações orçamentárias distintas, voltados para a Política de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo). São eles: Defesa Agropecuária, Agropecuária Sustentável e Pesquisa e Inovação Agropecuária.
Imagem em destaque (Denise Matsumoto): projeto Brasil Sem Veneno mapeia impactos dos agrotóxicos em todo o país
| Schirlei Alves é repórter de O Joio e o Trigo. |
Este texto foi inicialmente publicado pelo “De olho nos ruralistas” [Aqui! ].
Ao contrário dos que propagam a fábula do agronegócio, a produção de alimentos ocorre é na agricultura familiar
No ano passado comentei aqui o término da minha leitura do livro de Caio Pompeia, publicado pela editora Elefante, intitulado “Formação política do agronegócio” cujo principal mérito é mostrar que o agronegócio é algo que foi formulado na década de 1950 na Universidade de Harvard, mas que só foi tardiamente adotado no Brasil no início da década de 1990 a partir de esforços realizados por uma espécie de parceira público-privada envolvendo o Instituto de Estudos Avançados da USP.
Desta forma, o conceito de agronegócio é nascido nos EUA e apenas está em uso no Brasil por força de uma ação diligente para esconder a face mais retrógrada do padrão de concentração da terra que foi formalizado no Brasil a partir da promulgação da chamada de Lei de Terras em 1855.
De cara o que o conceito de agronegócio se presta a esconder os aspectos mais danosos não apenas da alta concentração de terras, mas também aqueles que acompanharam a chamada Modernização Conservadora que foi executada pelo regime militar de 1964 para impedir a realização de uma ampla reforma agrária no Brasil.
Mas voltando ao conceito de agronegócio como formulado pelo economista John H. Davis, agronegócio significaria a “soma de todas as operações da fazenda, mais a manufatura e a distribuição de produção agrícola providos pelos negócios, mais o total das operações realizadas em conexão com a manipulação, a estocagem, o processamento e a distribuição de commodities”.
Em outras palavras, assumida ao pé da letra, a definição de agronegócio de Davis coloca tudo o que se refere ao plantio, produção, estocagem, comercialização e transporte dentro de uma mesma sacola, como se fosse possível igualar agentes do tamanho da Bayer e da Cargill com um assentado de reforma agrária em algum lugar perdido na Amazônia brasileira. Apesar da impossibilidade óbvia de tudo cair sob este guarda-chuva gigantesco, o conceito de agronegócio serve exatamente ao propósito de se juntar gregos e troianos, escondendo as diferenças de escala de poder que envolve a produção e circulação de produtos agrícolas no planeta.
Agronegócio e meio ambiente são compatíveis?
Na entrevista realizada no Jornal Nacional com o ex-presidente Lula, a jornalista Renata Vasconcellos tentou jogar uma casca de banana para seu entrevistado ao afirmar, algo na linha de que o “agronegócio não é incompatível com a proteção meio ambiente“.
Apenas examinando quem cai dentro da categoria de agronegócio é evidente que apesar de todas as campanhas da “governança sócio-corporativa e ambiental” que corporações como a Bayer, Basf e Syngenta possam fazer, a dependência de produtos danosos ao meio ambiente (os agrotóxicos) para a geração de lucros impede um compromisso real com a proteção ambiental.
Entretanto, olhando ainda mais de perto o que ocorre no Brasil deixado da lona do “agronegócio” é possível encontrar facilmente exemplos de como os agentes do agronegócio (latifundiários, por exemplo) estão envolvidos diretamente no desmatamento ilegal de terras públicas, uso abusivo de agrotóxicos e no emprego de mão de obra escrava.
E não adianta tentar separar como fez o ex-presidente Lula o “bom agronegócio” do “mau agronegócio”, pois é da natureza desse amplo segmento incorrer em custos ambientais altíssimos para gerar lucros fabulosos. Aliás, tentar criar tal dicotomia só contribui para que a verdadeira natureza (anti-ambiental e anti-social) do agronegócio seja colocada à luz do dia.
Reforma agrária como base da transformação ecológica da agricultura brasileira
Eu não tenho nenhuma dúvida de que não há outra saída para o fim da condição de economia dependente do Brasil que não se realizar uma ampla reforma agrária no Brasil. Essa reforma seria capaz de liberar uma energia produtiva inédita na história do Brasil, criando empregos em escala inédita e ampliando a produção de alimentos que, estes sim, poderiam servir para diminuir o número de brasileiras e brasileiros que passam fome todos os dias.
Mas uma reforma agrária não poderá ser feita para manter o mesmo tipo de padrão viciado em insumos poluentes como o que foi estabelecido a partir da chamada Revolução Verde. A modificação da estrutura da propriedade terá de ser acompanhada por uma profunda alteração nas bases da produção agrícola, saindo do modelo atual para outro que respeite os limites ecológicos e produza a partir deles. Aliás, para quem acha que isso é utópico demais, basta dizer que a atual forma de produção agrícola nos leva claramente para um mundo distópico. Além disso, um modelo agroecológico é algo que cientistas como a indiana Vandana Shiva e o chileno Miguel Altierijá têm se ocupado por várias décadas.
Os leitores do Blog do Pedlowski devem ter notado que o ano de 2021 foi bastante ativo nas publicações ligadas ao “Observatório dos Agrotóxicos” que foi criado logo no início de 2019 para documentar a promessa eleitoral (cumprida, é preciso que se diga) de acelerar a liberação de venenos agrícolas para atender a insaciável demanda do latifúndio agro-exportador de commodities.
Como resultado da política de licenciamento “fast food” adotada pelo governo Bolsonaro, o Brasil se viu inundado por uma verdadeira tsunami de venenos agrícolas, a maioria proveniente de empresas chinesas e europeias, e com um número significativo deles banidos pela União Europeia em função de sua alta periculosidade para o meio ambiente e também para a saúde humana.
Pois bem, como não podia ser diferente, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), comandado pela ministra Tereza Cristina (DEM/MS), fez publicar hoje (31/12) o Ato Nº 55, de 23 de Dezembro de 2021 que traz a liberação de mais 51 agrotóxicos. Com isso, o governo Bolsonaro quebra o seu próprio recorde tóxico dos seus primeiros dois anos de mandato, alcançando um total de 1.558 agrotóxicos liberados em 36 meses de mandato.
É preciso que se diga que a imensa maioria dos agrotóxicos aprovados se destina para uso em poucas culturas agrícolas, todas elas voltadas para a exportação. No caso da soja e do milho, por exemplo, o objetivo é principalmente alimentar os rebanhos de animais na União Europeia e na China (principal parceiro comercial brasileiro). Enquanto isso, ficamos imersos em um processo de agravamento da contaminação ambiental e também da população brasileira.
Como ainda não tive tempo para cria a planilha de dados para o Ato Nº 55, de 23 de Dezembro de 2021 (o que impede a atualização da base de dados com todos os agrotóxicos liberados pela dupla Jair Bolsonaro/Teresa Cristina), farei isso nos primeiros dias de 2022.
Mas uma coisa é certa: o combate a um modelo agrícola fortemente dependente de venenos agrícolas e da devastação dos biomas da Amazônia e do Cerrado deverá ser uma prioridade para aqueles que desejam viver em uma sociedade onde o ato de se alimentar não seja uma espécie de suicídio cotidiano. E a construção desse modelo agrícola alternativo de base ecológica só será possível com a derrota desse modelo viciado em venenos mortais e que não tem como prioridade saciar a fome, seja no Brasil ou no resto do mundo.
MST é um dos grandes produtores de alimentos livres de agrotóxicos no Brasil
Por Karen Friedrich*
Na madrugada do dia 3 de dezembro de 1984, na cidade de Bhopal, na Índia, uma explosão numa fábrica de agrotóxicos matou cerca de 25 mil pessoas, deixando sequelas graves em outras milhares. A fábrica da Union Carbide, hoje subsidiária da Dow Chemical, foi instalada no final da década de 1960, na área densamente povoada e pobre. Os agrotóxicos são substâncias desenvolvidas primeiramente como armas químicas, utilizadas nas grandes guerras, e, depois, para aniquilar seres vivos nas lavouras, que só se tornam pragas por conta do desequilíbrio ecológico causado pelo próprio modelo de agricultura que devasta, desmata, incendeia e extingue.
Ainda hoje, no Brasil, os agrotóxicos continuam matando silenciosamente milhares de pessoas. Trabalhadores rurais e moradores dos arredores de grandes plantações do agronegócio são os mais atingidos. Pulverizados por aviões, máquinas ou manualmente, esses venenos percorrem quilômetros, contaminando água, solo, criações de abelhas, plantações orgânicas da vizinhança e tudo o mais. Escolas rurais, assentamentos da reforma agrária, reservas indígenas e territórios de povos e comunidades tradicionais, que secularmente lutam por sua sobrevivência contra os interesses de grupos econômicos poderosos, também têm sido alvo de chuvas de veneno.
Os danos causados pelo uso de agrotóxicos não se restringem a essas regiões. Estudos recentes comprovaram que há agrotóxicos até em parques nacionais, distantes de áreas de plantio. A expansão das terras destinadas ao plantio de soja e outras commodities, em áreas de Cerrado e Floresta Amazônica, inclui uso de agrotóxicos herbicidas (desfolhantes), para desmatar com mais eficiência.
Os escassos dados de monitoramento dessas substâncias em água (que deveria ser) potável e nos alimentos, incluindo industrializados, também são assustadores: dezenas de tipos de agrotóxicos podem ser encontrados em itens base da nossa alimentação, em níveis e diversidade que seriam proibitivos em países da Europa, por exemplo.
Mesmo num modelo de agricultura químico-dependente, o Brasil poderia adotar condutas menos danosas, iniciando por reconhecer as incertezas dos estudos toxicológicos e ambientais apresentados pelas próprias empresas para determinar se um agrotóxico pode ou não ser permitido no país. A realidade brasileira, no entanto, torna algumas medidas inalcançáveis, incluindo o uso de EPI (equipamentos de proteção individual); o controle pleno do destino do produto aplicado; fiscalização do uso e comercialização; monitoramento de água e alimentos in natura e industrializados.
O contexto atual já mostra que o modelo de agricultura hegemônico no país deve ser repensado. O Brasil entrou novamente no mapa da fome, apesar dos recordes sucessivos de lucro no setor do agronegócio. O país também bateu recorde de liberação de agrotóxicos formulados com moléculas antigas, proibidas em outros países e muito tóxicas para as pessoas e o meio ambiente. Mais de 60% do volume comercializado por aqui é de agrotóxicos comprovadamente cancerígenos e desreguladores hormonais.
Prevenir ou reduzir os danos dessas substâncias exige superar muitos obstáculos, postos principalmente para atender aos interesses econômicos e políticos de uma minoria poderosa, que atua capturando ideologicamente atores estratégicos dentro dessa temática. E que também se dedicam para destruir as poucas conquistas alcançadas nos últimos anos, como as leis municipais e a lei do estado do Ceará vigentes que proíbem a pulverização aérea de agrotóxicos, ameaçadas por setores do agronegócio com ações em pauta no STF (Supremo Tribunal Federal) via ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade, n. 6137/2019).
Ainda estamos longe de fazer valer a Lei de Agrotóxicos (lei n. 7802/89), que apresenta algumas lacunas, mas que propôs avanços importantes. A proposta de revisão desta lei, conhecida como Pacote do Veneno, está pronta para votação no Congresso Nacional, com dispositivos considerados preocupantes pelas principais instituições de pesquisa e controle social do país.
Em outubro de 2021, foi assinado o decreto presidencial n. 10.833, que fragiliza ainda mais o cenário apresentado acima, pois altera a regulamentação da lei de agrotóxicos, dando menor transparência aos processos, enviesando as ações para os interesses econômicos e permitindo o registro de substâncias ainda mais tóxicas. Se alguém ainda acredita que os danos causados pelos agrotóxicos são “aceitáveis” e que alguns podem adoecer ou morrer para alimentar o mundo, engana-se.
A maior parte dos alimentos que consumimos vem da agricultura familiar, que por conta da diversidade do modelo produtivo, é menos suscetível à incidência de pragas agrícolas, favorecendo a produção sem veneno e com menor nocividade. De fato, a agricultura familiar (em especial a agroecológica e orgânica) é incomparável ao tipo de produção característica do agronegócio. A primeira produz grande diversidade de alimentos e a segunda recebe muito mais incentivo do Estado brasileiro, incluindo desoneração de uma série de impostos, que totalizam alguns bilhões por ano no país, como demonstra relatório produzido pela Abrasco.
Essas questões, são algumas das que tornam fundamental a luta contra os agrotóxicos, celebrada em 3 de dezembro. As mais importantes instituições de pesquisa em saúde e meio ambiente do país têm alertado sobre os desmontes da regulação de agrotóxicos, o sucateamento dos órgãos de fiscalização e controle, as doenças e mortes causadas pelos agrotóxicos. Mas também apontam a urgência para se investir na produção de alimentos de forma social, sanitária e ambientalmente sustentável. Assim como a história mostra que o desastre de Bhopal poderia ter sido evitado, é urgente e necessário lutar para evitar mais mortes e doenças causadas pelos agrotóxicos.
*Karen Friedrich é biomédica, toxicologista, mestre e doutora em saúde pública. Membro do grupo temático saúde e ambiente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Artigo originalmente publicado no Nexo, em 2 de dezembro de 2021, a convite da Cátedra J. Castro/USP (Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis).
Este texto foi inicialmente publicado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) [Aqui!].
Ação terá transmissão online e com intervenções ao vivo. Os artistas Gregório Duvivier, Projeto Estado de Emergência, grupo Mandicuera de fandango caiçara estão entre as participações confirmadas
Por Comunicação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida
Está chegando o Festival Cultural Pela Vida e Contra os Agrotóxicos, neste 3 de dezembro, Dia Internacional de Luta Contra os Agrotóxicos. Será um encontro para denunciar os malefícios trazidos pelo veneno, e também anunciar a agroecologia como saída para garantir alimentos saudáveis e vida no planeta.
A atividade começa às 18h, de forma virtual, com apresentações artísticas, receitas agroecológicas, e depoimentos, além de intervenções presenciais de rua. A ação integra a Jornada de Lutas Contra os Agrotóxicos, que ocorre em todo o Brasil entre os dias 27 de novembro e 11 de dezembro. >> Confira a programação completa da Jornada logo abaixo.
Entre as participações confirmadas então do ator e humorista Gregório Duvivier; do Projeto Estado de Emergência, de Mato Grosso; do grupo Mandicuera de fandango caiçara; do litoral paranaense; e Ana Chã, integrante do Setor de Cultura do MST e do grupo musical As Cantadeiras.
Convidamos todas, todos e todes e se somarem com a gente! Divulgue e participe!
Origem da data
No dia 3 de dezembro de 1984, a cidade de Bhopal, na Índia, viveu uma tragédia que marcou para sempre a história. Mais de 27 toneladas do gás isocianato de metila vazaram de uma fábrica de agrotóxicos, matando 2,2 mil pessoas na hora e atingindo cerca de 600 mil ao longo dos anos seguintes. Os agrotóxicos seguem matando e adoecendo pessoas, animais e a biodiversidade em todo o mundo. E no Brasil, o problema é ainda mais grave no governo Bolsonaro.
Confira a programação completa do Festival e da Jornada:
FESTIVAL NACIONAL CONTRA OS AGROTÓXICOS
03/12 – Apresentações artísticas, intervenções, receitas, depoimentos. Confira as participações já confirmadas:
– Gregório Duvivier, ator, humorista, roteirista e escritor.
– Kleber Mendonça, diretor, produtor, roteirista e crítico de cinema.
– Ana Chã, integrante do Setor de Cultura do MST e do grupo musical “As Cantadeiras”.
– Projeto Estado de Emergência, do Mato Grosso, formado por Ahgave, Pacha Ana e DJ Taba.
– Grupo Mandicuera, fandango caiçara do litoral paranaense.
– Gilson Saraiva, Físico, Matemático, Músico, Cantor e Compositor.
– Eugênio Leandro, compositor e escritor, nasceu em Fortaleza, mas criado em Limoeiro do Norte, onde vivenciou a arte popular do Vale do Jaguaribe.
– Receitas agroecológicas da Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (Copavi), de Paranacity (PR) @copavioficial e a da baixada pantaneira.
Nesta sexta-feira, 03 de dezembro, às 18h no horário de Brasília.
Webdossiê “Sistemas Alimentares: fome, corporações e alternativa”, organizado pela ONG FASE, reúne 9 especialistas em diferentes áreas para mostrar que monoculturas industrializadas agravam a situação da fome no país em vez de solucionar
Técnicos do Fórum Econômico de Davos e da ONU afirmaram, na Cúpula Mundial dos Sistemas Alimentares, que o sistema alimentar do mundo está “quebrado”. Para eles, a capacidade do planeta em render frutos que alimentem toda a população humana está ameaçada; e apenas a agroindústria poderia resolver a crise. Mas será que as monoculturas são, de fato, o “celeiro do mundo”? Hoje, 70% da população global serve suas refeições com frutos da agricultura familiar e camponesa; e apenas 30% da população mundial é alimentada pela cadeia alimentar industrial. E você? Sabe de onde vem sua comida? A ONG FASE reuniu 9 especialistas para fazer o dossiê “Sistemas Alimentares: fome, corporações e alternativa”, onde são apontadas soluções alternativas à agroindústria. São profissionais de diferentes áreas; de nutrição e engenharia agrônoma até economia e antropologia.
O documento, disponível online a partir deste sábado (16), Dia Mundial de Combate à Fome, no site sistemasalimentares.fase.org.bré um compilado de 9 artigos acompanhados de vídeos e entrevistas. Ele é dividido em quatro temas: “Fome é política”; “Políticas de abastecimento e compras públicas”; “Soberania Alimentar no campo-cidade”; e “Comer é um ato político”. O dossiê busca aprofundar o debate sobre as cadeias de produção de alimentos e as políticas de abastecimento, numa tentativa de explicar como como estes, entre muitos aspectos, influenciam na soberania e segurança alimentar da nação.
Falsas soluções
Seriam as monoculturas e os alimentos fortificados a solução mais efetiva para a questão da fome? A antropóloga Maria Emília Lisboa Pacheco afirma que não:
“As receitas tecnológicas que se apresentam não levam em conta os fatores ecológicos, socioeconômicos, culturais e os direitos humanos de um mundo onde cresce a fome, que já atinge cerca de 800 milhões de pessoas, onde cresce a obesidade e desnutrição, e onde acentuam-se as mudanças climáticas, caracterizando um cenário que vem sendo denominado de sindemia global.”
Maria Emília é representante do Fórum Brasileiro de Soberania, Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e assessora do Programa Direito à Segurança Alimentar, Agroecologia e Economia Solidária da FASE.
Já sobre sobre os alimentos ditos “enriquecidos”, ela explica porque são um tiro no pé:
“Os riscos se expressam em possíveis efeitos tóxicos com a ingestão excessiva de nutrientes, impactos na cultura alimentar, erosão genética e interferência na autonomia dos agricultores, guardiões da diversidade de sementes.”
Direito à alimentação de qualidade
A antropóloga explica, também, haver uma artificialização dos alimentos, fazendo com que eles se tornem produtos ultraprocessados que, segundo ela, não seriam comidas, mas sim fórmulas industriais:
“Atualmente cresce o seu consumo. Esses produtos não são propriamente alimentos, mas, sim, formulações industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas), derivados de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratórios com base em matérias orgânica como petróleo e carvão (corantes, aromatizantes realçadores de sabor e vários tipos de ativos. Buscam dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes, com impactos na saúde, na cultura alimentar e na vida social, como nos ensina o Guia Alimentar para a população brasileira, tantas vezes contestado pelas empresas”.
Portanto, o que o dossiê mostra é que o direito à alimentação é um direito humano e deve ser feito com acesso ao que popularmente se conhece como “comida de verdade”. Ou seja, alimentos de origem natural, produzidos de forma sustentável.
Política da fome
Já o ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), Francisco Menezes, atual assessor de políticas da ActionAid, afirma que a fome no Brasil é um problema crônico e político. Ele conta que a situação de insegurança alimentar é agravada conforme avançamos na análise interseccional de gênero, raça e territorial. Estão em maior risco os lares chefiados por mulheres negras ou pardas e de baixa escolaridade. O acesso à alimentação de qualidade também é reduzido entre essas famílias.
Mesmo quando o Brasil saiu do Mapa da Fome, em 2014, mantiveram-se situações de fome entre indígenas, quilombolas e povos tradicionais. Segundo Menezes, faltou ao Brasil a democratização do acesso à terra e uma política nacional de abastecimento, cuja ausência provoca reflexo direto no preço dos alimentos atingindo desproporcionalmente a população mais pobre.
“Se o empobrecimento se acelerou com a pandemia, outro fator que intensificou a insegurança alimentar e a fome foi a elevação dos preços de alimentos básicos, impactando justamente aqueles mais pobres, em que a aquisição de alimentos pesa consideravelmente. Em 2020, o componente da alimentação na inflação foi três vezes maior do que o índice médio, por conta da elevação dos preços do arroz, feijão, óleos vegetais, carnes e até ovos, entre outros. Resultado da ausência de uma política de abastecimento voltada para a maior parte da população penalizando justamente aqueles mais vulneráveis”, afirma
Soluções reais
Há, no entanto, outras estratégias de combate à fome para além da monocultura industrial. Os sistemas alimentares territoriais são construídos com técnicas baseadas nas experiências dos povos tradicionais e de agricultores familiares. Desta forma, se busca uma cadeia de produção mais justa e socialmente responsável, com foco no papel das mulheres e em tecnologias sociais. Quem produz alimentos diversificados protege a biodiversidade, a saúde e a natureza.
No centro destes princípios estão o Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas, a soberania alimentar, a agroecologia e os valores de justiça social e alimentar e da democracia.
Saiba mais: O que são sistemas alimentares?
Sistemas alimentares são o conjunto dos processos produtivos relacionados à alimentação. É todo o caminho que a comida percorre, desde a semeadura até a hora da refeição. Quando esses sistemas sofrem desequilíbrios, como a oferta massiva de alimentos superprocessados, as pessoas passam a se alimentar de forma não saudável. Consequentemente, a saúde da população é afetada, e isso acaba se tornando um problema global.
Saiba mais: O que é agroecologia?
Agroecologia é uma forma de agricultura sustentável que agrega conhecimentos formais, vindos das faculdades de agronomia, com os conhecimentos ancestrais de agricultores familiares e comunidades tradicionais. Seus métodos buscam superar os danos causados pela prática da monocultura, dos transgênicos, dos fertilizantes industriais e dos agrotóxicos.
A agroecologia tem uma perspectiva emancipatória. Cada vez mais, ela se situa no campo do debate e das práticas com o objetivo da transformação dos sistemas alimentares em conexão com a natureza. Combinada com a perspectiva da soberania alimentar apresenta-se como alternativa hoje e para o futuro.
Na sua dimensão social, defende as relações de igualdade, reconhecendo que as mulheres historicamente são as guardiãs da biodiversidade e dos bens comuns. Posiciona-se contra o racismo e reconhece que uma sociedade pluriétnica, com diferentes formas de apropriação e uso da terra e dos bens da natureza, é um componente fundamental da democracia e do enfrentamento dos grandes desafios na relação entre sociedade e natureza.