Quem viveu a idade de ouro dos shows em Campos dos Goytacazes não se choca com a farra sertaneja revelada (sem querer) por Zé Neto

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Quem vive em Campos dos Goytacazes há mais de duas décadas como é o meu caso não pode estar  surpreso com o imbróglio envolvendo os shows de artistas sertanejos pagos regiamente com dinheiro público. É que aqui na capital mundial do chuvisco ocorreram nos primeiros anos da década de 2000 shows com os principais artistas brasileiros reunidos no tradicional Jardim São Benedito, sem que se soubesse muito bem quanto estava se gastando, sob o pomposo nome de “Viva Melhor, Viva Música” (ver imagem abaixo).

Políticas públicas de lazer em Campos dos Goytacazes: o que é ruim sempre  pode piorar | Uma edição dominical do “Viva Melhor, Viva Música” no Jardim São Benedito na região central da cidade de Campos dos Goytacazes

O mais interessante é que enquanto a classe média se divertia no Jardim São Benedito com nomes para lá de conhecidos, aos moradores dos bairros periféricos restava a locomoção até o Farol de São Thomé para presenciar shows de artistas locais, muitos dos quais depois passavam um verdadeiro perrengue para receber cachês mais modestos.

Esse acesso diferenciado aos shows foi meticulosamente documentado pela minha orientanda Denise Rosa Xavier que se tornou Mestre em Políticas Sociais após defender com sucesso a dissertação intitulada “Políticas de Lazer e Segregação Sócio-Espacial: o Caso de Campos dos Goytacazes (RJ).

A Telhado de Vidro acabou com a festa campista

O intenso uso de verbas públicas oriundas dos royalties do petróleo continuou firme até meados de 2008 quando ocorreu a famosa “Operação Telhado de Vidro” que resultou na prisão de quatorze pessoas, incluindo empresários, dois secretários municipais e o então procurador-geral do município. A Telhado de Vidro resultou ainda no afastamento temporário do cargo do então prefeito Alexandre Mocaiber. Naquela época a bagatela envolvida foi de alegados R$ 240 milhões de dinheiro público que teria sido desviado para, entre outras coisas, a realização de shows no Farol de São Thomé.

O que muita gente já não deve lembrar é que o nome “Telhado de Vidro” porque uma da empresas envolvidas nos casos de shows superfaturados se chamava “Telhado de Vidro Produções Artísticas” que faria parte de uma espécie de holding de empresas de shows pertencentes ao empresário Antônio Geraldo Seves.

Os shows sertanejos com dinheiro público podem ser o “Telhado de Vidro” da vez, só que em escala maior

Se os preços de shows praticados em Campos dos Goytacazes até a eclosão da “Telhado de Vidro” em 2008 fossem ajustados para os dias atuais não seria de se surpreender que estivessem no mesmo patamar.  Mas a semelhança não pararia por ai, pois se em Campos os shows eram pagos com recursos oriundos dos royalties do petróleo, ao menos no caso do show do cantor Gustavvo Lima que foi cancelado em Conceição do Mato Dentro (MG), os recursos para pagamento do artista viriam do Fundo de Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem)  que é pago pelas mineradoras às cidades onde há mineração . Em outras palavras, de roaylties da mineração.

Desta forma, dadas as semelhanças iniciais, não me surpreenderia que no caso de uma apuração mais ampla se descobrisse o uso de todo tipo de recursos que deveriam estar servindo para melhorar a qualidade de serviços públicos essenciais como saúde, educação, transporte e habitação. Aliás, quem quiser vir a Campos dos Goytacazes e se informar sobre a herança trágica deixada pelos shows superfaturados ainda encontrará muitas testemunhas oculares da idade de ouro dos shows turbinados com royalties do petróleo.

 

Graças à tatuagem revolucionária feita por Anitta, finalmente descobrimos os meandros do financiamento público da ideologia “agro” na música brasileira

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Para quem achava que apenas as redes de TV serviam como braço ideológico do latifúndio agro-exportador rebatizado de “agronegócio” agora sabe que não.  Tudo isso graças à decisão inoportuna do cantor “Zé Neto” que decidiu partir para cima da cantora Anitta por causa de uma tatuagem que ela fez na sua região anal em 2021. 

O problema é que  Zé Neto (na verdade o paulista José Toscano Martins Neto) tivesse ficado apenas na crítica à região tatuada tudo teria morrido em um momento de empolgação. O problema é que Zé Neto resolveu optar por um ataque tosco (me desculpem o trocadilho infame) sobre uma possível dependência financeira de Anitta (o que está longe de ser verdade) da captação de recursos via a Lei Rouanet que, para começo de conversa, nem deveria ser problema para quem quer seja.

É que graças a uma série de posts do jornalista Demétrio Vecchioli na rede social Twitter, o Brasil ficou finalmente ciente de uma verdadeira orgia com recursos públicos para pagamento de shows que invariavelmente reúnem artistas que são ligados direta ou indiretamente ao agronegócio, e que combinam o engordamento das suas contas bancárias com a divulgação de elementos de uma ideologia que valoriza a monocultura de exportação que está na base, entre outras coisas, do desmatamento da Amazônia, do uso intensivo e abusivo de agrotóxicos e, não raramente , o emprego da mão-de-obra escrava.

O caso é que desde que Zé Neto resolveu vociferar contra Anitta, já sabemos que muito dinheiro que deveria estar sendo usado para financiar educação, saúde e habitação em cidades médias e pequenas estava tomando destino indevido. O maior exemplo desse descaminho de verbas acabou pegando outro astro do sertanejo, o cantor bolsonarista Gustavvo Lima iria abocanhar R$ 2 milhões, sendo R$ 1,2 milhões apenas no show que ele realizaria no município de Conceição do Mato Dentro em Minas Gerais.

Agora ficamos sabendo que um fundo de investimentos ligado ao mesmo Gustavvo Lima, o One7 (quer dizer 17, número eleitoral do PSL que era o partido pelo qual Jair Bolsonaro se elegeu presidente) obteve um financiamento público junto ao BNDES de R$ 320 milhões cuja finalidade era, pasmemos todos,   adiantar “o pagamento de espetáculos a artistas, com desconto, e depois embolsar o valor cheio pago por quem contrata os shows“.

Ivan Valente on Twitter: "O tal de Ze Neto e o tal de Gusttavo Lima são  típicos bolsonaristas. Adoram falar de armas, mas vivem dando tiro no  próprio pé." / Twitter

E a bola de neve das revelações sobre o uso de verbas públicas para contratar shows “sertanejos” não deverá parar de crescer tão fácil, pois vivemos um ano eleitoral em que normalmente chances douradas como essa não são desperdiçadas por quem está na oposição. Fala-se até em uma CPI sertaneja para investigar quanto dinheiro público escorreu para dentro das contas bancárias dos artistas que ajudam a disseminar a imagem de que “O agro é pop”.

No entanto, me parece que o estrago está feito, e as torneiras que vinham jorrando com abundância vão secar, ao menos no momento.  E só por isso temos que agradecer a Zé Neto e, por que não, ao tororó da Anitta. É que por causa da confusão iniciada na pacata Sorriso (que fica no coração do agronegócio mato-grossense), agora sabemos que há sim uma relação umbilical entre o tal “sertanejo universitário” e a naturalização da destruição ambiental causada pelo agronegócio por meio da hegemonia ideológica exercida sobre a programação musical de estações de rádios e de TV de todo o Brasil.  Minhas saudações à Anitta e sua tatuagem que nos trouxeram, ainda que inadvertidamente, revelações tão preciosas.

 

Anitta usa Twitter para questionar extinção do ensino superior gratuito

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A cantora Anitta usou sua página oficial no Twitter para lançar uma série de “tweets” para questionar uma enquete feita pelo jornal “O ESTADO DE SÃO PAULO” sobre a extinção do ensino superior gratuito no Brasil que foi sugerida pelo relatório do Banco Mundial (ver imagem abaixo).

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Dado o alto número de seguidores que Anitta possui no Twitter, a repercussão foi imediata e milhares de compartilhamentos já foram feitos. Resta saber agora quando as universidades públicas e suas comunidades vão seguir o exemplo de Anitta e começar a usar as redes sociais para repudiar essa proposta indecente que foi feita sob encomenda pelo ex-ministro e atual diretor financeiro do Banco Mundial, o imemorável Joaquim Levy.

Quanto à Anitta, alguém precisa avisar que ela não está equivocada no tocante a esse assunto. Assim, ela não só pode continuar cantando, mas também defendendo o caráter público do ensino superior brasileiro.