É nossa terra também: os povos indígenas do Brasil fazem suas vozes serem ouvidas

Em meio a dança e canto, 200 diferentes etnias indígenas se reuniram no Acampamento Terra Livre anual para exigir ações sobre direitos à terra e meio ambiente

si kaingangKrig Si Kaingang, do povo Kaingang, carrega um cartaz “Declarações de morte” com as leis ambientais que estão sendo consideradas pelo governo brasileiro. Foto: Rebeca Binda

Por Rebeca Binda para o “The Guardian”

Uma multidão de sons e tons ecoando cantos locais; pinturas faciais vibrantes com cores e rendilhados do vermelho do urucum e do preto do jenipapo; os movimentos fortes e coordenados de danças mágicas: o Acampamento Terra Livre anual trouxe povos indígenas de todo o Brasil à sua capital no início deste mês.

Hitup e Wekanã Pataxó carregam uma pedra que representa uma pepita de ouro durante um ato em Brasília.  A pepita é pintada de vermelho com os dizeres “Fora Bozo”, que significa Fora Bolsonaro.Hitup e Wekanã Pataxó carregam uma pedra que representa uma pepita de ouro durante uma marcha em Brasília. Fora Bozo significa Fora Bolsonaro

Sob o título Retomar o Brasil: demarcar os territórios e indigenizar a política, o 18º Acampamento Terra Livre (ATL) viu 8.000 indígenas em Brasília dar voz à luta em curso para salvar sua cultura e forma de vida.

Joênia Wapichana, primeira deputada indígena do país, disse: “A ATL é uma oportunidade de unir lideranças indígenas e brasileiras de todo o país para defender seus direitos constitucionais”. Eles protestaram contra o que os ativistas chamaram de “combo da morte” de projetos de lei relacionados ao meio ambiente que estãosendo considerados pelo Congresso. Entre eles estão o projeto delei PL 191 , que visa abrir terras indígenas para mineração e outras explorações comerciais, e o PL 490, que alteraria as regras de demarcação de território indígena.

Líderes indígenas proeminentes Maial Payakan, Sônia Guajajara, Célia Xakriabá, Braulina Baniwa e outras participam de uma marcha em Brasília durante o Acampamento Terra Livre para protestar contra a agenda anti-indígena de Bolsonaro.Líderes indígenas proeminentes Maial Payakan, Sônia Guajajara, Célia Xakriabá, Braulina Baniwa e outras participam de uma marcha em Brasília durante o Acampamento Terra Livre para protestar contra a agenda anti-indígena de Bolsonaro
The Guardian ATL 2022-08 Joênia Wapichana, a primeira advogada indígena do Brasil e a primeira mulher indígena eleita para o Congresso Nacional, é fotografada no Acampamento Terra Livre em Brasília, Brasil.

Puyr Tembé, líder do povo Tembé e cofundadora da ANMIGA (Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade), é fotografada no Acampamento Terra Livre em Brasília, Brasil.Joênia Wapichana, à esquerda, primeira deputada indígena do Brasil, e Puyr Tembé, à direita, do povo Tembé pediram ação unificada

“Os indígenas têm sido constantemente objeto de discussões e deliberações sem a devida participação”, disse Wapichana. “Neste momento específico, esse encontro é ainda mais importante considerando que temos um governo anti-indígena, fascista, antiambientalista e anti-direitos humanos. Me vejo como um porta-voz que vai levar a voz indígena mais longe, para lutar pela defesa de nossos direitos para evitarmos mais violações. Também é incrivelmente importante despertar mais simpatia e empatia entre os políticos no Congresso, que representam a sociedade brasileira.”

Angohó Pataxó senta-se coberta por uma mistura de lama e barro para protestar contra o assassinato de seu parente em Brasília há 25 anos por proteger o território de seu povo
‘Hoje estamos aqui resistindo para existir’, disse Angohó Pataxó, cujo parente foi assassinado em Brasília há 25 anos por proteger o território de seu povo

Indígenas marcham em uma procissão chamada 'Ouro de Sangue' para protestar contra as políticas de Bolsonaro.
Uma instalação feita de barro, representando lama tóxica da mineração, e tinta vermelha, representando sangue indígena derramado, fica do lado de fora do Ministério de Minas e Energia, em Brasília
Indígenas marcham em uma procissão chamada ‘Ouro de Sangue’ para protestar contra as políticas de Bolsonaro. Uma instalação feita de barro, representando lama tóxica da mineração, e tinta vermelha, representando sangue indígena derramado, fora do Ministério de Minas e Energia, em Brasília

“Hoje estamos aqui resistindo para existir”, disse ela. “Estamos aqui exigindo justiça pela morte do meu parente. Mas também estamos aqui mostrando nossa resistência ao extrativismo, estamos aqui reivindicando nossos direitos fundiários em terras ancestrais, estamos aqui lutando por nossas vidas e pelo direito de nós, mulheres, ter nosso lugar e espaço reconhecidos”.

Alice Pataxó, comunicadora indígena e ativista ambiental
Um índio marcha com a filha nos ombros.
Alice Pataxó, ativista ambiental e indígena marcham com a filha no Acampamento Terra Livre

Puyr Tembé, do povo Tembé do estado do Pará, lembrou ao público a importância da união. “Depois de dois anos sem o Free Land Camp presencial por conta da pandemia, chegamos a esta 18ª edição cheios de força, bravura e resistência para não apenas lutar e defender nossos direitos, mas também celebrar e reconectar.

“Pelo bem das gerações futuras e do nosso bem-estar, somos inspirados todos os dias a continuar lutando. A expectativa que temos é que [possamos] trazer alguma mudança. Cada vez mais acredito que os indígenas estão cientes de que essa mudança é possível se estivermos unidos”.

Wapichana acrescentou: “Como mulher indígenano Congresso, é fundamental para mim que represente as vozes de outras mulheres guerreiras, considerando os direitos e interesses coletivos indígenas e focando em agendas específicas para as mulheres. Mostrar que somos capazes, que somos plenamente capazes de exercer nossas profissões e ocupar posições de poder é extremamente importante para mim.”

Encontre mais cobertura sobre a idade da extinção aqui e siga os repórteres de biodiversidade Phoebe Weston e Patrick Greenfield no Twitter para obter as últimas notícias e recursos


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Este texto foi originalmente escrito em inglês e publicado pelo jornal “The Guardian” [Aqui!].

Somos todos Xokleng pelo meio ambiente e contra o “marco temporal”

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Por Joenia Wapichana, deputada federal (Rede/RR), nascida na Raposa Serra do Sol, Sonia Bone Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Ana Patté, integrante da Apib e do povo Xokleng

O Supremo Tribunal Federal pode definir neste dia 30 os critérios definitivos para demarcação de terras indígenas, além de exorcizar de vez uma assombração que há anos nos persegue: a tese do “marco temporal”. O espectro se materializou durante o governo Michel Temer, quando a Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu o Parecer 001/2017, prevendo sua adoção. Bandeira criada por ruralistas, ela prega que só teriam direito à posse de suas terras os povos que nelas estivessem vivendo até o dia da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Esse atropelo inconstitucional busca restringir o artigo 231 que trata do tema, para acabar com o reconhecimento dos “direitos originários” sobre nossos territórios. Ele está sendo usado para inviabilizar, retardar e reverter processos de demarcação, ajudando o presidente Bolsonaro a cumprir a promessa de campanha de não demarcar “nem um centímetro a mais” de terras indígenas. As conseqüências podem ser catastróficas. Há exemplos.

A Mata Atlântica foi tratada como “mato”. Hoje, reduzida a 12,4% do seu tamanho original, ela virou uma espécie de anúncio fúnebre do que pode vir a acontecer com a Amazônia. A história recente dos Xokleng está diretamente ligada a essa tragédia e serve de exemplo para a trajetória da maioria dos povos indígenas brasileiros, desde 1500. O STF nos aproximou ainda mais, ao tornar ação envolvendo a Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklanõ, onde vivem, caso de repercussão geral. Ou seja, o que for decidido pela corte ganhará peso de lei. Então, neste momento, somos todos Xokleng. Todos, mesmo, pois não são apenas os direitos dos povos originários que estão em jogo, mas também o interesse público e o bem comum – já que as terras indígenas pertencem à União, têm destinação específica e são consideradas áreas ambientalmente protegidas.

A população sabe disso: expressivamente 98% dos brasileiros se dizem preocupados com o meio ambiente; 95% acreditam que é possível preservar e desenvolver simultaneamente a Amazônia; 77%, que o país deveria reservar mais áreas para conservação; e 83% assinam embaixo de que “a preservação ambiental da floresta amazônica é muito importante para o crescimento do país, pois o desenvolvimento nacional depende do meio ambiente protegido”. Os números são de uma pesquisa feita pelo Instituto FSB, por encomenda da insuspeita Confederação Nacional da Indústria (CNI), divulgada em novembro último.

O “marco temporal” mascara o violento processo histórico de ocupação do Brasil. Nenhum povo indígena existente deixou sua terra ancestral por vontade própria. Os primeiros conflitos envolvendo os Xokleng e portugueses datam de 1777, a violência contra eles aumentou com a chegada, no sul do país, de novos europeus, imigrantes alemães que vieram incentivados pelo imperador Pedro II, e se estende até o momento atual. Os Xokleng foram sendo paulatinamente expulsos do território que ocupavam e viram sua população encolher tragicamente, dizimada por doenças que vinham de fora e pela força bruta. E contra isso eles apelaram à mais alta Corte do país.

Assim como aconteceu com a Amazônia, o desmatamento na Mata Atlântica, que estava sob relativo controle, voltou a crescer desenfreadamente desde a posse do atual governo. O estado de Santa Catarina, onde fica a Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, era totalmente coberto pelo bioma e, segundo o último relatório anual da Fundação SOS Mata Atlântica e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foi o quarto que mais desmatou no período 2019-2020. No Brasil inteiro, sumiram mais 130.530 km² de floresta, 14% a mais que a de 2017-2018, que registrou a menor taxa de desmatamento desde 1989, quando a pesquisa começou a ser feita.

A terra onde vivem os Xokleng é reivindicada pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma) do estado de Santa Catarina, tendo por base o Parecer 001/2017 da AGU que se baseia erroneamente na sentença, de 2009, do STF em ação sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Habitada pelos povos Wapichana, Ingarikó, Macuxi, Patamona e Taurepang, a terra localizada no extremo norte do país era disputada por décadas por fazendeiros e pelo Estado de Roraima. O STF reconheceu a constitucionalidade do processo de demarcação.

No entanto, a sentença desenvolveu a tese do “marco temporal”. Ou seja, querem usar contra nós uma decisão que havia nos favorecido. Mas isto não pode prevalecer: em 2013, o próprio Supremo reconheceu que a decisão do julgamento da Raposa Serra do Sol seria aplicável apenas naquele caso. Posteriormente, houve várias decisões judiciais em que povos indígenas que não estavam na posse de suas terras na data de 5 de outubro de 1988, tiveram seus direitos reconhecidos. Acreditamos assim que há um caminho jurídico sólido para que a Justiça seja feita para todos os povos indígenas no país.

A mesma pesquisa Instituto FSB/CNI citada indica ainda que a maioria da população reconhece os povos indígenas como os maiores protetores da floresta. Essa confiança depositada em nós não é fruto de nenhuma crença, mas do status jurídico que gozam as terras indígenas, da ciência e do espaço que o movimento indígena e nossas lideranças vêm conquistando nos debates nacionais. Nossa arma é a informação. Um estudo da Universidade da Califórnia, publicada em agosto passado na “Proceedings of the National Academy of Sciences”, revista oficial da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, mostra que o desmatamento na Amazônia é 66% menor em Terras Indígenas, conforme também demonstrado por renomados institutos de pesquisa nacional.

A decisão a ser tomada pelo STF é uma oportunidade única de combater o processo violento de colonização, que continua em curso, atualizando a nossa civilização como plural e democrática e de reafirmar o nosso papel fundamental de legítimos protetores da nossa biodiversidade e da vida.

Estudo revela como BNDES e Black Rock financiam a violência contra indígenas no Brasil

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Fernanda Wenzel e Pedro Papini

Entre janeiro de 2017 e junho de 2020, nove empresas associadas à invasão ou pressão sobre terras indígenas na Amazônia receberam 63,2 bilhões de dólares em investimentos. Aplicado nas companhias com a perspectiva de rentabilidade, o dinheiro acaba incentivando violações de direitos dos povos nativos da floresta, como disputa por terras, contaminação de rios, desmatamento e até violência física.

A conclusão é da terceira edição do relatório “Cumplicidade na Destruição“, produzido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) em parceria com a ONG norte-americana Amazon Watch e lançado nesta terça-feira, 27 de outubro (quem quiser pode baixar o pdf do relatório [Aqui!]).

Os dados do estudo foram obtidos pelo observatório jornalístico De Olho Nos Ruralistas e pela instituição holandesa de pesquisa Profundo. As organizações mapearam recursos provenientes de 35 instituições financeiras em nove países diferentes, mas apenas duas são responsáveis por 26% do valor total dos investimentos: o banco estatal brasileiro BNDES, com US$ 8,5 bilhões aplicados em empresas que pressionam povos indígenas, e a BlackRock, que é maior gestora de ativos do mundo e destinou, no período, US$ 8,2 bilhões para as companhias associadas à violações de direitos na floresta.

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A JBS, maior produtora de carne do mundo e o frigorífico que apresentamaior risco de desmatamento da Amazônia em decorrência de suas operações, recebeu US$ 8,4 bilhões em investimentos, o equivalente a 15 vezes o orçamento do Ministério do Meio Ambiente previsto para 2020. É a terceira empresa favorita do mercado financeiro entre as investigadas,  atrás apenas da Vale e da Anglo American, ambas do setor de mineração.

Segundo o relatório da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, a pecuária ocupa 80% da área desmatada da Amazônia. A floresta dá lugar ao pasto, que alimenta um rebanho em franca ascensão. O número de animais na região passou de 47 milhões em 2000 para cerca de 85 milhões atualmente. Das 215 milhões de cabeça de gado contabilizadas hoje em todo o Brasil, quase 40% pastam na Amazônia – muitos deles dentro de terras indígenas, o que é ilegal, mas abastece a indústria.

Segundo os dados obtidos pelas entidades, dos US$ 8,4 bilhões investidos na JBS, quase metade – US$ 3,7 bilhões – vieram do BNDES. Oficialmente, obanco informa que suas ações valiam, em junho deste ano, R$ 12,3 bilhões, ou cerca de US$ 2,2 bilhões. O banco público é o segundo maior acionista do frigorífico, com 21,32% de participação, atrás apenas da família Batista.

“É uma contradição do BNDES. Ao mesmo tempo em que é o gestor do Fundo Amazônia, e deveria aplicar recursos para garantir a proteção ambiental, ele mesmo financia a destruição”, analisa Sônia Guajajara, da Coordenação Executiva da APIB.

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Prédio sede do BNDES no centro da cidade do Rio de Janeiro. Foto: Marcio Isensee e Sá

O terceiro maior acionista da JBS é a BlackRock, com participação minoritária (menor que 5%), mas cujos investimentos totais alcançam US$ 517,30 milhões. São 238 milhões em ações e 279 milhões em títulos de dívida, segundo o levantamento. Os dados são relativos à junho deste ano. Mas em agosto, a BlackRock informou ao ((o))ecoque mantinha US$ 332 milhões em ações da JBS, o que indica que a gestora de ativos parece estar aumentando sua fatia de participação na JBS, apesar de se apresentar como a porta-voz do investimento ambientalmente responsável no mundo.

Ao ((o))eco, a gigante financeira argumentou que não tem poder de decisão sobre essas participações, uma vez que o frigorífico integra índices do mercado financeiro que determinam a composição das carteiras de ativos ao redor do mundo. É o chamado investimento passivo,uma excelente forma de as corporações financeiras lavarem as mãossobre suas decisões de investimento.

“A BlackRock não possui uma política sobre como lidar com os investimentos que possam impactar o direito de povos indígenas. Tampouco tem se comprometido a pressionar as empresas nas quais ela investe para atuar pelo fim do desmatamento nas florestas tropicais como a Amazônia”, descreve o relatório da Apib e Amazon Watch.

 Além da JBS, a BlackRock informou ao ((o))eco que investia US$ 39 milhões na Marfrig e US$ 24 milhões na Minerva, respectivamente a 5ª e a 10ª no ranking do Imazon de risco de desmatamento e também alvos de investigações independentes que mostram como seus fornecedores indiretos criam animais ilegalmente em áreas de floresta.

O levantamento da APIB em parceria com a Amazon Watch levou em consideração, além da compra de ações, operações de crédito, como empréstimos e a compra de títulos de dívidas. Somando todos os tipos de aporte financeiro, os bancos Santander, da Espanha, e Fidelity Investments, dos Estados Unidos, superam os investimentos da BlackRock na JBS.

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“Tem muito subsídio para o setor da agropecuária, então todo mundo hoje quer desmatar para plantar capim e criar gado. E se o Acordo Mercosul-União Europeia sair, vai facilitar muito mais a exportação de carne e aumentar ainda mais a pressão por espaço para criar gado”, afirma Guajajara. Assinado em junho do ano passado após duas décadas de negociação, o acordopode vir por água abaixodevido à desastrosa gestão ambiental do governo brasileiro. 

JBS abate gado criado legalmente em áreas indígenas

Segundo o relatório da Apib e da Amazon Watch, “a JBS tem estado no centro de diversas violações de direitos socioambientais e de direitos humanos na Amazônia nos últimos anos”.

Em julho, um relatório da Anistia Internacional revelou que a companhia comprou gado bovino criado ilegalmente na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. No mês seguinte, a Agência Pública mostroucomo um pecuarista do Mato Grosso, que acumula mais de R$ 20 milhões em multas ambientais e cria gado ilegalmente dentro da Terra Indígena Kayabi, se tornou fornecedor da empresa. A situação não é nova. Em dezembro de 2018, ((o))eco havia identificado quatro fornecedores da JBS dentro da Terra Indígena Karipuna, em Rondônia.O rastreamento foi feito através da plataforma“Confiança Desde a Origem”,da própria JBS, que deveria mostrar a origem do gado abatido pelos frigoríficos da empresa em todo o Brasil.

Mas desde o ano passado, a multinacional reduziu drasticamente a transparência do sistema. Diante das novas denúncias, a pressão de investidores internacionais subiu de tom e o banco europeu Nordea chegou a retirar um investimento de R$ 240 milhões na empresa.

Como resposta, a JBS anunciou, em setembro, o compromisso de monitorar toda a sua cadeia de fornecedores até 2025. Mas Rosana Miranda, assessora de campanhas para o Brasil da Amazon Watch, lembra que a empresa tinha feito a mesma promessa em 2009. “Mais de dez anos depois, sem ter cumprido esse compromisso, a JBS se dá mais cinco anos de prazo quando estamos vivendo uma situação dramática nos biomas brasileiros. A JBS coloca muita ênfase na ideia de que o rastreamento da cadeia total de fornecedores não é feito porque é tecnicamente muito difícil. Mas todos os anos organizações da sociedade civil e agências de jornalistas independentes, com orçamentos muito menores, conseguem comprovar a existência de desmatamento dentro da cadeia de fornecedores da JBS. Então como a maior empresa de alimentos do mundo não consegue fazer isso?”, questiona.

De fato, ((o))eco mostrou que as ferramentas para monitoramento do rebanho brasileiro – do nascimento ao abate – já existem, embora ainda não conversem entre si.

Agro, mineração e energia são setores críticos

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Para identificar as empresas com maiores conflitos juntos aos povos indígenas no Brasil, a equipe do De Olho Nos Ruralistas analisou centenas de processos judiciais e fez uma série de entrevistas com associações e lideranças indígenas. Foram encontrados 797 casos judicializados envolvendo questões como contestação sobre demarcação, desapropriação e indenização por danos ambientais ou morais. Onze empresas estavam frequentemente associadas a estes conflitos, mas a Profundo só conseguiu levantar informações financeiras de nove delas.

Quatro destas empresas pertencem ao setor de mineração. A principal delas é a Vale, companhia que mais recebeu aportes de instituições financeiras segundo a análise da Profundo. O maior foco de conflitos da mineradora com povos indígenas se dá no Complexo de Carajás, o maior projeto de extração de minério de ferro do mundo, localizado no Pará. Laudos técnicos já comprovaram que a atuação da Vale na região levou à contaminação do Rio Cateté, principal fonte de água dos indígenas Xikrin. A empresa não paralisou as atividades mesmo durante a pandemia de coronavírus, o que foi apontado pelos indígenas como um dos fatores que levou este povo a ser um dos mais afetados pela doença no Pará

No mesmo setor, aparecem ainda as empresas Anglo American, com sede no Reino Unido, a canadense Belo Sun e a brasileira Potássio do Brasil.

Na área de energia, o relatório destaca as companhias Energisa Mato Grosso, Bom Futuro Energia, Equatorial Energia Maranhão e Eletronorte. A Equatorial Energia Maranhão (antiga Companhia Energética do Maranhão, a Cemar), esteve envolvida em um dos casos mais trágicos de violência contra indígenas no Brasil. Foi em 2017, quando indígenas Akroá-Gamellativeram as mãos decepadas. Segundo o relatório, as tensões locais que levaram a esse crime foram acirradas pelo projeto da empresa de instalação da linha de transmissão Miranda do Norte-Três Marias, com impactos no território Akroá-Gamella – uma etnia que busca há quatro décadas a demarcação de suas terras no Maranhão.

Segundo o levantamento da Profundo, a empresa recebeu US$ 346,6 milhões do banco espanhol Santander e tem entre seus principais acionistas a BlackRock, o Canada Pension Plan Investment Board (conhecida como CPP, é a empresa que adminsitra os fundos de pensão do Canadá), o fundo de pensão do governo da Noruega, a instituição financeira norte-americana Vanguard e a gestora de ativos britânica Schroders.

A Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Rondônia, tem 50% de sua área ocupada ilegalmente por fazendas para produção pecuária. Foto: Marcio Isensee e Sá

No setor do agronegócio, além da JBS aparecem a Cargill e a Cosan S.A. A Cargill é uma das maiores traders de commodities do planeta, com receita líquida de R$ 50 bilhões no Brasil em 2019. No Pará, a atuação da Cargill na região do Tapajós – incluindo a construção de um complexo de portos para escoamento de grãos – é apontada como um fator decisivo para a expansão da soja e a consequente pressão sobre as Terras Indígenas. Um exemplo é o do Território Indígena Munduruku do Planalto Santareno, cercado por propriedades de soja, milho, sorgo e fazendas de pecuária. Segundo o relatório, os indígenas são alvo constante de ameaças por fazendeiros e grileiros da região e sofrem com os impactos dos agrotóxicos em suas lavouras e com a contaminação e assoreamento de rios e igarapés.

Segundo Rosana Miranda, da Amazon Watch, cada um destes setores atinge de forma diferente os povos indígenas. No caso da mineração, a pressão se dá principalmente pelos requerimentos de pesquisa dentro dos territórios tradicionais e, em casos extremos, até mesmo atividades de prospecção ilegais dentro destes territórios. O estudo destaca que os processos de exploração minerária em Terras Indígenas da Amazônia cresceram 91% desde o início do governo Bolsonaro. Um movimento estimulado por iniciativas como a PL 191/2020, que libera a mineração e o garimpo em Terras Indígenas. O projeto, apresentado pelo governo federal, pode ser votado a qualquer momento na Câmara.

“Outro eixo de pressão desses setores é o incentivo direto e indireto a atores locais como grileiros ou garimpeiros ilegais. Há também a omissão pela falta de controle sobre sua cadeia de fornecedores, que é o caso da JBS. Destaca-se ainda o desrespeito sistemático à legislação que protege as terras e direitos indígenas, principalmente o direito à consulta prévia livre e informada no caso de empreendimentos que impactem estes territórios”, conclui Miranda.

Para Miranda, os grandes investidores internacionais ganham ainda mais relevância diante do desmonte da política ambiental brasileira. “Esses investidores e grandes corporações financeiras têm o poder de incentivar ou moderar certos posicionamentos do governo brasileiro. Essas empresas têm uma responsabilidade, muitas delas assumiram compromissos públicos de políticas socioambientais e de mudanças climáticas, e os dados que trazemos mostram que estas políticas não estão sendo cumpridas”.

*Crédito da foto de destaque: Indígena Munduruku durante evento de mobilização contra a construção das hidrelétricas no Rio Tapajós em 2015. Marcio Isensee e Sá /Agência Pública.

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Esta reportagem foi inicialmente publicada pelo ((o))eco  que é feito pela Associação O Eco, uma ONG brasileira que se preza por não ter fins lucrativos nem vinculação com partidos políticos, empresas ou qualquer tipo de grupo de interesse [Aqui!].

A ignorância sobre os povos indígenas e sua capacidade de mobilizar poderá resultar no primeiro boicote ao Brasil na era Bolsonaro

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A maioria dos brasileiros possui uma ignorância em relação aos cerca de 250 povoss indígenas existentes no nosso país [1]. Essa ignorância vem sendo historicamente utilizada para impor um contínuo processo de genocídio que já custou a existência de incontáveis membros de nossos povos originários, fosse por parte de agentes do Estado ou dos grupos e interesses privados interessados em se apossar das riquezas contidas nos territórios milenarmente ocupados por eles.

As recentes medidas do governo recém-iniciado de Jair Bolsonaro fortalecem as intenções daqueles grupos privados (sejam empresas ou indivíduos) que querem avançar sobre os territórios indígenas, independente do custo que isso possa trazer em termos de vidas humanas e dos ecossistemas nos quais os povos indígenas vivem e realizam sua reprodução social.

Pois bem, uma das facetas dessa ignorância é imaginar que os povos indígenas, após mais de 500 de anos de contato com uma forma de sociedade que os quer exterminar, estão assistindo parados aos fatos que estão ocorrendo em Brasília. Quem pensa assim nunca dialogou com os jovens líderes indígenas que hoje estão na ponta da defesa da existência de seus povos e dos territórios que eles ocupam.

Falo isso porque tive a oportunidade de ouvir como informantes principais em minha pesquisa de campo para a minha tese de doutoramento algumas lideranças dos povos indígenas de Rondônia (Cinta Larga, Karitiana e Suruí). Eles mostravam não apenas grande entendimento da forma com que a sociedade brasileira funciona, mas do seu papel enquanto representantes dos interesses de seus povos.  E é preciso que se saiba que essas lideranças já amaduceram e já produziram outros quadros, alguns deles tendo ingressando em universidades para se formar, por exemplo, em Direito e Medicina, duas das profissões mais cobiçadas pela juventude das classes mais abastadas da sociedade brasileira.

Interessante notar que, apesar de todas as clivagens e fricções que existem entre os povos indígenas, existem organizações indígenas dirigidas não por pessoas externas às comunidades, mas sim por membros das etnias que as criam. Por isso, é possível que haja quem se surpreenda com o fato de o primeiro bloqueio ou boicote econômico que o Brasil vá sofrer sob o governo Bolsonaro tenha como motivo o ataque que está sendo desferido contra os povos indígenas.

Digo isso baseado na capacidade de reação que os povos indígenas estão tendo, num momento em que as principais centrais sindicais brasileiras já enviaram até um documento em que objetivamente se prostram diante do governo Bolsonaro. Um pequeno exemplo da habilidade das organizações indígenas de reagir é o vídeo abaixo, produzido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) que já está sendo circulado internacionalmente. 

Como expresso no vídeo, a minha maior preocupação se dá com a situação dos povos indígenas isolados, pois estes ainda não possuem qualquer noção de como enfrentar uma conjuntura histórica onde a primeira coisa que será colocada em questão será o direito deles existirem. 

Mas que ninguém se surpreenda com a reações que os povos indígenas poderão ter contra as tentativas ilegais de avançar sobre seus territórios. É que ao contrário do que insinuou o presidente Jair Bolsonaro, os povos indígenas não são como animais dentro de um zoológico onde ficam mansamente contemplando a realidade.

Por isso é que eu digo que a ignorância sobre os povos indígenas e sua capacidade de mobilizar poderá resultar no primeiro boicote ao Brasil na era Bolsonaro. A ver!