Jair Bolsonaro gosta de falar que seu governo é composto por pessoas selecionadas por sua capacidade técnica, sendo o ex-ministro da Infraestrutura Tarcísio Freitas (atual candidato a governador em São Paulo) um dos exemplos sempre citados pelo presidente da república.
A verdade é que há algo de muito estranho nesses dois desabamentos, pois a engenharia de estradas no Brasil era conhecida até agora por sua excelência e alta qualdade técnica. Aliás, fico curioso em saber quem construiu essas duas pontes que agora vão precisar ser reconstruídas, pouco depois de sua inauguração.
Pelo jeito, a excelência técnica dos ministros de Jair Bolsonaro só é boa mesmo quando se trata de deixar a boiada passar. Aliás, como mostra uma reportagem do site “The Intercept” publicada nesta segunda-feira mostra não apenas que o nível de investimento em estradas durante o governo Bolsonaro é o menor em 10 anos, como também a gestão de Tarcísio de Freitas conseguiu piorar as condições gerais das rodovias em todo o Brasil.
Pior ainda é saber que só na Codevasf, oTribunal de Contas da União identificou uma fraude em licitações que chegou a R$ 1 bilhão durante a gestão de Jair Bolsonaro, o que sem dúvida é um recorde, contrariando toda a propaganda de que não existe corrupção no governo federal. Pelo jeito, existe e muita. Por isso mesmo, se eleito, o ex-presidente Lula terá a obrigação de acabar com o sigilo de 100 anos colocados por Jair Bolsonaro sobre várias áreas obscuras de sua atuação.
Agosto começa com um dos maiores desafios que a questão socioambiental que a BR-319 já enfrentou nos últimos tempos: a liberação da Licença Prévia (LP) para o Trecho do Meio da rodovia. A medida, ao mesmo tempo que é o maior avanço que o processo de licenciamento da rodovia teve nos últimos 15 anos, também é um dos maiores retrocessos em termos de respeito aos direitos dos povos da floresta e à democracia. Isso porque a LP foi emitida sem a consulta prévia, livre e informada às populações mais vulneráveis aos impactos da repavimentação da BR-319, os povos indígenas e comunidades tradicionais, extrativistas e ribeirinhas.
A LP foi expedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), na quinta-feira (28/07), para a criação de projetos para obras no Trecho do Meio (entre os quilômetros 250 e 655,7) da BR-319.
“Salta aos olhos a violação dos direitos dos povos da floresta no processo de licenciamento das obras da BR-319. A gestão pública não pode cometer os mesmos erros do passado, na década de 1970, e ignorar indígenas e comunidades tradicionais. Isso coloca em risco o bom andamento do processo e abre brechas para judicializações e mais atrasos”, avalia a secretária executiva do Observatório BR-319 (OBR-319), Fernanda Meirelles. “Além disso, vemos com grande preocupação a emissão da Licença Prévia neste momento de disputa eleitoral, a decisão tem evidente motivação política e eleitoreira”, completa Meirelles.
O diretor da WCS Brasil, organização membro do OBR-319, Carlos César Durigan, diz que é impossível concordar com a viabilidade ambiental anuída pela LP. “Ainda existem pontas soltas no processo todo e, neste caso específico, basicamente não temos garantias das agências ambientais sobre as ações de fiscalização, controle e monitoramento, nem da obra em si e seus impactos diretos. Muito menos dos tantos problemas já registrados e relatados às instituições envolvidas, como tem sido o caso de abertura de ramais, ocupação de terras públicas destinadas – Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs) – e não destinadas, que têm levado a uma explosão da degradação e desmatamento em toda a área de influência da BR-319”, diz Durigan.
Ele alerta que a pressa sempre foi a inimiga do processo de licenciamento das obras na BR-319 e razão pela qual tem demorado tanto. “Ao longo de todo o processo, e nos últimos anos, o que temos visto é uma resistência dos órgãos envolvidos em fazer acontecer as etapas de levantamento de informações e as consultas prévias, livres e informadas aos povos indígenas e comunidades locais, como é preconizado pela Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, recorda. “Essas, inclusive, têm sido as principais causas de travamento do processo de asfaltamento e manutenção. Fazer direito já demandaria muito tempo e paciência, mas fazer de modo capenga vai levar a mais questionamentos e não deve agilizar o asfaltamento, e sim gerar aberturas a processos jurídicos. Além do que, irá repercutir de forma negativa no cenário nacional e internacional”, avalia Durigan.
É importante deixar claro que o Observatório BR-319 não é contra a reconstrução da rodovia, mas se posiciona na defesa de um processo de licenciamento transparente, democrático e inclusivo, que ouça e dê voz a quem mora em territórios tradicionalmente ocupados ao longo da rodovia e que sofrerá as piores consequências de um processo marcado por violações.
Também é importante que a sociedade não se deixe levar por narrativas enganosas, que colocam ambientalistas, cientistas e outros como vilões e inimigos do progresso. Entra governo e sai governo, a gestão das obras da BR-319 é deliberadamente confusa, irresponsável e incompetente, por isso elas atrasam, porque não cumprem a lei e deixam brechas para a judicialização do processo. Para deixar claro e embasado o que pensa o Observatório BR-319, o coletivo emitiu uma nota de posicionamento que explica pontos fundamentais dessa situação.
Leia a nota completa aqui[Aqui!] e saiba mais sobre o assunto no Informativo Observatório BR-319 [Aqui!]
Sobre o OBR-319
O Observatório BR-319 é formado pelas organizações Casa do Rio, CNS (Conselho Nacional das Populações Agroextrativistas), Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), FAS (Fundação Amazônia Sustentável), FVA (Fundação Vitória Amazônica), Greenpeace Brasil, IEB (Instituto Internacional de Educação do Brasil), Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia), Opan (Operação Amazônia Nativa), Transparência Internacional Brasil, WCS Brasil e WWF-Brasil.
Espaço para pecuária e cultivo de soja em vez de mata atlântica: desmatamento na fronteira da Amazônia (28 de julho de 2021)
Por Norbert Suchanek para o JungeWelt
O desmatamento na Amazônia brasileira continua. Durante os primeiros seis meses deste ano, 3.988 quilômetros quadrados de floresta tropical foram desmatados, 10% a mais do que no mesmo período do ano passado. Esse é o resultado dos últimos dados de satélite do Instituto de Pesquisas Espaciais INPE, responsável pelo monitoramento florestal. O aumento do desmatamento levou ao aumento dos incêndios florestais em junho. A situação pode piorar nos próximos meses mais secos, teme a ecologista Manoela Machado, do Woodwell Climate Research Center, informou a agência de notícias Reuters em 8 de julho. “Se tivermos muito desmatamento, é inevitável que também tenhamos muitas queimadas”, diz o pesquisador.
Após a derrubada e remoção das árvores valiosas, os abatedores geralmente incendeiam a floresta remanescente para ganhar terras aproveitáveis para criação de gado ou cultivo de soja. Também é alarmante que o desmatamento tenha aumentado, especialmente na região central da Amazônia. De janeiro a junho deste ano, o estado do Amazonas registrou mais destruição de floresta tropical pela primeira vez do que os líderes anteriores Rondônia, Mato Grosso e Pará no sul e sudeste da região. Machado: “Esta é uma notícia extremamente ruim.”
A reforma da rodovia federal BR-319, com quase 900 quilômetros de extensão, que vem sendo discutida há anos, também visa o coração da bacia amazônica. Segundo o renomado cientista Philip Martin Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia INPA, este projeto é atualmente a pior ameaça para toda a região e além, como explicou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em 17 de julho.
O governo militar brasileiro fez com que a BR-319, inaugurada em 1976, cortasse a floresta tropical para ligar a capital amazônica de Manaus a Porto Velho, no estado de Rondônia, no sudoeste da Amazônia. No entanto, defeitos de construção e altos custos de manutenção fizeram com que a »trilha da selva« se tornasse cada vez mais intransitável e, finalmente, em 1988, foi completamente abandonada e deixada por conta própria.
Embora o presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) quisesse renovar a estrada construída durante a ditadura, foi seu sucessor, Lula da Silva, que começou a restaurá-la em 2005. No entanto, as avaliações de impacto ambiental interromperam o projeto em 2015. Agora é o atual presidente de direita Jair Bolsonaro que o apoia veementemente e quer avançar independentemente das perdas.
Faltam cerca de 400 quilômetros de asfalto na área núcleo e uma licença ambiental para concluir a BR-319, que Fearnside acredita que nunca deve ser emitida.
O pesquisador da Amazônia de 75 anos tem certeza de que a restauração dessa estrada terrestre levará ao desmatamento do grande bloco de floresta tropical no coração da Amazônia, que até agora está praticamente intacto. E esse pode ser o chamado ponto sem volta para toda a região, ou seja, o ecossistema amazônico pode entrar em colapso com graves consequências climáticas em todo o mundo e principalmente para o abastecimento de água potável do Sudeste do Brasil, que depende em grande parte das chuvas vindas da Amazônia região. Em 2018, o cientista climático brasileiro Carlos Nobre estimou que esse ponto sem retorno poderia ser alcançado com 20 a 25% de desmatamento na floresta amazônica. Hoje, de acordo com Fearnside, 20% da floresta tropical já foi destruída.
Este texto escrito originalmente em alemão foi publicado pelo jornal “JungeWelt” [Aqui!].
Um dos reflexos mais preocupantes da situação é o aumento da pressão em Áreas Protegidas na área de influência da rodovia
Um levantamento feito pelo Observatório BR-319 (OBR-319) identificou o aumento de 1.593 quilômetros (km) na rede de ramais localizada na área de influência da BR-319 nos últimos cinco anos, o que corresponde à abertura de quase duas rodovias BR-319 no período. Os números correspondem aos municípios de Canutama, Humaitá, Manicoré e Tapauá, no sul do Amazonas. As informações completas estão na nota técnica “Abertura e expansão de ramais em quatro municípios sob influência da rodovia BR-319”, publicada nesta terça-feira (19).
“Esse trabalho foi desenvolvido em um contexto de avanço do processo de licenciamento das obras no Trecho do Meio da BR-319 e de muita expectativa pela finalização destas intervenções, o que aumentou a especulação fundiária na região e intensificou atividades relacionadas à grilagem de terras, como a abertura de ramais e desmatamento em florestas públicas”, explica a coordenadora da nota técnica do OBR-319 e pesquisadora do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), Paula Guarido.
A grande expansão de ramais na região da BR-319 entre 2016 e 2021, indica que a repavimentação da rodovia pode estar impulsionando ocupações ilegais na região. “É importante destacar que construção de estradas oficiais, como a BR-319, geralmente é acompanhada do surgimento de redes de estradas menores, que são os ramais”, explica Guarido. “Essas estradas podem ser construídas com o objetivo de ocupação regional, conexão de comunidades a uma estrada oficial, ou mesmo para o acesso e exploração de recursos naturais. Alguns ramais também são abertos para facilitar fiscalizações e até escoamento de produção agroextrativista. Mas, de toda forma, eles precisam de fiscalização para não crescerem de maneira desordenada”, acrescenta a pesquisadora.
Os dados utilizados no mapeamento do OBR-319 foram gerados a partir de imagens de satélite e banco de dados do governo, e resultou na identificação de uma rede de ramais que, somados, perfazem uma extensão total de 4.752 km em Canutama, Humaitá, Manicoré e Tapauá. O ano de maior crescimento de ramais nestes municípios foi 2020, com aumento de 14% e um acréscimo de 560 km à rede.
“Para o mapeamento realizado para a produção desta nota técnica, escolhemos analisar a dinâmica de abertura e expansão de ramais nestes quatro municípios porque estão localizados na região com os maiores valores de desmatamento do estado do Amazonas. Além disso, são municípios bastante relacionados à BR-319 e, também, têm batido recordes de desmatamento nos últimos anos, inclusive Tapauá, que no início dos monitoramentos do Observatório BR-319 mal aparecia nas análises mensais”, explica Paula Guarido.
O município que apresentou a maior rede de ramais foi Canutama, seguido por Humaitá, Manicoré e Tapauá. Humaitá foi o município que mais expandiu sua rede de ramais em quilômetros nos últimos cinco anos. Tapauá, mesmo sendo o município com a menor rede de ramais, apresentou a maior taxa de crescimento entre 2016 e 2021, com aumento de 451%. Com exceção deste município, que apresentou um maior acréscimo de ramais no ano de 2018, nos outros três a rede de ramais cresceu mais em 2020.
Entre as categorias fundiárias analisadas, Imóvel Privado foi a que concentrou a maior parte dos ramais mapeados em Canutama, Humaitá e Tapauá. Em Manicoré, os ramais estavam em maior número nas Terras Indígenas.
Dinâmica relacionada à BR-319 e pressão em Áreas Protegidas
Em relação à dinâmica de abertura de ramais diretamente relacionada à rodovia, a análise na área de 40 km para cada lado da BR-319 mostrou que, quando somados, 62% dos ramais dos quatro municípios estão na área sob influência direta da BR-319, totalizando 2.934 km. Contudo, a distribuição desses ramais por município não é homogênea: em Humaitá, 91% dos ramais estão dentro dos 40 km; em Canutama, 86%; em Tapauá, 67%; e em Manicoré, apenas 2%.
Os dados indicam, ainda, que Canutama e Humaitá, além de possuírem uma dinâmica de abertura e expansão de ramais bastante relacionada à BR-319, apresentam, também, um aumento recente da expansão deste tipo de via, já que o ano de maior crescimento de ramais nesses municípios, na área de influência direta da rodovia foi 2020.
Um fator que gera grande preocupação é que, somente em 2021, 55% dos ramais mapeados, nestes municípios, estavam dentro de Florestas Públicas Não Destinadas (FPND), totalizando 2.609 km de ramais, sendo 40% pertencente a Canutama (1.048 km), 32% a Manicoré (845 km), 25% a Humaitá (647 km) e 3% a Tapauá (70 km). Além disso, a nota mostra que grande parte da rede de ramais nesses dois municípios está possibilitando uma forte pressão por ocupações ilegais nas Áreas Protegidas que possuem limites próximos à rodovia.
Em Canutama, é possível notar uma extensa rede de ramais próxima ao Parque Nacional (Parna) Mapinguari e à Terra Indígena (TI) Jacareúba/Katawixi, que possui 96% de seu território sobreposto a esse Parna e está sem proteção legal desde dezembro de 2021, devido ao fim da vigência e não renovação de sua Portaria de Restrição de Uso. Da mesma forma, em Humaitá, é possível notar uma extensa rede de ramais na região do distrito de Realidade, promovendo pressão irregular da Floresta Nacional (Flona) de Balata-Tufari.
“O resultado desse estudo aponta que, se nada for feito para conter a expansão de atividades ilegais na região da BR-319, essa dinâmica de ocupação pode se espalhar ao longo de toda a rodovia, conectando o Arco do Desmatamento à região mais conservada da Amazônia brasileira, principalmente diante das ações de repavimentação do Trecho do Meio da BR-319”, analisa Paula Guarido.
A nota técnica do OBR-319 sugere ainda sete encaminhamentos: monitoramento permanente de ramais, por satélite e in loco, por parte dos órgãos de fiscalização ambiental estaduais e federais; a urgente revisão e implementação do Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) do Purus e a elaboração do ZEE do Madeira, integrando-os à gestão desse território; maior aporte de recursos financeiros e humanos pelos governos federal e estadual para garantir a gestão e implementação das Áreas Protegidas, que estão na região de influência da BR-319, além de um plano de monitoramento e proteção destas áreas; entre outros. A nota técnica será protocolada em órgãos ambientais e de fiscalização estaduais e federais, Ministério Público Federal e outros e já está disponível no site www.observatoriobr319.org.br.
Sobre o OBR-319
O Observatório BR-319 é formado pela Casa do Rio, Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Fundação Amazônia Sustentável (FAS), Fundação Vitória Amazônica (FVA), Greenpeace, Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Transparência Internacional Brasil, WCS-Brasil e WWF-Brasil.
Mais de 150 organizações assinam a nota em apoio a Philip Fearnside, um dos mais respeitados pesquisadores da Amazônia que foi vítima de comentários xenofóbicos
O pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Dr. Phillip Fearnside, foi alvo de ataques xenofóbicos durante uma audiência pública sobre o licenciamento para obras na BR-319. O evento foi realizado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), na noite da última segunda-feira (27), no Centro de Convenções Vasco Vasques, em Manaus (AM). As ofensas aconteceram após Fearnside apresentar um artigo com argumentos contundentes, a partir de uma análise com bases técnicas e científicas, sobre as obras na rodovia e de seus impactos socioambientais.
O pesquisador, que é norte-americano e vive e atua na Amazônia há mais de 40 anos, é integrante do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU, e foi laureado com o Prêmio Nobel da Paz, em 2007, por sua contribuição na luta contra a crise climática. Philip Fearnside é reconhecidamente uma das maiores autoridades científicas do mundo no que diz respeito à Amazônia. Ele é respeitado internacionalmente e importante referência por seus estudos e pesquisas, que ajudaram a entender a dinâmica ecossistêmica da maior floresta tropical do planeta.
As instituições, entidades de pesquisa e pesquisadores, e organizações da sociedade civil abaixo-assinadas repudiam e consideram inaceitáveis os ataques sofridos pelo cientista, que vem incansavelmente há décadas dedicando sua vida e esforços pela conservação da Amazônia. Um desafio extremo, como sabemos, considerando toda a dificuldade de se empreender pesquisa e ações de conservação no Brasil.
Discriminação é um comportamento abominável, criminoso e inconstitucional, se considerarmos que a Constituição Federal proíbe qualquer tipo de discriminação racial, étnica, religiosa, de gênero ou por nacionalidade. Dessa forma, repudiamos fortemente os ataques e manifestações desrespeitosas e xenofóbicas dirigidas ao Dr. Fearnside durante a audiência pública citada.
Esse fato e seus desdobramentos, demonstram a fragilidade e despreparo das instituições públicas responsáveis pelo processo de licenciamento das obras de repavimentação da BR-319. As audiências públicas de um licenciamento são uma exigência legal que muitas vezes têm sido realizadas pró-forma, quando devem ser ocasiões para debates críticos e construtivos, com dinâmica e metodologia adequadas que permitam que ajustes, melhorias e mesmo que questionamentos ao projeto sejam propostos e considerados, de modo que o ele seja reavaliado, melhorado ou mesmo cancelado.
Um processo tão longo como este, que se arrasta há anos justamente pela falta de seriedade na sua condução, não pode ser discutido agora de forma superficial. Muitos trabalhos científicos comprovam que a repavimentação da BR-319, da forma como está sendo proposta, é um risco enorme para a integridade da Amazônia e afetará profundamente a vida de milhões de pessoas. Foi justamente este alerta que o Dr. Fearnside tentou expor na audiência. No entanto, em vez de encontrar no evento um espaço democrático para apresentar este alerta, o cientista sofreu uma tentativa de silenciamento e descredibilização, em um ambiente hostil e truculento, bastante fragilizado pela baixa audiência.
Acreditamos que a ciência é um elo fundamental do nosso destino comum e uma oportunidade para construir uma sociedade mais justa, diversificada e sustentável. Pesquisadores renomados como o Dr. Fearnside vêm alertando há tempos sobre os possíveis impactos da reconstrução da BR-319 no bioma Amazônia, que serão irreversíveis e podem nos jogar no abismo do ponto de não retorno, onde espécies e uma série de benefícios e serviços ecossistêmicos, hoje proporcionados pela floresta, serão perdidos, afetando a vida de toda a humanidade.
Alertamos, ainda, que os estudos de impacto ambiental sobre a rodovia, apresentados pelo Dnit e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na audiência, estão incompletos e com graves problemas técnicos, uma vez que não delimitam a área de influência do projeto e foram realizados de forma superficial e sem a qualificação requerida para uma avaliação tão importante. É inacreditável que mesmo existindo dezenas de instituições públicas de grande qualificação e experiência na região como Inpa, Ufam, UEA, Ifam, Ufir, nenhuma delas tenha sido convidada a participar ou avaliar os estudos realizados.
Somado à precariedade dos estudos ambientais, ainda há o agravante de que as demandas das populações indígenas e das comunidades tradicionais estão sendo sistematicamente ignoradas. Os estudos do componente indígena, bem como a realização das consultas prévias, livres, informadas e de boa-fé, como preconiza a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em sua Convenção nº 169, têm sido proteladas e deveriam ocorrer antes das audiências públicas gerais.
Por fim, reiteramos nosso repúdio ao modo de condução da audiência pública por seus organizadores, que, ao não se posicionarem contra as agressões sofridas pelo Dr. Fearnside, permitiram que o debate público fosse desvirtuado de sua finalidade de informar ao público, para se transformar em palco de negacionismo, desinformação e de campanha política com fins eleitoreiros.
Agressões não são argumentos válidos e não podem ser aceitas em discussões públicas, ainda mais em audiências promovidas pelo Poder Público, que deveria conduzir o debate primando pelo respeito aos diferentes pontos de vista. É dever do Poder Público não admitir e rechaçar imediatamente o discurso de ódio promovido e que tem sido sistematicamente ampliado. Assim, solicitamos providências para que estas agressões sejam formalmente repudiadas pelos responsáveis por essa audiência, que, a rigor, deveria ser reagendada e novamente realizada em condições apropriadas. Esperamos que seja revisto o método de aplicação e condução das audiências públicas e que os próximos eventos tenham melhor dinâmica e preparo. As audiências públicas devem ser espaços verdadeiramente democráticos que de fato contribuam com a discussão qualificada sobre obras na BR-319 e outras que estão por ser apreciadas e licitadas.
Assinam este documento pesquisadores e sociedade civil:
Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) Greenpeace Brasil GT Infraestrutura Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável (Idesam) Movimento Ficha Verde (MoFV) Observatório BR-319 (OBR-319) Transparência Internacional Brasil (TI-Brasil) WCS Brasil Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) Operação Amazônia Nativa (OPAN) Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) Instituto Mapinguari (IMAPIN) Instituto Ecos de Gaia (EGA) Instituto Socioambiental – ISA WWF-Brasil Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPE) Instituto Salve Mar (Movimento Salve Maracaípe) Instituto Juruá Rede Sustentabilidade Amazonas Movimento Ecotrabalhismo PDT AM Mater Natura – Instituto de Estudos Ambientais Instituto Regeneração Global Associação de Pós-graduandos da Universidade Federal do Amazonas (APG-UFAM) Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade (ANPPAS) Associação dos(as) Pós-graduandos(as) do INPA – MigAPG/INPA Rede Transdisciplinar da Amazônia (RETA) Articulação Parintins Cidadã Teia de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre) Espaço de Formação Assessoria e Documentação – São Paulo Abraço Guarapiranga – São Paulo Rede Barragens Amazônicas / Amazon Dams Network (RBA/ADN) Fundação Grupo Esquel Brasil FGEB Associação Toxisphera de Saúde Ambiental Associação SOS Amazônia Associação de Defesa Etnoambiental – Kanindé Comitê Chico Mendes Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Desenvolvimento e o Meio Ambiente Instituto Diadorim para o Desenvolvimento Regional e Socioambiental/iD (MG) Observatório do Clima – OC Rede de ONGs da Mata Atlântica- RMA Movimento “Eu rejeito barragens em Sabará” Professores do Curso de Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará Helder Lima de Queiroz – IDSM/SCM Gleice Oliveira – Historiadora e professora Neiva Araujo – Grupo de Pesquisa Direito, Território & Amazônia – Diterra/Unir Angélisson Tenharim – liderança do povo Tenharim Davyd Spencer R. de Souza, Sociólogo, DCiS-UFAM Maria Anete Leite Rubim Anete Rubim Daniel de Paiva Silva – IF Goiano, campus Urutaí Steffanie Schmidt – Jornalista – DRT/MT 1329 Yuri Breno da Silva e Silva Carlos Edwar de Carvalho Freitas, Universidade Federal do Amazonas Rita Mesquita – INPA Maria Cecília Wey de Brito – Instituto Ekos Brasil Ivaneide Bandeira Cardozo – Kanindé Camila C. Ribas – Pesquisadora INPA Taiguã Corrêa Pereira – doutorando PPGBot / INPA Fernanda de Pinho Werneck – Pesquisadora INPA Cecilia Veronica Nunez – INPA Eron Bezerra – Professor Doutor UFAM Anete Rubim – UFAM Albertina Lima Kaio Cesar Marinho da Cunha – INCT-INPA Vincenzo Lauriola – MCTI Sidineia Aparecida Amadio, Pesquisadora aposentada/INPA Jansen A. S. Zuanon, Biólogo, Pesquisador da COBIO/INPA Jussara Santos Dayrell, Bióloga, Doutoranda ECO/Inpa Gabriel Costa Borba, Biólogo, Doutorando na Virginia Polytechnic Institute and State University (Virginia Tech) Neliton Marques da Silva – FCA/UFAM Nágila Alexandre Zuchi – Doutoranda -PPG-BADPI/INPA Mauro Scarpinatti – Economista, professor universitário Andrea V. Waichman – UFAM Lucia Rapp Py-Daniel – INPA, pesquisadora Rosana Barbosa de Castro – DCF/FCA/UFAM Virgílio Maurício Viana – Superintendente Geral da Fundação Amazônia Sustentável Miguel Petrere Junior – Universidade Federal do Pará José Eurico Ramos de Souza – IFAM-CMZL Iolanda da Silva Moutinho – Mestranda PPG-ECO /INPA Flora Magdaline Benitez Romero – INPA Cristine Luciana de Souza Rescarolli – FAS Alberto Vicentini – INPA-CODAM, pesquisador Luiza Magalli Pinto Henriques – INPA/COPES, Analista em C&T Carolle Alarcon – UICN Brasil João Ferraz – Pesquisador INPA Patricia Marques do A. Oliveira – Mestranda PPGBA/UFPE Carolina Ramirez Mendez – SDSN Amazônia Solana Meneghel Boschilia- UFPA Pedro Murilo Sales Nunes – professor adjunto – UFPE Rosa dos Anjos – FAS Paulo Braga Mascarenhas Júnior- UFPE Layon Oreste Demarchi – Doutorando PPG-Bot-INPA Aretha Alves Pereira – FAS Anne Rapp Py-Daniel – Universidade Federal do Oeste do Pará Thereza Beatriz Lira Melo – UFPE Paulo Maurício Alencastro Graça – Pesquisador INPA Maria Teresa Fernandez Piedade – Pesquisadora INPA Manuela Carneiro da Cunha – Antropóloga, Professora Titular aposentada da USP e Professora Emérita da Universidade de Chicago José Sabino – Professor e pesquisador, Uniderp Aurelio Michilies – Cineasta Marcos Antonio Isaac Júnior – Pós-doutorando INPA Thomas M. Lewinsohn – Professor Titular aposentado da Unicamp e Pesquisador Sênior CNPq Isabela Freitas Oliveira – Doutoranda PPG/ECO INPA Luciana Rebellato – OPAN Ricardo de Oliveira Perdiz – Biólogo Carlos Alfredo Joly – Professor Titular aposentado da Unicamp Luciney Araújo Leitão – Professor de Sociologia EBTT da UFAC Brunno Freire Dantas de Oliveira – Ecólogo e pós-doutorando em University of California – Davis, USA Thais de Nazaré Oliveira Novais – Mestranda PPG-CFT/INPA José Henrique de Andrade Lima – PPGBA- UFPE Maria Nazareth F. da Silva – Pesquisadora INPA André Pereira Dias – CGMA/SEMA-MT Davor Vrcibradic – Professor adjunto – UNIRIO Adriana Ramos – ambientalista Daniel Brandt Galvão – Professor IFCE Pedro Bruzzi Lion – FUNATURA Camila Julia Pacheco Ramos – Doutoranda PPG CFT/INPA Lucirene Aguiar de Souza-Ufam Deputado Federal Rodrigo Agostinho (PSB/SP) – Coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista Deputado Federal Nilto Tatto (PT/SP) – Coordenador da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos ODSs Carla Gheler-Costa – Bióloga, Dra. Fábio Henrique Comin – Biólogo, Dr. Iris Roitman – Pesuisadora Colaboradora -UJ Valério De Patta Pillar – Professor Titular, UFRGS José Celso de Oliveira Malta – Pesquisador INPA Annelyse Rosenthal Figueiredo – UFOPA Elineide E. Marques – UFT Rubens Harry Born – Engenheiro civil com especialização em engenharia ambiental, advogado, mestre e doutor em Saúde Pública José Ribamar Bessa Freire – Coordenação do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO Lucas Rodrigues de S. Santos – Doutorando em Ciência do France Rodrigues, PPGSOF/UFRR Sistema Terrestre – Universidade da Califórnia Irvine, EUA Gustavo T. Gazzinelli – jornalista e ambientalista e Belo Horizonte (MG) Aurora Miho Yanai Nascimento – Pós-doutoranda/INPA Beatriz Figueiredo Cabral – Mestranda PPG/CFT-INPA Reinaldo Imbrozio Barbosa – Pesquisador do INPA/ Núcleo Roraima Flávia Nogueira de Sá – Professora Universidade de Brasília Célio U. Magalhães Filho – Pesquisador aposentado do INPA/ Pesquisador colaborador da FFCLRP/USP Fatima Monteiro – Africultora Familiar FEATRAF AM Carol Monteiro – Agricultora Familiar CONTRAF BRASIL CUT Rodrigo Guedes – Vereador CMM Ana Karina Moreyra – Bióloga Angela Galvão – Advogada Miguel Scarcello Renato Mattareli Márcio Zikán Cardoso – Professor Associado UFRJ Gabriela Borges Vedovello – Mestranda PPG/ECO INPA Nathalia de Toledo Marinho – mestranda PPG ECO/INPA Apoena Presidente Epitácio SP Djalma Weffort Debora Martins Nakayama Erika Berenguer – Pesquisadora University of Oxford/ Lancaster University/Rede Amazônia Sustentável Wilson Roberto Spironello – Ecólogo – Pesquisador e líder do Grupo de Pesquisa de Mamíferos Amazônicos do INPA
Por meio de uma nota de posicionamento, o coletivo Observatório BR-319 (OBR-319) se manifesta contra a realização das audiências públicas que serão promovidas, ainda neste mês de setembro, pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) sobre o licenciamento das obras do Trecho do Meio da rodovia BR-319. Esta área da rodovia é uma das mais críticas em termos de pavimentação e está localizada na região do interflúvio Purus – Madeira com diversas Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs).
No documento, o OBR-319 informa que não existem condições jurídicas, sociais, ambientais e sanitárias para a discussão do assunto. Entre os argumentos estão: estudos indígenas incompletos, a baixa adesão à vacinação na área de influência da rodovia e a precariedade da conectividade à internet nas comunidades impactadas pela rodovia.
“A realização de audiências públicas durante a pandemia, para apresentar o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) sobre o Trecho do Meio, é precipitada e ressaltamos que o Estudo do Componente Indígena (ECI) ainda não foi concluído”, declara a secretária executiva do Observatório BR-319, Fernanda Meirelles.
“Além disso, importantes etapas não foram cumpridas como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Constituição Federal e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que garantem o direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé para todas as comunidades, indígenas e tradicionais impactadas pelas obras da rodovia”, acrescenta.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), entidade membro do OBR-319, também se opõe à realização das audiências e não comparecerá aos eventos. “Nós não somos a favor das audiências, nem na modalidade presencial e nem na virtual. Ainda corremos o risco de infecção pela Covid-19 e a maior parte das comunidades não dispõem de internet para acompanhar a programação on-line”, explica o coordenador secretário da Coiab, Nilcélio Dijahui.
“O ECI, que faz parte do Rima, ainda tem várias etapas pendentes, não foi aprovado pela Funai (Fundação Nacional do Índio), não foi apresentado a nós e, portanto, não está concluído”, acrescenta. “As obras na BR-319 afetam diretamente o modo de vida tradicional das populações na área de abrangência da rodovia, por isso, não vamos participar de nenhuma audiência pública até que a pandemia acabe e que a Convenção 169 da OIT seja respeitada”, conclui a liderança Dijahui.
Pressa por quê?
As populações extrativistas e comunidades tradicionais da BR-319 também estão sendo negligenciadas nas medidas de licenciamento previstas para as obras da BR-319. Segundo o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), os moradores dos territórios coletivos de uso coletivo, não terão nenhuma possibilidade de participar das consultas sobre a rodovia. “As informações sobre o licenciamento chegam por meio de encontros presenciais, que estão escassos devido a pandemia”, afirma Dione Torquato, secretário geral do CNS. “Não entendo o porquê da pressa em realizar essas audiências, onde apresentarão informações incompletas e não validadas sobre a rodovia. É uma imprudência pública o Dnit não reconhecer a realidade das comunidades mais distantes e que serão as mais impactadas pela reconstrução da BR-319”, esclarece Dione.
A autorização para realização das audiências públicas foi publicada no Diário Oficial da União (DOU), no dia 2 de setembro, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), com previsão de sessões presenciais e virtuais. O objetivo é “apresentar, dirimir dúvidas e colher críticas e sugestões relativas ao Relatório de Impacto Ambiental (Rima) do empreendimento denominado reconstrução/pavimentação da BR-319, entre os km 250 e 655,70, denominado Trecho do Meio, no Amazonas”. Obras que ficarão sob responsabilidade do Dnit.
A previsão para as audiências, segundo o edital disponibilizado pelo Ibama, é começar no dia 27 de setembro, em Manaus, e encerrar no dia 1º de outubro, no município de Humaitá.
“Entendemos que as consultas, audiências públicas, reuniões preparatórias ou qualquer espaço de discussão criado para debater o licenciamento das obras da rodovia, devem sempre ser realizados de forma presencial”, defende Fernanda Meirelles. “Eles são extremamente importantes para garantir o adequado repasse de informações, a participação representativa e ativa e o debate franco e plural. As audiências virtuais ameaçam estes aspectos fundamentais ao projeto, já que a conectividade digital limitada é uma barreira para muitas comunidades tradicionais e povos indígenas que vivem na rodovia”, concluiu.
Sobre o Observatório BR-319
O Observatório BR-319 foi criado em 2017 com o objetivo de monitorar, reunir e disseminar informações sobre a rodovia BR-319. O foco das atividades do grupo é o processo de licenciamento de obras e a garantia de condições mínimas para o respeito aos direitos de populações tradicionais e indígenas da área de influência da rodovia. O OBR-319 é formado pelo Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Fundação Amazônia Sustentável (FAS), Fundação Vitória Amazônica (FVA), Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Transparência Internacional Brasil, WCS-Brasil e WWF-Brasil. Para mais informações acesse www.observatoriobr319.org.br.
O texto deste comentário é atualizado de uma versão anterior em português da coluna do autor naAmazônia Real.
Por Philip Fearnside
A rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) foi construída no início da década de 1970 pela ditadura militar no Brasil, mas foi abandonada em 1988. Em 2016, um programa de “manutenção” foi autorizado, e a rodovia agora é transitável durante a estação seca.
A atual proposta de “reconstrução” da BR-319, que construiria uma nova estrada asfaltada sobre o antigo leito de terra, está certamente entre as decisões mais importantes que o Brasil enfrenta hoje. O estudo de impacto ambiental (EIA) para o projeto foi submetido ao órgão licenciador (IBAMA, órgão ambiental do Brasil), onde está recebendo tratamento acelerado para o que parece ser uma aprovação predeterminada. A autorização apressada de um projeto que implique uma grande expansão da área da Amazônia exposta ao desmatamento éextremamente imprudente .
Até agora, o desmatamento tem sido quase totalmente limitado ao “arco do desmatamento ” ao longo das bordas sul e leste da floresta amazônica no Brasil, e à metade leste da região onde o acesso rodoviário já está implantado.
Região da Amazônia Legal do Brasil. O “arco do desmatamento” é a área vermelha ao longo das bordas sul e leste da floresta. A BR-319 corta pela metade o restante da floresta amazônica, proporcionando acesso a vastas áreas de floresta em pé para aqueles que desmataram as porções leste e sul da região. Dados de desmatamento cortesia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Impactos em grande escala
O impacto da BR-319 se estenderá muito além da faixa ao longo da rodovia que é objeto do EIA.
A BR-319 abre as porções centrais e do norte da Amazônia para a migração de grileiros ( grileiros ), madeireiros, pecuaristas, grileiros individuais ( posseiros ) e agricultores sem terra organizados ( sem-Terras ). Esses atores já estão presentes no “arco do desmatamento” e se mudaram para áreas no sul do estado do Amazonas onde há acesso rodoviário, incluindo Apuí, Igarapé Realidade e Lábrea (veja mapa preto e branco abaixo).
Criticamente, a BR-319 está associada a planos de estradas adicionais, como AM-366, que abririam uma vasta área de floresta tropical intacta na parte oeste do estado do Amazonas.
Abrir essa região “Trans-Purus” no oeste do Amazonas ao desmatamento seria catastrófico para o Brasil, levando à perda de serviços ambientais críticos. Isso inclui o abastecimento de água à cidade de São Paulo: a área de Trans-Purus é o último grande bloco de floresta intacta da Amazônia brasileira, e perder essa área significa perder a função da floresta amazônica de reciclar a água que é transportada nos “ rios voadores ”Para as principais áreas urbanas e agrícolas do Brasil (vejaaqui , aqui , aqui , aqui eaqui). Amazônia está fornecendo 70% da água durante o pico da estação chuvosa em São Paulo, quando se enchem os reservatórios que abastecem a cidade. São Paulo quase ficou sem água várias vezes, mesmo com a função de ciclagem da água da Amazônia ainda intacta.
O estudo de impacto ambiental (EIA ) para reconstruir o “trecho do meio” da BR-319 já está disponível ao público . O EIA define uma “área de impacto direto” (ADA) e uma “área de impacto indireto” (AIA) que exclui os impactos mais amplos da rodovia, incluindo a região crítica “Trans-Purus” a oeste do Rio Purus.
A rodovia BR-319 e suas estradas vicinais planejadas, incluindo AM-366, que abririam a vasta área de floresta intacta entre a rodovia e a fronteira do Brasil com o Peru (Fonte: Fearnside & Graça, 2006).
Apesar das muitas deficiências do EIA, enterradas nas 3735 páginas do documento, há passagens que reconhecem muitos dos verdadeiros impactos do projeto, pelos quais os autores devem ser parabenizados. Entre eles está a ameaça que a reconstrução da BR-319 representa para a região Trans-Purus ao desencadear uma cadeia de eventos que resultaria na abertura da rodovia AM-366 planejada, permitindo assim que os desmatadores entrem nesta região crítica:
A repavimentação e a plena operação da BR-319 em toda sua extensão podem incentivar os políticos regionais a pressionar o governo do Amazonas a retomar o projeto de implantação da rodovia AM-366. Esse risco é muito concreto na medida em que, poucos anos após a inauguração da BR-319, um “ picadão ” ligando a BR-319 à cidade de Tapauá foi inaugurado por uma iniciativa provavelmente de agentes privados. (ECI-Apurina , p. 119).
O EIA também menciona a relevância da atual administração presidencial do Brasil para o perigo crescente de construção do AM-366:
Nas condições político-institucionais ora presentes na região e no país, somadas às iniciativas do Poder Executivo do governo federal de rever medidas de proteção ambiental e de viabilizar o avanço do agronegócio no sul do Amazonas – como apontado anteriormente – está bem possível que o AM-366 pudesse obter apoio político suficiente para sua implementação. (ECI-Apurina , p. 119).
Menciona-se o potencial de invasão das áreas abertas pela rodovia AM-366 e pelas vicinais ilegais ao longo de seu traçado entre Tapauá e a BR-319:
[AM-366] ofereceria aos migrantes das regiões Sul e Sudeste, e principalmente de Rondônia, uma via aberta para abertura de lotes em terras do governo – a custo zero. (ECI-Apurina , p. 83).
O EIA também menciona a probabilidade de AM-366 germinar em estradas secundárias ( ramais ) para fornecer acesso às áreas de produção de petróleo e gás planejadas para exploração no âmbito do maciço “Projeto de Área Sedimentar do Solimões”:
A questão da exploração dos blocos da bacia do Solimões. ,,, ganha maior relevância justamente pela possível interligação entre a BR-319 e os municípios de Tefé e Coari pela rodovia AM-366, de onde ramais poderia se “ramificar” para os locais das instalações petrolíferas (ECI-Apurina , p. 106).
Já estão sendo construídas estradas vicinais ilegais ( ramais ) que bifurcam a BR-319, como uma iniciada em fevereiro de 2020 para entrar em uma área protegida, a Reserva Extrativista Lago do Capanã Grande. Existem também estradas ilegais sendo construídas na direção oposta, partindo de cidades no rio Purus e avançando em direção à BR-319. Além da estrada vicinal ilegal que está sendo construída saindo de Tapauá (ECI-Apurina , pp. 119-121), o EIA menciona uma estrada ilegal semelhante sendo construída para ligar Canutama à BR-319, que já tem 40 quilômetros de extensão (EIA, p. 2565). A óbvia falta de governança na área é uma questão fundamental na batalha pelo licenciamento.
Ponte construída sobre um riacho em fevereiro de 2020 em uma estrada vicinal ilegal (ramal) ramificando-se na BR-319 e penetrando em uma área protegida, a Reserva Extrativista Lago do Capanã Grande. Imagem cortesia de líder indígena cuja identidade não foi divulgada.
O projeto de petróleo e gás é uma grande ameaça para as florestas da região de Trans-Purus porque a escala do projeto significa que as empresas que exploram o petróleo e gás teriam um motivo importante para pressionar o governo a fornecer acesso rodoviário.
O EIA toca na responsabilidade do DNIT, Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte do Brasil, pelo resultado desastroso que resultaria do papel da BR-319 em aumentar a probabilidade de construção do AM-366:
Esta cadeia de eventos, de certa forma, dá ao empresário algum grau de responsabilidade pela eventual ligação terrestre da BR-319 à cidade de Tapauá (ECI-Apurina, p. 120).
Apesar de algumas passagens no EIA reconhecerem o impacto mais amplo do BR-319, isso não se traduz em recomendações sobre o que fazer a respeito. Em vez disso, o foco é restrito ao ADA e AIA, e as recomendações se limitam a apontar que a governança é necessária para minimizar os impactos. Questionar a existência do projeto, ou adiá-lo por um período substancial de anos enquanto a governança é estabelecida, não são apresentadas como opções sérias.
Em vez disso, as recomendações para evitar os impactos massivos são limitadas ao apelo padrão por “governança”, mas as chances de tal programa ser implementado em uma escala que evitaria desastres são quase zero. A área da BR-319 está praticamente sem lei hoje, com grilagem e invasões ilegais de terras, extração de madeira e construção de estradas vicinais ocorrendo com impunidade. É simplesmente fictício que “aBR-319 será um exemplo de sustentabilidade para o mundo ”, como afirmam os deputados da Assembleia Legislativa do estado do Amazonas.
A BR-319 agora está transitável na estação seca devido a um programa de “manutenção” iniciado em 2016. (Foto: PM Fearnside).
Impactos sobre os povos indígenas
O componente indígena é crítico. Este elemento do projeto foi aparentemente submetido ao órgão licenciador (IBAMA) algum tempo depois do restante do EIA. Embora a separação no tempo tenha sido relativamente curta neste caso, é uma irregularidade importante, repetindo o escândalo que cercou o EIA 2015 daBarragem de São Luís do Tapajós . Assim como aquela polêmica barragem, o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) , que é o documento que serve para discussão pública do projeto BR-319 (incluindo as audiências públicas), foi obviamente concluído antes que o componente indígena estivesse disponível e não contém informações sobre os povos indígenas.
A questão da consulta aos povos indígenas afetados pelo projeto da rodovia BR-319 representa um teste-chave do sistema jurídico brasileiro. O Ministério Público Federal do Brasil (um Ministério Público estabelecido pela Constituição do Brasil de 1988 para defender os direitos do povo) há muito tempo tenta trazer o Estado de Direito ao Brasil a esse respeito, mas esses esforços falharam até agora, como nos casos das Barragens de Belo Monte e São Manoel (veja aqui , aquieaqui).
O EIA da BR-319 menciona o fato de que a legislação brasileira e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT-169), da qual o Brasil é signatário, exigem consulta prévia aos povos indígenas afetados. Esta consulta legalmente exigida não deve ocorrer apenas antes do início das obras, mas antes que qualquer decisão seja tomada sobre se deve ou não prosseguir com o projeto:
E o Artigo 15 da Convenção deixa explícito que essa consulta deve ocorrer antes que os governos empreendam ou autorizem qualquer programa de prospecção ou exploração de recursos existentes no habitat dos povos indígenas. (ECI-Apurina , p. 27).
No caso da BR-319, nenhum indígena foi consultado, apesar de alicitação do projetojá ter sido aberta e seu início imanente em violação à OIT-169 e à legislação brasileira (10.088, de 5 de novembro de 2019 , antigo 5.051 , de 19 de abril de 2004), que implementa a convenção.
No entanto, o DNIT planeja fazer sua “consulta” enquanto a construção da estrada estiver em andamento. O plano é consultar apenas cinco áreas indígenas, apesar do impacto da estrada se estender muito mais. O regulamento interno do IBAMA (Portaria Interministerial Nº 419, de 26 de outubro de 2011 , Anexo II ) considera todas as áreas indígenas dentro de 40 quilômetros de uma rodovia na Amazônia como “impactadas diretamente” e exige que sejam incluídas no componente Indígena do EIA . No caso de toda a rodovia BR-319 (não apenas o “trecho médio”), são 13 áreas indígenas dentro do limite de 40 quilômetros.
A reconstrução do trecho médio é o que desencadearia os impactos socioambientais de toda a rodovia ao abrir as comportas para o tráfego e migração. A OIT-169 e sua replicação na legislação brasileira não têm limite de distância para impactos que requerem consulta. Esses impactos vão muito além da área considerada no EIA. Além de prejudicar os povos indígenas que já vivem nas áreas de fluxo migratório que a rodovia estimularia, como asde Roraima , o desmatamento daprópria rota da rodovia pode ultrapassar os 40 quilômetros. Se for considerado um limite de 150 quilômetros,63 áreas indígenasseriam consideradas impactadas.
Concluindo, a reconstrução da rodovia BR-319 teria enormes impactos e poucos benefícios. Além da necessidade de cumprir requisitos legais como a obtenção do consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas, os líderes brasileiros devem fazer uma pausa para considerar a sensatez do próprio projeto, dada a ameaça que representa aos interesses nacionais do país. Arriscar a perda dos serviços ambientais da Amazônia, como o fornecimento de água para São Paulo, não é pouca coisa para o Brasil.
Este artigo foi escrito originalmente em inglês e publicado pelo Mongabay [Aqui!].
Por Philip Martin Fearnside, Lucas Ferrante e Maryane B. T. de Andrade para o “Amazônia Real”
Em 02 de março um evento sobre impactos atuais e esperados da reconstrução da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) foi organizado por lideranças indígenas e ribeirinhos do Lago do Capanã, no Município de Manicoré, Amazonas. O evento foi realizado na Câmara Municipal de Manicoré, reunindo 21 lideranças. Apresentamos palestras sobre impactos da rodovia, e as lideranças contribuíram com uma série de depoimentos e denúncias.
Entre as denúncias feitas, um cacique (que prefere não ser identificado por medo de retaliação), disse que um ramal foi aberto adentrando a Reserva Extrativista Lago do Capanã Grande em direção à Terra Indígena Lago Capanã (Figura 1). Ele disse que uma ponte foi construída com duas castanheiras cortadas longitudinalmente no meio (Figura 2) para o acesso de tratores dentro da terra indígena. A ponte foi feita nos últimos 15 dias por invasores do território.
Figura 1. Mapa da Reserva Extrativista Lago do Capanã Grande e das Terras Indígenas
Figura 2. Ponte feita de duas castanheiras no ramal ilegal na Reserva Extrativista Lago do Capanã Grande (Foto: Divulgação/Março de 2020)
Os indígenas e ribeirinhos estão alarmados com a possibilidade de violência pelos construtores do ramal e a provável invasão da área por grileiros e outros agentes do desmatamento. Como falou o cacique Ademor Leite Mura, “amanhã isto será campo”.
Não se sabe quem estaria financiando a construção do ramal.
Os autores:
Philip Martin Fearnside é pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) há 42 anos. Lucas Ferrante e Maryane Andrade são alunos de pós-graduação no INPA, orientados pelo Dr. Fearnside, o primeiro no programa de doutorado em Ecologia e a segunda no programa de mestrado em Ciências de Florestas Tropicais.
*A fotografia que abre este artigo é da BR 319, que liga os estados do Amazonas e Rondônia. (Foto: Fernando O G Figueiredo/ PPBIO-CENBAM)