À beira do colapso? A falência dos modelos atuais de pesquisa e pós-graduação

Por Érico Andrade para o “Blog da Boitempo” 

O sistema de pós-graduação no Brasil conheceu um avanço raro em poucas décadas. Para dar um exemplo, basta dizer que em 2023 a pós-graduação stricto sensu superou a marca de 350 mil matrículas. O crescimento da produção científica no Brasil e o incremento na formação de pessoas com mestrado e doutorado é notável. Segundo o Plano Nacional de Pós-Graduação, temos ainda um número deficitário de doutores quando comparado a outros países, mas com um esforço descomunal da comunidade acadêmica estamos equalizando esse quadro. Contudo, esse crescimento, por um lado, não foi acompanhado de melhores condições de trabalho, e por outro, foi objeto de uma maior ingerência dos órgãos de controle sobre a vida universitária. Ou seja, o aumento significativo na produção científica não teve como contrapartida um aumento do investimento em ciência que pudesse desonerar o pesquisador de ser um administrador, contador e expert em prestação de contas de projetos. Ademais, os órgãos de controle passaram a comportar cada vez mais exigências — todas elas quase kafkianas. Nos programas de pós-graduação, as secretarias (quando existe secretaria) parecem abarrotadas de trabalho, porque os sistemas das universidades para monitoramento da vida acadêmica estão cada vez mais complexos. Para alguns deles, aliás, é preciso até um tutorial de uso! 

Sob o pretexto de publicizar os atos administrativos, as universidades e agências de fomento têm sequestrado o tempo de pesquisa em nome de uma burocracia que aumenta na mesma medida em que o corpo técnico da universidade é diminuído e precarizado. Igualmente, o aumento de vagas na pós-graduação não é acompanhado por um crescimento no número de bolsas, e joga estudantes para uma espécie de concorrência fratricida e exaustiva para garantir um direito básico, qual seja, cursar uma pós-graduação com alguma renda que lhes permita se dedicar minimamente à produção acadêmica.

Essa concorrência se estende ao corpo docente, que muitas vezes, a fim de garantir mais recursos para os programas de pós-graduação, tem que produzir milhares de eventos, artigos e preencher não mais apenas o Lattes, mas diversas plataformas (Orcid, web of science, Scopus, academia.edu etc.) para se habilitar a submeter projetos que são avaliados considerando os rankings estrangeiros. Para a avaliação desses projetos, as agências de fomento naturalizaram o caráter privado dessas plataformas e obrigam o pesquisador a se desdobrar em tarefas que parecem não ter fim. A representação icônica disso é o nome do programa para recuperação de citação, “publish or perish” (literalmente, publique ou pereça), que indica que a morte acadêmica é o destino de quem não se adequa à compulsão por produzir. 

É nesse contexto que a lembrança de um texto do psicanalista Winnicott parece decisiva naquilo que, aqui, ele pode nos servir de metáfora. Em “O medo do colapso”, ele nos mostra que o medo intenso de um colapso frequentemente não é um temor do desconhecido, mas de reviver o que já experimentamos. Partindo dessa imagem como metáfora, é preciso afirmar que se sentimos medo do colapso da vida acadêmica é porque, de algum modo, esse colapso já ocorreu. Acredito que é precisamente o que estamos vivendo nos programas de pós-graduação quando, para cada tese escrita, cada projeto aprovado e cada evento feito, é produzida uma carga muito mais exaustiva de trabalho e, com isso, mais angústia, adoecimento e insegurança (diante da ameaça constante de perda de bolsas ou necessidade de devolver o financiamento recebido do próprio bolso por causa de um erro na prestação de contas).

É possível dizer que o atual sistema de avaliação, focado, sobretudo, em resultados — com as suas enormes exigências de produção e de comprovação de produções —  mimetiza tanto a lógica dos órgãos de controle quanto a lógica capitalista. O atual sistema de avaliação termina por contribuir para empurrar toda a comunidade acadêmica para um precipício.

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Érico Andradeé psicanalista, filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


Fonte: Blog da Boitempo

Estudantes de doutorado brasileiros desistem de oportunidades de pesquisa nos EUA

Pelo menos 96 estudantes que planejavam realizar pesquisas de pós-graduação nos Estados Unidos mudaram seu destino, citando políticas científicas e de imigração hostis

Bandeiras do Brasil e dos EUA sobre um fundo amassado com um rasgo no meio onde elas se encontram.

Doutorandos brasileiros estão cancelando seus planos de assumir posições de pesquisa nos Estados Unidos. Crédito: Saulo Angelo/iStock/Getty 

Por Meghie Rodrigues para a “Nature”

CAPES publica relatório de trabalho sobre acesso aberto

Documento está disponível no Portal de Periódicos e apresenta temas como o financiamento de taxas de publicação de artigos

CAPES anuncia importância do Acesso Aberto e dos Acordos Transformativos  com Publishers - ABCD - Agência de Bibliotecas e Coleções Digitais

A CAPES publicou o Relatório de Atividades Grupo de Trabalho Acesso Aberto, criado em 2023 para, por exemplo, realizar estudos e propor critérios sobre financiamento de taxas de publicação de artigo em revista nacionais e internacionais.  O documento está disponível no Portal de Periódicos e pode ser acessado [Aqui!].   

 Os integrantes do grupo de trabalho definiram a atuação do Programa de Apoio à Disseminação de Informação Científica e Tecnológica (Padict), que enfocou o financiamento de publicação de artigos em acesso aberto junto às editoras contratadas pelo Portal de Periódicos. O objetivo é garantir equidade regional, social e de gênero entre os atendidos por essa iniciativa.

O relatório também traz os resultados das discussões sobre infraestrutura adequada para que os pesquisadores brasileiros possam publicar artigos em revistas reconhecidas globalmente, sem custos adicionais, para aumentar a visibilidade e o impacto dos seus trabalhos.

O grupo de trabalho buscou alternativas e soluções para contribuir com o aumento da visibilidade da produção científica brasileira, associada a um modelo sustentável no pagamento de taxas de publicação. As discussões realizadas indicam que, no momento, a celebração de acordos transformativos, que preveem publicações ilimitadas, é o caminho mais adequado.

De caráter consultivo, o grupo de trabalho foi instituído pela Portaria nº 276/2023, de 5 de dezembro de 2023, como uma das ações do Padict, regulamentado pela Portaria nº 275/2023, na mesma data. O Padict pretende, por exemplo, fomentar os programas de pós-graduação, a formação de professores da educação básica e a disseminação da produção científica. Os integrantes propõem a convergência de esforços para promoção e democratização do conhecimento e o fortalecimento da produção acadêmica nacional com vistas a aumentar a visibilidade da ciência brasileira e consolidar a presença no cenário global.

Além da CAPES, participam o Ministério da Educação (MEC); o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI); a Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG); o Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap); a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC); o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT); o Scientific Electronic Library Online (SciELO); o Fórum de Pró-Reitores de Pós-Graduação e Pesquisa (Foprop); a Associação Brasileira dos Editores Científicos (Abec); a Academia Brasileira de Ciências (ABC); a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep); e a Comissão Brasileira de Bibliotecas Universitárias.


Fonte: CAPES

Qualis: o estranho rumo dos periódicos científicos

Critérios para avaliar artigos acadêmicos mudarão em breve. Incluirão número de downloads e menções em redes sociais. Avanço rumo à popularização da ciência? Ou mergulho ainda mais profundo na mercantilização e na lógica empresarial?

Arte: Julie Jabur

Por Michel Goulart da Silva para o “Outras Palavras” 

Nos últimos meses, muito se tem comentado acerca do Qualis – o sistema de avaliação dos periódios científicos brasileiros organizado pela Capes – e as mudanças a serem realizadas em seus critérios, notas e rankings. No geral, as reflexões produzidas em torno desse tema têm se limitado a analisar se a forma está correta ou se o novo sistema funcionará. Ou seja, essas reflexões colocam-se dentro dos limites da compreensão de que existe a necessidade de um sistema de avaliação para a pós-graduação e para as publicações acadêmicas e que apenas deve ser melhorada, mantendo a busca de resultados qualitativos e quantitativos. Portanto, não fazem uma avaliação do caráter mercantil dessas avaliações e de como afetam a produção científica em seu conjunto. Há poucas reflexões que tocam no caráter mercantil dessa avaliação e no fato de que esse processo ignora os fundamentos que deveriam embasar a divulgação científica. 

Embora as informações divulgadas pela Capes ainda sejam escassas, sabe-se que, a partir de agora, a classificação dos periódicos passa a ser baseada em artigos publicados e não mais por revistas. Nessa nova proposta, a avaliação passa a ter três critérios fundamentais: 1) número de citações; 2) número de downloads e menções em sites e redes sociais; 3) contribuição científica e impacto teórico. Portanto, com a nova avaliação, o que estava ruim com o Qualis poderá se tornar um desastre que permitirá o aprofundamento do livre mercado acadêmico.

Nos últimos anos, aprofundou-se o caráter mercantil das publicações científicas, em um duplo sentido, “de movimentar valores monetários muito elevados, e de proporcionar altíssimas taxas de lucro”.1 O central na avaliação das publicações acadêmicas vem sendo o número de citações, como forma de medir o prestígio que permite ao pesquisador se destacar em editais e rankings. Esse processo se fortaleceu por meio da imposição de regras sobre a própria escrita dos artigos, como exigir um determinado percentual de citações de artigos recentes, entre outras coisas. Na prática, um autor que verifica resumos num banco de dados de publicações recentes pode ter mais chance de sucesso do que alguém que estuda a fundo e cita a obra de um autor clássico. Uma das consequências dessa forma viciada passa pelo fato de que orientadores de pós-graduação comumente ganhem citações de seus orientados, além das parcerias com outros pesquisadores que participam dos esquemas de coautorias forjadas.

Outro aspecto passa pelo uso da aparição em sites e redes sociais como critério, o que, na era dos algoritmos, torna-se um prato cheio para a difusão momentânea e superficial de artigos que se tornarão irrelevantes depois de pouco tempo. Esse problema coloca em cena o fato de as redes de pesquisadores se mobilizarem para valorizar determinado artigo ou autor sem levar em conta a perspectiva histórica de como essa produção se localiza no processo de produção do conhecimento. Concretamente, serão valorizadas muitas produções que respondem superficialmente a temas de momento e que se tornarão irrelevantes em poucos meses ou mesmo semanas.

Portanto, o centro da questão passa menos pela forma como serão avaliados os artigos e os periódicos, mas se de fato é preciso que se faça uma avaliação quantitativa da produção científica. Esse processo foi inserido, há muitos anos, como parte da avaliação da pós-graduação, a partir da qual se definem critérios para a distribuição de recursos públicos – ou seja, eles definem com qual estrutura os programas de pós-graduação poderão contar em determinado período. Nesse caso, os mecanismos que aumentem a visibilidade de artigos vinculados aos programas, ainda que de forma temporária e forçada, poderão ser utilizadas para destacar critérios que levem a um melhor desempenho.

Essa lógica expressa o processo de mercantilização que vem avançando nas últimas décadas nos meios acadêmicos. Nesse processo, observa-se que “a administração baseada nas avaliações quantitativas é uma faceta da transformação da universidade num simulacro de empresa, daquilo que é produzido (em especial, os artigos científicos) em simulacro de mercadoria, dotadora de simulacros de valor de troca”.2 Portanto, a divulgação científica, na forma de anais de eventos, livros ou de artigos em periódicos, toma a forma de uma mercadoria. Com isso, inverte-se o caráter da produção científica, que deveria ser o de apresentar para os pesquisadores os resultados, parciais ou finais, de projetos desenvolvidos em universidades e centros de pesquisa. Os anais de eventos não deveriam ser produtos onde se vende espaço de publicação, mas a expressão de debates realizados em congressos e simpósios com os pares. Os artigos em revista deveriam mostrar a sistematização de resultados do trabalho realizado por grupos pesquisas. E os livros deveriam mostrar de forma mais densa e acabada o trabalho realizado ao longo dos anos anteriores. Na atual lógica, a preocupação passa por garantir mercadorias que garantam mais linhas no Currículo Lattes.

Concretamente, a divulgação científica deveria ser uma forma de fomentar o diálogo entre pesquisadores do mesmo campo do conhecimento que, a partir da leitura dos materiais difundidos, poderiam avaliar esses trabalhos, criticá-los e, inclusive coletivamente, apontar para novos caminhos nessa produção de conhecimento. Nada disso é possível em meio a proliferação de textos difundidos sem critério levando em conta somente os valores pagos para publicação. Essa indústria de textos pode levar a que se dê mais espaço para trabalhos de pouca qualidade científica, enquanto pesquisadores sérios e comprometidos com a produção de conhecimento pouco publiquem por evitarem entrar nesse jogo de mercantilização.

Esse processo vem sendo imposto ao espaço acadêmico, seja pelas pressões advindas dos interesses privados externos à universidade, seja pela adesão ideológica dos pesquisadores às ideias de mercantilização da pesquisa científica. Esses dois problemas levam à fragmentação do conhecimento, na medida em que seus produtos possam ser mais rapidamente vendidos, e à busca por resultados práticos, evitando-se pesquisas que não levem à satisfação do mercado acadêmico.

Esse processo impacta na produção científica. No capitalismo, “como todas as mercadorias, seu fornecimento é impulsionado pela demanda, resultando que o desenvolvimento de materiais, fontes de energia e processos tornou-se menos fortuito e mais atento às necessidades imediatas do capital”.3 Empobrece-se a produção do conhecimento, que deixa de ser uma busca por compreender os fenômenos da realidade e passa ser, na maior parte dos casos, a mera descrição visando a publicação de textos em anais de eventos ou em revistas.

Esses não são problemas que a nova política de avaliação de artigos pretende diagnosticar e procurar soluções, mas piorar a situação. Quando incentivam na avaliação de periódicos os desvios que vêm desvirtuando a divulgação científica, com a publicação rápida de artigos ou com os convites aleatórios em periódicos duvidosos de textos publicados muitos anos antes, os órgãos responsáveis estão fomentando o fortalecimento da lógica mercantil. O caráter plural da divulgação científica e do debate se perde em meios a eventos em que nada se discute e revistas que os pesquisadores não se interessam em ler, levando a que se limitem a pagar para publicar.

1 Marcos Barbosa de Oliveira. A mercantilização da ciência: funções, disfunções e alternativas. São Paulo: Scientiae Studia, 2023, p. 54.

2 Marcos Barbosa de Oliveira. A mercantilização da ciência: funções, disfunções e alternativas. São Paulo: Scientiae Studia, 2023, p. 235-6.

3 Harry Braverman. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 3ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2015, p. 146.

Michel Goulart da Silva é É Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Contemporâneo, ditadura no Brasil, modernização, marxismo e cultura política.


Fonte: Outras Palavras

A ‘torre de marfim’ brasileira é de palha?

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Imagem: Benny Stæhr

Há uma boa dose de elitismo no meio acadêmico, sem dúvida alguma, mas a universidade brasileira nunca foi uma torre, muito menos de marfim

Em memória de M. E. (1965-2023), cuja orientadora um dia reclamou que ela era uma aluna com iniciativa.

Por Felipe A.P.L. Costa para “A Terra é Redonda”

O presidente da República esteve em Campinas (SP), em 2 de julho de 2024. Participou, entre outras coisas, do lançamento da pedra inaugural do Projeto Orion (ver aqui). Foi para mim uma grata surpresa, pois eu não tinha ideia de que um projeto dessa natureza e magnitude estivesse a ser implantado.

Os leitores não familiarizados com o assunto talvez não saibam, mas os melhores e mais seguros laboratórios existentes hoje no país não ultrapassam o chamado nível 2 de segurança (BSL-2, na sigla convencional em inglês). Nunca houve por aqui algo parecido com os níveis 3 ou 4 (BSL-3 e BSL-4).[1]. Garantir o funcionamento de laboratórios BSL-3 e BSL-4 é um empreendimento delicado; depende, entre outras coisas, de protocolos rigorosos cujo nível de exigência está muito além do nível que os laboratórios BSL-2 são capazes de atender. Laboratórios BSL-4, por exemplo, manipulam organismos potencialmente letais e contra os quais nós ainda não dispomos de qualquer tipo de defesa (e.g., vacinas).

Ouso dizer que os riscos decorrentes da operação desses laboratórios são comparáveis aos riscos associados à operação de uma usina nuclear. Desconfio — apenas desconfio — que ainda não haja gente qualificada em quantidade suficiente para conduzir com sucesso um empreendimento dessa magnitude em terras brasileiras. Ao contrário do que imaginam alguns, diplomar mestres e doutores não equivale a produzir cientistas. E o que nós fazemos hoje é distribuir diplomas.

A rigor, levando em conta que (i) o número de pós-graduados diplomados a cada ano não para de crescer; e (ii) o tempo de formação dos novos diplomados é cada vez menor; deveríamos nos preocupar mais com o efeito contrário: há uma progressiva deterioração na formação dos novos mestres e doutores, assim como na qualidade dos trabalhos acadêmicos produzidos por eles. A situação me parece delicada e preocupante. Mantidas as circunstâncias atuais, e na hipótese de que as instalações do Projeto Orion sejam concluídas, prevejo que será necessário recrutar gente (brasileiros ou não) que hoje trabalha fora do país.

Literatura científica

Incontáveis artigos científicos são publicados todos os anos, seja em versão impressa, seja em versão eletrônica. Poucos deles, porém, estão destinados a adquirir peso e relevância; um número ainda menor irá se converter em referência instrutiva (ainda que por tempo limitado) para outros autores.

A comunidade científica abriga uma variada gama de autores, desde gente laureada com o Nobel a gente encarcerada em presídios. A boa literatura científica funciona como um gigantesco sistema de irrigação. Repleto de ramificações e interconexões, esse sistema nutre e estimula o desenvolvimento de novas ideias, sobretudo no caso da ciência pura.[2]

Publicar artigos em revistas técnicas é o modo como os estudiosos anunciam os seus achados. É o jeito que se tem para atestar e reivindicar prioridade sobre um achado em particular. Tem sido assim desde os primórdios da ciência moderna. De resto, é também a oportunidade que os autores têm para demarcar um pequeno território, deixando ali a sua marca, ainda que nenhuma dessas marcas possa reivindicar para si o rótulo de definitiva.

Três tipos de pesquisa

A comunidade científica avalia a relevância de uma publicação em razão do impacto que ela tem sobre o corpo de conhecimento já estabelecido. Esse impacto em geral não ultrapassa os limites de uma área específica. Às vezes, porém, a novidade transborda os limites convencionais e atinge áreas vizinhas.

A depender da natureza e do alcance dos resultados, nós podemos identificar ao menos três tipos de pesquisa: (1) Em primeiro lugar, nós temos as pesquisas que promovem avanços conceituais; (2) Em seguida, as que promovem inovações metodológicas; e (3) Por fim, os estudos de caso — pesquisas ordinárias que atestam ou ajudam a sedimentar algum conceito ou método já existente.

Essas categorias diferem entre si em mais de um aspecto.

Pesquisas que promovem avanços conceituais, por exemplo, costumam ter um impacto amplo, profundo e duradouro. É graças a esse tipo de avanço que nós aprendemos a diferenciar o joio do trigo, o que nos permite subir um pouco mais na rampa do conhecimento.

Rupturas são excepcionalidades

Considere, para fins de comparação, a magnitude das mudanças históricas ocorridas em razão do trabalho dos seguintes autores: (1) Nicolau Copérnico (1473-1553) e a substituição (a posteriori) do modelo geocêntrico pelo heliocêntrico; (2) Gregor Mendel (1822-1884) e o surgimento (a posteriori) da genética; (3) Georges Lemaître (1894-1966) e o modelo do Estrondão [3] para explicar a origem do nosso Universo; e (4) Francis Crick (1916-2004) e James Watson (nascido em 1928) e o modelo em dupla hélice para descrever a estrutura da molécula de ADN.[4]

Rupturas dessa magnitude são excepcionalidades capazes de mudar o rumo da história. Exatamente por isso, tais rupturas são reconhecidamente raras. A grande maioria das pesquisas é apropriadamente descrita pelo rótulo de estudos de casos. No âmbito da ciência pura, essas pesquisas não têm a pretensão de mudar o mundo. O propósito delas é quase sempre protocolar: por à prova alguma ideia ou método já proposto por outros autores. Às vezes ocorrem surpresas, claro, e as coisas tomam um rumo algo inesperado.

Obter resultados inesperados (digo: resultados que não se enquadram em nenhum dos modelos explicativos existentes) pode ser algo promissor. Ocorre que essas reviravoltas dependem muito do preparo e do traquejo de quem está à frente da pesquisa. No mais das vezes, não há surpresas e os resultados servem apenas para atestar o que já está em circulação. O bordão chover no molhado serve bem para descrever o impacto da ciência ordinária.

Multiplicando a irrelevância

A literatura científica não para de crescer, caracterizando aquilo que nós poderíamos chamar de avalanche bibliográfica. De fato, como foi dito no parágrafo de abertura, muita coisa nova é publicada todos os anos. Ocorre que a relevância dessa literatura primária (e.g., artigos e teses) é muito desigual. Umas poucas publicações se tornam leitura obrigatória em sua área de pesquisa, de sorte que são lidas por quase todos que atuam naquela área. Muitas publicações, no entanto, são lidas por muito pouca gente ou sequer são lidas. Significa dizer que boa parte da literatura dita científica permanece escondida, com pouco ou nenhum impacto no avanço do conhecimento.[5]

No caso das teses, especificamente, estamos a falar dos trabalhos que são produzidos no âmbito dos chamados programas de pós-graduação (mestrado e doutorado).[6] A relevância delas é igualmente desigual, com o agravante de que nesse caso o número total de leitores é ainda menor.[7] Portanto, a importância das teses para o avanço do conhecimento tende a ser igualmente menor.

Capa vs. miolo

Em maior ou menor grau, as teses padecem daquilo que nós poderíamos rotular aqui de obsolescência programada. Os fatores que concorrem para isso podem ser divididos em duas categorias: os formais e os de conteúdo.

No primeiro caso, caberia chamar a atenção para o peso excessivo que às vezes se atribui às normas editoriais que definem a aparência das teses. Os formalistas costumam argumentar que as regras visam padronizar e facilitar a leitura. É uma preocupação válida, mas que não deveria ter todo o peso que costuma ter. Afinal, trata-se de algo absolutamente secundário.

De mais a mais, seguir as normas não é garantia de que a tese abrigará um texto coerente e consistente. Digo: obediência às normas pode até gerar um trabalho visualmente limpo e agradável, mas sequer evita que o texto seja tortuoso, prolixo e repleto de inconsistências. Como argumentam os conteudistas, por mais inteligentes que sejam as normas — e esse não costuma ser o caso —, elas são incapazes de garantir um conteúdo consistente e de qualidade.

É bom lembrar que nós, brasileiros, temos uma tendência a sobrevalorizar as aparências das coisas.[8] Todavia, ao menos no âmbito acadêmico, esse é um costume nocivo que deveria ser combatido com mais vigor.

Quantidade vs. qualidade

O que de fato deveria ocupar o primeiro lugar na fila das preocupações dos nossos professores é o nível de formação dos seus orientandos, incluindo aí a qualidade dos trabalhos que os estudantes estão a produzir.[9]

A julgar apenas pelas amostras que eu pude ler ao longo dos anos, o nível médio das teses está na contramão: enquanto o número de pós-graduandos não para de crescer,[10] o peso e a relevância das teses parecem seguir em sentido contrário.

Com relação especificamente ao universo da pesquisa básica (notadamente em áreas como física, química e biologia), apresento a seguir três generalizações (a rigor, três hipóteses sujeitas a exame) sobre o atual estado de coisas, a saber: (i) Ao longo das últimas décadas (de 1990 para cá, digamos), os temas e os assuntos abordados nas teses estão a se revelar cada vez mais provincianos e triviais.

(ii) A maioria das teses é desprovida de ideias inovadoras ou sequer audaciosas, do tipo que consegue mobilizar a atenção ou inspirar o trabalho de outros pesquisadores; e (iii) Como cresceu muito o número de teses, cresceu muito o número de revistas bancadas pelos próprios programas de pós-graduação. O principal objetivo desse tipo de iniciativa é dar vazão a um volume crescente de artigos (extraídos daquelas teses) que dificilmente seriam aceitos para publicação em revistas internacionais conceituadas.

Teses instantâneas

Para além da proliferação de teses protocolares, há um aspecto ainda mais preocupante: a formação e o nível das novas gerações de mestres e doutores. O clima geral parece ser de acomodação e nivelamento por baixo.

A origem do problema talvez tenha a ver com o calendário: o tempo médio de duração dos cursos está cada vez mais espremido — são dois anos para concluir o mestrado e quatro para concluir o doutorado. Se o aluno não consegue concluir tudo dentro do prazo, perde o apoio financeiro (bolsa) e o programa de pós ao qual ele está ligado passa a ser penalizado.

Durante a pós (mestrado ou doutorado), cabe ressaltar, os estudantes devem atender a algumas exigências, três das quais seriam as seguintes[11]: (1) Cursar um número mínimo de disciplinas; (2) Conduzir um trabalho de pesquisa original (leia-se: não vale plágio nem roubo, como é comum ocorrer no mundo dos negócios); e, por fim, (3) Escrever um relatório fidedigno e minimamente compreensível (ao menos por parte de colegas da área) a respeito da pesquisa realizada.

É nesse contexto que (i) os bolsistas correm para não perder a sua bolsa; e (ii) os programas correm contra a penalização e o rebaixamento.

O resultado dessa dupla corrida, fruto da dupla pressão exercida pelas agências de fomento, é o estado de coisas que estamos a presenciar: redução ao mínimo da carga de disciplinas e simplificação ao máximo das teses, de sorte que o aluno se livre de suas obrigações o mais depressa possível. E assim tem sido, para deleite de gestores que privilegiam a quantidade, pouco ou nada se importando com a formação dos estudantes ou com a qualidade das teses que estão a ser produzidas por eles.

Os efeitos colaterais são amargos e nocivos. Temas mais complexos ou procedimentos mais demorados são deixados de lado. A parte prática das pesquisas (laboratório ou campo) é abreviada ou simplificada ao máximo. A situação é particularmente preocupante — e corre o risco de se tornar caricata — em áreas que exigem trabalho de campo, atividade que outrora consumia meses ou até um ano inteiro (às vezes mais).

Coletar dados é de fato uma atividade arriscada (o reagente não chegou e o experimento vai atrasar ou a chuva não veio e a árvore não floresceu), razão pela qual essa etapa foi reduzida ao mínimo indispensável. Assim, o que outrora durava meses ou até um ano, mas gerava dados expressivos, hoje é uma questão de horas ou dias e está a gerar dados quase que meramente decorativos.

Feijão com arroz

Uma lei informal parece vigorar hoje em todos os programas de pós-graduação: a lei do feijão com arroz — “Vamos optar pelo caminho mais curto, nada de querer complicar, nada de querer abraçar o mundo; vamos respeitar os prazos, preencher os formulários e defender logo a tese”.

Os projetos que deram certo ou que foram elogiados em passado recente estão agora a ser adotados como modelo. Os candidatos de hoje já não são desafiados como os de outrora. Muitos orientadores, sobretudo os mais jovens (eles próprios malformados) se desincumbiram do trabalho pedagógico e agora se contentam em apontar atalhos para os seus orientandos. Estes, por sua vez, ficam felizes ao saber que podem terminar tudo em um piscar de olhos.

Não há ânimo nem vocação que resista: a criatividade é inibida, as ideias ousadas são banidas e a originalidade, combatida. No fim das contas, não há como evitar que o nível das pesquisas decline, ano após ano. Nesse contexto, é possível entender como até mesmo as teses mais fracas se tornam dignas de certificação — é só respeitar as normas editorias do programa.[12]

A força das agências

Em meio a uma série de argumentos falaciosos[13] e, sobretudo, em razão da forte pressão financeira, os programas de pós de todo o país deram a mão à palmatória e terminaram por adotar a cartilha das agências de fomento; a começar, claro, por aquelas que estão mais entranhadas no ensino superior (CNPq e Capes).

Ao longo dos anos, as agências (federais e estaduais) adquiriram densidade política — além de corpo técnico — e hoje praticamente mandam e desmandam no dia a dia dos programas de pós. Como o grosso da pesquisa científica conduzida no país está atrelado aos programas de mestrado e doutorado, não seria exagero dizer que a pauta e a agenda da ciência brasileira são definidas pelos patrocinadores.

Não me parece que a situação seja de todo confortável. É como se estivéssemos todos dentro de um ônibus a cruzar um extenso deserto; dentro do ônibus, as condições são desconfortáveis; do lado de fora, porém, a morte é quase certa, razão pela qual dificilmente alguém irá saltar e seguir a viagem por conta própria. No caso da comunidade científica, o xis da questão é mais ou menos este: dificilmente os pesquisadores ou os grupos de pesquisa que dependem de financiamento — mesmo os mais veteranos — irão levantar a voz e anunciar que o rei está nu. É melhor permanecer sentado e se adequar às normas impostas pelo motorista. Os passageiros continuarão a discutir e a brigar entre si, mas a viagem seguirá adiante, em uma jornada que parece nos levar do nada a lugar nenhum.

Catraca enferrujada

A pós-graduação brasileira não forma cientistas. A rigor, o propósito inicial era qualificar minimamente os professores dos cursos de graduação. Os meus professores de graduação, por exemplo, com uma ou outra exceção, não sabiam o que era pós-graduação. Mas isso foi no final da década de 1970. De lá para cá, como tentei mostrar ao longo deste artigo, as coisas mudaram bastante. Algumas coisas mudaram para melhor, claro, mas outras não. Em minha opinião, os rumos da pós começaram a degringolar a partir da década de 1990 (leia-se: governos FHC I e II). Foi quando a qualidade foi empurrada para debaixo do tapete e a quantidade tomou as rédeas do jogo.

Em condições normais de temperatura e pressão, o propósito da pós deveria ser a formação de uma nova geração de gente bem-pensante. Parte dessa preocupação deveria estar voltada para a formação de novos cientistas. Estou a pensar em cientistas de verdade, gente com autonomia e senso crítico, a ponto de ser capaz de conduzir pesquisas inovadoras por conta própria, seja na área em que foi treinada, seja em áreas afins.

O que presenciamos hoje, no entanto, não é exatamente isso.

Involuntariamente ou não, o que a pós está a fazer é servir de catraca para ingresso no serviço público, notadamente o ensino superior. A partir do momento em que os concursos para seleção de docentes passaram a exigir como pré-requisito um ou mais diplomas de pós (mestrado e, logo depois, doutorado), a demanda por esses cursos cresceu e se consolidou.[14] A situação hoje é mais ou menos esta: os programas de pós estão a distribuir bilhetes para os futuros candidatos ao magistério superior.

A rigor, os programas estão a produzir apenas e tão somente gente diplomada (leia-se: gente formada às pressas e de qualquer jeito, que vive a repetir a receita de bolo que lhe foi imposta durante a pós-graduação, mas que talvez não seja capaz de planejar e conduzir pesquisas de modo autônomo e por conta própria). Um testemunho da situação absurda que vivemos é o crescente número de doutores desempregados (aqui).

Pois é. Muitos pós-graduados estão a sair da universidade pensando em como voltar o mais depressa possível, mas agora para receber um salário de professor, não apenas uma bolsa de doutorado ou de pós-doutorado. Ainda há também aqueles que saem da universidade imaginando que logo irão ingressar em uma carreira de cientista em alguma instituição de pesquisa ou em alguma empresa.

No primeiro caso, o que se passa é que as instituições dedicadas à pesquisa são relativamente raras e as poucas que existem, com uma ou outra exceção, foram esquecidas ou mesmo atacadas pelos dois governos anteriores (2016-2018 e 2019-2022). Outras sequem em uma trajetória histórica de abandono e sucateamento, como se fossem cometas a fugir do Sol. Veja, por exemplo, a história de penúria dos nossos museus de história natural (e.g., Nacional e Goeldi) ou a situação de algumas repartições que prestam um serviço de relevância óbvia e imediata (e.g., Inmet, Inpe e Embrapa).

O Inmet, por exemplo, acumula um número crescente de estações meteorológicas inativas ou abandonadas (aqui). No plano estadual, além da situação geral estar ainda mais tenebrosa, a falta de perspectivas é uma coisa desoladora. Veja o caso da Fundação Zoobotânica, por exemplo, que o governo gaúcho achou por bem destruir de vez (aqui).

Coda

Uma das ideias falaciosas mais antigas que conheço a respeito da universidade brasileira é a imagem alegórica de uma torre de marfim. Pessoalmente, eu gostaria muito que houvesse alguma torre. Não precisava ser de marfim, podia ser de madeira ou de bambu, bastava ter alguma solidez.

Há uma boa dose de elitismo no meio acadêmico, sem dúvida alguma, mas a universidade brasileira nunca foi uma torre, muito menos de marfim. Somos desde sempre uma sociedade assentada em uma economia extrativa e agroexportadora.[15] Não estranha, portanto, que as classes dominantes sejam tão atrasadas — além de profundamente corruptas e preguiçosas. As universidades brasileiras, claro, refletem isso, assim como outras instituições que lidam ou deveriam lidar com o mundo das ideias (e.g., Academia Brasileira de Letras). Seja porque a universidade interage com a classe dominante, seja porque está a forjar os membros da próxima geração.

Ao longo das últimas quatro décadas, o que eu encontrei de melhor em nosso meio acadêmico se parece mais com um galpão.[16] Um galpão de madeira; simples, mas sóbrio e espaçoso. No cômputo final, as nossas instituições de ensino superior — com destaque para as arapucas de natureza privada — me fazem pensar, não na imprópria alegoria de uma torre de marfim, mas sim em um monte de palha seca ao relento. Palha tão seca e miúda que qualquer ventinho leva embora.

*Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor. Autor, entre outros livros de O que é darwinismo.

Referências


Balbachevski, E. 2005. A pós-graduação no Brasil: novos desafios para uma política bem-sucedida. In: Schwartzman, S & Brock, C, orgs. Os desafios da educação no Brasil. RJ, Nova Fronteira.

Bunge, M. 1987 [1980]. Epistemologia, 2ª ed. SP, TA Queiroz.

CGEE. 2024. Brasil: Mestres e Doutores 2024. Brasília, Centro de Gestão e Estudos Estratégicos. (Disponível em: https://mestresdoutores2024.cgee.org.br.)

Costa, FAPL. 2017. O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna. Viçosa, Edição do Autor.

Costa, FAPL. 2019. O que é darwinismo. Viçosa, Edição do Autor.

Garrett, L. 1995 [1994]. A próxima peste. RJ, N Fronteira.

Inep. 2024. Resumo técnico do Censo da Educação Superior 2022. Brasília, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira / MEC. (Disponível aqui: https://www.gov.br/inep/pt-br.)

Koestler, A. 1989 [1959]. O homem e o universo. SP, Ibrasa.

Larivière, V. & mais 2. 2008. The declining scientific impact of theses: Implications for electronic thesis and dissertation repositories and graduate studies. Scientometrics 74: 109-21.

Losee, J. 1979 [1972]. Introdução histórica à filosofia da ciência. BH, Itatiaia & Edusp.

Romeiro, AR. 1998. Meio ambiente e dinâmica de inovações na agricultura. SP, Annablume & Fapesp.

Singh, S. 2006 [2004]. Big bang. RJ, Record.

Soares, DSL. 2002. A tradução de Big Bang. Sítio do Autor. (Disponível aqui.)

Schwartzman, S. 2022. Pesquisa e pós-graduação no Brasil: duas faces da mesma moeda? Estudos Avançados 36: 227-54.

Watson, JD. 1987 [1968]. A dupla hélice. Lisboa, Gradiva.

Notas


[1] Um guia comparativo dos quatro tipos de laboratório pode ser lido aqui. Para uma instrutiva leitura (em port.) sobre a importância dos laboratórios de alta segurança, ver Garrett (1995).

[2] Ciência aplicada não difere de ciência pura ou básica em termos de qualidade intelectual, precedência epistemológica ou prioridade histórica. A diferença é de foco: a ciência aplicada visa atender necessidades específicas. Para detalhes e discussões, ver Losee (1979) e Bunge (1987).

[3] Adoto aqui a proposta de Soares (2002), segundo a qual a tradução mais apropriada de Big Bang seria Estrondão; para uma introdução ao modelo, ver Singh (2006).

[4] Sobre Copérnico, ver Koestler (1989); sobre os demais, Costa (2017, 2019). O caso de Watson e Crick é particularmente ilustrativo: os dois foram agraciados com o Nobel (1963) por um achado cujo relato inicial ocupava tão somente duas páginas de uma edição da revista Nature (1953; 171: 737-8). Para um relato em primeira pessoa, ver Watson (1987).

[5] Que não haja dúvidas: Não é exatamente o fato de não ser lido que explica o fato de um artigo permanecer nas sombras. O xis da questão é a relevância. O sentido correto da relação causa-efeito aqui seria o seguinte: Muitos artigos permanecem na sombra porque são pouco ou nada relevantes e, por isso mesmo, pouco ou nada importam em termos de amparo ou inspiração para outros autores. Nos termos de quem vive e respira a corrida competitiva que caracteriza a arena científica, ler artigos pouco ou nada relevantes é visto tão somente como uma perda de tempo.

[6] A pós-graduação no país é uma experiência relativamente recente. Nas palavras de Schwartzman (2022, p. 228-9): “O sistema de cursos de pós-graduação no Brasil foi criado na década de 1970 por meio de dois estímulos relativamente independentes, um proveniente da área de educação, a partir da Reforma Universitária de 1968 e seus desdobramentos, e outro da área da ciência e tecnologia, sobretudo a partir do Ministério do Planejamento e suas agências de desenvolvimento, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Na área da educação, a origem deste sistema foi a Lei n. 5.540, de 28.11.1968 (Lei da Reforma Universitária) que estabeleceu que a admissão e promoção de professores nas universidades deveriam ser feitas em razão de sua titulação e produção científica e que as universidades deveriam ampliar progressivamente o número de professores contratados em regime de dedicação exclusiva.”

[7] As teses estão a ser cada vez menos citadas como referência bibliográfica. De resto, as tradicionais teses monográficas estão sendo substituídas por outros modelos. Por exemplo, alguns programas (no Brasil, inclusive) estimulam que a tese seja repartida em capítulos minimamente coerentes e autônomos, cada um dos quais seria então redigido como um manuscrito independente a ser submetido para publicação em algum periódico. Nas palavras de Larivière et al. (2008, p. 110; trad. livre): “Embora o doutorado exista desde a Idade Média, foi apenas no início do século 19, quando o ministro da Educação prussiano, Wilhelm von Humboldt, estabeleceu um novo modelo universitário na Universidade de Berlim, que o grau de Doutor se tornou um diploma associado à produção de pesquisa científica original e ao treinamento de novos pesquisadores.”

[8] Não é à toa, por exemplo, que as editoras brasileiras se disponham a gastar muito mais dinheiro com a capa do que com o miolo dos livros.

[9] Alguns professores olham para seus alunos e veem neles apenas e tão somente uma mão de obra barata e minimamente qualificada a ser usada em certas etapas da pesquisa. Outra coisa: não são raros os professores que não têm uma linha própria de pesquisa; assim, caso os orientandos venham a falhar na produção de uma tese, essa turma não terá o que publicar.

[10] A partir de 1980 (ano em que eu entrei na pós), testemunhei um aumento expressivo em todas as estatísticas — e.g., número de programas de pós e número de alunos matriculados em cursos de mestrado e doutorado. Para ter uma ideia da velocidade e da magnitude desse crescimento, eis aqui um exemplo numérico. Nos Estados Unidos, ao longo de todo o século 20, o número de doutores diplomados a cada ano aumentou de modo quase que ininterrupto. Entre 1900 e 2000, a ordem de grandeza dos números saltou de +500 para +50.000 (Larivière 2008), o que equivaleria a uma taxa de crescimento anual de 4,7%. Os únicos anos de queda coincidiram com a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, embora a série histórica seja bem mais curta (por aqui, os primeiros programas só tiveram início na segunda metade do século 20), o crescimento tem sido muito mais rápido. Entre 1996 e 2021, por exemplo, o número de novos doutores saltou de 2.854 para 20.679 (CGEE 2024), uma taxa de crescimento anual de 8,2%. É um exagero. Para mim, soa como uma abóbora gigante que não se pode comer. Considere o seguinte: no ritmo brasileiro, os EUA teriam chegado ao ano 2000 com a diplomação de ~1,4 milhão de doutores a cada ano, um número bem superior aos +50 mil referidos antes.

[11] Ou, para citar Balbachevski (2005, p. 279): “À medida que a pós-graduação se institucionalizava, o modelo dominante passava a ser aquele que exige do candidato a conclusão de número mínimo de disciplinas especializadas, sua qualificação junto a uma banca de professores e a defesa pública de uma tese diante de uma banca em que é norma a presença de pelo menos um professor externo ao departamento, no caso do mestrado, e dois, no caso do doutorado.”

[12] Um exemplo do tipo de tolice que os editores de algumas das nossas revistas técnicas fazem questão de alardear: “Em artigos científicos, nós não usamos a primeira pessoa do singular [Eu fiz] e sim a primeira pessoa do plural [Nós fizemos], mesmo quando o artigo só tem um autor”.

[13] Ladainhas do tipo: “Os doutores brasileiros estão a se diplomar em idade avançada”, “O país é pobre e está a desperdiçar recursos em programas demorados de pós-graduação”, ou “Precisamos acelerar a formação dos nossos doutores, só assim o país irá se tornar uma potência mundial”.

[14] Para um balanço recente, ver CGEE (2024).

[15] Sobre a história da agricultura brasileira, ver, e.g., Romeiro (1998).

[16] Em 2022, o país abrigava 2.595 IES, sendo 312 públicas e 2.283 privadas (Inep 2024). Entre as públicas, 115 eram universidades (37% das 312); entre as privadas, apenas 90 eram universidades (4% das 2.283). De 1977 até hoje, estive em 29 IES (18 universidades públicas e quatro privadas; um centro universitário público e seis faculdades ou centros universitários privados). Estudei em três dessas universidades públicas (UFJF, Unicamp e UnB).


Fonte: A Terra é Redonda

Corrida por “impacto” torna academia refém de grupos editoriais

Centros de pesquisa e governos pagam bilhões de dólares a editoras de periódicos científicos por acesso a artigos cujos custos de produção, muitas vezes, eles mesmos financiaram. Decisão da Universidade de Sorbonne de afastar-se deste modelo mostra necessidade de rediscutir espiral de dependência voluntária em que a própria comunidade científica se colocou

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Por Marcelo Takeshi Yamashita  

No último 8 de dezembro, a Universidade de Sorbonne anunciou que em 2024 vai deixar de assinar o serviço Web of Science, uma plataforma que agrega dados e artigos de várias revistas científicas, e também interromperá o contrato com os demais produtos da Clarivate, uma empresa de serviços relacionados à publicação científica e propriedade intelectual, com produtos voltados principalmente para o meio acadêmico, entre eles a Web of Science.

Com um faturamento anual na casa dos bilhões de dólares, editoras de periódicos científicos são pagas por agências públicas, instituições de ensino e pesquisa e governos para disponibilizar o acesso a artigos científicos, muitos deles financiados pelos próprios clientes: as agências de fomento financiam a pesquisa, pagam às editoras para publicar o artigo (caso a publicação se dê na modalidade de acesso aberto) ou pagam para acessá-lo (no caso de acesso restrito). Se isto parece estranho para alguém não acostumado com os trâmites da pesquisa universitária, é simplesmente porque é mesmo esquisito.

Apesar desses serviços serem importantíssimos para a maioria dos pesquisadores, o custo é elevado. Para se ter uma ideia, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) paga perto de R$ 48 milhões por ano para que pesquisadores de diversas universidades possam acessar revistas científicas. É, portanto, inevitável refletir sobre a conveniência de manter essa espiral de dependência voluntária em que a própria comunidade científica se colocou.

Em outro contexto mais abrangente, já que neste caso a interrupção dos serviços traria um problema generalizado, atingindo setores além da pesquisa científica, o Google começou a cobrar caro para manter dados na nuvem. Isto requer decisões complicadas por parte dos gestores, com restrições rigorosas de disponibilização de espaço, principalmente por não haver uma alternativa que dê conta dos arquivos que estão sob a guarda de empresas que estão no seu direito de estabelecer políticas de uso e preços para seus produtos.

Deve haver, é claro, um ponto intermediário entre a dependência plena e a desconexão total. No caso das publicações científicas, porém, é preciso que haja algum movimento, principalmente das agências de fomento, no sentido de mostrar para a comunidade científica que existe vontade de mudar o cenário de subserviência.

A necessidade que se impõe aos pesquisadores, em boa parte pelas exigências das políticas de concessão de auxílios à pesquisa, acaba criando um preocupante vínculo entre riqueza e pesquisa. Paga-se caro não somente para consultar os artigos, mas também para publicá-los nas revistas que são consideradas “boas” – valores que muitas vezes são abusivos e não se justificam: os pareceristas não são remunerados e o artigo não passa de umas poucas páginas em formato digital.

Movimentos drásticos vindos de universidades, similares ao da Sorbonne, podem dificultar a vida dos pesquisadores se as agências que estabelecem o destino do dinheiro continuarem a valorizar somente revistas onde se paga R$ 60 mil para publicar um artigo em acesso aberto. Nesses casos, por exemplo, o discurso retoricamente bonito de valorização da qualidade do trabalho torna-se vazio no momento em que os editais descartam deliberadamente, sem análise prévia, artigos com base no fator de impacto da revista.

A política de acesso aberto, uma importante iniciativa no sentido da democratização da ciência, teve início nos anos 1970, com o Projeto Gutenberg. Na prática, algumas áreas do conhecimento já teriam condições de adotar esta política desde 1991, quando foi criado o repositório de preprints (artigos preliminares, antes de serem avaliados por especialistas) arXiv pelo físico Paul Ginsparg. Nessa plataforma qualquer artigo pode ser acessado sem a necessidade de senhas em paywalls. Diferentemente dos artigos publicados em revistas, onde um escrutínio prévio já foi feito por outros pesquisadores, esses repositórios demandam que cada artigo seja analisado com um pouco mais de cuidado pelo autor que pretende considerá-lo.

Na área de física, a grande maioria dos artigos publicados tem uma versão gratuita em preprint. Ou seja, nesta situação, não existe a impossibilidade de acessar os resultados da pesquisa de outros grupos, mas o prestígio vem do processo de convencer os pares de que o seu estudo é bom o suficiente para estar em algum periódico revisado – já escrevi em outro artigo sobre o equívoco que se comete ao associar qualidade a um artigo ao fator de impacto do veículo onde é publicado.

Embora seja animador vislumbrar ações objetivas na direção de tornar o conhecimento mais acessível, é sempre bom lembrar que, como se diz por aí, não existe almoço grátis. Neste contexto, há estratégias de acesso aberto em que o lucro das grandes empresas editoriais é mantido (ou aumentado) mudando-se apenas a fonte pagadora: em vez de vender assinaturas para bibliotecas, vendem-se cotas de publicação para universidades, agências de fomento ou outras entidades, como ministérios de Ciência, por exemplo – o dinheiro, diga-se de passagem, é proveniente da população.

Esse deslocamento do ônus financeiro tem o efeito colateral de deslocar, também, a estrutura de incentivos da publicação: se no modelo de assinaturas o “cliente” é o leitor, no de cotas de publicação é o autor – com possível impacto sobre o rigor dos critérios de aceitação de artigos.

Existem movimentos organizados, como a cOAlition S, para tornar todas as publicações científicas imediatamente em acesso aberto. O grupo foi formado em 2018 e recentemente lançou uma proposta com valores diferenciados para alguns países com base em indicadores do Banco Mundial – dar-se-iam descontos das taxas de publicação de acordo com as rendas dos países. A despeito da pertinência desses indicadores para a classificação dos países, estabelecer um compromisso de descontos com empresas que não estão submetidas a um teto de preços segue a mesma lógica ingênua da lei de meia-entrada brasileira: paga-se a metade do dobro.

É desejável que se caminhe para um modelo de política universitária que seja conectada com o mundo, mas não excessivamente dependente – estabelecer um bom equilíbrio para os pratos dessa balança não é simples. Mas qualquer solução deve pressupor uma análise mais qualitativa dos critérios de avaliação das agências que fornecem os financiamentos para as pesquisas. Afinal, não é sempre que, a exemplo de Grisha Perelman – matemático que resolveu a conjectura de Poincaré, um problema formulado no ano 1900 –, encontramos pessoas dispostas a publicar um artigo importantíssimo em uma plataforma de preprint e, com isso, “perder pontos” na corrida do fator de impacto, correndo o risco de ficar sem recursos para desenvolver a sua pesquisa.

Marcelo Takeshi Yamashita é assessor-chefe da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp. Foi diretor do Instituto de Física Teórica (IFT) no período de 2017 a 2021.


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Este foi publicado originalmente na revista Questão de Ciência

Rede de Pesquisadores em Geografia (Socio)Ambiental emite nota sobre cortes de bolsas de pós-graduação

Confisco dos recursos para a educação e a ciência: como uma geração de jovens pesquisadores poderá fazer a diferença?!

ciencia bolsas

A Rede de Pesquisadores em Geografia (Socio)Ambiental/RPG(S)A é animada por quase três dezenas de pesquisadores vinculados a mais de vinte instituições de ensino e pesquisa pelo Brasil afora, com a participação ativa, também, de numerosos alunos de pós-graduação. Tem sido nossa preocupação constante, desde o surgimento da rede em abril de 2017, contribuir para o desenvolvimento de uma ciência socialmente engajada, comprometida com a emancipação social e a justiça ambiental. Uma tal ciência pressupõe, evidentemente, que os jovens sejam estimulados a se dedicarem à ciência e que talentos não sejam estupidamente desperdiçados.

Pois bem: estamos, no apagar das luzes do atual Governo federal, assistindo a um triste e chocante espetáculo de desestímulo e desperdício. O confisco dos recursos para a educação está sendo realizado pelo próprio Ministério da Educação, através de um instrumento de desvio e captura de dinheiro público, chamado de reserva de contingência.1 Não é fato novo que isso ocorra pela falta de interesse do governo em incentivar uma pesquisa científica e uma educação livres de suas amarras ideológicas conservadoras; entretanto, o desvio destinado de uma enorme quantia de dinheiro devido a práticas o “orçamento secreto” (com previsão, para 2023, no Projeto de Lei Orçamentária, de um montante em torno de R$19 bilhões).2

Infelizmente, não existem garantias de que este cenário poderá mudar tão rapidamente, sobretudo pela confirmação que o orçamento secreto terá continuidade nos próximos anos. Enquanto isso, neste hiato de possível mudança (oxalá mude!), em que condições os jovens pesquisadores que dependem diretamente de suas bolsas, poderão continuar a empreender suas pesquisas?

Para além de fenômenos que já se tornaram crônicos, como a pouco alvissareira perspectiva de trabalho futuro, as cobranças e os assédios produtivistas e a desvalorização gradual das bolsas – entre outros problemas –, agora o golpe desferido foi especialmente brutal e pérfido: com a interrupção do pagamento de bolsas e outros recursos, o que se compromete é a pura e simples sobrevivência dos pós-graduandos (seus gastos com alimentação, transporte, moradia, compra de livros…) e a continuidade adequada de cursos e trabalhos de pesquisa. É fácil ver como, nesse cenário, se inviabilizam não apenas pesquisas específicas, mas sim carreiras e vidas. Quantos desistirão da ciência? Quantos terão a sua formação seriamente prejudicada, por conta do agravamento adicional de dificuldades que se acumularam durante a pandemia? A Geografia, ainda por cima, é, provavelmente, uma das áreas mais afetadas, pois os cortes que têm atingido as universidades têm ocasionado o adiamento ou cancelamento de atividades de campo, cuja importância pedagógica tem um valor inestimável.

Precisamos, todos nós, e em particular os pesquisadores mais jovens e os graduandos e pós-graduandos – que herdarão dias muito difíceis –, debater não só sobre como chegamos nesta situação, mas também sobre o que podemos fazer para ajudar a superá-la. A resignação não é uma opção. Acima de tudo, não é sensato renunciar à autonomia intelectual e política em razão de promessas e esperanças vagas. Mesmo com a mudança de conjuntura política, os anos vindouros só serão muito diferentes se a sociedade se mantiver vigilante e organizar para exigir seus direitos.

Nós, da RPG(S)A, nos solidarizamos com todos os pós-graduandos e com os pesquisadores prejudicados em geral, afirmando que o pagamento imediato das bolsas e a liberação dos recursos para a educação superior pública é uma exigência que os geógrafos têm de fazer em alto e bom som. Façamos a luta, façamos a diferença.

8 de dezembro de 2022.

 


1 Dotação global não especificamente destinada a determinado órgão, unidade orçamentária, programa ou categoria econômica, cujos recursos serão utilizados para abertura de créditos adicionais, atendimento de emendas parlamentares, de passivos contingentes e de outros riscos e eventos fiscais imprevistos (CONGRESSO NACIONAL, 2022). Para ver mais: https://www.congressonacional.leg.br/legislacao-e-publicacoes/glossario- orcamentario/-/orcamentario/termo/reserva_de_contingencia.

2 Brasil de Fato (2023). Para ver mais: https://www.brasildefato.com.br/2022/10/23/de-onde-vem-os-bilhoes- do-orcamento-secreto.

SBPC alerta para ameaças graves à pós-graduação brasileira

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 A SBPC manifesta sua profunda preocupação ante os últimos acontecimentos na CAPES, que colocam em risco a pós-graduação brasileira, que até pouco tempo atrás tinha qualidade internacional e sempre serviu de modelo para a educação em nosso País. São duas as ameaças: (1) a Direção da CAPES assinou com o Ministério Público, sem nenhum debate com a comunidade acadêmica, um acordo que submete toda a avaliação a regras impostas por quem não a entende, assim ameaçando o pilar da pós-graduação brasileira, que é a avaliação realizada por pares, e que jamais teve interferência externa, como passa a haver a partir de agora; e (2) a substituição apressada dos coordenadores de área, num processo de consulta precipitado, que compromete a qualidade dos futuros responsáveis pela avaliação, e, portanto, o futuro da Pós-Graduação e pesquisa no Brasil. A SBPC também protesta contra a falta de diálogo da atual direção da CAPES com a comunidade acadêmica e sua displicência em relação à brutal queda na formação de mestres e doutores durante o atual governo federal.

Até 2018, é inegável a rápida evolução da pós-graduação brasileira tanto em número de programas como em qualidade. Em relação à formação de mestres, o Brasil já cumpria, desde 2017, a meta (de formar 80 mil mestres por ano) para 2024, estabelecida pelo Plano Nacional de Educação, e, em 2019, quase atingia a meta de formação de doutores (de 25 mil doutores por ano) fixada para 2024, chegando a titular 24,4 mil doutores. Somente esses resultados do sistema de pós-graduação brasileiro já bastariam para mostrar a qualquer gestor público ou órgão de controle que os recursos públicos investidos na pós- graduação sempre tiveram retorno além do esperado, e que, se falhas houvesse no sistema, o arcabouço regulatório institucional da CAPES e das instituições de ensino superior, bem como o emprego do princípio de autotutela de ambos, efetivariam a melhoria contínua do sistema, como foi o caso até 2019.

O aprimoramento contínuo do sistema de avaliação, alinhado com a racionalidade dos custos da avaliação e investimentos na pós-graduação, fez, ao longo dos anos, o sistema evoluir com a introdução de ferramentas e etapas tais como o Qualis, a realização de seminários de avaliação de meio termo, seminários com banca internacional, modificação no período de avaliação, passando de trienal a quadrienal. Outras mudanças essenciais na ficha de avaliação, priorizando os resultados sobre as formalidades, a criação da Plataforma Sucupira, inclusão de indicadores de impacto social, aumento da transparência, introdução do aplicativo especial para proposta de cursos novos, criação das visitas pedagógicas para programas ou propostas com problemas, substituição de uma cultura punitiva por uma resolutiva, bem como de uma cultura competitiva por uma que valoriza a cooperação, especialmente entre cursos com nota superior e com nota inferior, entre muitas outras, foram adotadas.

Nenhum desses elementos foi introduzido por medida judicial. Todos foram resultados de busca contínua de aprimoramento e racionalidade do sistema, graças essencialmente à autonomia universitária e à pesquisa.

Eis que, em 2020, o Ministério Público (MP) questiona a avaliação, com o objetivo de “impedir distorções na distribuição de recursos públicos e propiciar segurança jurídica e previsibilidade aos administrados, buscando sempre a evolução contínua da ciência”.

Assim paralisada a avaliação da pós-graduação, a Direção da CAPES foi incapaz de mostrar ao MP a forma como o sistema funciona e é aperfeiçoado ano a ano. Também não foi capaz de assinalar a eficácia do sistema do cumprimento dos seus objetivos, de apontar os prejuízos causados pela paralisação, de apresentar a história da pós-graduação brasileira e da CAPES, que não pertence a uma gestão ou a um governo. Ao contrário, é produto do trabalho árduo e dedicado de milhares de pesquisadores, estudantes e servidores, ao longo de décadas, gerou a maior crise que a instituição já conheceu. Mais de cem membros de comitês de assessoramentos, cujos nomes foram escolhidos com ampla participação da comunidade científica, renunciaram a seus mandatos, inconformados com a letargia e submissão da Direção do órgão à judicialização da avaliação da pós-graduação e de seus processos.

Naquele momento, a SBPC, além de participar, com voz, das audiências públicas com o MP, organizou uma Jornada em Defesa da Pós-graduação e agiu ativamente para minimizar os prejuízos da demissão coletiva de membros de comitês de assessoramento. Mais de uma vez, a SBPC empenhou-se em promover o diálogo da Direção da CAPES com os coordenadores de área e membros do Conselho Técnico-Científico (CTC).

As decisões recentes da CAPES demonstram que os temores expressos pela comunidade acadêmica, ao longo do segundo semestre de 2020, não eram infundados. A Direção da CAPES, sem consultar o seu Conselho Técnico-Científico, sem consultar os fóruns de coordenadores de pós-graduação, sem consultar a comunidade científica assina, em 31/08/2022, um Termo de Autocomposição, no qual aceita que procuradores do MP regulem os trâmites e processos da avaliação, numa completa e absurda inversão de papéis. Isso foi feito a título de “impedir distorções na distribuição de recursos públicos”, apesar de, na utilização dos recursos públicos, as metas do PNE terem sido superadas vários anos antes do previsto. Estas medidas ocorreram a pretexto de “propiciar segurança jurídica” contra possíveis ações de autoria talvez do próprio MP e de “propiciar previsibilidade aos administrados”, previsibilidade que o sistema já garantia com as avaliações de meio termo.

A pretexto de corrigir estas graves distorções, faz-se uma aberração, com clara deturpação dos papéis institucionais do MP e da CAPES. Admite-se até mesmo que os programas que tenham tido sua nota rebaixada na Avaliação que agora se encerra, possam optar por restabelecer a nota da Avaliação anterior, sem uma análise de mérito de tais pedidos. A submissão da Presidência da CAPES aos procuradores federais, neste ponto e em outros, torna a avaliação inútil, a pós-graduação enfraquecida e retira da instituição sua razão de ser. E ainda por cima a Direção da CAPES admite que o Qualis, fundamento para a avaliação da qualidade de boa parte da publicação dos programas de pós-graduação, seja alvo de negociação posterior, implicando mais uma rendição da agência à ingerência externa e não especializada.

Completando a desorganização da instituição, a Direção da CAPES atropela o processo de composição dos comitês de assessoramento para avaliação, impondo um cronograma açodado e permitindo candidaturas sem a legitimidade assegurada pela comunidade, bem como desvinculando os mandatos dos futuros coordenadores de área dos períodos avaliativos usuais. Além disso, faz se necessária a publicação de todas as indicações feitas pelos Programas de Pós-graduação e pelas Sociedades e Associações Científicas dos nomes para os cargos de Representantes de Áreas com os respectivos índices numéricos nominais.

Nem a Direção da CAPES nem o MP se preocupam com o fato de que a formação de mestres e doutores caiu bruscamente nos anos de 2020 e 2021, em cerca de 15% ou mais. Isso sim deveria suscitar ao MP a preocupação com o mau uso dos investimentos públicos ou com a ausência de investimentos públicos, ferindo as disposições constitucionais que regem a obrigação do Governo Federal de assegurar meios para o cumprimento de metas do PNE.

A SBPC se manifesta veementemente contra a judicialização e interferência injustificada nos processos de avaliação da pós-graduação, fruto do trabalho de décadas e gerações de pesquisadores e estudantes, que visaram tão somente ao desenvolvimento do país e à garantia de sua soberania, bem como contra a indicação precipitada dos novos coordenadores de área.

Finalmente, saudamos a decisão dos coordenadores de área que têm se unido protestando contra medidas que ferem a razão de ser da CAPES, e colocam em questão sua própria missão, fazendo o Brasil retroceder mais de 70 anos, até o período anterior à fundação, por Anísio Teixeira, dessa agência que é, uma das joias da coroa da Educação Brasileira – tanto assim que serve, há quinze anos, com sua experiência acumulada na formação de professores de ensino superior, para melhorar a qualidade na educação básica.

São Paulo, 14 de setembro de 2022.

Diretoria

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

Pós-Graduação brasileira sob ataque: parlamentares e entidades divulgam carta aberta em defesa da avaliação da qualidade da pós-graduação da Capes

“Os signatários e signatárias desta carta vêm expressar a defesa das condições necessárias à continuidade qualificada da oferta da pós-graduação no Brasil, ao tempo em que se coloca em consonância com esforços para sua consolidação”, afirmam em documento

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Em carta aberta divulgada nesta sexta-feira (26), parlamentares, na sua maioria da Comissão de Educação, e entidades acadêmicas e científicas, entre elas a SBPC, se manifestam em defesa da avaliação da qualidade da pós-graduação pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Essa manifestação acontece após audiência pública e reunião com a presidente da Capes. Para subscrever a carta, seja como associação ou como pesquisador/a, acesse o formulário de adesão em https://forms.gle/UQGa2Hf98zFc6hGY9

Veja o documento abaixo:

CARTA ABERTA EM DEFESA DA AVALIAÇÃO DA QUALIDADE DA PÓS-GRADUAÇÃO PELA COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR (CAPES)

A comunidade científica brasileira acompanha atônita a situação na qual se encontram as políticas de educação, ciência e tecnologia. Não bastasse o cumulativo processo de desfinanciamento com redução de recursos de toda ordem, notadamente o fomento à pesquisa científica, chega-se em tempos recentes ao desmonte do conjunto de políticas, instâncias e agências que mobilizam e executam a própria política pública nacional, como no caso do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

A política de indução da pós-graduação historicamente tem amparado o financiamento e, portanto, a sua existência nos processos avaliativos internacionalmente reconhecidos, operados pela Capes. Ao longo dos últimos 70 anos, a avaliação realizada pela Capes impulsionou os cursos de pós-graduação do país aos elevados patamares atuais, representando uma forte Política de Estado comprometida com a consolidação de bases institucionais adequadas para a formação de pesquisadores e pesquisadoras no Brasil. Recentemente, essa política vinha inclusive enfrentando fortes desigualdades regionais historicamente presentes em diferentes áreas do conhecimento, fortalecendo o direito mais equânime ao acesso ao ensino pós-graduado de qualidade de maneira republicana.

A ação indutora da Capes por meio da avaliação permite manter credenciados aqueles cursos que atingem os altos critérios de qualidade definidos a partir de um mecanismo que incorpora grande parcela da comunidade científica em dinâmica/metodologia que inclui consulta, elaboração e constante alimentação dos processos e instrumentos pelos sujeitos que vivenciam a formação de mestres e doutores nas diferentes áreas existentes.

Neste ano de 2021, em que a Capes realiza essa avaliação, questões externas e resultantes de contextos políticos e históricos anteriores acabaram por subsidiar ações do Ministério Público Federal e da Justiça Federal que vieram a judicializar a avaliação, sem antes ouvir as partes mais sensíveis ao processo de avaliação, em especial aqueles que compõem os Programas de Pós-graduação no país. Uma estranha situação, já que essas ações pretendem defender os direitos desses mesmos Programas.

A avaliação da pós-graduação pela Capes se veste de importância singular para os PPG na medida em que a avaliação por pares, realizada pelos pareceristas Ad Hoc e os Conselho Técnico Científico (CTC), resulta num relatório externo e complementar à autoavaliação realizada no âmbito de cada PPG, em suas instituições. Com isso, os PPG redefinem seus planejamentos estratégicos e promovem as melhorias que são necessárias para atender ainda mais às demandas da sociedade por formação pós-graduada. Assim, os PPG estão à espera da divulgação dos resultados da avaliação para tomarem decisões internas de extrema relevância.

Obstar abruptamente a avaliação da pós-graduação neste ponto do processo não serve para seu aprimoramento, afetando especialmente os PPG menos consolidados e apoiados. A ciência de ponta no Brasil se faz em instituições sérias e comprometidas, onde estão os pesquisadores e pesquisadoras de grande dedicação à atividade acadêmica e científica, respeitados em suas áreas. A Capes, neste momento, está sendo impedida de refletir a própria qualidade da pós-graduação no Brasil e devolver aos pesquisadores e instituições o resultado da avaliação por pares. Isso não interessa à comunidade científica, muito menos aos brasileiros e brasileiras.

É salutar destacar que a Coordenação de cada Área na Capes e o CTC realizaram, durante o quadriênio de 2017-2020 e também em 2021, quando do fechamento dos relatórios finais, vários eventos de formação (seminários, webinários, palestras, reuniões) presenciais e remotas, ocasiões em que foram explicitados todos os critérios que compõem a ficha de avaliação, conforme respectivo Documento de Área. Especialmente foram realizadas na sede da Capes os chamados Seminário de Meio Termo, quando foram apresentadas as avaliações parciais, as quais cumpriram importante função de revelar a situação de cada PPG referente à primeira metade do quadriênio e, ao mesmo tempo, indicar potenciais mudanças que cada PPG precisaria proceder ao longo do restante do tempo do período de avaliação em tela (2017-2020). Nesse sentido, há que se registrar que o processo, apesar de extenuante, também foi muito formativo. Os coordenadores de PPG de todas as Áreas tiveram muitas oportunidades para conhecer o processo, tirar dúvidas relativas à concepção dos indicadores, quesitos e itens.

Os signatários e signatárias desta carta vêm expressar a defesa das condições necessárias à continuidade qualificada da oferta da pós-graduação no Brasil, ao tempo em que se coloca em consonância com esforços para sua consolidação. Além disso, defendemos a continuidade da avaliação referente ao quadriênio 2017-2020, cujos relatórios foram duramente produzidos pelos PPG e entregues à Capes, por meio da Plataforma Sucupira, nos prazos definidos em cronograma amplamente divulgado. Defendemos a necessidade de prorrogação dos mandatos dos coordenadores eleitos para condução da avaliação quadrienal de 2017-2020, pois é essencial que aqueles que estiveram à frente do processo ao longo dos quatro anos, conduzam sua conclusão. Defendemos, ainda, a definição do Plano Nacional de Pós-Graduação para 2021-2030 bem como a organização do quadriênio atual, com a construção e publicação das regras/normas para o tempo presente e não para o tempo passado.

Estamos certos de que a comunidade científica, toda a sociedade brasileira, bem como seus representantes não permitirão tamanho retrocesso à pesquisa e ciência no Brasil. Contamos com vocês. Ninguém solta a mão da Ciência! Ninguém solta a mão da Educação!

SÃO SIGNITÁRIOS DESTA CARTA

Associação Acadêmica de Propriedade Intelectual – API

Associação Brasileira da Rede Unida

Associação Brasileira de Alfabetização – Abalf

Associação Brasileira de Antropologia – ABA

Associação Brasileira de Cerâmicas – ABCeram

Associação Brasileira de Ciência política – ABCP

Associação Brasileira de Enfermagem – ABEn

Associação Brasileira de Engenharia Química – ABEQ

Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio

Associação Brasileira de Estatística – ABE

Associação Brasileira de Linguística – ABRALIN

Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências – ABRAPEC

Associação Brasileira de Polímeros – ABPol

Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO

Associação Nacional de História – ANPUH

Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia – ANPEPP

Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação – ANCIB

Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação- ANPEd

Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação Interdisciplinar em Sociais e

Humanidades – Aninter SH

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – ANPOCS

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade – ANPPAS

Associação Nacional de Pós-Graduandas/os – ANPG

Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação – COMPOS

Deputada Federal Alice Portugal

Deputada Federal Érika Kokay

Deputada Federal Lídice da Mata

Deputada Federal Maria do Rosário

Deputada Federal Natália Bonavides

Deputada Federal Professora Dorinha Seabra

Deputada Federal Professora Rosa Neide

Deputada Federal Waldenor Pereira

Deputado Federal Alencar Santana

Deputado Federal Alexandre Padilha

Deputado Federal Célio Moura

Deputado Federal Helder Salomão

Deputado Federal Idilvan Alencar

Deputado Federal Ivan Valente

Deputado Federal Maria do Rosário

Deputado Federal Pedro Uczai

Deputado Federal Reginaldo Lopes

Deputado Federal Rogério Correia

Fórum das Instituições Públicas de Ensino Superior de Minas Gerais – FORIPES

Fórum Nacional dos Coordenadores Institucionais do PARFOR – FORPARFOR Nacional

Fórum Nacional dos Coordenadores Institucionais do PIBID e do Residência Pedagógica – FORPIBID-RP

Fórum Nacional de Pró-reitores de Pesquisa e Pós-graduação das Instituições de Ensino Superior Brasileiras – FOPROP

Instituto Cultiva

Observatório do Conhecimento

Senador Humberto Costa

Sociedade Brasileira de Automática – SBA

Sociedade Brasileira de Computação – SBC

Sociedade Brasileira de Educação Matemática – SBEM

Sociedade Brasileira de Ensino de Química SBEnQ

Sociedade Brasileira de Eletromagnetismo – SBMag

Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional – SBMAC

Sociedade Brasileira de Microeletrônica – SBMICRO

Sociedade Brasileira de Micro-ondas e Optoeletronica – SBMO

Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais – SBPMat

Sociedade Brasileira de Química – SBQ

Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS

Sociedade Brasileira de Telecomunicações – SBrT

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

União Nacional dos Estudantes – UNE

Veja a nota em PDF.

blue compass

Este texto foi inicialmente publicado pelo Jornal da Ciência da SBPC [Aqui!].

MPF: Justiça suspende avaliação em andamento dos programas de pós-graduação pela Capes

Entidade estava utilizando critérios posteriores ao período de avaliação para ranquear os cursos; nota define a quantidade de bolsas que o programa receberá do governo federal e também se a instituição poderá ou não ter doutorado

avaliação capes

Em ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF), a Justiça Federal concedeu liminar para determinar à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) que suspenda imediatamente a avaliação dos programas de pós-graduação em andamento e apresente, em 30 dias, relação completa dos “critérios de avaliação”, “tipos de produção/estratos” e as “notas de corte” que estão sendo utilizados para avaliação, dividindo-os por área do conhecimento, indicando quais parâmetros de avaliação criaram critérios novos, retroagindo para incidir sobre avaliações do quadriênio já em curso, e a data em que fixados os novos parâmetros para cada área (Processo nº 5101246-47.2021.4.02.5101 32ª Vara Federal do Rio de Janeiro).

Em Inquérito Civil Público nº 1.30.001.0005132/2018-61, o MPF apurou ilícitos nos critérios adotados pela Capes no que diz respeito ao ranqueamento dos programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) no Brasil e nas normas utilizadas para concessão de bolsas e incentivos, com possíveis impactos no patrimônio público e na distribuição impessoal de recursos federais de fomento à educação e à pesquisa. Os critérios são definidos e modificados no curso do período avaliativo e aplicados retroativamente desde o início daquele intervalo temporal.

“Não se pretende impedir o aprimoramento dos critérios avaliativos. O problema central não é a modificação dos parâmetros em si, mas sua imprevisibilidade e sua retroação ilícita, para atingir tempos pretéritos, o que impede que as instituições possam reagir à mudança regulativa. A Capes sequer prevê regimes de transição entre um período de avaliação e outro, tornando a avaliação imprevisível para administrados, que necessitam se reformular em um prazo exiguo para atender as novas exigências”, explicam os procuradores da República Jessé Ambrósio dos Santos e Antonio do Passo Cabral, autores da ação.

Além de confirmar os efeitos da tutela provisória, no mérito, o MPF requer que nas futuras avaliações, a Capes se abstenha de aplicar retroativamente critérios de avaliação novo, só podendo aplicar os critérios novos para períodos avaliativos futuros (próximo quadriênio).

O impacto das mudanças dos critérios implementadas retroativamente afetaram as notas de 3.100 PPG (89%), na avaliação de 2013 e 2016, e as inovações normativas ora suspensas, se aplicadas retroativamente, poderiam afetar significativamente as notas referentes ao quadriênio de 2017-2020, com impacto na distribuição de recursos públicos aos 3594 programas de pós-graduação existentes no Brasil.

Avaliação

A cada quatro anos, a Capes realiza avaliação periódica dos cursos de pós-graduação em todo o Brasil, aplicando a nota a cada PPG, podendo levar ao término de cursos ou ao completo descredenciamento de instituições de ensino cujos cursos tenham sua avaliação rebaixada. O conceito obtido na avaliação define ainda a quantidade de bolsas que o programa receberá do governo federal, se a instituição poderá ou não ter doutorado (ou apenas o mestrado), influi em incentivos governamentais para a pesquisa, dentre muitas outras questões.

A avaliação é conduzida por 49 Coordenações de Área (CAs), as quais seguem diretrizes gerais emitidas pela Diretoria de Avaliação e pelo Conselho Técnico Científico de Ensino Superior (CTC-ES) da Capes. Cada uma das CAs é responsável pela avaliação dos Programas de Pós-Graduação (PPGs) das diferentes áreas sobre sua responsabilidade. Ao final dessa avaliação cada programa de pós-graduação recebe uma nota, definida com base em diversos parâmetros fixados pelos comitês científicos de cada área ou subárea.

Os conceitos avaliativos concedidos aos programas pelo ranqueamento da Capes variam de 1 a 7 (de “Insuficiente” até “Muito Bom”), de acordo com o art.27 da Portaria n.122/2021. As notas 6 e 7 são reservadas para programas considerados “internacionais” e de “excelência”, ou seja, a minoria dos PPGs do Brasil. Se o programa de pós-graduação receber nota abaixo de 4, não é possível ter um curso de doutorado; abaixo de 3, não pode oferecer nem mestrado. Portanto, se um programa de pós-graduação tem atualmente nota 5, e se pauta pelos parâmetros de avaliação que estão vigendo no período quadrienal em andamento, certamente focará na melhoria do que for necessário ao atendimento de tais critério, a fim de incrementar sua qualidade, objetivando aumentar sua nota para 6 ou 7. Pode não conseguir subir sua nota, e é possível também que, se tiver havido queda de qualidade no período, tal programa venha a ter sua nota rebaixada. Contudo, para atingir a função indutora de boas práticas, a regra deve existir previamente, a fim de que as instituições possam adotar as medidas que lhe serão exigidas.

“Inexiste, por parte da Capes, preocupação com a segurança jurídica, seja na definição desses parâmetros, sua revelação, publicidade e transparência, seja em operar sua alteração, protegendo a expectativa dos administrados e assegurando que estes não sejam surpreendidos pela aplicação retroativa de parâmetros inesperados”, alertam os procuradores.

O MPF destaca na ação que a retroatividade de parâmetros regulatórios e fiscalizatórios é inadmissível no Direito, pois os administrados são pegos de surpresa, em momento onde já não é possível rever sua conduta e evitar consequências drásticas para sua esfera de direitos.

Diante disso, “o acesso aos recursos públicos federais é distorcido pela má avaliação dos programas de pós-graduação. A Capes surpreende as instituições de ensino, avalia seus programas com critérios imprevisíveis, aplicados retroativamente, e com isso causa enormes prejuízos a muitos deles”, concluem.

Confira a íntegra da ACPhttp://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/acp-capes-criterios-de-avaliacao/view 

Confira a liminar: http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/liminar-acp-capes-criterios-de-avaliacao/view