Leonardo Sakamoto destrincha a prisões ordenadas pelo (des) governo Pezão por crimes que ainda não foram cometidos

Minority Report – Paranormais ajudam a polícia carioca a prever crimes

Por Leonardo Sakamoto

A polícia do Rio de Janeiro prendeu, neste sábado (12), ao menos 17 pessoas, além de apreender dois jovens, por supostas conexões com manifestações marcadas para acontecer na final da Copa, neste domingo, informou a BBC Brasil. Outras prisões temporárias – com duração máxima de cinco dias – ainda podem ocorrer.

Daí você me pergunta: mas que crime eles cometeram para irem presos? Resposta: nenhum.

Mas o governo do Estado do Rio de Janeiro tem outra resposta: nenhum ainda.

Sim, a principal razão da prisão foi o risco de causar problemas no jogo entre a Alemanha e a Argentina. Risco na opinião da polícia, é claro.

Mas se alguém é preso antes de cometer um crime essa pessoa pode ser acusada por este crime uma vez que o motivo que levou à sua prisão nunca ocorreu e muito provavelmente não ocorra? Pouco importa. Em nome de manter as aparências para o mundo, a lógica foi assassinada há tempos.

Fiquei quebrando a cabeça para entender como a inteligência (sic) da polícia carioca tem tanta certeza que os ativistas vão cometer crimes para terem seus direitos fundamentais enterrados.

Foi então que um amigo do setor de TI do governo do Estado do Rio de Janeiro me revelou a resposta. Sim, a vida imitou a arte.

Encantado com o filme Minority Report – A Nova Lei (estrelado por Tom Cruise e dirigido por Steven Spielberg – que dupla, que dupla!), o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, criou a Divisão de Pré-Crime.

Nesse setor, o futuro é visualizado antecipadamente por paranormais, os precogs. Dessa forma, o culpado é punido antes que o crime seja cometido. Três precogs trabalham juntos e flutuam conectados num tanque de fluido nutriente. Quando eles têm uma visão, o nome das vítimas aparecem escritos em pequenas esferas vermelhas. Em esferas azuis estão os nomes dos culpados. Também surgem imagens do crime e a hora exata em que acontecerá. Estas informações são fornecidas a uma elite de policiais, que realizam as prisões para bloquear a ocorrência (agradeço à Wikipedia por este parágrafo lindo).

Precog utilizado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro para poder punir crimes antes que eles aconteçam

Precog utilizado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro para poder punir crimes antes que eles aconteçam

Incrível, né? Quem diria que o Rio de Janeiro conseguiria copiar Hollywood…

Vocês que estão tristes porque isso parece mais o comportamento de uma ditadura do que de uma democracia, alegrem-se. Percebam o potencial disso. Se aplicarmos a tecnologia dos precogs para as eleições de outubro no Rio de Janeiro, talvez tenhamos que cancelá-las.

Pois vai faltar bolinha com o nome de gente que teria que ser presa preventivamente por crimes futuros contra a administração pública, corrupção passiva e prevaricações mil. Isso sem contar a descoberta antecipada de quais políticos que, quando chegam ao poder, são incapazes de garantir os direitos mais fundamentais de seus cidadãos. Como o direito de não ser preso por um crime que não cometeu.

Assim, fica fácil saber quem não deve ser eleito.

Em tempo: a Divisão Pré-Crime passou a ser usada contra manifestações, mas já é testada, há anos, para moradores de favelas.

FONTE: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2014/07/12/minority-report-paranormais-ajudam-a-policia-carioca-a-prever-crimes/

‘Para mim, Copa não existe’, diz mãe de operário morto na Arena Corinthians

Gerardo Lissardy, BBC Mundo, Rio de Janeiro

Sueli Dias mostra camisa oficial que seu filho comprou, mas nunca chegou a usar

Enquanto os brasileiros festejam a Copa do Mundo nas ruas, o silêncio impera em uma casa em Diadema, na região do ABC paulista. Ali vivia o operário Fábio Hamilton Cruz, morto após sofrer uma queda no estádio Arena Corinthians, onde trabalhava.

Quem abre o portão é a mãe de Fábio, Sueli Rosa Dias, de 45 anos, uma mulher magra e de cabelo comprido, que gosta de manter preso.

“Desculpe pela casa de pobre”, diz ela enquanto autoriza a entrada da reportagem da BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Sueli se senta em um sofá preto, o mesmo onde Cruz dormiu pela última vez no dia 29 de março. Ela se lembra de tê-lo coberto naquela noite com uma manta, antes de seu filho, de apenas 23 anos, acordar às 4h30 para ir trabalhar no estádio.

“O Fábio esperava a Copa há muito tempo, principalmente depois de trabalhar no Itaquerão. Porque seu sonho era ver o estádio pronto. Ele estava acostumado a dizer que estava dando seu sangue para construir aquilo do qual se sentia orgulho”, assinala Sueli, que trabalha como empregada doméstica.

O entusiasmo de Cruz vinha de sua paixão pelo Corinthians, que é dono do estádio, e também por ver o Brasil disputar o Mundial em casa. Ele já tinha até comprado a camisa da seleção brasileira.

Sueli tira a camisa amarela do guarda-roupa guardada pela última vez por seu filho, e a observa com o olhar triste.

“Ele não via a hora de ver a Copa começar para poder usar a camisa. Nem chegou a usá-la”, lamenta Sueli. “Não tive coragem de me desfazer dela”.

Naquele sábado fatídico, Cruz caiu de uma altura de oito metros quando trabalhava na montagem das estruturas temporárias da Arena Corinthians. Ele morreu horas depois em um hospital.

Ele foi o último dos oito operários que perderam a vida construindo os modernos e caros estádios que hoje atraem os olhos do mundo inteiro para o Brasil.

“Para mim, a Copa do Mundo não existe”, afirma Sueli. “A dor que estamos sentindo com a morte do Fábio nos impede de comemorar a Copa, não temos como aproveitá-la. Nem sei quais partidas que o Brasil vai jogar”, acrescenta ela.

Momento de reflexão

Ao todo, três operários morreram na construção da Arena Corinthians. Dois deles foram vítimas de um acidente fatal em novembro, quando uma grua caiu de uma das arquibancadas.

Outros quatro trabalhadores morreram na Arena Amazônia e um operário morreu no Mané Garrincha, em Brasília.

No caso de Cruz, sua mãe decidiu entrar na Justiça contra a Odebrecht, responsável pela obra, que custou mais de R$ 1 bilhão.

“Ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Uns dizem que foi negligência do Fábio, que estaria sem as cordas de segurança.”

Em novembro, dois operários morreram no estádio de São Paulo após a queda de uma grua.

Sueli conta que as cordas eram muito curtas para mantê-las presas enquanto seu filho se movia pela arquibancada e, por essa razão, acredita que ele devia soltá-las com frequência.

“Foi durante um desses intervalos que ele pegou a corda para prendê-la que ele caiu”, afirma.

“Ao mesmo tempo, fico pensando que se houvesse uma rede de proteção e outros equipamentos de segurança, ele poderia ter sobrevivido. Ele poderia até cair, mas não seria uma queda fatal.”

Após o acidente, o Ministério do Trabalho interrompeu por alguns dias a montagem das arquibancadas temporárias na Arena Corinthians e exigiu maiores medidas de segurança da empresa Fast Engenharia, responsável pelas estruturas, incluindo redes de proteção para os operários.

O calendário de construção da Arena Corinthians teve diversos atrasos e o estádio ficou pronto faltando pouco para receber a primeira partida do Mundial no dia 12 de junho.

Sueli relata que seu filho havia trabalhado na segunda-feira anterior ao acidente e só foi à obra no sábado para ganhar um dinheiro extra. Ela diz que conseguiu vê-lo com vida no hospital.

Agora, em meio à festa do Mundial, ela pede um momento de reflexão dos brasileiros.

“As pessoas têm o direito de aproveitar a Copa, de torcer por seu país. Mas as pessoas deveriam pensar também no que há por trás disso.”

“Não é porque eu estou triste que todo mundo deveria estar também. Mas acho que o povo deveria ser unir para exigir de nossos políticos maior segurança, não apenas para os operários da construção civil, mas para todo tipo de empresa e trabalhador.”

FONTE: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/06/140623_mae_operario_copa_wc2014_lgb.shtml?bw=bb&mp=wm&bbcws=1&news=1

Faltou humildade à presidente

Antônio Carlos Costa

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Percebe-se no país inteiro a ambivalência de sentimento com relação à Copa. Parte da população consegue abstrair sua paixão pela seleção brasileira dos problemas políticos que envolveram a realização da competição esportiva. Na minha casa, por exemplo, tem quem vai torcer fervorosamente. Impera a liberdade e o respeito. Milhões de brasileiros, contudo, sentem-se indignados com a forma como a organização da Copa foi conduzida, especialmente, pelo uso de verba pública. Entre estes, há aqueles que até mesmo recusam-se a assistir aos jogos.

Em junho do ano passado, vimos o país sair às ruas, clamando por solução política para número infindável de problemas sociais concretos que milhões enfrentam no Brasil.

Somando esses dois fatos, os milhares que protestaram ano passado mais os que sentem-se feridos pelo uso de dinheiro público na Copa, nos deparamos com parcela significativa da população esperando respostas efetivas do poder público brasileiro para demandas justas do povo.

Tudo isso impõe aos que representam o povo a necessidade imperiosa da falar à alma, coração e mente da população. Como? Mediante a apresentação de metas claras, políticas públicas objetivas, trabalho duro e humildade para reconhecer equívocos. Pensemos na possibilidade de que tudo o que vivemos ano passado tenha sido apenas uma onda que será seguida por um tsunami de revolta social. Como declara André Bieler: “Quem deixa agravar-se uma indisposição social é responsável pela agitação revolucionária que venha daí resultar”.

A presidente Dilma, no seu discurso de anteontem em rede nacional, poderia ter levado os fatos supramencionados em consideração e falado aos milhões que não decoraram suas ruas nem penduraram a bandeira do Brasil em suas janelas, bem como aos que irão torcer e, pelo simples fato de serem cidadãos desse país, merecem respostas honestas para perguntas honestas.

Ela devia um pedido de perdão ao povo. Foi dito que a Copa seria realizada com recursos da iniciativa privada, o que não houve. As obras da Copa saíram muito mais caras do que o que havia sido anteriormente declarado, sem mencionar os escândalos de superfaturamento. Há um custo, contudo, bem mais grave do que o dinheiro investido em estádios. A consciência social do povo brasileiro foi ferida. O país se dividiu. Milhões de trabalhadores não conseguem compreender como houve vontade política para a realização da Copa e não se percebe esse mesmo investimento de vida em áreas essenciais de serviço público.

Não houve menção, na fala da presidente, aos oito trabalhadores que morreram na construção dos estádios, para cujas famílias a Copa já acabou há muito tempo. Haverá um minuto de silêncio em memória desses brasileiros que deram sua vida por uma competição esportiva que não poderá ser assistida pelos que vivem com o salário que esses operários ganhavam?

Os números do investimento em educação e saúde apresentados pela presidente não impressionam. Além de ser dever de um Estado para o qual damos o sangue, trabalhando duro para sustentá-lo com nossos impostos, esses bilhões de reais mencionados ontem estão sendo muito mal empregados, porque pacientes continuam morrendo em fila de espera de hospital público, milhões de crianças estudam em escolas públicas desprovidas de quadras esportivas e bibliotecas. Já as arenas esportivas da Copa do Mundo, estão aí. Esplendorosas, perante um povo perplexo, passando imagem falsa de um dos países mais desiguais do planeta.

Quando afirmamos que o dinheiro da Copa foi tirado da educação, saúde e segurança -o que de fato queremos dizer é que com os 30 bilhões investidos na Copa, trataríamos, ainda que parcialmente, de alguns do problemas mais urgentes do Brasil, que parecem não caber no orçamento espetacular apresentando no discurso da presidente, caso contrário, teríamos escolas e hospitais à altura do poder econômico da sétima economia do planeta.

Não era momento de atacar inimigos, escarnecer de quem se mostrou pessimista quanto à capacidade do país da “ponte que liga o nada a lugar nenhum” cumprir as promessas que fez, pessimismo que se confirmou nas mais diferentes áreas de planejamento.

Quanto aos que saíram da miséria, não nos esqueçamos que o brasileiro trabalha em média oito a dez horas por dia, seis vezes por semana, gastando nas grandes cidades quatro horas de sua vida no trânsito, para receber no final do mês R$ 740, 00 e voltar do trabalho para seus barracos em bairros nos quais não há saneamento básico. Essa gente tem tempo para a literatura, a prática de um hobby, o investimento no seu desenvolvimento pessoal, a poesia, o amor? Muitos dos quais endividados e, por problema de consciência, procurando honrar seus compromissos financeiros, porque julgam indigno dever e não pagar, ainda que o credor seja um agiota cuja atividade é legitimada pelo Estado.

Presidente Dilma, a quem devemos todo respeito. Representante legítima do povo brasileiro. O brasileiro ama a humildade. Não há caminho mais eficaz para ganhar a alma da população do que o gesto humilde acompanhado da sincera correção de rumo. No governo do seu partido, políticas públicas livraram milhões da fome e da falta de teto para viver. Contudo, há muito ainda a ser feito. Pobres agonizam nas favelas, nas comunidades ribeirinhas da amazônia e no sertão nordestino. 

Na abertura desta Copa, o povo brasileiro esperava ouvir um pedido de perdão, seguido da apresentação de um sonho. Isso pacificaria os corações daqueles que não desistem nunca, como a senhora muito bem mencionou, e que por isso mesmo não deixarão de voltar às ruas para lutar por si mesmos, pelas suas famílias e pelo seu país.

Antônio Carlos Costa, Rio de Paz -Dando voz aos sem voz e visibilidade aos invisíveis

O pior dos racismos é o da cor da alma

O mundo seguirá sendo violento e despedaçado enquanto pensarmos que nossa alma de privilegiados é mais nobre do que a dos despossuídos

Por JUAN ARIAS 

Existe um racismo da cor da pele e outro da cor da alma: o que admite que nem todos os seres humanos têm o mesmo direito à felicidade. Qual deles é o mais perigoso e atroz?

No fundo, ambos afetam o mesmo sujeito: os que dispõem de menos recursos, sempre os mais pisoteados. Talvez porque, no fim das contas, consideramos que se tratam de humanos inferiores, dos quais o poder tem menos medo, até que um dia se cansam de ser humilhados, despertam e põem tudo de pernas para cima.

Digo isto porque me tocaram algumas declarações de Joseph Blatter, presidente da FIFA, em relação às manifestações de protesto com os esbanjamentos da Copa do Mundo que será disputada no Brasil. “É impossível deixar todos felizes”, disse, e adicionou: “O mundo mudou e sempre existe alguém que não está feliz”.

O que Blatter quis dizer? Que existem os que têm direito de ser felizes e os que não têm? E quais são esses que segundo ele “é impossível fazer felizes”?

Certamente não se referia aos privilegiados que poderão desfrutar ao vivo das partidas com direito a um palco de luxo, como no Rio de Janeiro, que custou mais de cem milhões de reais e que somente eles poderão usar.

Os que, de acordo com o dirigente da FIFA, deveriam abandonar a ideia de fazer manifestações durante a Copa para pedir melhorias de vida, são, claro, os mais despossuídos, os que necessitam lutar para que aumentem seus salários porque a inflação os come. Os que querem ter serviços públicos dignos de seres humanos.

Os senhores da Fifa deveriam ter mais memória histórica quando atacam os protestos

Os senhores da FIFA – alguns dos quais com descaramento chegaram a pedir que a Copa seja uma grande festa pois o que “foi roubado, já está roubado” – deveriam ter mais memória histórica quando atacam as manifestações de protesto e de reivindicações dos cidadãos.

Talvez tenham esquecido que, sem está pressão das ruas, muitas ditaduras e muitos tiranos nunca teriam caído de seu pedestal. Nem teria sido derrotada a escravidão ou o apartheid e ainda teríamos ônibus e banheiros diferentes para negros e brancos.

Sem as manifestações de protesto, as mulheres não teriam conseguido nunca o direito ao trabalho, ao voto e ao estudo. Nem teriam direitos os sexualmente diferentes.

Sem a pressão dos trabalhadores, o mundo do trabalho seguiria sem férias, trabalhando 20 horas e sem amparo legal.

Todas as grandes conquistas das minorias e dos despossuídos foram feitas historicamente com a rebelião contra quem se empenhava em considerá-los seres humanos de segunda classe.

Alguém poderia dizer que tudo isto já foi conquistado e que, como pensa o dirigente da FIFA, ainda assim nem todos podem ser felizes. Ou seja, que devemos aceitar que existem os que devem ser sempre menos dos que os outros.

Li também que o Governo do Brasil se empenhou em taxar alguns produtos para arrecadar mais. Tentem imaginar de quais produtos se tratam: Talvez o luxo dos que têm mais? As grandes fortunas? Bebidas e alimentos importados? Joias preciosas?

Não, decidiram taxar o “luxo dos pobres”, como a cerveja e os refrigerantes, umas das poucas satisfações que ainda podem permitir-se os que ganham por volta de mil reais.

Os milhões de pobres saídos da miséria, aos que agora a FIFA pede para que fiquem tranquilos em casa vendo as partidas, sem fazer ruído nas ruas, tinham até começado a sonhar com alguns produtos geralmente consumidos pelos que estão bem, como o iogurte, filé e até um shampoo. Ou uma garrafa de vinho de 20 reais.

Hoje o furacão da inflação os trouxe de volta à realidade e estão voltando o arroz e feijão, a farinha de mandioca com ovo cozido, e alguma carne de terceira ou embutidos baratos para o típico churrasco entre amigos aonde não podem faltar a cerveja e o refrigerante. E agora?

Se lhes taxam a lata de cerveja e a garrafa de refrigerante, o que vão deixar para eles? A água? Nem isto porque também está na mira dos próximos aumentos.

Os pobres que antes bebiam qualquer água que encontravam para não ter pagar por ela, o que supunha um crescimento de doenças intestinais por muitas vezes estar contaminada, tinham começado a comprar, como um luxo, sobretudo para seus filhos, garrafões de água de 20 litros a quatro reais. Hoje já estão pagando oito reais no mercado e ainda pensam em aumentar o preço o que os faria voltar a beber a que encontram de graça no primeiro poço artesiano que virem, contaminada ou não. Falta água em um país que conta com 20% da água potável do planeta.

É incrível que para os pobres tudo parece muito. Para a FIFA até a felicidade deles é demasiada.

“Para que querem comprar iogurte se nem gostam disso?”, escutei uma madame falar em um mercado ao ver uma faxineira examinando os preços dos iogurtes.

Poderiam dizer a mesma coisa da água: “Não beberam a vida inteira a água do poço?” E até justificam o aumento do luxo da cerveja: “assim ficam menos bêbados”. O porre de uísque escocês é mais nobre

Se taxam a lata de cerveja e a garrafa de refrigerante dos torcedores, o que vão lhes deixar? A água?

As vezes nos parece um luxo para os pobres o que para nós é visto como normal.

Li que outra senhora se escandalizou porque uma de suas empregadas comprou um perfume que ela considerava exagerado para sua categoria. Devia pensar: “para que os pobres se perfumam?”. Talvez seja por isto que entre os produtos a ser taxados estejam também os cosméticos em geral. Assim, os pobres voltam para sua “água com sabão” que é o que pensamos que os pertence. Para que eles querem usar shampoo?

Hoje os governos fazem esforços para oferecer receitas contra a desigualdade para que os pobres possam também entrar na ciranda mágica do consumo. É justo, mas não basta.

O que devemos mudar é o chip de nosso cérebro, porque não existem seres humanos considerados de primeira e de segunda classe; não é certo que os que estudaram menos, por exemplo, apresentem maior inclinação para a violência ou sejam menos sensíveis à beleza ou ao luxo. Ou que tenham menor senso de honra e de dignidade. As piores violências e desonestidades se escondem nos palácios do poder.

Enquanto mantivermos aberta esta brecha de desigualdade vista como algo quase genético entre os da classe de cima e os da de baixo, entre os que têm direito de saborear certos manjares e de apreciar certos luxos e os que “não entendem destas coisas”, seguiremos alimentando o pior dos racismos, que já não é somente o da cor da pele, e sim o da cor da alma. São Tomás chegou a duvidar que as mulheres tivessem alma. Do mesmo modo há quem gostaria de pensar desta forma dos pobres, que na prática, acabam sendo considerados seres humanos inferiores que não podem querer desfrutar e sentir como os que tiveram o privilégio de nascer em berço mais abastado.

E entretanto, como dizia o carnavalesco da Beija Flor, das favelas do Rio, Joãosinho Trinta: “Pobre gosta de luxo. Quem gosta de miséria (alheia) é intelectual”. E provava sua afirmação recordando que as novelas brasileiras mostram sempre um cenário de luxo e riqueza e são seguidas com fervor pelo pobres. E as fantasias de carnaval são uma exibição de dourados e luxo artístico.

Sempre me pareceu doentia esta paixão de alguns europeus ou norte-americanos para visitar, quando chegam no Brasil, uma favela, que, além de tudo, deve ser o mais pobre e violenta possível. É como se fossem visitar feras em um zoológico.

Levamos uma vez alguns espanhóis para visitar uma favela pacificada do Rio, mas lhes pareceu pouco excitante e foram conhecer uma com emoções mais fortes.

Nosso mundo seguirá sendo violento e despedaçado enquanto pensarmos que nossa alma de privilegiados é mais nobre e refinada que a dos despossuídos. Nos dói inclusive quando vemos que são capazes de desfrutar de uma dose maior de felicidade que nós e com menos recursos.

Nunca me esquecerei de uma cena que observei, da rua, por acaso, em um restaurante de luxo de um dos cafés da mítica e fascinante praça de San Marcos, em Veneza. Um casal já de idade, e com todas as características visíveis de quem tem dinheiro de sobra, estavam, do lado da janela, jantando com ar aborrecido e em silêncio, em um dos lugares mais especiais, mais românticos e mais caros do mundo.

Saíram em seguida do restaurante e o garçom retirou os pratos quase intactos de lagosta e caviar e os copos de cristal de Murano ainda cheios de champanhe, enquanto a senhora se embrulhava em um abrigo de pele de visão. Era inverno.

Naquele momento me veio à memória os churrascos barulhentos de meus amigos brasileiros pobres onde no final da festa, com direito a dança, só sobram os ossos de frango. E com os ossos, um clima de festa e amizade.

Parece, entretanto, que até a alegria e a camaradagem, que é o maior luxo dos pobres, acaba por nos irritar. “Do que riam tanto?”, escutei algumas pessoas dizerem comentando uma festa alegre de gente simples, mas feliz, na pequena cidade de pescadores próxima do Rio onde moro.

Talvez ignoremos que riem e se divertem muitas vezes, com o pouco que têm, também para não chorar. Ou também consideramos um luxo as lágrimas dos pobres derramadas no silêncio anônimos de suas vidas?

FONTE: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/06/09/opinion/1402336433_239878.html

Do blog do Juca Kfouri: A Copa já era!

POR JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*

O presente texto tem o propósito de apresentar onze argumentos, do goleiro ao ponta-esquerda, para demonstrar que a Copa já era!

Ou seja, que já não terá nenhum valor para a sociedade brasileira e, em especial para a classe trabalhadora, restando-nos ser diligentes para que os danos gerados não se arrastem para o período posterior à Copa.

1. A perda do sentido humano

O debate entre os que defendem a causa “não vai ter copa” e os que afirmam “vai ter copa” está superado. Afinal, haja o que houver, o evento não vai acontecer, ao menos no sentido originariamente imaginado, como instrumento apto a gerar lucros e dividendos políticos “limpinhos”, como se costuma dizer, pois não é mais possível apagar os efeitos deletérios que a Copa já produziu para a classe trabalhadora brasileira. É certo, por exemplo, que para José Afonso de Oliveira Rodrigues, Raimundo Nonato Lima Costa, Fábio Luiz Pereira, Ronaldo Oliveira dos Santos, Marcleudo de Melo Ferreira, José Antônio do Nascimento, Antônio José Pitta Martins e Fabio Hamilton da Cruz, mortos nas obras dos estádios, já não vai ter Copa!

Aliás, a Copa já não tem o menor valor para mais de 8.350 famílias que foram removidas de suas casas no Rio de Janeiro, em procedimento que, como adverte o jornalista Juca Kfouri, no documentário, A Caminho da Copa, de Carolina Caffé e Florence Rodrigues, “lembram práticas nazistas de casas que são marcadas num dia para serem demolidas no dia seguinte, gente passando com tratores por cima das casas”. Essas práticas, segundo relatos dos moradores, expressos no mesmo documentário, incluíram invasões nas residências, para medir, pichar e tirar fotos, estabelecendo uma lógica de pressão a fim de que moradores assinassem laudos que atestavam que a casa estava em área de risco, sob o argumento de que na ausência de assinatura nada receberiam de indenização, o que foi completado com o uso da Polícia para reprimir, com extrema violência, os atos de resistência legítima organizados pelos moradores, colimando com demolições que se realizaram, inclusive, com pessoas ainda dentro das casas. As imagens do documentário mencionado são de fazer chorar e de causar indignação, revolta e repúdio, como o são também as imagens da violência utilizada para a desocupação de imóvel da VIVO na zona norte do Rio de Janeiro, ocorrida no dia 11 de abril de 2014, onde se encontravam 5.000 pessoas. Lembre-se que as remoções para a Copa ocorreram também em Cuiabá, Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Manaus, São Paulo e Fortaleza, atingindo, segundo os Comitês Populares da Copa, cerca de 170 mil famílias em todo o Brasil.

A Copa já não tem sentido para o Brasil, como nação, visto que embora sejam gastos cerca de R$ 30 bilhões para o montante total das obras, sendo 85% vindos dos cofres públicos, a forma como se organizou – ou não se organizou – a Copa acabou abalando a própria imagem do Brasil. Ou seja, mesmo se pensarmos o evento do ponto de vista econômico e ainda que, imediatamente, se possa chegar a algum resultado financeiro positivo, considerando o que se gastou e o dinheiro que venha a ser atraído para o mercado nacional, é fácil projetar um balanço negativo em razão da quebra de confiabilidade.

Se o Brasil queria se mostrar, como de fato não é, para mais de 2 bilhões de telespectadores, pode estar certo de que a estratégia já não deu certo.

A propósito, a própria FIFA, a quem se concederam benefícios inéditos na história das Copas, tem difundido pelo mundo uma imagem extremamente negativa do Brasil, que até sequer corresponde à nossa realidade, pois faz parecer que o Brasil é uma terra de gente preguiçosa e descomprometida, quando se sabe que o Brasil, de fato, é um país composto por uma classe trabalhadora extremamente sofrida e dedicada e onde se produz uma inteligência extremamente relevante em todos os campos do conhecimento, mas que, enfim, serve para demonstrar que maquiar os nossos problemas sociais e econômicos não terá sido uma boa estratégia.

2. Ausência de beneficio econômico

Mesmo que entre perdas e ganhos o saldo econômico seja positivo, há de se indagar qual o preço pago pela população brasileira, vez que restará a esta conviver por muitos anos com o verdadeiro legado da Copa: alguns estádios fantasmas e obras inacabadas, nos próprios estádios e em aeroportos e avenidas, além da indignação de saber que os grandes estádios e as obras em aeroportos custaram milhões aos cofres públicos, mas que, de fato, pouca serventia terão para a maior parte da classe operária, que raramente viaja de avião e que tem sido afastada das partidas de futebol, em razão do processo notório de elitização incrementado neste esporte.

Oportuno frisar que o dinheiro público utilizado origina-se da riqueza produzida pela classe trabalhadora, vez que toda riqueza provém do trabalho e ainda que se diga que não houve uma transferência do dinheiro público para o implemento de uma atividade privada, vez que tudo está na base de empréstimos, não se pode deixar de reconhecer que foram empréstimos com prazos e juros bastante generosos, baseados na previsibilidade de ganhos paralelos com o evento, ganhos que, no entanto, já se demonstram bastante questionáveis.

No caso do estádio Mané Garrincha, em Brasília, por exemplo, com custo final estimado em R$1,9 bilhões, levando-se em consideração o resultado operacional com jogos e eventos obtidos em um ano após a conclusão da obra, qual seja, R$1.137 milhões, serão precisos 1.167 anos para recuperar o que se gastou, o que é um absurdo do tamanho do estádio, ainda que o Ministro do Esporte, Aldo Rebelo, e o secretário executivo da pasta, Luis Fernandes, tenham considerado o resultado, respectivamente, “um êxito” e “um exemplo contra o derrotismo”.

O problema aumenta, gerando indignação, quando se lembra que não se tem visto historicamente no Brasil – desde sempre – a mesma disposição de investir dinheiro público em valores ligados aos direitos sociais, tais como educação pública, saúde pública, moradias, creches e transporte.

O que se sabe com certeza é que a FIFA, que não precisa se preocupar com nenhum efeito social e econômico correlato da Copa, obterá um enorme lucro com o evento. “Uma projeção feita pela BDO, empresa de auditoria e consultoria especializada em análises econômicas, financeiras e mercadológicas, aponta que a Copa do Mundo de 2014 no Brasil vai render para a Fifa a maior arrecadação de sua história: nada menos do que US$ 5 bilhões entrarão nos cofres da entidade (cerca de R$ 10 bilhões).”

3. O prejuízo para o governo

O governo brasileiro, que tenta administrar todos os prejuízos do evento, vê-se obrigado, pelo compromisso assumido por ocasião da candidatura, a conferir para a FIFA garantias, que ferem a Constituição Federal e que, por consequência, estabelecem um autêntico Estado de exceção, para que o lucro almejado pela FIFA não corra risco de diminuição, entregando-lhe, além dos estádios, que a FIFA utilizará gratuitamente:
a) a criação de um “local oficial de competição”, que abrange o perímetro de 2 km em volta do estádio, no qual será reservada à FIFA e seus parceiros, a comercialização exclusiva, com proibição do livre comércio, inclusive de estabelecimentos já existentes no tal, caso seu comércio se relacione de alguma forma ao evento;
b) a institucionalização do trabalho voluntário, para serviços ligados a atividade econômica (estima-se que cerca de 33 mil pessoas terão seu trabalho explorado gratuitamente, sem as condições determinadas por lei, durante o período da Copa no Brasil);
c) o permissivo, conferido pela Recomendação n. 3/2013, do CNJ, da exploração do trabalho infantil, em atividades ligadas aos jogos, incluindo a de gandula, o que foi proibido, ainda que com bastante atraso, em torneios organizados pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol), desde 2004, seguindo a previsão constitucional e o Estatuto da Criança e da Juventude (ECA);
d) a liberdade de atuar no mercado, sem qualquer intervenção do Estado, podendo a FIFA fixar o preço dos ingressos como bem lhe aprouver (art. 25, Lei Geral da Copa);
e) a eliminação do direito à meia-entrada, pois a Lei Geral da Copa permitiu à FIFA escalonar preços em 4 categorias, que serão diferenciadas, por certo, em razão do local no estádio, sendo fixada a obrigatoriedade de que se tenha na categoria 4, a mais barata (não necessariamente com preço 50% menor que a mais cara), apenas 300 mil ingressos, sem quórum mínimo para cada jogo, e apenas dentre estes é que se garantiu a meia entrada para estudantes, pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos; e participantes de programa federal de transferência de renda, que, assim, foram colocados em concorrência pelos referidos ingressos;
f) o afastamento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, deixando-se os critérios para cancelamento, devolução e reembolso de ingressos, assim como para alocação, realocação, marcação, remarcação e cancelamento de assentos nos locais dos Eventos à definição exclusiva da FIFA, a qual poderá inclusive dispor sobre a possibilidade: de modificar datas, horários ou locais dos eventos, desde que seja concedido o direito ao reembolso do valor do ingresso ou o direito de comparecer ao evento remarcado; da venda de ingresso de forma avulsa, da venda em conjunto com pacotes turísticos ou de hospitalidade; e de estabelecimento de cláusula penal no caso de desistência da aquisição do ingresso após a confirmação de que o pedido de ingresso foi aceito ou após o pagamento do valor do ingresso, independentemente da forma ou do local da submissão do pedido ou da aquisição do Ingresso (art. 27).

4. O prejuízo para a cidadania

Para garantir mesmo que o lucro da FIFA não seja abalado, o Estado já anunciou que o evento terá o maior efetivo de policiais da história das Copas, com gasto estimado de 2 bilhões de reais, mobilizando, inclusive, as Forças Armadas, tudo isso não precisamente para proteger o cidadão contra atos de violência urbana, mas para impedir que o cidadão, vítima da violência da Copa, possa se insurgir, democraticamente, contra a sua realização.

A respeito das manifestações, vale frisar, é completamente impróprio o argumento de que como nada se falou antes, agora é tarde para os cidadãos se insurgirem. Primeiro, porque quando o compromisso foi firmado ninguém foi consultado quanto ao seu conteúdo. E, segundo, porque nenhum silêncio do povo pode ser utilizado como fundamento para justificar o abalo das instituições do Estado de Direito, vez que assim toda tirania, baseada na força e no medo, estaria legitimada. O argumento, portanto, é insustentável e muito grave, sobretudo no ano em que a sociedade brasileira se vê diante do desafio de saber toda a verdade sobre o golpe de 1964 e os 21 anos da ditatura civil-militar.

Deve-se acrescentar, com bastante relevo, que o evento festivo, composto por alguns jogos de futebol, está sendo organizado de modo a abranger toda a sociedade brasileira, impondo-lhe os mais variados sacrifícios, pois impõe uma intensa alteração da própria rotina social, atingindo a pessoas que nenhuma relação possuem com o evento ou mesmo que tenham aversão a ele.

O próprio calendário escolar foi alterado, para que não houvesse mais aulas durante a Copa, buscando, de fato, melhorar artificialmente o trânsito e facilitar o acesso aos locais dos jogos. A educação, que é preceito fundamental, que se arranje, pois, afinal, é ano da Copa! Algumas cidades, para melhor atingir esse objetivo da facilitar a circulação, mascarando os problemas do transporte, pensam, seriamente, em decretar feriados nos dias de jogo da seleção brasileira, interferindo, também, na lógica produtiva nacional.

Nos serviços públicos já se anunciaram alterações nos horários de funcionamento, de modo a não permitir coincidência com os dias de jogos do Brasil, sendo que em alguns Tribunais do Trabalho (Mato Grosso – em Cuiabá e nas cidades do interior; Rio Grande do Sul e São Paulo, com diferenças de intensidade e de datas); o funcionamento foi suspenso, gerando adiamento das audiências… Ou seja, o trabalhador, que esperou meses para ser atendido pela Justiça, verá sua audiência adiada para daqui a alguns novos meses, pois, afinal, era dia de jogo da Copa!

Somados todos esses fatores, é fácil entender que a Copa já perdeu todo o sentido para a nação brasileira. Não por outra razão, aliás, é que a aprovação para a realização da Copa no Brasil, em novembro de 2008, que era de 79% caiu, em abril de 2014, para 48%, e os que eram contrários subiram, no mesmo período, de 10% para 41%, sendo que mais da metade dos brasileiros considera que os prejuízos serão maiores que os ganhos.

5. O prejuízo para a razão

Numa leitura otimista, o diretor-geral do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo Fifa 2014, que se chama, por coincidência reveladora, Ricardo Trade (comércio, em inglês), prefere dar destaque ao fato de que 48% são a favor e apenas 41% são contra, avaliando, então, que o copo está meio cheio. Só não consegue ver que o copo está esvaziando e que, de fato, nos trens e ônibus, que transportam os trabalhadores, só se fala da Copa para expressar indignação com relação às condições do transporte, da saúde, das escolas, e da falta de creches. Sintomático, aliás, o fato de que as periferias das grandes cidades não estão pintadas para a “festa” do futebol, como estavam nas Copas anteriores e isso porque, com a Copa sendo realizada aqui, é possível ver as disparidades e perceber com maior facilidade como a retórica do legado não atinge, concretamente, a vida da classe trabalhadora.

Os tais empregos gerados são precários e inseridos, sobretudo nas obras de estádios, aeroportos e vias públicas, na lógica perversa da terceirização, sendo que muitos trabalhadores ainda serão explorados sem qualquer remuneração no mal denominado trabalho “voluntário”, referido com orgulho pelo “Senhor Comércio”.

Fato é que não será mais possível assistir a um jogo da Copa, no estádio, pela TV ou nos circos armados do “Fan Fest” e se emocionar com uma jogada ou um gol, sem lembrar do preço pago: assalto à soberania; Estado de exceção; gastos públicos; abalo da confiabilidade em razão da desorganização; violências dos despejos, dos acidentes de trabalho e da repressão policial…

Sobre o Fan Fest, ademais, é oportuno esclarecer que se trata de um “evento oficial” da Copa da FIFA, que deve ser organizado e custeado pelas cidades sedes de jogos, para que os excluídos dos estádios possam assistir aos jogos por um telão, com o acompanhamento de shows. Esse evento, organizado e pago pelo Estado (que se fará em São Paulo mediante pareceria com o setor privado, conforme Comunicado de Chamamento Público n. 01/2014/SMSP, que estabeleceu o prazo de uma semana para o oferecimento de ofertas), realizado em espaço público, atende aos interesses privados da FIFA e suas parceiras. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, o Decreto n. 55.010, de 9 de abril de 2014, assinado pela vice-prefeita em exercício, Nádia Campeão (em nova coincidência reveladora), que regulou o evento, transforma a área pública do Fan Fest em uma área privada, reservada, como dito no Decreto, aos fãs da Copa. Nos termos expressos no Decreto: “FAN FEST: área do Vale do Anhangabaú indicada pela cidade-sede e reconhecida pela FIFA como área de lazer exclusiva aos fãs da Copa do Mundo FIFA 2014” (inciso VIII, do art. 2º.) – grifou-se

O mesmo Decreto fixa esse local, o do Fan Fest, como área de “restrição comercial”, que são “áreas definidas pelo Poder Público Municipal com perímetros restritos no entorno de locais oficiais específicos de competição, nas quais, respeitadas as normas legais existentes, fica assegurada a exclusividade prevista no artigo 11 da Lei Federal nº 12.663, de 2012, à FIFA ou a quem ela autorizar” (inciso XIII, do art. 2º.), valendo reparar que o Decreto, artificialmente, amplia, em muito, a extensão geográfica do Vale do Anhangabaú: “FAN FEST: a partir do Largo da Memória, Rua Formosa, Viaduto do Chá, Praça Ramos de Azevedo, Rua Conselheiro Crispiniano, Rua Capitão Salomão, Praça Pedro Lessa, Largo São Bento, Rua Florêncio de Abreu, Rua Boa Vista, Rua Líbero Badaró, Praça do Patriarca, alça de retorno da Av. 23 de Maio do sentido Bairro/Centro para o sentido Centro/Bairro, Av. 23 de Maio, entre o Largo da Memória e o Viaduto do Chá, conforme Anexo II deste decreto” (inciso II, do art. 3º.), atingindo até mesmo o espaço aéreo: “Os espaços aéreos correspondentes aos perímetros descritos nos incisos I e II do “caput” deste artigo também se constituem em áreas de restrição comercial” (parágrafo único do art. 3º.).

É importante saber que ao se impedir a comercialização na área reservada a Prefeitura de São Paulo acabou interrompendo um processo de negociação, iniciado em maio de 2012, com os ambulantes que atuavam na cidade e, em especial, na região central, onde se situa o Vale do Anhangabaú, e cuja licença havia sido cassada no contexto de uma política de endurecimento muito forte quanto à fiscalização de sua atuação, que fora intensificada, exatamente, a partir de 2011, quando houve a assinatura do termo de compromisso, anunciando São Paulo como uma das cidades sedes da Copa. Em 2012, acabaram sendo canceladas todas as 5.137 licenças dos ambulantes e até hoje, mesmo após instaurado, desde 2012, um grupo de trabalho tripartite – trabalhadores, sociedade civil e prefeitura (Fórum dos Ambulantes), para a discussão do problema, nada se resolveu e, em concreto, ao editar o Chamamento Público acima citado, a Prefeitura acabou dificultando sobremaneira a pretensão dos ambulantes de terem alguma atuação comercial durante a Copa. É a Copa, na verdade, fechando postos de trabalho!

6. De novo o dinheiro

Há de se considerar que todos esses efeitos já foram produzidos e continuarão repercutindo na vida real para além da Copa, ainda que o saldo econômico desta venha a ser positivo.

E se o tema é dinheiro, há de se indagar: dinheiro para quem, cara pálida? É evidente que o benefício econômico não ficará para a classe trabalhadora e sim para quem explora o trabalho ou se vale da lógica de reprodução do capital. Para o trabalhador, o dinheiro que se direciona é o fruto do trabalho realizado, que, de fato, na lógica do modelo de sociedade capitalista, não representa, jamais, o equivalente necessário para restituir à classe trabalhadora como um todo o valor do trabalho empregado no serviço ou na obra. A lógica econômica da Copa não é outra coisa senão a intensificação do processo de acumulação de riqueza por meio da exploração do trabalho alheio, sendo que se considerarmos a utilização do denominado “trabalho voluntário”, que se realizará sem qualquer custo remuneratório, a acumulação que se autoriza é ainda maior.

O tal efeito benefício econômico, a que tanto se alude, portanto, não será, obviamente, revertido à classe trabalhadora. Esta, inclusive, será enormemente prejudicada, na medida em que o dinheiro público utilizado para financiar a atividade lucrativa de índole privada foi extraído da tributação realizada sobre a riqueza produzida pelo trabalho e que, assim, deveria ser, prioritariamente, revertida ao conjunto da classe trabalhadora para a satisfação das necessidades essenciais garantidas por preceitos constitucionais: escolas, hospitais, previdência e assistência social, creches e transporte, por exemplo. É completamente ilógico dizer, como disse o diretor-geral do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo Fifa 2014, no texto mencionado, que se está usando o dinheiro público para incentivar uma produção privada com o objetivo de, ao final, tributar essa produção e devolver o dinheiro aos cofres públicos.

O argumento seria apenas ilógico não fosse, também, digamos assim, carregado de alguns equívocos, o que o torna, portanto, muito mais grave. Ora, como adverte Maurício Alvarez da Silva, pelos termos da Lei Geral da Copa, Lei n. 12.350/10, “foi concedida à Fifa e sua subsidiária no Brasil, em relação aos fatos geradores decorrentes das atividades próprias e diretamente vinculadas à organização ou realização dos Eventos, isenção de praticamente todos os tributos federais” .

Além disso, em 17 de maio de 2013, o governo federal publicou no “Diário Oficial da União decreto que concede isenção de tributos federais nas importações destinadas à Copa das Confederações neste ano e à Copa do Mundo de 2014. Entre os produtos incluídos na isenção estão alimentos, suprimentos médicos, combustível, materiais de escritório, troféus. O benefício abrange Imposto sobre Produtos Industrializados incidente na importação, Imposto de Importação, PIS/Pasep-Importação, Cofins-Importação, Taxa de utilização do Siscomex, Taxa de utilização do Mercante, Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante e Cide-combustíveis”.

Em concreto, continuarão sendo tributados apenas as empresas nacionais, que não estejam integradas ao rol das apaziguadas da FIFA, sofrendo, ainda, com a isenção concedida às importadoras, os trabalhadores e os consumidores, sendo que o valor circulado nesta seara é ínfimo se considerarmos aquele, sem tributação, destinado à FIFA e suas parceiras e às importadoras.

7. De novo os ataques aos trabalhadores

Quando os trabalhadores, saindo da invisibilidade, se apresentam no cenário político e econômico e se expressam no sentido de que planejam uma organização coletiva para tentarem diminuir o prejuízo, buscando, por meio de reivindicações grevistas, atrair para si uma parte maior do capital posto em circulação em função da Copa, logo algum economista de plantão vem a público com a ameaça de que tais ganhos podem resultar em demissões futuras.
Mas, essa possibilidade aventada pelos trabalhadores de se fazerem ouvir na Copa, que pode, em concreto, minimizar o prejuízo dos trabalhadores, no processo de acumulação, e do país, na evasão de riquezas, acabou provocando uma reação institucional imediata, afinal o compromisso assumido pelo Estado brasileiro foi o de permitir que a FIFA obtivesse o seu maior lucro da história. Então, a Justiça do Trabalho se adiantou e divulgou que vai estabelecer um sistema de plantão para julgar, com a máxima celeridade (de um dia para o outro), as greves que ocorram durante a Copa, com o pressuposto já anunciado de que “as greves têm custo para os trabalhadores, empregadores e população”, sendo certo que a Copa não pode ser usada para “expor o país a uma humilhação internacional, como no Carnaval, quando houve greve de garis”.

Pouco importa o quanto a Justiça do Trabalho, historicamente, demora para dar respostas aos direitos dos trabalhadores, no que se refere às diversas formas de violências de que são vítimas em razão das práticas de algumas empresas no que tange à falta de registro, ao não pagamento de verbas rescisórias, ao não pagamento de horas extras, ao não pagamento de indenizações por acidentes do trabalho etc. Mesmo que já tendo melhorado sobremaneira na defesa dos interesses dos trabalhadores, transmite ainda a ideia central de que o que importa é ser célere quando isso interessa ao modelo econômico, que se vale da exploração do trabalho para reproduzir o capital.

A iniciativa repressiva da Justiça, ademais, foi aplaudia, rapidamente, por editorial do jornal Folha de S. Paulo, o qual, inclusive, em declaração, no mínimo, infeliz, chamou os trabalhadores de oportunistas:

É uma iniciativa elogiável para evitar o excesso de oportunismo sindical, que não hesita em prejudicar o público e ameaçar o principal evento do ano no país.
Ou seja, todo mundo pode ganhar, menos os trabalhadores. Parodiando a máxima penal, é como se lhes fosse dito: “tudo que vocês ganharem pode ser utilizado contra vocês mesmos…”

Como foram as condições de trabalho nas obras? Quantos trabalhadores não receberam ainda os seus direitos por serviços que prestaram para a realização da Copa? Segundo preconizado pelo viés dessa preocupação, nada disso vem ao caso… Na visão dos que só veem imperativo obrigacional de realizar a Copa, como questão de honra, custe o que custar, o que importa é que o “público” receba o proveito dos serviços dos trabalhadores e se estes não ganham salário digno ou se trabalham em condições indignas não há como trazer à tona, para não impedir a realização do evento e para não abalar a imagem no Brasil lá fora.

Mas, concretamente, que situação pode constranger mais a figura do Brasil no exterior? O Brasil que faz greves? Ou o Brasil em que os trabalhadores são submetidos a condições subumanas de trabalho e que não permite que esses mesmos trabalhadores, em geral invisíveis aos olhos das instituições brasileiras, se insurjam contra essa situação, tendo que aproveitar o momento de um grande evento para, enfim, ganhar visibilidade, inclusive, internacional?

Na verdade, a humilhação internacional, a qual não se quer submeter o Brasil, é a de que o mundo saiba como o capitalismo aqui se desenvolve, ainda marcado pelos resquícios culturais de quase 400 anos de escravidão e sem sequer os limites concretos da eficácia dos Direitos Humanos e dos direitos sociais, promovendo, em concreto, uma das sociedades mais injustas da terra.

8. O perverso legado das condições de trabalho na Copa

Do ponto de vista da realidade, é preciso consignar que a pressa na execução das obras ainda tem aumentado a espoliação da classe trabalhadora com elevação das jornadas de trabalho, cuja retribuição, ainda que paga, nunca é suficiente para atingir o nível da equivalência, ainda mais quando são implementadas fórmulas jurídicas fugidias do efetivo pagamento (banco de horas, compensações etc.). O trabalho em jornadas extraordinárias, ademais, gera um desgaste físico e mental do trabalhador que não é computado e não se compensa por pagamento.

Além dos acidentes do trabalho citados inicialmente, portanto, é importante adicionar ao legado da Copa para a classe trabalhadora as más condições de trabalho, caracterizadas pela elevação das jornadas de trabalho, pelo aumento do ritmo do trabalho e da pressão pela celeridade

O relato de alguns fatos, extraídos do noticiário jornalístico, auxilia na visualização desse contexto de supressão de direitos dos trabalhadores no período de preparação para a Copa.

Em setembro de 2013, 111 migrantes, vindos do Maranhão, Sergipe, Bahia e Pernambuco foram encontrados em condições análogas à de escravos na obra de ampliação do aeroporto de Guarulhos/SP, o mais movimentado da América Latina, sob a responsabilidade da empresa OAS, que além de ser uma das maiores construtoras do Brasil, é também a terceira empresa que mais faz doações a candidatos de cargos políticos, segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo, sendo uma das quatro empresas que formam o consórcio Invepar que, junto com a Airports Company South Africa, detêm 51% da sociedade com a Infraero para a administração do Aeroporto Internacional de Guarulhos através da GRU Airport e que para as obras de ampliação do aeroporto, onde foi flagrado trabalho escravo, obteve do BNDES um empréstimo-ponte de R$1,2 bilhões.

E a OAS, evidentemente, declarou que “vem apurando e tomando todas as providências necessárias para atender às solicitações” do Ministério do Trabalho e Emprego, negando que as vítimas fossem suas empregadas ou que tivesse tido qualquer “participação no incidente relatado” .

Até abril de 2012, conforme reportagem de Vinícius Segalla, oito dos doze estádios da Copa já haviam enfrentado greves, atingindo 92 dias de paralisação, sendo o recorde do Maracanã, no Rio de Janeiro, com 24 dias. As reivindicações foram variadas, indo desde questões ligadas à remuneração até o desrespeito de direitos como pagamento de horas extras e fornecimento de planos de saúde. Segundo a reportagem, “Em uma das quatro paralisações já ocorridas em Pernambuco, no início de novembro do ano passado, o motivo foi a forma como a Odebrecht lidou com as reivindicações dos trabalhadores. É que a empreiteira demitiu dois funcionários da arena que eram membros da Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) porque eles teriam incitado os trabalhadores a fazer greve. A demissão dos operários, junto com denúncias de assédio moral supostamente praticados pelo responsável pela segurança do canteiro, levou os funcionários a decretar greve.”

Também nos termos da reportagem, “a empresa explicou ao UOL Esporte que ‘Os dois empregados membros da Cipa foram demitidos por justa causa, por cometimento de flagrante ato de indisciplina, quando, no último dia 31 de outubro, instigaram os colegas a paralisarem a obra da Arena da Copa, sem nenhuma razão plausível’.” Embora, depois, por meio de nota tenha dito que as dispensas se deram sem justa causa.

A situação, revela a mesma reportagem, foi também bastante séria na greve do Maracanã, em setembro de 2011, cuja motivação, segundo Nilson Duarte, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada (Sitraicp), teria sido o fato de que “foram servidos aos cerca de 2.000 trabalhadores da obra macarrão e feijão estragados, salada com bichos e leite fora da validade”, o que fora negado pelo Consórcio Maracanã (Odebrecht, Delta e Andrade Gutierrez), por meio de nota. O local já havia sido alvo de uma greve, um mês antes, agosto de 2011, por causa de uma explosão no canteiro que feriu um trabalhador.

Relata-se, ainda, que em Manaus (AM), na Arena Amazônia, houve paralisação de um dia, em 22 de março de 2012, porque conta do valor da cesta básica que estava sendo paga aos operários, R$ 37, enquanto que “de acordo com pesquisa do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos ), o valor da cesta básica, composta por 12 produtos, fechou o mês de março a um custo R$ 251,38 na capital amazonense”, tendo a greve se encerrado com o aumento da cesta para R$ 60, acompanhado da promessa da empresa de que iria “voltar a pagar hora extra aos sábados, o que parara de fazer três meses antes”.

Na arena de Pernambuco, no início de 2012, foi promovida a dispensa coletiva de 560 empregados, conforme destacado em reportagem de Paulo Henrique Tavares, que vale a pena reproduzir:
A sexta-feira marcou a volta aos trabalhos dos operários responsáveis pela construção da Arena Pernambuco, na cidade de São Lourenço da Mata. E como “boas-vindas”, 560 trabalhadores acabaram recebendo o comunicado de demissão. A expectativa da comissão organizadora da recente greve, que paralisou as obras do estádio por oito dias, é de que outros mil funcionários peçam a carta de dispensa até o fim da tarde.
Por considerar “abusiva e ilegal”, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-PE) exigiu, na quinta-feira, a volta aos trabalhos dos grevistas, com penalidade de R$ 5 mil, por dia, ao sindicato da categoria, o Sintepav, em caso de descumprimento. Apesar da obrigatoriedade, a ideia dos remanescentes nas obras da Arena Pernambuco é praticar – como os próprios denominam – uma “operação tartaruga”.
“Eu vim preparado para ser demitido. Como não fui, a maneira que encontrei para ajudar meus companheiros é trabalhar de maneira lenta. Cada prego desta Arena irá demorar pelo menos um dia, para ser colocado”, disse um trabalhador, que preferiu não ser identificado. “Eu não tenho prazo para terminar a obra. Quem tem prazo é o governo.”

Antes das demissões, as obras para a Arena da Copa contavam com 2.437 trabalhadores. Já contando com as saídas desta sexta-feira, cerca de 250 novos operários se apresentaram para o trabalho, em São Lourenço da Mata. “Pelo número de polícias que estão aqui na obra hoje, acredito que eles e o governador Eduardo Campo devem colocar a mão na massa para levantar o estádio até a Copa do Mundo”, falou, em tom irônico, um dos novos desempregados.

Entre as reivindicações, os trabalhadores exigiam aumento de benefícios, como cesta básica de R$ 80 para R$ 120, maior participação nos lucros e resultados (PLR), Plano de Saúde para os profissionais e ajudantes, além de abono dos dias parados e estabilidade de um ano para a comissão dos trabalhadores.
A questão pertinente às condições de trabalho chegou a tal extrema que, na Arena do Grêmio (que não está integrada aos jogos da Copa, mas se alimenta da mesma lógica), em outubro de 2011, os próprios trabalhadores pediram sua demissão, como “forma de protesto pelas condições de trabalho impostas pela empreiteira. A maioria dos trabalhadores é do Maranhão e retornará ainda hoje para seu estado natal.”

No estádio do Itaquerão, os operários disseram, em janeiro de 2014, à reportagem do UOL que estavam recebem salário “por fora” (que impede a tributação e não se integra aos demais direitos dos trabalhadores), “para trabalhar mais do que o previsto pelo acordo e evitar que a inauguração do palco de abertura da Copa do Mundo atrase ainda mais”. Segundo consta da reportagem, “Um soldador que trabalha na obra contou à reportagem que espera receber um salário quatro vezes maior do que o normal neste mês devido às horas extras irregulares que está fazendo”.

Segundo a reportagem, o acordo em questão, firmado com o aval do Ministério do Trabalho e Emprego, em 19 de dezembro de 2013, foi o de que estaria autorizado o trabalho em até duas horas extras diariamente, sendo que, anteriormente, dizem os trabalhadores, havia jornadas de até 16 horas. E, presentemente, as horas além das duas extras permitidas, que já é, por si, grave afronta à Constituição, eram trabalhadas sem marcação em cartão de ponto. “Eles [os chefes] falam para a gente: ‘Não pode atrasar’. Ainda tem muita coisa pra fazer e às vezes é melhor mesmo você trabalhar umas horinhas a mais num dia para terminar uma tarefa e já começa num ponto mais a frente no dia seguinte”, disse à reportagem um ajudante de pedreiro, de 23 anos, que, assim como os outros trabalhadores que conversaram com o UOL Esporte, pediu para não ser identificado.

Nos termos da reportagem, “Além do medo de perder o salário adicional, os funcionários da construtora disseram que foram orientados a não dar entrevistas. ‘Teve uma palestra no fim do ano para falar pra gente tomar cuidado com a imprensa, pra não ficar falando qualquer coisa porque isso só atrapalha a gente’, declara o ajudante de pedreiro.”

Como revela notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo, edição de 23/03/14 (p. D-4), foram flagrados pelos jornalistas trabalhadores executando suas tarefas sem as mínimas condições de segurança e de uma subsistência digna em obra do centro de treinamento da seleção da Alemanha no sul da Bahia (Santa Cruz Cabrália).

9. O atentado histórico à classe trabalhadora

A maior parte dos problemas vivenciados pelos trabalhadores nas obras da Copa está ligada à sua submissão ao processo de terceirização e de precarização das condições de trabalho, que acabaram sendo acatados, sem resistência institucional contundente, durante o período de preparação para a Copa, interrompendo o curso histórico que era, até então, de intensa luta pela melhoria das condições de trabalho no setor da construção civil, que é o recordista, vale destacar, em acidentes do trabalho. Essa luta, implementada pelo Ministério Público do Trabalho, tendo como ponto essencial o combate à terceirização, entendida como fator principal da precariedade que gera acidentes, já havia sido, inclusive, encampada pelo Governo Federal, em 2012, ao se integrar, em 27 de abril, ao Plano Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho.

O fato é que o evento Copa, diante da necessidade de se acelerarem as obras, acabou por jogar por terra quase toda, senão toda, a racionalidade que já havia sido produzida a respeito do assunto pertinente ao combate à terceirização no setor da construção civil, chegando-se mesmo ao cúmulo do próprio Superintendente Regional do Trabalho e emprego de São Paulo, vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, Luiz Antônio Medeiros, um ex-sindicalista, declarar, sobre as condições de trabalho no Itaquerão, que: “Se esse estádio não fosse da Copa, os auditores teriam feito um auto de infração por trabalho precário e paralisado a obra. Estamos fazendo de conta que não vemos algumas irregularidades” (entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 03/04/14).

O período da preparação para a Copa, portanto, pode ser apontado como um atentado histórico à classe trabalhadora, que jamais será compensado pelo aludido “aumento de empregos”, até porque, como dito, tais empregos, no geral, se deram por formas precárias. Nas obras o que se viu e se vê – embora não seja visto pelo Ministério do Trabalho e Emprego – são processos de terceirização e quarteirização, sem uma oposição institucional, que, por conseqüência, produz o legado de grave retrocesso sobre o tema, que tende a se estender, perigosamente, para o período posterior à Copa.

Não se pode esquecer que quase todos os acidentes fatais acima mencionados, não por coincidência, atingiram trabalhadores terceirizados, e o Estado de exceção, acoplado ao silêncio institucional sobre as formas de exploração do trabalho (exceção feita a algumas iniciativas individualizadas de membros do Ministério Público do Trabalho) e acatado para garantir a Copa, acabaram servindo como uma luva a certas frações do setor econômico, que serão as únicas, repita-se, que verdadeiramente, se beneficiarão do evento, para desferir novo ataque aos trabalhadores, representado pela tentativa de fuga de responsabilidade da empresa responsável pela obra, transferindo-a à empresa contratada (terceirizada), que possui, como se sabe, quase sempre, irrisório suporte financeiro para arcar com os riscos econômicos envolvidos.

Sobre a morte de José Afonso de Oliveira Rodrigues, a construtora Andrade Gutierrez, responsável pela construção da arena em Manaus, defendeu-se, publicamente, dizendo que Martins trabalhava para a Martifer, empresa contratada para fazer as estruturas metálicas da fachada e da cobertura.

Quando da morte de Marcleudo de Melo Ferreira, também na obra da arena de Manaus, a Andrade Gutierrez repetiu a estratégia, expressando-se em nota:
É com pesar que a Construtora Andrade Gutierrez informa que por volta das 4h da manhã de hoje, 14/12/2013, o operário Marcleudo de Melo Ferreira, 22 anos, natural de Limoeiro do Norte – CE, funcionário de empresa subcontratada que presta serviços na montagem da cobertura da Arena da Amazônia, sofreu uma queda de uma altura de cerca de 35 metros, sendo socorrido e levado ao Pronto Socorro 28 de Agosto ainda com vida, onde não resistiu aos ferimentos e veio a falecer nesta manhã.

Reiteramos o compromisso assumido com a segurança de todos os funcionários e que uma investigação interna está sendo feita para apurar as causas do acidente. As medidas legais estão sendo tomadas em conjunto com os órgãos competentes.

Lamentamos profundamente o acidente ocorrido e estamos prestando total assistência à família do operário. Em respeito à memória do mesmo, os trabalhos deste sábado foram interrompidos. – grifou-se

Igual postura foi adotada pela Odebrecht Infraestrutura, responsável pela obra do Itaquerão, no que tange às mortes de Fábio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos. Eis a nota publicada:
A Odebrecht Infraestrutura e o Sport Club Corinthians Paulista lamentam informar que no início da tarde de hoje um acidente na obra da Arena Corinthians provocou o falecimento de dois trabalhadores – Fábio Luiz Pereira, 42, motorista/operador de Munck da empresa BHM, e Ronaldo Oliveira dos Santos, 44 anos, montador da empresa Conecta. Pouco antes das 13 horas, o guindaste, que içava o último módulo da estrutura da cobertura metálica do estádio, tombou provocando a queda da peça sobre parte da área de circulação do prédio leste – atingindo parcialmente a fachada em LED. A estrutura da arquibancada não foi comprometida. Era a 38ª vez que esse tipo de procedimento realizava-se na obra e uma peça de igual proporção foi instalada há pouco mais de uma semana no setor Sul do estádio. Equipes do corpo de bombeiros estão no local. No momento, todos os esforços estão concentrados para oferecer assistência total às famílias das vítimas.

E para demonstrar que a terceirização, com a utilização da estratégia de se eximir de responsabilidade, não é privilegio da iniciativa privada, quando houve a morte de José Antônio do Nascimento na obra do Centro de Convenções do Amazonas, desenvolvida pelo Centro de Gestão Metropolitana do Município de Manaus ao lado da Arena da Amazônia, a entidade em questão expediu a seguinte nota:
funcionário da Conserge, empresa que presta serviço para a Unidade de Gestão Metropolitana, José Antônio da Silva Nascimento, de 49 anos, morreu de infarto por volta das 9h da manhã deste sábado (14 de dezembro), quando trabalhava nos serviços de limpeza e terraplanagem para o asfaltamento do Centro de Convenções da Amazônia, localizado na Avenida Pedro Teixeira.
José Antônio se sentiu mal quando subiu em uma caçamba. Uma ambulância do Samu foi acionada imediatamente para realizar o atendimento, mas o trabalhador não resistiu. A Conserge está dando toda a assistência necessária à família da vítima.
Segundo a família de José Antônio, este trabalhava sob pressão devido ao atraso na obra. “Ele trabalhava de domingo a domingo”, afirmou sua cunhada, Priscila Soares.

Por ocasião da morte de Antônio José Pitta Martins, técnico especializado em operações de guindastes de grande porte, que veio de Portugal para trabalhar na obra da Arena da Amazônia, tendo sido atingido na cabeça por uma peça de ferro que se soltou de um guindaste, novamente a fala se repete. Em nota oficial, a empresa responsável técnica pela obra, Andrade Gutierrez, destaca que o trabalhador não era seu empregado, ao mesmo tempo em que deixa claro que “o acidente não interferiu no seguimento das obras”

Eis o teor da nota:
NOTA DE ESCLARECIMENTO
A Construtora Andrade Gutierrez informa que, por volta das 8h da manhã de hoje, 07/02/2014, um técnico de guindaste de grande porte, funcionário da empresa Martifer, sofreu um acidente nas dependências do sambódromo enquanto desmontava a máquina utilizada nas obras da Arena da Amazônia. O guindaste, que auxiliava os trabalhos da Arena, já estava com as operações encerradas desde 11/01/2014 e desmobilizado em uma área externa. O operador foi socorrido pela equipe de Segurança do Trabalho e levado pelo SAMU até o hospital 28 de Agosto, onde teve seu quadro de saúde estabilizado e foi transferido para o hospital João Lúcio. O acidente não interferiu no seguimento das obras da Arena da Amazônia. – grifou-se
A empresa Martifer Construções Metalomecânica S/A, por sua vez, emitiu nota de pesar, noticiando que iria “apurar as causas do acidente”.
A última morte foi a de Fabio Hamilton da Cruz, que se deu em acidente ocorrido no Itaquerão, após uma queda de oito metros de altura. Fabio, conforme foi várias vezes frisado pelos envolvidos, com difusão na imprensa, era empregado da WDS, uma subcontratada da Fast Engenharia, que fora contratada pela AmBev, que aceitou bancar os 38 milhões de reais para colocação de arquibancadas provisórias, exigidas pela FIFA para que o estádio tivesse a capacidade de público necessária para receber a abertura da Copa do Mundo.

10. A culpabilização das vítimas

A respeito do acidente de Fábio Hamilton da Cruz, o Delegado designado para verificação do ocorrido, após ouvir alguns relatos, um dia depois do ocorrido, sem a realização de qualquer laudo técnico, já concluiu que teria havido um “excesso de confiança” da vítima.

Essa foi, ademais, outra forma de agressão aos direitos dos trabalhadores que a pressa para a realização da Copa acabou reforçando, a da culpabilização da vítima nos acidentes do trabalho.

Ora, como o próprio nome diz, o acidente do trabalho é um sinistro que se dá em função da realização de trabalho em benefício alheio, ao qual, independente da postura da vítima, fica obrigado a reparar o dano, já que o risco da atividade econômica lhe pertence (art. 2º. da CLT) e, consequentemente, é de sua responsabilidade o cuidado com o meio ambiente de trabalho.

É extremamente agressivo à inteligência humana, servindo, inclusive para fazer prolongar no tempo o sofrimento da vítima ou de seus familiares, o argumento, daquele que explora com proveito econômico o trabalho alheio, de que “vai apurar” o ocorrido, deixando transparecer no ar uma acusação, que nem sempre é velada, de que a culpa pelo acidente foi do trabalhador

Veja-se, por exemplo, o que se passou no caso do Raimundo Nonato Lima Costa, que morreu após uma queda de 35 metros na Arena da Amazônia. Em nota de pesar pela sua morte, a responsável técnica pela obra não teve o menor receio, inclusive, de fazer uma acusação generalizada aos trabalhadores, apontando-os como responsáveis por sua própria segurança. Diz a nota.

NOTA DE PESAR
A Andrade Gutierrez lamenta a morte do operário Raimundo Nonato Lima Costa, ocorrida na noite desta quinta-feira, durante o turno noturno da obra da Arena da Amazônia. A empresa providenciou apoio imediato à família do funcionário e aguarda o resultado dos trabalhos da perícia técnica que foi iniciada pela Polícia Civil com o objetivo de apurar as causas do ocorrido.

A Andrade Gutierrez reitera o compromisso assumido com a segurança de todos os seus funcionários e informa que intensificará o trabalho de conscientização dos operários com foco na prevenção de acidentes.

Por ocasião da morte de Marcleudo de Melo Ferreira, na mesma Arena, já mencionada acima, o secretário da Copa em Manaus, Miguel Capobiango, foi além na agressão aos trabalhadores e desferiu o ataque de que as duas quedas fatais até então havidas na Arena tinham sido fruto do “relaxo” dos operários na utilização dos equipamentos de segurança. “Usar o equipamento de segurança às vezes é chato e nem todos gostam de estar usando. O operário às vezes abre mão por preguiça, então ele relaxa, e é isso que agora nós não podemos deixar”. “Infelizmente, os dois acidentes aconteceram por uma questão básica de não cuidado do trabalhador no uso correto do equipamento.”

E, sobre a morte de Fabio Hamilton da Cruz no estádio no Itaquerão, disse Andrés Sanches: “Na vida, cometemos erros e excessos. Já dirigi carro a 150 km/h. Eu não bebo. Vocês já devem ter dirigido “mamados”. Infelizmente, cometemos erros que acabam em fatalidade. Realmente, é padrão na construção civil.”

11. O retrocesso social e humano da Copa

Bem se vê que o legado maléfico para os trabalhadores brasileiros com a Copa não está apenas nas más condições de trabalho e nos conseqüentes oito acidentes fatais (não se contando aqui os vários outros acidentes do trabalho que não resultaram em óbito), o que, por si, já constitui um grande prejuízo, ainda mais se lembrarmos que as obras para a Copa da África em 2010 deixaram 02 mortes por acidente do trabalho, está também na tentativa explícita de culpar as vítimas, buscando atingir a uma impunidade que reforça a lógica de uma exploração do trabalho alheio pautada pela desconsideração da dignidade humana.

A Copa já trouxe grandes prejuízos à classe trabalhadora e é preciso impedir que se consagrem e se prolonguem, mansa e silenciosamente, para o período pós-Copa. Não tendo sido possível obstar que o Estado de exceção se instaurasse na Copa é essencial, ao menos, não permitir que ele continue produzindo efeitos.

O passo fundamental é o de recuperar a consciência, pois a porta aberta às concessões morais e éticas para atender aos interesses econômicos na realização da Copa tem deixado passar a própria dignidade, o que resta demonstrado nas manifestações que tentam justificar o injustificável apenas para não permitir qualquer abalo na “organização” do evento. Foi assim, por exemplo, que o maior atleta do século XX e melhor jogador de futebol de todos os tempos, o eterno Pelé, chegou a sugerir, mesmo que não tenha tido uma intenção malévola, que mortes em obras são fatos que acontecem, “são coisas da vida” e que se preocupava mesmo era com o atraso nas obras dos aeroportos; que o competente e carismático técnico da seleção brasileira, Luiz Felipe Scolari, ainda que sem querer ofender, afirmou que a solução para o problema do racismo no futebol é ignorar os “babacas” que cometem tais ofensas, pois puni-los não resolve nada; e que o Ministro de Minas e Energia, Edson Lobão, cogitou pedir para que os cidadãos brasileiros economizassem energia a fim de que não faltasse luz na Copa.

A postura subserviente, para satisfazer os interesses da FIFA, chegou ao ponto extremo de algumas cidades, como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Cuiabá, Natal e Fortaleza, terem atendido pedido feito, com a maior cara de pau do mundo, pelo secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, para que as cidades sedes de jogos da Copa concedessem transporte gratuito – algo que o Movimento Passe Livre está lutando, e sofrendo, para conseguir há anos –, sendo que a concessão, diversamente do que tem buscado o MPL, não se destina às pessoas necessitadas, mas aos torcedores dos jogos da Copa, que possuem condições financeiras para pagar os altos preços dos ingressos, que chegaram a ser vendidos, no paralelo, por até R$91 mil…

É de suma importância deixar claro, para a nossa compreensão e para a nossa imagem no mundo, que temos a percepção de todos esses problemas, que não o aprovamos e que estamos dispostos a enfrentá-los e superá-los.

O autêntico efeito positivo da Copa – realizada, ou não – será a constatação de que a classe trabalhadora se encontra em um estágio de consciência que lhe permite compreender que a Copa reforça e intensifica a lógica da exploração do trabalho como fonte reprodutora do capital, favorecendo ao processo de acumulação da riqueza, ao mesmo tempo em que permite a institucionalização de uma evasão oficial de divisas. A partir dessa compreensão, a classe trabalhadora não se deixará levar pela retórica de que o dinheiro dos turistas vai estimular o crescimento e gerar empregos, até porque ao se inserir na mesma lógica capitalista o dinheiro não é revertido à classe trabalhadora, à qual apenas é remunerada, sem o necessário equivalente, pelo trabalho prestado, direcionando-se, pois, a maior parcela do dinheiro em circulação em função da Copa às multinacionais aqui instaladas, especialmente no setor hoteleiro e nas companhias aéreas.

Cada trabalhador, pensando em sua atividade e em seu cotidiano de ganho e de trabalho durante a Copa, ou antes, que responda: teve ou terá algum ganho na Copa que não provenha do trabalho? Este trabalho é prestado em que condições? O eventual acréscimo de ganho está ligado ao aumento da quantidade de trabalho prestado? Que o digam, sobretudo, os jornalistas!!!

Claro que uma ou outra experiência comercial exitosa, desvinculada da dos protegidos da FIFA, pode ocorrer, mas isso por exceção. E, cumpre repetir: mesmo que no geral a Copa produza resultados econômicos satisfatórios, não se terão, com isso, justificadas as supressões da ordem jurídica constitucional, já havidas no período de preparação para o evento, e as violências sofridas por diversas pessoas, e, em especial, a classe trabalhadora, no que tange aos seus direitos sociais e humanos.

Este é o ponto fundamental: o de não permitir que a Copa e a violência institucional posta a seu serviço furtem a nossa consciência, que está sendo duramente construída, vale lembrar, após 21 anos de ditadura, seguida de 15 anos de propaganda neoliberal. A produção dessa consciência é extremamente relevante para que o drama das diversas pessoas, vitimadas pela Copa, não se arraste por muito mais tempo, sofrimento que, ademais, só aumenta quando, buscando não abalar eventual euforia da Copa, se tenta desconsiderar a sua dor, ou quando, partindo de uma perversão da realidade, argumenta-se que as pessoas que são contra a Copa (mesmo se apoiadas nos motivos acima mencionados) fazem parte de uma conspiração para “contaminar” a Copa, apontadas como adeptas da “violência”, sendo que para a ação dessas pessoas (que, de fato, carregam um dado de consciência), o que se reserva é o contra-argumento da “segurança pesada”.

O desafio está lançado. O que vai acontecer nos jogos da Copa, se a “seleção canarinho” vai se sagrar hexa campeã, ou não, não é decisivo para a história brasileira. Já o tipo de racionalidade e de reação que produzirmos diante dos fatos sociais e jurídicos extremamente graves relacionados ao evento vai, certamente, determinar qual o tipo de sociedade teremos na sequência. Boa ou ruim, a Copa acaba e a vida concreta continua e será boa ou ruim na medida da nossa capacidade de compreendê-la e de interagir com ela, pois como já disse Drummond:

Foi-se a Copa? Não faz mal.
Adeus chutes e sistemas.
A gente pode, afinal,
cuidar de nossos problemas.

Faltou inflação de pontos?
Perdura a inflação de fato.
Deixaremos de ser tontos
se chutarmos no alvo exato.

O povo, noutro torneio,
havendo tenacidade,
ganhará, rijo, e de cheio,
A Copa da Liberdade.
São Paulo, 21 de abril de 2014.

*Jorge Luiz Souto Maior é professor livre docente de direito do trabalho brasileiro na USP, Brasil desde 2001. É juiz titular na 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí desde 1998, palestrante e conferencista.

FONTE: http://blogdojuca.uol.com.br/2014/04/a-copa-ja-era/

Mata Pires, da OAS, vira bilionário graças às obras da Copa

Empreiteira do empresário foi a maior vencedora das licitações para as obras da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, diz Forbes

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Julia Carvalho, de 

Wkimedia Commons

Arena das Dunas, em Natal

Arena das Dunas: estádio foi apenas uma das obras da Copa vencidas pela OAS

São Paulo – César Mata Pires, 65 anos, fundador e presidente executivo da empreiteira OAS, é um dos brasileiros a entrar pela primeira vez na lista de bilionários do mundo da revista Forbes.

Segundo a revista, o empreiteiro é dono de uma fortuna de 1,55 bilhão de dólares, graças, principalmente, à empresa que fundou e de que possui 90%.

Além dos serviços que presta no setor petroquímico e de energia e das concessões que possui sobre estradas, a revista atribui o aumento da fortuna do novo bilionário às obras para a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

A empreiteira foi uma das maiores vencedoras das licitações para obras dos eventos, que incluíram o consórcio para a construção das arenas Fonte Nova, em Salvador, e das Dunas, em Natal. Ambas foram construídas sem recursos públicos, mas a empreiteira ganha com a administração dos locais e a exploração das marcas.

Sua empresa inclusive foi lembrada nos protestos do ano passado contra os eventos, onde apareceram cartazes com os dizeres “o dinheiro para educação foi todo para a OAS”.

A revista Bloomberg, que também investiga e descobre novos bilionários pelo mundo, porém,já o havia classificado como bilionário em julho do ano passado.

Segundo a publicação, a porcentagem da empreiteira de que é dono é avaliada em 3,6 bilhões de dólares, e sua fortuna pessoal chega a 4,7 bilhões de dólares.

Família e conexões

Em 1976, César se uniu ao antigo colega da Odebrecht Durval Olivieri, onde trabalhou no início da carreira, para criar a Olivieri, Araújo e Suarez Engenheiros Associados – Araújo é o nome de solteira da mãe de César. Hoje, 49% de seus contratos são para construções do governo e incluem as obras do Minha Casa Minha Vida.

Na mesma época, Mata Pires conheceu o então governador da Bahia Antônio Carlos Magalhães, que o apresentou à sua filha. César casou-se com Tereza Magalhães alguns anos depois. Há indícios de que a empreiteira tenha sido beneficiada pelo sogro durante seu tempo no governo baiano e no senado durante a ditadura.

A sigla inclusive gerou alguns trocadilhos, como “Obras Arranjadas pelo Sogro” e “Obrigado, Amigo Sogro”. Em entrevista à revista IstoÉ, em 1999, o político negou as acusações: “nada tenho com a OAS, a não ser o fato de que o presidente da empresa é casado com a minha filha”, disse.

Ao morrer, em 2007, ACM deixou uma herança de 500 milhões de reais. A disputa entre Tereza e seus outros dois irmãos rachou a família até que, em maio do ano passado, ela e seu marido abriram mão dos direitos pelo dinheiro.

Mata Pires também é filho de um poderoso criador de gado da Bahia, mas sua fortuna veio mesmo foi de sua empreiteira. Seja com 1 bilhão ou com 4 bilhões de dólares, o bilionário agora faz parte, oficialmente, do grupo das pessoas mais ricas do mundo.

FONTE: http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/mata-pires-da-oas-vira-bilionario-gracas-as-obras-da-copa

Manifestações estão obrigando prefeitos a se distanciar da farra da FIFA na Copa 2014

Fifa

Muito se tem falado das manifestações que vem ocorrendo no Brasil contra os gastos exorbitantes para bancar o mega-evento da FIFA, a chamada Copa do Mundo 2014. Mas num sinal que a classe política já entendeu a mensagem, o Jornal Valor Econômico noticia hoje que muitos prefeitos das cidades-sede, seguindo o exemplo do prefeito de Recife, estão tirando o time de campo para se desobrigar do financiamento da chamada “Fan Fest” da FIFA (Aqui!). Essa atividade é, na prática, mais um daqueles eventos paralelos onde tudo acontece para aumentar os lucros da FIFA, sem essa tenha que meter a mão nos seus cofres já recheados com recursos públicos dos diferentes países onde o seu mega-evento vem sendo instalado ao longo dos anos.

Ai é que eu digo: benditas manifestações! Afinal de contas, num país onde a miséria campeia e serviços públicos essenciais estão operando no seu limite crítico, bancar evento para a FIFA ganhar ainda mais dinheiro não tem justificativa alguma!

Rio, cidade para pobres?

Os cariocas continuam sofrendo os efeitos do que claramente é uma bolha de preços insustentável no longo prazo

Por FRANCHO BARÓN, do Rio de Janeiro 

Banhistas tomam coco no calçadão da praia de Ipanema. / DADO GALDIERI (BLOOMBERG)

O Rio de Janeiro, impulsionado por anos de bonança econômica e por sua escolha como sede da próxima Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, se encontra imerso em uma espiral inflacionária que fez saltar todos os sinais de alerta. Embora há cerca de dois anos o Rio já ocupasse uma posição de liderança nas listas das cidades mais caras do planeta para estrangeiros, a progressiva desvalorização do real supôs uma balão de oxigênio para turistas e expatriados. No entanto, a população local continua sofrendo os efeitos do que claramente é uma bolha de preços insustentável no longo prazo.

Enquanto o altíssimo custo de vida continua sendo um dos temas de conversa mais recorrentes entre os cariocas, grupos de indignados se organizam nas redes sociais para denunciar os preços abusivos. O mais criativo e relevante, já apresentado há semanas no EL PAÍS, se chama Rio Surreal e, não com pouca ironia, tem cunhada em sua página de Facebook a nova moeda de câmbio para a capital mais turística do Brasil: o “surreal” (um cruzamento óbvio entre as palavras “real”, a divisa brasileira, e “surrealismo”, o movimento artístico simbolizado por Salvador Dalí, cuja icônica imagem inclusive aparece nas cédulas e moedas virtuais).

Em uma outra iniciativa para tentar coibir os abusos de preços, a Prefeitura do Rio publicou um decreto nesta semana criando a Frente Municipal de Combate às Práticas Abusivas, que informará vendedores e consumidores sobre práticas irregulares, passando ainda a uma segunda fase em que multas serão aplicadas aos infratores.

Eduardo Crespo, professor de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) opina que “a Copa e os Jogos Olímpicos, somados ao boom do crédito e imobiliário, estão na origem do problema. Os aluguéis dos estabelecimentos comerciais são altíssimos, e isso tem um impacto no preço final dos produtos. Ainda assim, acho que há uma grande diferença de preços entre os bairros periféricos e as zonas turísticas”.

A inflação oficial brasileira elevou-se em 2013 a 5,91%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A priori, esse indicador não representa um sinal de alerta, já que a cifra se mantém abaixo do teto de 6,5%, fixado pelo Banco Central. Mas o Rio é um caso à parte. Aqui não se aplicam as lógicas de mercado que regem o resto do país e sempre está no ar o “fator Copa”, esse imponderável que provoca cotidianos abusos de preços ante o olhar perplexo de milhões de cariocas. O EL PAÍS elaborou uma lista de preços dos produtos e serviços que mais podem afetar o visitante. Todos eles foram reunidos em pedidos na rua nos bairros mais turísticos da cidade ou nos recibos de compra divulgados por internautas nas redes sociais.

Para quem quer poupar em alimentação, o supermercado é indiscutivelmente a melhor opção. Em um dos grandes centros comerciais que oferecem as melhores ofertas da cidade, um litro de leite custa 2,29 reais (0,95 dólar), uma lata de cerveja nacional 1,49 real (0,62 dólar), um quilo de arroz 2,99 reais (1,24 dólar), um quilo de carne de primeira 19,90 reais (8,3 dólares) e um quilo de açúcar 4,25 reais (1,77 dólar).

Se fizermos um percurso pelos quiosques das praias de Copacabana ou Ipanema, epicentro do turismo, o tradicional coco gelado beira 6 reais (2,5 dólares) e alugar um guarda-sol pode superar os 15 reais (6,25 dólares). Em qualquer bar da zona sul, o normal é não pagar menos de 6 reais (2,5 dólares) por uma cerveja pequena ou 5 reais (2,08 dólares) por um café. E se o objetivo for comer, o principal telejornal da TV Globo divulgou recentemente o que poderia ser considerado o cúmulo da especulação: em um restaurante de Copacabana uma omelete feita com 6 camarões e quatro ovos custa 99 reais (41,25 dólares). Em um estabelecimento vizinho de sucos e lanches, um sanduíche misto chega a 17,90 reais (7,45 dólares), enquanto um croissant recheado com presunto e queijo sai por 25,90 reais (10,79 dólares). Dez reais (4,16 dólares) pode custar meio litro de suco de laranja em uma tradicional “casa de sucos”. Um cálculo realizado pelo portal G1 chega à conclusão de que com esse dinheiro podem ser compradas 48 laranjas em um supermercado.

Para se deslocar pela cidade, um trajeto em táxi do bairro de Leblon até o centro (pouco mais de 13 quilômetros) não custará menos de 35 reais (14,58 dólares). Se a opção for o metrô (que ainda não chega ao Leblon) ou o ônibus, terá de calcular 3,20 reais (1,33 dólar) no mínimo. Não obstante, é importante saber que o atual sistema de transporte público deixa muito a desejar.

O alojamento é, sem dúvida, o assunto mais sensível quando se fala de especulação no Rio. As 34.000 habitações ofertadas nos hotéis da cidade parecem não cobrir a crescente demanda e isso leva inevitavelmente a uma brutal escalada de preços. Por exemplo, já se sabe que a tarifa média de um quarto em 18 de junho próximo, quando se enfrentarão no Maracanã as seleções da Espanha e do Chile, chega a 1.520 reais (633 dólares). Um apartamento de três quartos com vista para o mar na Avenida Atlântica de Copacabana (sem mobiliário) se aluga nessas mesmas datas por 2.850 reais por dia (1.187 dólares).

Outros anunciantes mais comedidos oferecem um apartamento de três quartos no rico Leblon por 16.000 dólares para todo o mês da Copa do Mundo. Na Lagoa Rodrigo de Freitas, um apartamento de luxo custa 250.000 reais (104.166 dólares) durante o mesmo período.

Segundo Cidinha Campos, secretária estadual de Defesa do Consumidor do Rio de Janeiro, a única forma de combater esse fenômeno é que “os cariocas se organizem e tomem suas iniciativas para se proteger desses abusos”. “Por exemplo, evitando o consumo de produtos com preços abusivos ou levando a comida à praia. Tem que acabar a cultura de que levar comida à praia é feio. Como consumidora, todos os dias levo minha comida ao escritório, já que estava gastando 500 reais (208 dólares) por semana para almoçar. É uma loucura.”

FONTE: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/02/13/sociedad/1392329423_491883.html

Vai ter Copa. Só não para você

Evento privado, gasto público, lucro privado

“Ingressos caros, gasto público com lucro privado, violações aos direitos humanos e ataques à democracia. Esse é o grande legado da realização da Copa do Mundo no Brasil. Revertê-lo em ganhos de mobilização política e transformação social é possível”

Edemilson Paraná *

A “Copa das Copas” vai acontecer, já aconteceu, já está acontecendo. Pelo menos para a Fifa. Uma projeção feita pela BDO (empresa de auditoria e consultoria especializada em análises econômicas, financeiras e mercadológicas) aponta que a Copa do Mundo de 2014 no Brasil vai render para a entidade, que supostamente não tem fins lucrativos, a maior arrecadação de sua história: nada menos do que US$ 5 bilhões (cerca de R$ 10 bilhões). O valor é 36% superior em comparação ao montante obtido com o Mundial da África do Sul (US$ 3,6 bilhões), em 2010, e 110% maior do que o arrecadado na Copa de 2006, na Alemanha, que rendeu US$ 2,3 bilhões. Os números foram confirmados pelo secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, em entrevista coletiva realizada em junho de 2013.

Os governos têm feito sua parte para ajudar… os cartolas. Com isenção de cerca R$ 1 bilhão em impostos, o Mundial no Brasil já é um ótimo negócio para a entidade. Ao todo, cerca de R$ 28 bilhões serão gastos em obras de infraestrutura e construção e reforma de estádios para receber o torneio. Desse montante, quase R$ 8 bilhões estão sendo gastos em estádios. Metade desse valor é financiada por bancos federais. Apenas R$ 820 milhões gastos nos estádios foram financiados com recursos privados (segundo valores da CGU). O restante dos recursos foi aportado por governos locais, como é o caso de Brasília, onde o valor do Mané Garrincha passou de R$ 1,2 bilhão.

Cerca de um terço do valor total das obras (R$ 8,7 bilhões) está sendo financiado por bancos federais – Caixa Econômica Federal, BNDES e bancos estaduais. Boa parte desses empréstimos é tomada pelos próprios governos estaduais, sozinhos ou em parcerias com o setor privado, embora alguns empréstimos também sejam contraídos por entes privados (como os mais de R$ 400 milhões liberados pelo BNDES para o Corinthians construir o Itaquerão). E antes que surja o papo de que o dinheiro desses bancos é privado, lembremos que o BNDES, por exemplo, é uma empresa pública. Recebe dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para emprestar em condições privilegiadas a empresários. O fundo é formado por parte da receita de um tributo, a contribuição ao PIS/Pasep, cujo custo é incorporado pelas empresas aos preços dos bens pagos pelos consumidores.

As obras consumirão R$ 6,5 bilhões do orçamento federal e R$ 7,3 bilhões de governos locais (estaduais e municipais). Dos R$ 28,1 bilhões totais, apenas R$ 5,6 bilhões serão recursos privados (que se concentram principalmente nos aeroportos). Balela dizer que não há dinheiro público na jogada. O preço dos ingressos todos nós já conhecemos, as obras de infraestrutura urbana, propagandeados como o grande legado do evento, poucos viram até agora.

Em resumo, a lógica é bastante simples. A Fifa faz uma festa privada e se você quiser sediá-la precisa aceitar as condições da entidade. A verdade é que não há nenhum comprometimento com o desenvolvimento econômico, esportivo ou humano dos países que sediam grandes eventos esportivos.

Não por acaso, a Suécia – que notoriamente tem problemas sociais menos agudos do que os brasileiros – acaba de negar a oportunidade de uma candidatura para sediar as Olimpíadas de 2022. A justificativa é assustadoramente simples: o país tem outras prioridades como habitação, desenvolvimento e providência social.

Gastos incalculáveis: o retrocesso nos direitos humanos

Não bastasse a matemática contábil básica ignorada pelos defensores dos grandes eventos, um conjunto de abusos e violações aos direitos humanos completa o pacote de “gastos” sociais incalculáveis.

Um mapeamento divulgado na Suíça pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop) em parceria com a ONG Conectas, no final de maio passado, calcula que mais de 200 mil pessoas estão sendo despejadas arbitrariamente de suas casas por causa de obras para os preparativos da Copa em todo o Brasil. Durante os preparativos de megaeventos esportivos, estima-se que 15% dos moradores de Seul foram expulsos de suas casas e, na África do Sul, 20 mil pessoas foram despejadas.

Além das milhares de famílias desalojadas, algumas outras pagaram com a vida o preço de obras superfaturadas, feitas às pressas, com baixa remuneração, cargas de trabalho extenuantes e pouca fiscalização. De junho de 2012 a dezembro de 2013, o Brasil registrou sete mortes relacionadas à preparação do país para a Copa do Mundo. Número mais de três vezes maior do que o registrado na África do Sul.

Contra a revolta social produzida por tais abusos, muita repressão. Além de outros milhões de reais gastos com aparato de repressão adicional (bombas de gás, spray de pimenta, armas e balas de borracha, equipamentos de dispersão, entre outros), uma tropa de choque especial com 10 mil homens, especialmente recrutados para isso, será responsável por agir em caso de manifestações nas 12 cidades-sede da Copa do Mundo de 2014.  Além das tropas, robôs irão monitorar por imagens a movimentação de pessoas nos entornos dos estádios, e a vigilância a aplicativos de celulares e mídias sociais já está em andamento. O Exército está a postos e também se prepara para a necessidade de ser convocado a conter as manifestações. O (não) preparo dessas “tropas” para lidar com seus próprios cidadãos exercendo seu livre direito de manifestação, como se fossem inimigos da pátria, já é amplamente conhecido.

No apagar das luzes de 2013, o Ministério da Defesa baixou uma portaria normativa que “Dispõe sobre a Garantia da Lei e da Ordem” pelas Forças Armadas. Entre outras coisas o documento aponta a necessidade de conter “sabotagem nos locais de grandes eventos” e aponta como “força oponente” os “movimentos ou organizações” que causem dificuldades no objetivo de “manter ou restabelecer a ordem pública”.

No Congresso, tramitam mais de 13 propostas que “normatizam” manifestações. As propostas, muitas flagrantemente inconstitucionais, tratam de criminalização, aumento de penas, tipificação de terrorismo, entre outros ataques ao direito de organização social. Além da Lei Geral da Copa, um abuso em si, que já revoga vários direitos democráticos, tramita um projeto de lei no Senado que, entre outras coisas, proíbe greves durante o período dos jogos e inclui o “terrorismo” no rol de crimes com punições duras e penas altas para quem “provocar terror ou pânico generalizado”.

Ganhos inesperados: articulação e mobilização social

Ingressos caros e avanço do processo de elitização do futebol no Brasil, gasto público com lucro privado, violações aos direitos humanos e ataques à democracia. Como pano de fundo desse cenário, um país desigual, com saúde e educação precarizadas e péssimos serviços de mobilidade urbana. O resultado não poderia ser outro que não revolta social.

O combate dos governos e seus aliados às manifestações é de ruborizar pela falta de consistência política. O argumento de que “os protestos causarão prejuízos ao Brasil” até faria algum sentido se os vultosos lucros com a realização do evento não fossem parar no bolso de meia dúzia de gestores, empresários e cartolas em detrimento dos altos preços cobrados de torcedores e contribuintes.

A ideia de que o “movimento é partidário e, portanto, orquestrado para prejudicar a reeleição da presidenta Dilma” desmonta-se diante de uma primeira visita a qualquer um dos protestos: há tudo e todos, diferentes movimentos e colorações ideológicas, trata-se de um espaço amplo, aberto, caótico e fragmentado. Estrutura-se, pois, em anseios legítimos da população brasileira, que se expressam da maneira possível diante do atual quadro de esvaziamento representativo. Se prejudicam a imagem de governos, o problema está, obviamente, nas medidas que estes resolveram adotar à revelia do que precisa e pede o país neste momento, à revelia de nossas reais prioridades.

Chega a ser irônico ver um governo dirigido por um partido que até ontem se apresentava como de esquerda e nacionalista se mobilizar de modo tão uníssono – e por que não dizer, desesperado – em defesa da submissão do Estado e da sociedade na garantia dos lucros de uma instituição privada internacional que concorre na Suíça ao prêmio Public Eye Awards como a pior companhia do mundo, honraria já concedida às “benévolas” Vale do Rio Doce, Shell e ao Banco Goldman Sachs, um dos responsáveis pelo estouro da crise financeira mundial em 2008.

Por fim, o argumento de que os protestos são “autoritários” é risível diante do fato de que em nenhuma etapa do processo – a eleição do Brasil como sede, a aprovação da abusiva Lei Geral da Copa ou a remoção de centenas de milhares de famílias – a população foi consultada. Tudo foi decidido, para variar, entre as cúpulas do poder dominante.

As preocupações dos governos e seus partidos dirigentes, no entanto, têm razão de ser. A revolta crescente aos poucos se organiza politicamente e procura, sim, os responsáveis pelos abusos. Já em 2013 a Ancop (Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa) cumpriu um papel importante nas manifestações de junho lançando o importante questionamento “Copa para quem?”. A articulação, um dos catalisadores das manifestações à época com atos em todo o Brasil, reúne comitês nas 12 cidades-sede da Copa, que por sua vez agregam movimentos sociais, universidades e entidades de sociedade civil que lutam contra a violação de direitos humanos. Poucos ganhos podem ser maiores para uma sociedade do que os de conscientização e organização política em defesa de seus direitos. Esse pode ser o nosso maior legado.

Desde o ano passado, essa articulação vem se ampliando. O debate a respeito dos abusos da realização da Copa do Mundo no Brasil, aos poucos, se desloca ao centro da agenda política. No bradar de vozes opositoras, que já se autonomearam em relação à ação inicial dos comitês, uma consigna se destaca mais do que outras, para o pânico do andar de cima: “Não vai ter Copa”.

Não vai ter Copa?

Tudo somado, os gastos envolvidos, os interesses em jogo e o aparato de repressão mobilizado, é difícil que não haja. Trata-se de ano eleitoral, de uma das Copas mais lucrativas da história e da subjetividade de um país que passou – também graças a insistente propaganda oficial ao longo de anos – a enxergar-se como o país do futebol. Vai, sim, ter Copa. Só não para você.

Para quem ela será, já sabemos. Sabemos também que o preço será alto para todos os lados: governos, empresários, torcedores e manifestantes. Como o cenário não é favorável para nenhuma mudança de rumos na organização do evento, engana-se quem acha que a tensão social diminuirá até lá. Mas será que a palavra de ordem “Não vai ter Copa” é a melhor nesse momento?

Particularmente, creio que não. A consigna “Copa para quem?” denuncia de modo mais claro os problemas que apontamos, articulando-o a outras dimensões de nossas desigualdades estruturais, o que abre cenário para a politização sistêmica desse processo, mesmo após a finalização do evento.

“Não vai ter Copa”, em contrapartida, anima as manifestações para um objetivo que não parece muito crível no momento, encaminhando as reivindicações para uma derrota. Derrotas, sabemos, têm um impacto consideravelmente negativo em um processo de lutas sociais, já que é de vitórias e conquistas, ainda que pontuais, que se alimenta um ascenso político dessa natureza. Denunciar de modo firme e claro os desmandos da realização do evento, desgastando e constrangendo os responsáveis e privilegiados por tais abusos, já aponta uma importante vitória parcial, que pode ser ampliada posteriormente em articulação com outras denúncias, reconfigurando com isso a conjuntura da política brasileira.

Peçamos hospitais e escolas padrão Fifa, moradias para os sem-teto, transparência nos investimentos para a Copa, denunciemos a corrupção, a suspensão da liberdade de manifestação durante a Copa. Dessa forma, temos mais possibilidades de obter algumas vitórias; a maior delas, sem dúvida, será o fortalecimento de um amplo e enraizado movimento de contestação social.

A maioria do povo brasileiro não é contrária à realização da Copa do Mundo no país. É contrária, sim, aos atropelos e usurpações que cercam a organização do evento. Não fosse isso, tal maioria gostaria de uma Copa no “país do futebol”. De alguma forma, então, a palavra de ordem “Não vai ter Copa” pode confundir as coisas e fazer com que uma parcela da opinião pública que poderia apoiar o movimento acabe se opondo a ele, ampliando, inclusive, a violência da repressão. Quem surfa nessa ambiguidade? O governismo mal intencionado e os defensores da realização dos grandes eventos tal qual estão sendo organizados.

De qualquer forma, com a palavra de ordem que for, nosso lado é claro – e não é o lado dos governos e da Fifa. Se a palavra de ordem “Não vai ter Copa” é a quem vem das ruas, não devemos cerrar fileiras com o oportunismo político governista a combatê-la. Podemos e devemos contribuir com a discussão de táticas alternativas, mas o nosso dever é, antes de tudo, a unidade; é estar ao lado daqueles que lutam contra o superfaturamento das obras, a corrupção aberta e o uso de dinheiro público sem um mínimo de respeito às reais prioridades do país, a submissão do governo federal a exigências absurdas da Fifa, as restrições à liberdade de manifestação, às remoções, entre outros inaceitáveis ataques em nome da alegria do futebol. Provemos ao mundo que somos sim, apaixonados por futebol, mas negamos ser humilhados e oprimidos por essa paixão.

 *Edemilson Paraná é vice-presidente do Psol-DF e mestrando em Sociologia na UnB.

FONTE: http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/vai-ter-copa-so-nao-para-voce/