Declaração da Cúpula dos Povos rumo à COP30

Cúpula dos Povos luta por justiça climática – Radis Comunicação e Saúde

Nós, da Cúpula dos Povos, reunidos em Belém do Pará, na Amazônia brasileira, de 12 a 16 de novembro de 2025, declaramos aos povos do mundo o que acumulamos em lutas, debates, estudos, intercâmbios de experiências, atividades culturais e depoimentos, ao longo de vários meses de preparação e nestes dias aqui reunidos.

Nosso processo reuniu mais de 70.000 pessoas que compõem movimentos locais, nacionais e internacionais de povos originários e tradicionais, camponeses/as, indígenas, quilombolas, pescadores/as, extrativistas, marisqueiras, trabalhadores/as da cidade, sindicalistas, população em situação de rua, quebradeiras de coco babaçu, povos de terreiro, mulheres, comunidade LGBTQIAPN+, jovens, afrodescendentes, pessoas idosas, dos povos da floresta, do campo, das periferias, dos mares, rios, lagos e mangues. Assumimos a tarefa de construir um mundo justo e democrático, com bem viver para todas e todos. Somos a unidade na diversidade.

O avanço da extrema direita, do fascismo e das guerras ao redor do mundo exacerba a crise climática e a exploração da natureza e dos povos. Os países do norte global, as corporações transnacionais, e as classes dominantes são os maiores responsáveis por essas crises. Saudamos a resistência e nos solidarizamos com todos os povos que estão sendo cruelmente atacados e ameaçados pelas forças do império estadunidense, Israel e seus aliados da Europa. Há mais de 80 anos, o povo palestino tem sido vítima de genocídio praticado pelo Estado sionista de Israel, que bombardeou a faixa de Gaza, deslocou pela força milhões de pessoas e matou dezenas de milhares de inocentes, a maioria crianças, mulheres e idosos. Nosso repúdio total ao genocídio praticado contra a Palestina. Nosso apoio e abraço solidário ao povo que bravamente resiste, e ao movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS).

Ao mesmo tempo, no mar do Caribe, os Estados Unidos intensificam sua presença imperial. Fazem-no expandindo operações conjuntas, acordos e bases militares, em conluio com a extrema direita, sob o pretexto de combate ao narcotráfico e ao terrorismo, como com a operação recém anunciada “Lança do Sul”. O imperialismo segue ameaçando a soberania dos povos, criminalizando movimentos sociais e legitimando intervenções que historicamente serviram aos interesses privados na região. Nos solidarizamos à resistência da Venezuela, Cuba, Haiti, Equador, Panamá, Colômbia, El Salvador, República Democrática do Congo, Moçambique, Nigéria, Sudão, e com os projetos de emancipação dos povos do Sahel, Nepal e de todo o mundo.

Não há vida sem natureza. Não há vida sem a ética e o trabalho de cuidados. Por isso, o feminismo é parte central do nosso projeto político. Colocamos o trabalho de reprodução da vida no centro, é isso que nos diferencia radicalmente dos que querem preservar a lógica e a dinâmica de um sistema econômico que prioriza o lucro e a acumulação privada de riquezas.

Nossa visão de mundo está orientada pelo internacionalismo popular, com intercâmbios de conhecimentos e saberes, que constroem laços de solidariedade, lutas e de cooperação entre nossos povos. As verdadeiras soluções são fortalecidas por esta troca de experiências, desenvolvidas em nossos territórios e por muitas mãos. Temos o compromisso de estimular, convocar e fortalecer essas construções. Por isso, saudamos o anúncio da construção do Movimento Internacional de Atingidas e Atingidos por barragens, pelos crimes socioambientais e pela crise climática.

Iniciamos nossa Cúpula dos Povos navegando pelos rios da Amazônia que, com suas águas, nutrem todo o corpo. Como o sangue, sustentam a vida e alimentam um mar de encontros e esperanças. Reconhecemos também a presença dos encantados e de outros seres fundamentais na cosmovisão dos povos originários e tradicionais, cuja força espiritual orienta caminhos, protege territórios e inspira as lutas pela vida, pela memória e por um mundo de bem viver.

Depois de mais de dois anos de construção coletiva e de realizar a Cúpula dos Povos, afirmamos:

  1. O modo de produção capitalista é a causa principal da crise climática crescente. Os principais problemas ambientais do nosso tempo são consequência das relações de produção, circulação e descarte de mercadorias, sob a lógica e domínio do capital financeiro e das grandes corporações capitalistas.
  2. As comunidades periféricas são as mais afetadas pelos eventos climáticos extremos e o racismo ambiental. Enfrentam, por um lado, a ausência de políticas de infraestrutura e de adaptação. Por outro, a falta de ações de justiça e reparação, em especial às mulheres, jovens, pessoas empobrecidas e não brancas.
  3. As empresas transnacionais, em cumplicidade com governos do norte global, estão no centro de poder do sistema capitalista, racista e patriarcal, sendo os atores que mais causam e mais se beneficiam das múltiplas crises que As indústrias de mineração, energia, das armas, o agronegócio e as Big Techs são as principais responsáveis pela catástrofe climática em que vivemos.
  4. Somos contrários a qualquer falsa solução a crise climática que venha a perpetuar práticas prejudiciais, criar riscos imprevisíveis e desviar a atenção das soluções transformadoras e baseadas na justiça climática e dos povos, em todos os biomas e Alertamos que o TFFF, sendo um programa financeirizado, não é uma resposta adequada. Todos os projetos financeiros devem estar sujeitos a critérios de transparência, acesso democrático, participação e benefício real para as populações afetadas.
  5. É evidente o fracasso do atual modelo de São cada vez mais recorrentes os crimes ambientais e os eventos climáticos extremos que ocasionam mortes e destruição. Isto demonstra o fracasso das inúmeras conferências e reuniões mundiais que prometeram resolver esses problemas, mas nunca enfrentaram as suas causas estruturais.
  6. A transição energética está sendo implementada sob a lógica capitalista. Apesar da ampliação das fontes renováveis, não houve redução nas emissões de gases de efeito estufa. A expansão das fontes de produção energética acabou por se configurar também como um novo espaço de acumulação de capital.
  7. Finalmente, afirmamos que a privatização, mercantilização e financeirização dos bens comuns e serviços públicos contrariam frontalmente os interesses populares. Nestes marcos, as leis, instituições de Estado e a imensa maioria dos governos foram capturados, moldados e subordinados à busca do lucro máximo pelo capital financeiro e pelas empresas transnacionais. São necessárias políticas públicas para avançar na recuperação dos Estados e enfrentar as      privatizações.

Frente a esses desafios, propomos:

  1. O enfrentamento às falsas soluções de mercado. O ar, as florestas, as águas, as terras, os minérios e as fontes de energia não podem permanecer como propriedade privada nem serem apropriados, porque são bens comuns dos povos.
  2. Cobramos que haja participação e protagonismo dos povos na construção de soluções climáticas, reconhecendo os saberes ancestrais. A multidiversidade de culturas e de cosmovisões, carrega sabedoria e conhecimentos ancestrais que os Estados devem reconhecer como referências para soluções às múltiplas crises que assolam a humanidade e a Mãe Natureza.
  3. Exigimos a demarcação e proteção das terras e territórios indígenas e de outros povos e comunidades locais, uma vez que são quem garantem a floresta Exigimos dos governos o desmatamento zero, o fim das queimadas criminosas, e políticas de Estado para restauração ecológica e recuperação de áreas degradadas e atingidas pela crise climática.
  4. Reivindicamos a concretização da reforma agrária popular e o fomento à agroecologia, para garantia da soberania alimentar e combate à concentração fundiária. Os povos produzem alimentos saudáveis, a fim de eliminar a fome no mundo, com base na cooperação e acesso a técnicas e tecnologias de controle popular. Esse é um exemplo de verdadeira solução para combater a crise climática.
  5. Demandamos o combate ao racismo ambiental e a construção de cidades justas e periferias vivas através da implementação de políticas e soluções ambientais. Os programas de moradia, saneamento, acesso e uso da água, tratamento de resíduos sólidos, arborização, e acesso à terra e à regularização fundiária, devem considerar a integração com a natureza. Queremos o investimento em políticas de transporte público, coletivo e de qualidade, com tarifas zero. Essas são alternativas reais para o enfrentamento da crise climática nos territórios periféricos no mundo todo, que devem ser implementadas com o devido financiamento para adaptação climática.
  6. Defendemos a consulta direta, a participação e gestão popular das políticas climáticas nas cidades, para o enfrentamento às corporações do setor imobiliário que têm avançado na mercantilização da vida urbana. A cidade da transição climática e energética deverá ser uma cidade sem segregação e que abrace a Por fim, condicionar o financiamento climático a protocolos que visem a permanência habitacional e, em última instância, a indenização justa para pessoas e comunidades com garantia de terra e moradia, tanto no campo quanto nas cidades.
  7. Exigimos o fim das guerras e a desmilitarização. Que todos os recursos financeiros destinados às guerras e à indústria bélica sejam revertidos para a transformação desse mundo. Que as despesas militares sejam direcionadas à reparação e recuperação de regiões atingidas por desastres climáticos. Que sejam tomadas todas as medidas necessárias para impedir e pressionar Israel, responsabilizando-o pelo genocídio cometido contra o povo palestino.
  8. Exigimos a justa e plena reparação das perdas e danos impostos aos povos pelos projetos de investimento destrutivos, pelas barragens, mineração, extração de combustíveis fósseis e desastres climáticos. Também exigimos que sejam julgados e punidos os culpados pelos crimes econômicos e socioambientais que afetam milhões de comunidades e famílias em todo o mundo.
  9. Os trabalhos de reprodução da vida devem ser visibilizados, valorizados, compreendidos como o que são – trabalho – e compartilhados no conjunto da sociedade e com o Estado. Esses são essenciais para a continuidade da vida humana e não humana no Isso também garante autonomia das mulheres, que não podem ser responsabilizadas individualmente pelo cuidado, mas devem ter suas contribuições consideradas: nosso trabalho sustenta a economia. Queremos um mundo com justiça feminista, autonomia e participação das mulheres.
  10. Demandamos uma transição justa, soberana e popular, que garanta os direitos de todos os trabalhadores e trabalhadoras, bem como o direito a condições de trabalho dignas, liberdade sindical, negociação coletiva e proteção social. Consideramos a energia como um bem comum e defendemos a superação da pobreza e da dependência energética. Tanto o modelo energético, quanto a própria transição, não podem violar a soberania de nenhum país do mundo.
  11. Exigimos o fim da exploração de combustíveis fósseis e apelamos aos governos para que desenvolvam mecanismos para garantir a não proliferação de combustíveis fósseis, visando uma transição energética justa, popular e inclusiva com soberania, proteção e reparação aos territórios. Em particular na Amazônia e demais regiões sensíveis e essenciais para a vida no planeta.
  12. Lutamos pelo financiamento público e taxação das corporações e dos mais Os custos da degradação ambiental e das perdas impostas às populações devem ser pagos pelos setores que mais se beneficiam desse modelo. Isso inclui fundos financeiros, bancos e corporações do agronegócio, do hidronegócio, aquicultura e pesca industrial, da energia e da mineração. Esses atores também devem arcar com os investimentos necessários para uma transição justa e voltada às necessidades dos povos.
  13. Exigimos que o financiamento climático internacional não passe por instituições que aprofundam a desigualdade entre Norte e Sul, como o FMI e o Banco Mundial. Ele deve ser estruturado de forma justa, transparente e democrática. Não são os povos e países do Sul global que devem continuar pagando dívidas às potências dominantes. São esses países e suas corporações que precisam começar a saldar a dívida socioambiental acumulada por séculos de práticas imperialistas, colonialistas e racistas, pela apropriação de bens comuns e pela violência imposto a milhões de pessoas mortas e escravizadas.
  14. Denunciamos a contínua criminalização dos movimentos, a perseguição, o assassinato e desaparecimento de nossas lideranças que lutam em defesa de seus territórios, bem como aos presos políticos e presos palestinos que lutam por libertação Reivindicamos a ampliação da proteção de defensores e defensoras de direitos humanos e socioambientais na agenda climática global, no marco do Acordo de Escazú e outras normativas regionais. Quando um defensor protege o território e a natureza, ele não protege apenas um indivíduo, mas todo um povo e beneficia toda a comunidade global.
  15. Reivindicamos o fortalecimento de instrumentos internacionais que defendam os direitos dos povos, seus direitos consuetudinários e a integridade dos Precisamos de um instrumento internacional juridicamente vinculante em matéria de direitos humanos e empresas transnacionais, que seja construído desde a realidade concreta das lutas das comunidades atingidas pelas violações cometidas, exigindo direitos para os povos e regras para as empresas. Afirmamos ainda que a Declaração dos Direitos Campesinos e de Outras Pessoas que Trabalham nas Áreas Rurais (UNDROP) deve ser um dos pilares da governança climática. A plena implementação dos direitos camponeses devolve o povo aos territórios, contribui diretamente para a sua alimentação, para o cuidado do solo e o esfriamento do planeta.

Por fim, consideramos que é tempo de unificar nossas forças e enfrentar o inimigo comum. Se a organização é forte, a luta é forte. Por esta razão, a nossa tarefa política principal é o trabalho de organização dos povos em todos os países e continentes. Vamos enraizar nosso internacionalismo em cada território e fazer de cada território uma trincheira da luta internacional. É tempo de avançar de modo mais organizado, independente e unificado, para aumentar nossa consciência, força e combatividade. Este é o caminho para resistir e vencer.

Povos do mundo: Uni-vos”

Lideranças sociais e participantes da Cúpula dos Povos na COP 30 discutem futuro climático e unificam lutas globais

Fotos: Samara Silva/Ag.EficazPress 

BELÉM (PA) – A discussão sobre o futuro climático e social ganhou destaque no Eixo 3 da Plenária da Cúpula dos Povos, com a participação de importantes líderes que defendem uma transformação radical nos modelos econômicos vigentes. O debate reuniu perspectivas globais e de base, focadas na desconstrução do sistema de exploração e comercialização de recursos naturais e na garantia de direitos para os povos do Sul Global.

Exigência de transformação sistêmica e democrática

Fernando Tormos-Aponte, sociólogo político, pesquisador e membro da Just Transition Alliance (Aliança para a Transição Justa), nos Estados Unidos. articulou a necessidade de uma mudança que vá além das soluções de mercado. Sua fala apontou diretamente para a raiz estrutural das crises:

“Nós estamos exigindo ir contra o sistema capitalista, racista e patriarcal que consistentemente prioriza o lucro e a acumulação em detrimento da vida e da natureza. Vemos o impacto desse sistema na privatização de todos os serviços sociais, onde aquilo que não gera lucro não merece atenção. Propomos, portanto, um sistema diferente que não coloque o lucro antes da vida. E para isso temos que ter uma transformação sistêmica. Nós sabemos que essa transformação é um processo que leva a outras pessoas afetadas por essas transições. E essa é uma aposta na democracia.”

A perspectiva da classe trabalhadora brasileira foi trazida por Rosalina Amorim, secretária Nacional de Meio Ambiente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que destacou a urgência de democratizar a energia. Rosalina criticou veementemente a forma como a transição energética tem sido implementada, sem garantir o acesso das comunidades mais distantes e penalizando a classe trabalhadora. Ela reforçou que é preciso estar na linha de frente da discussão para garantir que a energia não se torne mais um fator de exclusão e que a classe trabalhadora não seja a principal vítima desse processo.

O ativista Farai Maguwu, diretor Fundador do CNRG (Centre for Natural Resource Governance), no Zimbábue somou-se à discussão, trazendo a perspectiva africana da luta contra a exploração e comercialização de recursos naturais e os abusos de direitos humanos ligados a esse comércio. Sua atuação, especialmente na denúncia de crimes relacionados a diamantes no Zimbábue, reforça a necessidade de controlar o capital transnacional e garantir a soberania sobre os recursos naturais.

O consenso na Plenária Eixo 3 é que a Transição Justa e Popular deve ser um processo guiado pela democracia, justiça social e pelo abandono de um sistema que coloca o lucro acima da vida.

Em comum: a dor une lutas globais na Cúpula dos Povos

A Plenária do Eixo 3 da Cúpula dos Povos abriu espaço para um momento de fundamental importância: o compartilhamento direto das dores e injustiças sentidas em diferentes partes do mundo. A força desse momento reside na constatação de que, embora atuem em países e organizações distintas, os ativistas são movidos por um impulso comum: o enfrentamento às mazelas geradas pelo mesmo sistema capitalista e exploratório.

As narrativas convergiram para uma única direção, provando que a crise é sistêmica. Maria das Graças Lima Bento, atingida pelo crime da Samarco, VALE e BHP, barragem de Fundão em 2015, em Mariana, trouxe o drama vivido em Barra Longa, Minas Gerais. Ao descrever a devastação da lama que comprometeu os terrenos de plantio e a renda familiar, ela ressaltou que a luta pelos direitos conquistados — como o Programa de Transferência de Renda (PTR) — já dura dez anos, e que sua participação é em solidariedade a todos os atingidos, seja por barragens ou outras formas de exploração.

Essa luta contra a negação de direitos encontra eco nas críticas diretas às estruturas de poder. Moira, ativista Mapuche da Patagônia, fez grande apelo pela mudança de paradigma político, defendendo que a terra seja reconhecida como sujeito histórico e social nas discussões democráticas, e não apenas as pessoas. Ela criticou duramente os atuais “modelos de países que negam o direito dos povos indígenas e, sobretudo, que negam a terra”, classificando as nações sul-americanas como “repúblicas coloniais”.

A responsabilidade global por essa estrutura foi destacada por Tyrone Scott, da organização britânica War on Want. Scott definiu a Cúpula como um processo coletivo de imaginação e organização dos movimentos da América Latina, África, Ásia e Europa que se recusam a ver a ideia de transição ser “capturada” pelo status quo. Scott chamou a atenção para a responsabilidade histórica e contínua do Norte Global sobre o caos climático e a morte ecológica, defendendo que não pode haver transição justa no Sul sem que as nações e corporações ricas se contabilizem por terem causado a crise.

Em essência, as falas, unidas pela mesma motivação, ecoam a crítica feita por Rosalina Amorim (CUT Brasil) em outro momento da plenária: a rejeição a qualquer transformação energética que seja implementada sem garantir o acesso às comunidades mais distantes ou que penalize a classe trabalhadora, reforçando a urgência da democratização da energia e dos recursos. O clamor coletivo é claro: a dor da exploração capitalista é o motor para a construção de uma frente unificada por um futuro justo.

Encerramento

Com a conclusão das contribuições, o Eixo da Transição Justa, Inclusiva e Popular se encerra, celebrando a Unidade e a Esperança que marcam os espaços da Cúpula dos Povos. O documento de síntese, enriquecido pelos aportes de quase 30 ativistas, seguirá agora para a Declaração Final, e todos os participantes são convidados a se dirigirem à Tenda Solidariedade, onde se encontrarão com os demais eixos em um passo crucial para a consolidação de uma frente unificada de luta.


Fonte: Ascom Operativo Nacional da Cúpula

Mobilização histórica em Belém por justiça climática global tem intensa programação paralela à COP30

Visão panorâmica da Estrutura da COP_Hangar – Foto Zé Netto

Organizada há mais de dois anos e construída coletivamente por cerca de 1.100 movimentos sociais, organizações comunitárias, entidades territoriais e redes internacionais de defesa dos direitos humanos e da justiça climática, de 62 países, a Cúpula dos Povos na COP30 se apresenta como uma resposta autônoma e popular à 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30).

O evento ocorrerá de 12 a 16 de novembro próximo, em Belém/PA, e nasce do entendimento de que a crise climática não pode ser tratada apenas como um problema técnico ou diplomático, mas como uma questão profundamente social, vivida nas comunidades e diretamente relacionada às desigualdades históricas que afetam povos originários, populações tradicionais, juventudes periféricas, trabalhadores/as do campo e da cidade.

Ao contrário da Conferência oficial, estruturada em espaços de negociação dominados por governos e corporações, a Cúpula dos Povos se estabelece num território político autônomo, direcionado à construção coletiva de soluções elaboradas a partir das experiências concretas de quem enfrenta cotidianamente enchentes, secas, contaminação industrial, avanço do agronegócio, expulsões territoriais e violações ambientais. Por isso, a Cúpula é apresentada não como um evento paralelo, mas como o verdadeiro palco popular da justiça climática.

A mobilização surge em um momento de forte cobrança internacional sobre o papel do Brasil na presidência da COP 30. Depois de uma COP 29 considerada decepcionante pelos movimentos sociais, sobretudo,  pela ausência de metas vinculantes de financiamento climático e pela ampla margem dada a empréstimos que podem aumentar a dependência econômica dos países mais vulneráveis, cresce a expectativa de que o país possa exercer um protagonismo mais coerente com sua importância socioambiental.

Os movimentos sociais defendem que o Brasil só poderá liderar a agenda internacional se reconhecer e dialogar diretamente com os povos que protegem a Amazônia e demais biomas. Desde 2023, mais de 500 organizações já assinaram a carta política da Cúpula, que foi entregue ao presidente Luiz Inácio LULA da Silva, ao Itamaraty e aos órgãos operacionais ligados à COP 30. O documento destaca que “países tomadores de decisão têm se omitido ou apresentado soluções absolutamente ineficientes”, ao mesmo tempo em que “investimentos que alimentam as mudanças climáticas têm crescido”, enquanto direitos territoriais seguem ameaçados.

A experiência da Cúpula dos Povos se inspira na mobilização realizada durante a Rio+20, em 2012, quando mais de 20 mil pessoas construíram um espaço de formulação popular que tensionou a agenda oficial das Nações Unidas e consolidou uma referência histórica de resistência global. Agora, porém, a dimensão é ainda maior: a expectativa é reunir 30 mil pessoas em um encontro guiado por seis eixos centrais que estruturam as convergências políticas e territoriais do evento.

O que a Cúpula dos Povos na COP30 pauta?

Os eixos abrangem desde a defesa da soberania alimentar e dos territórios até a transição energética justa, o enfrentamento ao poder corporativo, a democratização do acesso aos bens comuns e a luta contra o racismo ambiental. Neles também está o compromisso de promover soluções climáticas baseadas nos modos de vida tradicionais, reafirmando que as respostas à crise estão nos territórios, e não nos mercados financeiros ou nos laboratórios corporativos.

Sara Pereira, da FASE Programa Amazônia, resume o sentido dessa centralidade: “Não é possível pensar numa COP 30 em que a discussão da pauta climática não seja pautada na justiça climática. Não haverá transição justa enquanto não houver direitos garantidos aos povos tradicionais”. Para ela, os territórios já produzem a solução concreta que o mundo procura: “Esses territórios manejam a floresta, manejam as águas de forma equilibrada”.

 Marcio Astrini, do Observatório do Clima, reforça que a Cúpula cumpre um papel histórico na disputa da narrativa global: “A participação dos movimentos sociais é crucial para disputar a agenda climática e garantir que os recursos sejam investidos corretamente, ajudando a diminuir as desigualdades sociais e não as aumentar”.

Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Cúpula dos Povos está focada na participação direta da sociedade civil e por isso a programação foi construída para fortalecer o protagonismo de quem enfrenta os impactos da crise climática no cotidiano, e não daqueles que apenas negociam soluções no plano institucional.

 Crianças e adolescentes também se mobilizam para discutir temas durante a COP-30

Pela primeira vez desde a realização da primeira Cúpula dos Povos, em 1992, crianças e adolescentes de organizações da sociedade civil, estarão concentrados  no campus Guamá da UFPA. Terão um espaço de protagonismo dentro da programação para opinarem sobre os temas que serão debatidos na COP-30, com cirandas, rodas de conversa, música, danças e outras atividades com metodologia adaptada para crianças desde a primeira infância até a adolescência.

Salomão Hage, professor da Universidade Federal do Pará e coordenador-geral da Cúpula das Infâncias, explica que o propósito de realizar um movimento específico com e para as crianças surgiu do consenso de que não é possível discutir temas como justiça social, mudanças climáticas, racismo e justiça ambiental e outros assuntos da agenda do clima sem garantir a voz e a participação de quem, de fato, terá seu futuro e desenvolvimentos mais afetados por qualquer decisão tomada na atualidade. “O movimento da infância precisa estar envolvido no debate autônomo feito durante a Cúpula dos Povos.  E as crianças e adolescentes devem participar de modo livre e sem intermediários.”

Programação da Cúpula dos Povos na COP30

O início das atividades acontece no dia 12 de novembro, (quarta-feira) com a abertura popular que marca simbolicamente o começo das mobilizações. Esse primeiro momento será voltado ao acolhimento das delegações, à chegada dos movimentos e à criação de um ambiente coletivo de convivência, escuta e celebração. Intervenções culturais, rituais tradicionais e atos de abertura apresentarão a proposta da Cúpula e reafirmarão sua autonomia em relação ao espaço oficial da COP 30.

Barcos vindos de diversas comunidades ribeirinhas vão chegar em Belém nesta data. Das 9h às 12h está prevista uma Barqueata no Rio Guamá, com a participação de aproximadamente 150 embarcações. Das 15h às 17h acontece o momento de acolhida das delegações no palco principal onde haverá uma grande concentração de pessoas para a abertura da Cúpula dos Povos entre 17 e 19h. O primeiro dia será encerrando com um grande show cultural no palco principal popular.

No dia 13 de novembro, (quinta-feira), começam as atividades temáticas articuladas em torno dos eixos de convergência do evento. Oficinas, rodas de diálogo, plenárias e trocas de experiências serão conduzidas com base nos saberes territoriais, fortalecendo a conexão entre luta climática e justiça social. Essa etapa inicial das discussões tem como objetivo identificar os principais desafios enfrentados pelas comunidades e mapear as soluções já existentes nos territórios. Das 8h30 às 12h haverá as plenárias mundiais sobre os eixos (1, 2 e 3) Soberania, Reparação e Transição, respectivamente. Teremos também a Cúpula das Infâncias e a Feira Popular. No período da tarde, entre 14 e 18h, atividades de Enlaces dos Eixos de Convergência e à noite, das 19h às 22h, atividades culturais, sessões informativas sobre as negociações e mobilizações.

O terceiro dia 14 de novembro (sexta-feira), será dedicado à consolidação das propostas surgidas nas atividades anteriores. Esse é o momento de síntese política, no qual os conteúdos levantados pelos movimentos começam a ser organizados em contribuições que irão compor a declaração final. Grupos de trabalho e assembleias temáticas serão responsáveis por dar corpo às reivindicações e prioridades que serão apresentadas ao mundo. Assim, das 8h30 às 12h, os trabalhos retornam com o Eixo 4 – Internacionalismo; Eixo 5 – Cidades e Eixo 6, Mulheres.  Haverá Intervenções culturais ao longo das plenárias e a Cúpula das Infâncias. No período da tarde, das 14h às 16h, atividades Enlaces dos Eixos de Convergência, Assembleia dos Movimentos Sociais, Seminário “Saúde e Clima”. E das 16h às 18h – Plenária final – apresentação das sínteses dos eixos e consolidação da declaração dos Povos.

Em 15 de novembro (sábado), acontece a grande marcha popular, ato de caráter internacional e público. Essa mobilização reunirá povos originários, quilombolas, juventudes, trabalhadores urbanos e rurais, organizações feministas, coletivos ambientais, sindicatos e redes internacionais. A marcha expressa a voz coletiva da Cúpula e marca o ponto mais visível de demonstração popular, lembrando que a justiça climática está diretamente ligada à defesa da vida e dos territórios. A Marcha Unificada acontecerá das 8h30 às 11h, com expectativa de reunir mais de 20 mil pessoas. Na sequência haverá uma coletiva de imprensa em que os porta-vozes estarão à disposição para informes e esclarecimentos sobre as principais discussões da Cúpula dos Povos.

Por fim, no dia 16 de novembro (domingo), ocorre o encerramento da programação com a leitura e apresentação da declaração final construída ao longo da Cúpula. O documento sintetizará as propostas debatidas nos eixos, reforçando compromissos e apontando caminhos para uma transição justa baseada na soberania dos povos, na proteção dos territórios e no fim das falsas soluções corporativas. Das 9h às 11h, haverá uma audiência pública com a presidência da COP para apresentação da agenda política da Cúpula dos Povos e logo após haverá o ato de encerramento. À tarde, às 14h, acontecerá um Banquetaço na Praça da República.

 Mais do que uma série de atividades, a programação da Cúpula dos Povos reflete uma forma diferente de pensar o clima: de baixo para cima, com protagonismo popular e territorialidade. Cada dia da programação é uma etapa viva de construção coletiva e demonstra que o enfrentamento à crise climática passa, necessariamente, pelo fortalecimento das comunidades que já protegem e regeneram os biomas. A Cúpula convoca a sociedade a participar não como espectadora, mas como sujeito ativo na construção de um outro modelo de futuro.

Boa ideia x oportunidade perdida: a Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU

unplashFoto: Mathias Reding, Unsplash

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Por Elisabetta Recine

Já ao ser anunciada pelo Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, no final de 2019, a Cúpula Mundial sobre Sistemas Alimentares, que acontece em setembro de 2021, gerou questionamentos por desconsiderar instâncias existentes e processos em andamento do próprio sistema da ONU. Considerando que os sistemas alimentares impactam direta ou indiretamente em todas as dimensões da agenda de desenvolvimento sustentável para 2030, a Cúpula tem o objetivo anunciado de apresentar uma agenda de ações para impulsionar o alcance dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Atualmente, há inúmeras concepções de sistemas alimentares. Para a Cúpula foi adotado que ‘sistema alimentar’ se refere ao conjunto de atividades envolvidas na produção, transformação, transporte e consumo de alimentos. As grandes questões mundiais e nacionais como crise climática, devastação ambiental, fome, obesidade, fazem o tema  ganhar importância incontestável. O relatório da revista Lancet sobre “sindemia global” argumenta que os desafios acima têm como determinante comum, justamente, o sistema alimentar agroindustrial. Portanto, nada mais potencialmente oportuno que uma ampla discussão para apontar caminhos de transformação profunda.

No entanto, o processo de organização da Cúpula de Sistemas Alimentares, sua coordenação e composição das diferentes equipes levantam dúvidas quanto aos seus resultados. A coordenação geral está nas mãos de Agnes Kalibata, ex-presidenta da Aliança para a Revolução Verde na África (AGRA) e não são públicos os critérios utilizados para composição do Grupo Científico e dos cinco grupos temáticos responsáveis pelo detalhamento das propostas que comporão o documento final.

Apesar de estar sendo anunciada como a “Cúpula dos Povos”, o Mecanismo da Sociedade Civil do Comitê de Segurança Alimentar da ONU faz duras críticas ao processo por estarem “escolhendo a dedo” as representações deste setor. Os movimentos sociais e organizações que defendem transformações profundas nos sistemas alimentares decidiram não participar do processo oficial e denunciam sua captura corporativa. Esta captura se expressa na própria linguagem, quando as grandes bandeiras da sociedade civil são utilizadas, mas esvaziadas de sentido; no uso de evidências que foram geradas por pesquisadores financiados por aqueles que se beneficiam dos resultados obtidos; nos processos decisórios onde o setor privado e suas fundações têm igual ou maior poder que governos.

A análise dos documentos atualmente disponíveis indica que as propostas a serem apresentadas poderão ampliar as iniquidades e dependência dos povos e países  por expandirem processos já em andamento nos sistemas alimentares como concentração, desmaterialização, digitalização e financeirização.

Há um conjunto de visões e propostas que, infelizmente, a Cúpula não irá atender. A alimentação como um direito fundamental e não como uma mercadoria é uma dessas visões. O direito dos povos de definirem suas práticas de produção e consumo e terem as condições adequadas para exercê-las é outra visão não atendida, assim também como a proposta de  mudança do paradigma que rege os sistemas alimentares na direção de uma abordagem holística, multissistêmica e agroecológica. A base desta transformação é uma governança que tenha sua centralidade nos direitos humanos, na igualdade de gênero, na autonomia das comunidades, na responsabilização e responsabilidade intergeracional; na democratização da tomada de decisões enraizada no interesse e bem-estar públicos. Com cartas já marcadas, a Cúpula perde a chance de discutir esses processos — e de propor uma mudança no nosso sistema.

Sobre a autora

Elisabetta Recine é docente da Universidade de Brasília e integra o Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (OPSAN/UnB). Integrante de diversos coletivos como Núcleo Nacional da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, Grupo Coordenador do GT de Alimentação e Nutrição da Abrasco e Comissão Organizadora da Conferência Popular pela Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

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Este conteúdo foi originalmente produzido e publicado pela Agência Bori [Aqui!].