CNPq acaba de atingir um iceberg: o mundo dos CVs Lattes turbinados por trash science

Uma matéria assinada pela jornalista Ana Botallo e publicada pelo jornal Folha de São Paulo abordou hoje algo do qual este blog já vem sendo ocupando desde a sua criação, qual seja, o desvirtuamento do processo de publicação científica que acaba de atingir o quase sagrado Curriculo Lattes. 

Segundo a matéria apenas em 2024, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) recebeu recebeu 101 denúncias por irregularidade, fraude, plágio ou outros problemas éticos envolvendo pesquisadores que têm seus currículos cadastrados no país. A matéria informa que a metodologia atual de análise de dados foi implementada em 2024, quando houve uma mudança na gestão da área técnica responsável. Em 2023, foram 37 denúncias recebidas, mas segundo o órgão os números não são comparáveis, pois o ano anterior não contabilizou as denúncias recebidas pela plataforma Fala.Br.

Dessas 101 denúncias, o setor responsável pelas apurações constatou que pelo menos 44 currículos tinham inconsistências que puderem ser corrigidas por serem, digamos, erros clericais. No entanto, 10 pesquisadores tiveram o seu Lattes bloqueado, enquanto 3 tiveram a denúncia transformada em procedente, com a suspensão temporária da bolsa até a resolução do objeto da denúncia.

Débora Menezes, diretora de Análise de Resultados e Soluções Digitais do CNPq, fez questão de mencionar que o órgão não teria poder policial para, digamos, investigar mais amplamente a situação, especialmente porque o volume de atualizações torna isso praticamente inviável. Como eu já ouvi esse argumento antes, eu diria que talvez tenha chegado a hora do CNPq e de outras agências de fomento tomarem a situação com a seriedade com que ela merece, ainda que não precisem agir como forças policiais.

Ao contrário do que afirmou, a diretora de Análise de Resultados e Soluções Digitais do CNPq, não creio que estejamos vivenciando poucos casos de ” dois, três pesquisadores que ‘conhecem o caminho das pedras’, sabem como aumentar [o número] de publicações, enganar pareceristas”.  Me parece que a situação é muito mais amplamente disseminada, e o que acontece é que os pesquisadores dispostos a denunciar os malfeitos de seus pares é que são poucos. O fato é que as aludidas 101 denúncias são apenas a ponte de um iceberg gigante que tem flutuado não dentro de águas oceânicas, mas diante de nossos olhos.  Essa situação decorre de apoios explícitos (outros nem tanto) a que se aumente a produção científica como forma de mostrar um nível de produtividade que não tem se transformado em qualidade, muito pelo contrário.

Ao fato de que as agências de fomento, não apenas as brasileiras, optaram por premiar os pesquisadores com mais publicações, a despeito da qualidade duvidosa dela, se somou o surgimento de uma indústria marrom das publicações científicas sob a capa da regra dourada do acesso aberto. Com isso, qualquer um que se disponha a pagar os chamados APCs (author publication charges) poderia, assim por se dizer, investir e colher os frutos desejados, seja na forma de bolsas de pesquisa ou no financiamento de projetos de pesquisa de qualidade altamente duvidosa, muitas vezes falsificada e adulterada pelo uso de Inteligência Artificial (IA). O que começou na forma da chamada “Salami Science” se transformou em uma complexa indústria em que se compram citações e co-autorias, como já abordei em diversas publicações anteriores aqui neste blog.

A questão agora é sobre o que os dirigentes das nossas agências de fomento irão fazer para estabelecer novos mecanismos de premiação que coloquem a qualidade da produção científica acima da quantidade. É que essa mudança não for feita, o pouco investimento que se faz em ciência e tecnologia no Brasil irá pelo ralo, premiando uma quantidade crescente de publicadores hiperprolíficos cujo peso científico no cenário internacional é, no mínimo, irrelevante. Como somos um país que necessita urgentemente de produzir ciência que auxilie o processo de desenvolvimento nacional.  Assim, não fazer nada para reverter o curso da situação não pode ser um opção.

Finalmente, me parece urgente que as universidades e institutos de pesquisa que ainda não possuam comitês de integridade da pesquisa (quantos será que já estabeleceram esse mecanismo?), os criem de forma urgente. É que o dever e a obrigação de garantir que não se está disseminando lixo científico como se fosse ciência tem que começar dentro das unidades em que os pesquisadores estão lotados.   E eu ainda digo mais, se não forem criados espontaneamente, que o Ministério de Ciência e Tecnologia determine a obrigatoriedade da criação como condição “sine qua non” para o recebimento de verbas federais para pesquisa.  O quanto antes, melhor.

Abraham Weintraub é apenas o sintoma de uma doença mais grave

weintraub olhoAbraham Weintraub, Mestre em Administração na área de Finanças pela Faculdade Getúlio Vargas e professor da Unifesp, está ministro da Educação no governo Bolsonaro, onde tem causado graves danos às universidades públicas

Acostumado a ser avaliado nas variadas esferas que compõe a vida de um professor universitário, sempre me fascino com o fato que temos um ministro da Educação, o “professor” Abraham Weintraub, cujo CV Lattes (uma espécie de pedra filosofal da ciência brasileira) não alcança nem os de vários dos meus orientandos. Aliás, noto com curiosidade que Weintraub não atualiza o seu CV Lattes desde o longínquo dia de 07  de março de 2017; coisa que não me seria permitida já que como membro de dois programas de pós-graduação não me seria permitida por causa das cobranças feitas pelo processo de avaliação realizada pela “Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior” (CAPES), agência que, interessantemente, está subordinada ao mesmo ministério que comandado por ele.

Eu me pergunto por que depois de tanto tempo trabalhando para desmanchar o sistema universitário que é a base fundamental do sistema nacional de ciência e tecnologia, não há uma exposição mais contundente das limitações acadêmicas de Abraham Weintraub, já que sua inapetência para o uso correto da língua portuguesa, ele mesmo já demonstra cotidianamente nas redes sociais.  Esse silêncio explica, ainda que parcialmente, toda a desenvoltura com que Weintraub consegue agir, seja atacando ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ou toda uma área de conhecimento que é o das Humanidades.

A verdade é que se o Brasil fosse um país que respeitasse minimamente o seu sistema educativo, Abraham Weintraub não seria ministro da Educação, nem tampouco seria docente em uma universidade pública, já que seu despreparo acadêmico é evidente. Mas como estamos no Brasil, Weintraub é ambas as coisas, sem que ninguém se dê ao trabalho de perguntar sobre como isso é tolerado pelos cardeais que ocupam as direções das organizações acadêmicas brasileiras compostas pelos personagens mais ilustres da ciência brasileira. A verdade é que Abraham Weintraub é muito fraco até para levar a cabo o projeto de privatização para o qual ele foi colocado no posto de ministro da Educação para executar.

Mas já conheci muitos Weintraubs ao longo dos meus 40 anos de vida universitária, desde que adentrei os bancos escolares da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E após encontrar os incontáveis similares de Abraham Weintraub, a única explicação que eu tenho é que há um molde de ondes esses personagens emergem, pois eles são onipresentes, sempre com posições que a maioria prefere descontar como “malucas” ou “excêntricas”, como se a loucura concedesse uma espécie de passe livre a posturas que vão de encontro ao que as universidades deveriam oferecer em termos da necessária construção de um sistema acadêmico e científico que possa contribuir para um modelo societário que nos permita desmantelar o que aí está e, que, claramente serve apenas a uma minoria privilegiada.

O interessante é que esses personagens que seguem o molde acadêmico “a la Weintraub” não falham. Hoje ao ler que um outro grupo de militares de pijama havia divulgado outro manifesto contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, e que entre os aderentes havia uma “professora doutora”  fui verificar o quilate do CV Lattes da signatária. E não deu outra, a produção mostrada por ela é pouco melhor do que a registrada por Weintraub. A peculiaridade em relação a essa outra personagem foi descobrir que ela é integrante da Academia Brasileira de Defesa, da qual é “Acadêmica Perpétua” (seja isso lá o que for). E a partir daí, ela se soma na tentativa de intimidar o STF. No melhor estilo Weintraub.

Em comum o que os “Weintraubs” têm é seu evidente desprezo pelo que outros conquistaram a mais a partir do próprio esforço, bem como a tentativa de impor aos outros aquelas tendências obscuras que possuem dentro de si.  Entretanto, o problema real é que, estando na posição de ministro da Educação, Abraham Weintraub não só causa danos incomensuráveis ao que se levou tanto tempo para construir, mas como habilita os seus assemelhados a se portarem como seus representantes direitos dentro das instituições onde estão, em uma espécie de oficialização do besteirol como critério relevante para definir a qualidade acadêmica.

multa weintraub

Governo do Distrito Federal multou Abraham Weintraub por não usar máscara em público

Por último, acabo de saber que Abraham Weintraub foi multado pelo governo do Distrito Federal por ter comparecido ontem sem máscara a uma manifestação organizada pelos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Esse tipo de punição, ainda que irrelevante do ponto de vista financeiro, explicita ainda mais a essência do que este personagem representa. É que se nem em meio a uma pandemia mortal, que já ceifou mais de 40.000 mil vidas apenas no Brasil, o sujeito se adequa a regras básicas de civilidade,  como aceitar que ele seja ou esteja ainda na posto que está? 

Produção acadêmica e lixo científico no Brasil

Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo no dia 06/01/15, o físico Rogério Cerqueira Leite, professor emérito da Universidade de Campinas (UNICAMP), e membro  do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq) levantou uma lebre que há muito está sendo falada em voz baixa nos corredores das universidades brasileiras, mas que até agora era quase um tabu (Aqui!), qual seja, o baixo impacto da maioria das publicações produzidas pelas nossa comunidade científica.  Em seu arrazoado construído a partir de um levantamento feito pela revista britânica “Nature”, Cerqueira Leite apontou que o Brasil aporta 2,5% das publicações indexadas em revistas internacionalmente, atrás até do Chile. Além disso, Cerqueira Leite também notou que boa parte do que é incluído nos currículos dos pesquisadores brasileiros se dá na forma de jornais openscience (abertos), e que a maioria dos artigos não passa mesmo é de lixo científico.

O que Cerqueira Leite não disse é que essa situação se dá às barbas, e muitas vezes sob impulso das duas principais agências de fomento à produção científica no Brasil,  o CNPq e a CAPES. O fato é que essas agências foram tomadas pela lógica da quantidade para ocultar a falta de qualidade que decorre do contínuo sucateamento financeiro e intelectual das universidades brasileiras, especialmente em anos da vigência da máxima “Brasil grande, Estado pequeno” que se instalou após as reformas neoliberais impostas no governo de Fernando Collor de Melo.  

Esta realidade é hoje conhecida até do mais jovem pesquisador que está iniciando os seus estudos de Iniciação Científica, e foi elevada aos momentos quase sacralizados pelo Currículo Lattes, que se tornou a principal forma de se obter recursos, cada vez mais escassos diga-se de passagem, e que acabam ficando quase sempre nas mesmas mãos.  Além disso, qualquer avaliação que seja feita hoje pela CAPES e pelo CNPq irá utilizar o total de produções, seja o artigo publicado na Nature ou no “Journal of Applied Sciences da Universidade Federal de Atol das Rocas”.  Mas o pior é que dai decorre uma lógica cínica de que é preciso publicar, seja lá o que for, em nome da sobrevivência. E ai de quem quiser refletir ou criticar essa hegemonia quantitativa!

É dessa adesão quase irrefletida a princípios quantitativos para se aferir mérito que decorre a adesão a pseudo-revistas científicas publicadas em prédios localizados em algum bairro central em países como Romênia, Índia e China. E como, apesar da lembrança colocada no momento do envio do CV Lattes ao CNPq que falsidade ideológica é crime, punições por fraude científica são quase tão raras quanto prisão por crime do colarinho branco. Em função disso, o que se vê é uma inundação de pseudo-artigos que aparecem normalmente em revistas que são colocadas em listas internacionais como devendo ser evitadas por suspeitas de serem fajutas (Aqui!).

Sair dessa cultura de quantidade sobre qualidade não será fácil, pois se prende a uma lógica de mérito que está institucionalizada. Entretanto, se não houver a devida disposição para enfrentar o problema, a ciência brasileira continuará num processo de auto-enganação cujo resultado final é nos manter como um país periférico na produção acadêmica qualificada e, pior, imerso nas profundas desigualdades sociais e econômicas que se mantém intactas por causa dessa situação científica capenga.

Aproveitando a deixa, ainda digo que se alguém está surpreso no número de notas “zero” na prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), esta surpresa seria ainda maior se fossem lidas algumas dissertações e teses, e artigos científicos produzidos até nas melhores universidades brasileiras. A baixa proficiência no uso da língua portuguesa é de tal proporção que chega a ser assustador para uma pessoa que, como eu, teve pais cuja escolaridade não passou dos dois anos iniciais do antigo ensino primário. É que, em comparação, meus pais tinham melhor controle e garbo no tratamento da língua portuguesa!  

Agora, parafraseando Karl Marx, para evitar jogar a criança fora com a água suja do banho, eu diria que a saída para esta armadilha criada por quem quer destruir o nosso incipiente parque científico nacional será exigir que se reverta a lógica do mérito a partir de critérios que coloquem a importância e a necessidade de uma produção intelectual que sirva efetivamente para resolver os graves problemas que afligem o Brasil.  E aqui há que se valorizar sim a produção científica qualificada, e que esteja submetida a critérios de robustez, independente da disciplina em que estiver incluída. Do contrário, continuaremos a produzir lixo acadêmico e a sermos motivo de escárnio. E, o que é pior, afundados num ciclo social que mistura pobreza, segregação e violência.