Um epitáfio para Paulo Roberto Moreira

Na maioria das vezes, a morte de qualquer pessoa acaba sendo mais sentida dentro do seu círculo familiar.  Mas quando essa pessoa se insere dentro de comunidades maiores do que se sua própria família, a sensação de perda acaba se alargando.  Em uma instituição universitária relativamente pequena como é o caso da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), quando um dos nossos membros falece há sempre uma inevitável sensação de perda coletiva.  Mais ainda quando a pessoa esteve entre nós executando suas tarefas de forma eficiente e com requintes de gentileza e civilidade.

Por isso, o anúncio da morte do servidor Paulo Roberto Moreira, o Paulinho, acabou pegando muita gente de surpresa e com uma inevitável sensação de perda.  Conheci o Paulo Roberto Moreira assim que ele ingressou no nosso quadro de servidores em 2000.  Assim, ainda que eu não tenha tido contato com ele nos últimos anos após sua lotação na Agência de Inovação da Uenf, tenho dele a lembrança de um servidor que não recusava dar informações precisas a quem as solicitava.

Eu diria que o Paulo Roberto era o reverso da imagem que os detratores do serviço público gostam de colar nas costas dos servidores públicos. Ele era eficiente, discreto e comprometido com suas tarefas cotidianas.  E cumpria suas obrigações com ar de gentileza que tornava fácil a resolução de problemas complexos.

Na aula inagural ministrada por Darcy Ribeiro em 1993, o nosso fundador disse que universidades não feitas por prédios novos e equipamentos caros, mas por pessoas. Naquele dia Darcy disse que não queria que ninguém se deixasse enfeitiçar pelas coisas que compunham a Uenf, pois as pessoas é que faziam a coisa andar.  Esse ensinamento de Darcy Ribeiro não poderia ser mais adequado para expressar a importância que Paulo Roberto Moreira teve em seus 25 anos servindo com toda dedicação à causa da construção da Uenf.  Espero que ele seja sempre lembrado por isso.

Um epitáfio para Gilca Alves Wainstein

Brasil perde o talento da professora bocaiuvense Gilca Alves Wainstein – Em  Cima da Notícia

Faleceu no última dia 09 de setembro aos 89 anos, a professora Gilca Alves Wainstein, presidente da Fundação Estadual do Norte Fluminense (Fenorte) no momento da instalação da Universidade Estadual do Norte Fluminense. Não a conheci pessoalmente, pois quando cheguei a Campos dos Goytacazes em janeiro de 1998, ela já não presidia a Fenorte. Mas quem conviveu com ela nos anos iniciais da Uenf, sabe que ela teve um papel fundamental para viabilizar um projeto que era muito complexo e difícil de compreender tamanha era a transformação que Darcy Ribeiro propunha na forma em que a nova universidade deveria funcionar.

Mas a história diz que a genialidade de Darcy só pode se transformar em materialidade uenfiana por causa da experiência e da obstinação de Gilca Alves Wainstein. Ela trouxe para a Fenorte, a experiência de ter sido diretora da Fundação de Apoio da UFMG (Fundep). Também na UFMG teve papel decisivo na consolidação do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e do Departamento de Química. 

Gilves Alves Wainstein era natural de Bocaiúva, município que fica distante apenas 48 km de Montes Claros, cidade natal de Darcy Ribeiro.  Talvez por essa proximidade geográfica, a relação dos dois era de admiração, como demonstrado em uma entrevista realizada em 1984 em que Darcy fez o papel de entrevistador de Gilca, tendo sido mediada pelo então reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professor Charley Fayal de Lyra (ver vídeo abaixo).

Os diálogos travados entre Gilca e Darcy quase uma década antes da implantação da Uenf já mostrava que ali estavam dois educadores com uma visão que transcendia a mesmice e as rotinas que até hoje impedem que a universidade brasileira se desenvolva plenamente.  A comunhão de ideias entre Darcy e Gilca mostrada nessa entrevista em torna da necessidade de uma universidade que subvertesse a ordem estabelecida já antecipava o papel que eles teriam na criação da Uenf. 

História sendo feita: Gilca Wainstein ao lado de Darcy Ribeiro, Wanderley de Souza (primeiro reitor da Uenf) observam Oscar Niemeyer mostrando a planta do futuro campus da Uenf em Campos dos Goytacazes

Pelo papel que Gilca Alves Wainstein teve na criação da Uenf, deixo aqui um salve. E que possamos estar à altura de sua visão de universidade, não apenas agora, mas sempre.

Nos 32 anos da Uenf é urgente redescobrir Darcy Ribeiro e praticar sua rebeldia insurreta

A Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) completa 32 anos neste sábado friorento para os padrões campistas, e as celebrações oficiais já se iniciarem ontem com uma magnífica apresentação na Casa de Cultura Villa Maria do Septeto Lira Carlos Gomes de Estância (SE), um grupo musical que brindou os presentes com um show de altíssima qualidade.

Estando na Uenf desde janeiro de 1998 posso dizer que fui testemunho de muitos momentos importantes na consolidação da universidade que Darcy Ribeiro denominou de “Universidade do Terceiro Milênio”, e posso dizer que a minha própria evolução como profissional e pessoa está diretamente ligada aos caminhos e descaminhos trilhados pela instituição.  Tendo sido o fundador do Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA) e participado da consolidação do Centro de Ciências do Homem (CCH), não apenas testemunhei, mas me envolvi diretamente na construção da Uenf.

Como alguém que sempre adotou posições de questionamento, posso dizer que ganhei mais do que perdi nos embates internos, o que é aceitável já que quando se entra em disputas só em ditaduras há a certeza de que se ganhará sempre, caso você esteja alinhado aos ditadores, ou seja o próprio ditador. 

Mas não posso deixar de dizer que a Uenf que me atrai a Campos dos Goytacazes não existe mais, o que também é perfeitamente aceitável, pois instituições evoluem e não podem ser estáticas, sob o risco de se extinguirem por perder sua utilidade social.  Algumas das transformações ocorridas na Uenf foram impostas por forças externas que a transformaram ao impor novas regras e costumes mais adequadas ao mundo neoliberal em que o Brasil foi afundado.  Outras transformações, entretanto, foram resultado de conjunturas internas e que resultaram de determinados acordos de maioria. Como não sou chorar sobre o leite derramado também vejo a minha condição de minoria como normal, pois as minorias em algumas conjunturas históricas são das que possibilitam as maiorias a se reposicionarem e não ficarem anestesiadas como um Narciso na frente do espelho.

Agora, me vejo na obrigação de observar que em seu estado atual, a Uenf está muito longe de representar a utopia transformada em concreto por Darcy Ribeiro. A principal razão para isso é que se esqueceu e se deixou de transmitir as ideias mais provocativas de Darcy em prol de uma versão domesticada e acomodada de universidade.  As regras das agências de fomento que equivocadamente beneficiam a quantidade em detrimento da qualidade ganharam tons de verdade inquestionável dentro da universidade, o que certamente causaria um ataque de fúria em Darcy Ribeiro. Darcy buscou com  Uenf transgredir a ordem estabelecida ao romper com ideia departamental e apostar nos laboratórios de pesquisa que produziriam um saber não apenas novo, mas fortemente comprometido com a transformação da realidade social em prol da maioria oprimida e pobre do nosso povo.  O que se vê hoje é a assimilação rasa da ordem neoliberal e não o seu questionamento, e o povo só aparece mesmo para limpar o chão e guardar as entradas, e com salários incompatíveis com suas necessidades básicas.

Darcy Ribeiro também queria que a Uenf fosse um motor de um novo modelo de desenvolvimento regional que apostasse nas capacidades e criatividades do nosso povo em vez de abraçar fórmulas enlatadas que viessem de fora.  Eu avalio que Darcy queria esse caminho para nos forçar a sermos sempre dinâmicos e inquietos, e não acomodados a repetir esquemas manjados de reproduzir e disseminar conhecimento pronto. Essa ação dinâmica e inquieta estaria apoiada na ação dos seus laboratórios de pesquisa. No entanto, qualquer análise minimamente crítica da realidade interna terá que reconhecer que isso não está ocorrendo, e que predomina uma versão burocrática de reproduzir o que já está dado e um incomodo claro com a busca de novo. Em outras palavras, a prática real é oposta frontalmente ao que Darcy desejava que fizéssemos.

Darcy também queria que saíssemos do interior do campus para encontrar e transformar a realidade, mas hoje vejo que quando saímos não apenas não encontramos quem tem de ser encontrado e, tampouco, agimos para transformar a realidade.  Uma razão básica para isso é que estamos desprovidos da capacidade de dialogar e enxergar, visto que isto seria garantido pelos laboratórios, o que já disse acima não está ocorrendo. Com isso, a maior parte do tempo estamos nos templos de poder e não com os oprimidos. Basta ir no V Distrito de São João da Barra e perguntar para os atingidos pelo Porto do Açu o que eles acham da Uenf estar dentro do enclave e não do lado de fora com suas vítimas.  Mais uma vez, Darcy Ribeiro dificilmente repetiria essa escolha, e provavelmente estaria hoje na casa de algum agricultor desapropriado comendo um queijo artesanal ou um aipim frito enquanto aprendi mais sobre os intricados sistemas agroecológicos desenvolvidos há gerações para produzir alimentos em terrenos arenosos.  Em outras palavras, Darcy não estaria jamais ao lado dos opressores, mas sim ao lado dos oprimidos.

Antes que eu estenda demasadiamente e perca o momento de celebrar a Uenf e seus fundadores, Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, eu tenho que lembrar que a Associação de Docentes da Uenf (Aduenf) está celebrando as ideias de nosso idealizador relembrando algumas de suas frases mais célebres e que continuam extremamente atuais (ver imagens abaixo).  É nessa lembrança que eu aposto, pois a Aduenf já serviu muitas vezes com uma espécie de garantidora de que a luta de Darcy e Brizola por uma universidade atenada com a justiça social não morra.  Por mais contraditório que possa parecer, a Aduenf é hoje a garantidora da herança de Darcy e o principal veículo para que suas ideias sejam prática e não esquecimento.  Longa vida à Uenf de Darcy e Brizola, pois resignar nunca foi uma opção para aqueles que realmente acreditam na Universidade do Terceiro Milênio.

A Universidade do Terceiro Milênio: formação, ciência e desafios institucionais

Por Carlos Eduardo de Rezende

A Universidade Estadual do Norte Fluminense – Darcy Ribeiro (Uenf) foi concebida com uma missão estratégica: impulsionar o desenvolvimento regional e nacional por meio da formação de recursos humanos altamente qualificados e da produção de conhecimento científico de excelência. Desde sua fundação, a instituição se destaca por ter sido a primeira instituição a propor a contratação de doutores, com dedicação exclusiva e tempo integral na Uenf ampliando assim o compromisso com o despenho acadêmico e a participação na formação dos nossos discentes em nível de graduação e pós-graduação. Aliás, sempre é importante ressaltar que a instituição começou quase que simultaneamente os cursos de graduação e pós-graduação; junto com a Uerj implantamos as cotas, e com a instituições públicas de ensino participamos desde a concepção do Ensino à Distância.

A transparência acadêmica e administrativa é um pilar essencial para a credibilidade da universidade. A ampliação e publicidade dos critérios de avaliação em editais, a prestação de contas públicas e a clara documentação dos processos decisórios fortalecem a confiança da comunidade acadêmica e da sociedade. A adoção de mecanismos de deliberação, com ampla consulta, assegura a inclusão de diferentes perspectivas na formulação de políticas institucionais.

No contexto da Uenf, a definição de diretrizes orçamentárias para execução de projetos e aprimoramento da infraestrutura deve seguir um fluxo decisório estruturado, promovendo o debate em instâncias como laboratórios e coordenações (graduação, pós-graduação e extensão), seguido pela deliberação nas diretorias de centros e posterior encaminhamento à Reitoria. Essa sistemática garante uma gestão eficiente, evitando favorecimentos e promovendo a integridade institucional.

Os procedimentos institucionais de uma universidade são fundamentais para garantir a eficiência da gestão, a lisura na aplicação de recursos e a promoção da qualidade acadêmica, desempenhando um papel central na prevenção de desvios administrativos, reduzindo a possibilidade de irregularidades em processos como a alocação de verbas públicas e a distribuição de bolsas acadêmicas.

No campo da formação de recursos humanos, a Uenf desempenha um papel central na capacitação de profissionais aptos a enfrentar desafios complexos em diversas áreas do conhecimento. Os seus programas de graduação e pós-graduação são reconhecidos pelo compromisso com a inclusão social, permitindo que estudantes de diferentes perfis socioeconômicos tenham acesso a uma formação de qualidade. No entanto, é fundamental dedicar maior atenção aos laboratórios destinados às aulas práticas e teóricas, bem como a toda a infraestrutura de apoio, assegurando condições adequadas para o desempenho dos docentes.

A inovação didática não pode ser vista como uma responsabilidade exclusiva do professor, mas sim como um processo que exige o necessário suporte institucional, que não será suficiente com a concessão de bolsas. Para que novas metodologias de ensino sejam implementadas de maneira eficaz é imprescindível que a universidade ofereça equipamentos adequados, espaços bem estruturados e investimentos contínuos em tecnologia e capacitação docente. Dessa forma, será possível aprimorar a qualidade do ensino, promover uma aprendizagem mais dinâmica, e garantir que os discentes tenham uma formação sólida e alinhada às demandas contemporâneas.

A produção científica da Uenf reflete uma sólida articulação entre ensino, pesquisa básica e aplicada, com ênfase em áreas estratégicas para região como agroecologia, biotecnologia, ciências biomédicas, ambientais e sociais, políticas públicas e engenharias. Os projetos conduzidos nos nossos laboratórios não apenas impulsionam o avanço do conhecimento, mas também geram soluções para demandas sociais e econômicas. Para garantir a continuidade desse protagonismo acadêmico é essencial manter investimentos sustentados em infraestrutura, apoio a pesquisadores e colaborações acadêmicas nacionais e internacionais.

O futuro da Uenf depende de sua capacidade de conjugar transparência institucional, gestão responsável, formação acadêmica sólida e produção científica comprometida com o interesse público. Esses elementos, articulados de maneira integrada, asseguram a qualidade acadêmica e reforçam o papel da universidade como agente transformador na construção de uma sociedade mais justa e sustentável.

Concluindo, a modernização dos recursos didáticos, aliada ao conforto de salas de aula bem equipadas para atividades teóricas e práticas, é essencial para alcançarmos um salto de qualidade no ensino.


Carlos Eduardo de Rezende é professor titular do Laboratório de Ciências Ambientais (LCA) da UENF e pesquisador 1A do CNPq

Interiorização entre o discurso e a prática: o caso da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf)

Por Carlos Eduardo de Rezende para o Jornal da Ciência da SBPC

A Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) iniciou suas atividades no atual campus em 16 de agosto de 1993. Contudo, já em novembro de 1992, diversos cursos já estavam sendo ministrados na Fundação Norte Fluminense de Desenvolvimento Regional (FUNDENOR). Tal arranjo decorreu da obrigatoriedade imposta pela Constituição, que determinava o início das atividades da UENF dentro de um período de três anos após sua promulgação da Constituição Estadual, em 1989. Esse marco, portanto, simboliza a fundação da Uenf.

Inicialmente, cogitava-se a possibilidade de transformar algumas faculdades isoladas em uma universidade estadual. No entanto, com a chegada do Prof. Darcy Ribeiro para liderar o projeto, a concepção da Uenf foi radicalmente redefinida. Sob sua visão inovadora, a instituição foi concebida como a “Universidade do Terceiro Milênio”, apresentando características pioneiras, tais como:

  1. A constituição de um corpo docente integralmente composto por doutores em regime de dedicação exclusiva, com um adicional de interiorização, garantindo a base sólida para o desenvolvimento simultâneo da graduação e da pós-graduação. Essa estrutura permitiu que o primeiro curso da universidade fosse reconhecido pela CAPES já em 1996, além de conquistas expressivas em programas de iniciação científica do CNPq.
  2. A implantação de um ciclo básico comum, proporcionando a todos os estudantes uma formação humanística abrangente.
  3. A criação do primeiro curso de Engenharia de Petróleo do país, sob a liderança do saudoso Prof. Carlos Alberto Dias.
  4. Um robusto programa de financiamento estadual para projetos de pesquisa, atraindo lideranças acadêmicas e consolidando áreas estratégicas de conhecimento. Neste período inicial, tivemos presentes na Uenf vários membros da Academia Brasileira de Ciências.
  5. A estrutura acadêmica inovadora, que substituiu departamentos por laboratórios temáticos integradores, evitando a segmentação excessiva do conhecimento nas diferentes áreas do conhecimento.
  6. A participação ativa na implantação das cotas para estudantes de baixa renda e na formação de recursos humanos por meio do Consórcio das Instituições de Ensino Superior para a criação de um programa de ensino a distância no Estado do Rio de Janeiro, que hoje mantém vários polos distribuídos pelo território fluminense.

A UENF também foi idealizada para contar com uma fundação de apoio administrativo, visando garantir a eficiência na gestão institucional. No entanto, com o passar dos anos, a atividade-meio começou a se sobrepor à atividade-fim, comprometendo a funcionalidade do modelo. Como resultado, os servidores dessa fundação foram incorporados ao quadro da universidade e a fundação extinta.

Atualmente, a Uenf possui campi em Campos dos Goytacazes e Macaé, além de presença em 15 municípios por meio do Ensino à Distância. No entanto, enfrentamos um grave déficit de docentes, com apenas 50% do quantitativo planejado originalmente, além de uma crescente dificuldade na reposição de servidores técnicos devido à falta de autonomia financeira. Essa deficiência limita nossa capacidade de expansão, sobrecarrega a equipe administrativa e compromete o planejamento estratégico institucional. 

Muitos profissionais que escolheram a Uenf acreditaram na proposta de interiorização defendida por Darcy Ribeiro, um modelo que visava descentralizar o ensino superior com qualidade. No entanto, trinta e dois anos depois, é evidente que a maioria dos gestores públicos, sejam estaduais ou federais, ainda não compreende a real dimensão da descentralização acadêmica e suas implicações para o desenvolvimento do país. A exceção fica por conta do Estado de São Paulo, cujas universidades estaduais usufruem de autonomia financeira e contam com uma fundação de apoio à pesquisa altamente estruturada e com autonomia financeira instituída legalmente pelo estado garantindo assim a possibilidade de planejamento.

Nesse contexto, é urgente repensarmos o modelo de interiorização adotado nas universidades brasileiras. Criar pequenos campi vinculados a grandes instituições nem sempre é a solução, pois muitas dessas unidades enfrentam sérias dificuldades de infraestrutura e recursos humanos, dependendo permanentemente da instituição sede. No estado do Rio de Janeiro chegamos ao limite de ações que questionam as universidades até ao ponto de extinguir uma Instituição de Ensino Superior (leia Aqui!).

Por fim, é imperativo que a comunidade acadêmica reflita sobre o futuro das universidades e sobre a interiorização do ensino superior de forma estruturada e eficaz. As deliberações tomadas em nossas assembleias e no Congresso Nacional precisam se traduzir em ações concretas. Desde a criação da Uenf, a sensação predominante é de invisibilidade perante o Estado e a União, com sucessivos desafios no reconhecimento e na valorização das atividades acadêmicas desenvolvidas longe dos grandes centros urbanos. É tempo de transformar o discurso em prática e garantir que a interiorização do ensino superior seja uma prioridade real e efetiva.

Sobre o autor:

Carlos Eduardo de Rezende é professor titular da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF/RJ), Pesquisador 1A do CNPq e CNE FAPERJ


Fonte: Jornal da Ciência

Uenf e a miragem da escola de cinema: o projeto de uma universidade que ensina javanês

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Darcy Ribeiro idealizou uma escola de cinema na Uenf, mas a realidade se mostrou mais desafiadora do que seus planos

Por Douglas Barreto da Mata

Há alguns anos atrás conheci um grupo de promissores estudantes da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), todos vinculados ao Centro de Ciências do Homem.  Parte desse grupo cumpriu a expectativa, e se consolidou como cientistas respeitáveis em suas áreas de estudo, mas acima de tudo, coerentes.  A outra parte decidiu aprender o javanês, alguns tiveram aulas até com o maior especialista na língua de Java, e se tornaram discípulos do grande Roberto Mangabeira Unger, o erístico.

Para quem não sabe, vale a pena pesquisar no Google, e descobrir esse saboroso conto de Lima Barreto, onde ele, com ironia fina, desvenda um personagem típico.  O homem que sabia javanês, em resumo, é uma fraude, que a todos engana com falsa erudição, palavreado rebuscado, modos janotas, e através desse engodo ascende socialmente. 

Ao ler sobre a intenção da atual reitoria da Uenf, e de um grupo de homens e mulheres que sabem o javanês em promoverem a instalação de uma “escola de cinema” ou de uma disciplina na grade curricular da Uenf nesta área, eu pensei:  Zeus, de onde vem essa gente?

Eu não vou abordar o tema pela ótica pessimista, pois amo cinema e seria um sonho realizado ter uma iniciativa bem sucedida desta natureza.  Sou um entusiasta da ideia, mas sei a diferença entre o delírio e a possibilidade, por mais remota que seja.

Vamos pela realidade mesmo.  Cinema é coisa cara, caríssima, e não à toa essa indústria é típica de países ricos, com raras exceções, como Argentina e Irã.  Outros países, como a França, além de ricos, cobram severos impostos dos filmes dos EUA, e estabelecem cotas de exibição de produções nacionais nas salas de exibição, TV e etc.  Com isso criaram um cinema francês.

Aqui, a menor menção de proteção a um mercado nacional cultural é uma heresia grave.  Dizer que 70 salas de exibição no passado ou citar locações de novelas e filmes como pontos de partida para instauração de um polo de cinema local é bizarro.  Acho que nem vale a pena comentar essa tolice, típica de gente que chora o fim de uma loja de livros escolares, chamada de livraria centenária, do tempo que só a elite sabia ler. 

Mesma coisa com o famoso Teatro Trianon, símbolo da exclusão cultural de um povo pobre, cuja elite caipira se esperava em copiar jeitos e trejeitos daquilo que almejava ser, cosmopolita. 

No atual estágio da indústria cinematográfica, o surgimento de um enclave de cinema aqui requer muita grana, muita mesmo, e não só de forma sazonal, mas perene, para que, talvez em dez ou vinte anos se estabeleça uma cadeia da atividade, que se constitui de técnicos, engenheiros, atores, diretores, roteiristas, produtores, etc.

Porém, não é só isso.  Um projeto dessa magnitude não pode repetir o erro de manter as classes populares fora da iniciativa, restringindo a política de cultura aos de sempre: ricos e seus sabujos da classe média.  Cabe ainda dizer que nenhum país ou região, que hoje são referências nesse setor, a indústria cinematográfica foi criada de forma instantânea, e sem contingentes históricos especiais e raríssimos.

Mesmo que chova dinheiro do BNDES, ou de investidores estrangeiros, ou que fizéssemos grandes festivais, mesmo assim isso não significa que faríamos cinema.  Gramado é famosa por seu festival e pela premiação.  Cannes idem.  Nenhuma das duas cidades produz cinema.

É preciso honestidade, seriedade e, mais que tudo, sinceridade para iniciar um processo com esta escala.  A Uenf mal consegue se manter de pé, como vai abraçar uma empreitada dessas? Será que o destino da universidade é institucionalizar aventuras?

Enfim, cabe perguntar, sem ofensas, mas por curiosidade:  Se Darcy Ribeiro, com seu nome e contatos, com sua força intelectual e sua legitimidade, não conseguiu, serão os que sabem javanês que o farão? Fica aí a sugestão de primeiro roteiro, sai até de graça, porque a obra de Lima Barreto já é de domínio público:  a universidade que ensina javanês.

Programação de 31 anos da Uenf: a montanha pariu um rato. Mas o pulso ainda pulsa!

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Darcy Ribeiro, Leonel Brizola e Oscar Niemeyer: os três arquitetos da Uenf que completa 31 anos sem lhes prestar a devida reverência

Quem se der ao trabalho de ler a programação preparada pela reitoria da Universidade Estadual do Norte Fluminense notará um esforço claro de posicionar a instituição dentro do contexto do que seria comumente conhecido como “inovação” a partir de um evento obscuro denominado de “Rio Inovation Week”.  Fora isso,  o que se nota é um fragmentação de atividades que dificilmente atrairão o público interno e menos o externo porque simplesmente não celebram nada que mereça ser celebrado.

Essa opção, não nos enganemos, reflete a posição da atual administração de abraçar o sempre elusivo mercado, esquecendo das tarefas estratégicas estabelecidas por Darcy Ribeiro nos documentos fundacionais da instituição. É preciso que se diga que Darcy pensava sim em estabelecer ligações dinâmicas com empresas que permitissem um alavancamento do processo de desenvolvimento econômico e, principalmente, social da região Norte Fluminense.  Mas a diferença fundamental é que Darcy pensava as coisas a partir de um posicionamento por cima da Uenf, e não a partir de um esforço de transformar as pesquisas feitas pela instituição em uma espécie de bugiganga que é oferecida a potenciais compradores que nem estão no horizonte para serem vistos. 

A questão fundamental é que se olharmos para o interior da instituição, o que veremos é uma espécie de estado de hibernação contínua que tem como consequência o contínuo rebaixamento do papel da universidade não apenas no plano local e regional, e nacional. Um exemplo desse rebaixamento são as bancas examinadoras de Mestrado e Doutorado que antigamente atraiam a nata da comunidade científica nacional para o interior do campus da Uenf, quadro que hoje está muito distante disso. A cereja do bolo é santificação das bancas remotas (ou híbridas para dar um tom mais chique) que apenas escondem a dificuldade de trazer para Campos dos Goytacazes os melhores quadros científicos nacionais e internacionais para avaliar o que está sendo produzido como ciência pelos nossos pós-graduandos.

Quando cheguei na Uenf, a instituição era palco de uma espécie de romaria contínua não apenas de quadros científicos nacionais e internacionais, mas de dirigentes das principais agências de fomento à pesquisa no Brasil. Essa proeminência nascia em função da força do modelo institucional que se mostrava inovador e arrojado. Lamentavelmente após seguidas administrações que operaram para objetivamente desmontar o projeto institucional idealizado por Darcy Ribeiro, a Uenf hoje não é mais vista assim, e para que alguém se dê ao trabalho de vir a Campos dos Goytacazes, há que se arranjar a concessão de uma medalha ou nada feito.

Alguém poderia dizer que essa minha avaliação é do tipo de quem perdeu a esperança no futuro da instituição.  A questão é que eu sempre tendo a olhar o futuro da Uenf a partir de um prisma temporal mais longo, como no caso de qualquer instituição universitária.  Em especial no caso de instituições universitárias, é normal que se tenha fortes solavancos ao longo do processo de construção. E a Uenf só está completando 31 anos, o que a torna uma espécie de criança recém-nascida no mundo das universidades.

O problema me parece mais de como iremos retomar o caminho planejado por Darcy Ribeiro, do qual estamos evidentemente afastados.  Me parece que a primeira coisa que precisamos fazer é retomar a ousadia da crítica para nos afastarmos de uma visão paroquial e endógena de universidade que faz nos parecer cada vez menos com aquilo que se sonhou que poderíamos ser.  Há que se retomar o caminho da qualidade sobre a quantidade. Precisamos ter um controle do que é apresentado como sendo produtos de pesquisa da Uenf, pois há muita coisa de baixíssima qualidade sendo publicada com o nosso selo.  

Mas para isso precisamos acima de tudo reestabelecer a premissa de que pensamento crítico e criativo. e inquieto como era Darcy Ribeiro, deve prevalecer sobre as ideias rotineiras e conformadas com uma condição de dependência intelectual em que nada de novo é produzido.  Para isso há que se recuperar o compromisso com a maioria oprimida e socialmente abandonada da nosso população em vez de querer transformar a Uenf em um entreposto de ideias pasteurizadas.

Um longo viva à Uenf de Darcy Ribeiro e Leonel Brizola. Que o nosso futuro seja aquilo que nossos fundadores sonharam que ela poderia ser. Afinal, o pulso ainda pulsa, e enquanto isso estiver ocorrendo, haverá esperança.

Web Rádio Maíra e os 31 anos da UENF: é preciso inventar o Brasil que queremos

webradiomaira

Por Luciane Soares da Silva

Dois livros animam o espírito de nossa rádio: Comunicação ou Extensão, escrito por Paulo Freire no Chile, em 1968 e o romance Maíra do antropólogo Darcy Ribeiro. Sua primeira publicação data de 1976. Podemos traçar aproximações entre ambos. São documentos de um tempo histórico específico. A Ditadura brasileira e processos ditatoriais em outros países latino americanos. Adotam perspectivas críticas nas quais o ato de comunicar é em si, elemento de transformação social

O questionamento central em Comunicação e Extensão é o lugar daqueles que pretendem realizar uma ação transformadora por meio do ensino: devemos “estender” nosso conhecimento aos grupos ou orientar nossa ação a partir de uma comunicação que efetivamente troque com o outro? Educar e educar-se afirmava Freire. Devemos compreender seu ponto de vista. Ao olharmos atentamente para populações indígenas (povos originários), camponeses e trabalhadores fabris, questionamos o ato de ensinar a ler, ensinar as técnicas modernas de produção e adotar o estilo de vida urbano. Que princípios deveriam reger nosso ensino? A partir destes questionamentos podemos alcançar o que significava a substituição de uma concepção de ensino que leva saberes aos que não o tem, por uma relação na qual o diálogo altere estruturalmente a visão do educador e do grupo com o qual ele atua.

O exercício feito por Darcy Ribeiro, adota a perspectiva dos índios com os quais conviveu para contar a história de sua destruição, “ o gozo e a dor de seu índio” Estruturalmente crítico ao processo civilizador, Darcy ambiciona transformar seus olhos nos olhos da tribo Mairum. Um ato apaixonado mas calibrado por seu conhecimento dos hábitos e da cultura destes grupos. O romance Maíra desloca a visão de um índio como uma página em branco para que os catequistas escrevessem para o índio-problema. Avá, mairum destinado a ser chefe guerreiro de sua tribo, é levado a Roma e educado para ser padre e missionário. A tragédia de Avá-Isaías é a tragédia dos povos originários, a perda de sua identidade e a impossibilidade completa de integração ao mundo dos brancos.

Os dois livros animas esta rádio que aceita o desafio da comunicação como troca a partir de uma perspectiva situada: o Brasil, a América Latina e a diáspora africana constituem a base de toda nossa programação. Em um mundo globalizado e dominado por redes sociais, redes de televisão e rádio, sabemos da importância desta decisão.

Ao olharmos para esta obra de Darcy saudamos os trinta e um anos de nossa Universidade .Seria possível ver a UENF  como obra estética de um homem brasileiro e latino-americano. E a poética deste desafio está na atualização de uma memória literária que é política. Ao lado da rádio, nosso projeto de extensão Arte e Memória na Escola realiza o ideal de Paulo Freire. A produção em sala de aula, de materiais que possibilitem aos alunos das escolas públicas de Campos dos Goytacazes construírem saberes sobre música, movimentos socias, identidade cultural e seu lugar na história.

Nenhum destes homens foi neutro diante de seu tempo. Da mesma forma, nossa programação conversa com repentistas do nordeste, rappers de Guarus, fazedores de cultural local. Ao mesmo tempo, aceitamos que a troca também deve dar espaço a trilhas de música para o dia das Mães, Correio Elegante para o dia dos Namorados e o cardápio diário do Restaurante Universitário. Ou seja, acolher a vida cotidiana da UENF.

Este trabalho só é possível pela qualidade e identidade do grupo que o compõe. E pela autonomia dada a cada um para apresentar sua pauta. Espaços como o Centro de Convenções, a Villa Maria, o Bandejão e os saguões de nossos Centros, são nossos pontos de ancoragem para produção de conteúdos.

Um exemplo de nossa programação: começamos as seis da manhã com “Bom dia proletariado”, vinheta e música. Após, cardápio do Bandejão, momento ciência e mulheres na ciência. Ao longo de semana temos programas de entrevistas com artistas, pesquisadores, programação de reggae, o que ocorre na cidade e nas Universidades. Divulgamos o Cine Darcy e temos o Clube da Encruza, um programa de temáticas abertas sobre temas de interesse dos integrantes.

Toda esta programação é idealizada e executada pelos alunos do projeto. O Clube do Som, por exemplo, consiste em uma metodologia extremamente simples. Cada participante apresenta algumas músicas de um álbum de preferência. De punk ao Clube da Esquina, somos convidados a ouvir conjuntamente estas músicas. É um exercício de escuta coletiva guiada.

O espírito que anima Maíra é o espirito que pode animar a Universidade brasileira. Ao acolhermos os saberes de forma a experimentar um fazer-comunicação, temos uma rádio com o potencial de dinamizar um espaço por vezes árido. A autonomia impressa em nosso trabalho é anti-burocrática e nem por isto, menos efetiva em seus resultados. Apenas deixamos que as pessoas façam o que sabem fazer. E possam aprender sobre os instrumentos técnicos de construção. Acredito que realizamos plenamente a proposta de Paulo Freire. Transformamos uns aos outros na construção de uma rádio. E aí reside a potência de nossa extensão que é comunicação.

Para seguir Maíra basta acessar webradiomaira.

A Uenf está sendo corroída pela precarização e ficando muito aquém das tarefas deixadas por Darcy Ribeiro

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O incêndio que ocorreu no último 17/05 e consumiu a sala que abrigava uma secretaria no prédio do Centro de Ciências do Homem é apenas o sinal de uma profunda precarização que vem sendo imposta à universidade criada por Darcy Ribeiro e Leonel Brizola.  Nascida sob demanda da população de Campos dos Goytacazes, entretanto, é o principal instrumento de desenvolvimento econômico do interior do estado do Rio de Janeiro, tendo gerado um ciclo de formação de profissionais e dinamizado a economia do município de Campos dos Goytacazes em um patamar muito acima do que os bilhões produzidos pelos royalties do petróleo.

Mas se a Uenf é isso tudo, por que precarizá-la a ponto de inviabilizar sua capacidade criativa e de inovação e reduzi-la a mais uma instituição que não gera potencial de desenvolvimento? Uma explicação muito provável tem a ver com a indiferença dos governos estaduais com as necessidades das regiões Norte e Noroeste Fluminense, e também dos grupos de poderes locais que não querem que mais pessoas estejam capacitadas para articular novas formas de governança que possam abalar os arranjos oligárquicos que guiam a política em nível municipal.

Entretanto, o que vem afogando a Uenf é o uso abusivo do chamado Programa de Recuperação Fiscal que asfixia financeiramente a instituição ao não possibilitar, por exemplo, que salários altamente defasados sejam colocados em um patamar de competividade com o que é praticado em outras instituições universitárias. Como agora sequer se há o acréscimo por tempo de serviço, é quase impossível atrair professores doutores de outras partes do Brasil e, menos ainda, de outros países. Essa foi a fórmula que possibilitou que a Uenf funcionasse em nível de excelência em anos iniciais, a ponto de se tornar uma referência de qualidade para outras universidades brasileiras.

uenf 30 anos

Um problema que vem aprofundando o nível de desgaste do projeto revolucionário elaborado por Darcy Ribeiro é que tem faltado à Uenf a atuação de lideranças capacitadas para manter a respeitabilidade que foi obtida nos seus primeiros anos. As diferentes reitorias que foram se sucedendo desde 1999, quando foi eleito o primeiro reitor, terminaram possibilitando a ascensão de uma visão altamente populista de integração com a sociedade regional,  a qual pode ser sintetizada na ideia de que bastaria abrir os gramados do campus Leonel Brizola para a realização de confraternizações e atividades esportivas para que a Uenf cumpra seus desígnios históricos. Com isso, o máximo que se tem conseguido é difundir a ideia de que a Uenf seria uma espécie de “Ibirapuera dos campistas”, e não o poderoso motor de desenvolvimento científico e tecnológico que Darcy Ribeiro idealizou e colocou para funcionar com os recursos alocados pelo governo de Leonel Brizola.

Disse recentemente em uma assembleia dos professores que é urgentemente necessário que a categoria retome urgentemente a primazia da ação política que possibilitou que a Uenf tenha chegado até onde chegou. Sem a liderança de um grupo altamente capacitado não há como qualquer instituição universitária atingir seus objetivos estratégicos, e a Uenf não é exceção. Caberá aos seus quadros mais capacitados garantir que, entre outras coisas, o governo do Rio de Janeiro decida pagar salários que sejam compatíveis com o papel de liderança que a Uenf deve exercer para catapultar as regiões Norte e Noroeste para um ciclo de desenvolvimento que finalmente as faça superior décadas de atraso econômico e social.

E eu lamento dizer:  ou os docentes assumem o papel de liderança que o modelo institucional lhes exige ou a Uenf nunca chegará a cumprir a trajetória pensada por Darcy Ribeiro. É que não se cumpre desígnios mais desafiadores aceitando projetos de mediocridade e de subalternidade que podem até soar “moderninhos” e “antenados” com as modas do momento, mas que são intrinsecamente desprovidos de substância.  Ou alguém acha que um punhado mal arrumado de conversas ocas sobre o papel de start ups e do uso de inteligência artificial resolverão o abissal atraso econômico e social que envolve o Norte e Noroeste do Rio de Janeiro?

UENF aos 30: um carinhoso abraço tardio na celebração de 3 décadas de muitos desafios

uenf 30 anos

Por Carlos Eduardo de Rezende*

A Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) celebrou, em agosto de 2023, três décadas de contribuição significativa para o ensino superior no Brasil. A visão utópica idealizada pelo Prof. Darcy Ribeiro resultou em uma instituição inovadora que, ao longo dos anos, demonstrou seu compromisso com a excelência acadêmica e a promoção do conhecimento.

O ano de 1992 marcou um ponto crucial na história da UENF. Na época, após retornar de uma experiência na Universidade de Washington em Seattle, onde estive na Escola de Oceanografia, fui informado pelo meu orientador de doutorado, o Prof. Wolfgang Christian Pfeiffer, a criação de uma nova universidade na cidade de Campos dos Goytacazes sobre a liderança do Prof. Wanderley de Souza que na ocasião era Diretor do Instituto de Biofísica da UFRJ. Este último, se tornaria o primeiro reitor da UENF, estava à frente da formação de grupos para a constituição da instituição.

Nesse contexto, fui convidado a participar ativamente desse processo. Meu orientador, o Prof. Wolfgang, decidiu não se envolver diretamente, mas ofereceu todo o suporte necessário para a criação do Laboratório de Ciências Ambientais, do qual passei a fazer parte e onde estou até hoje.

A iniciativa de formar grupos para compor a UENF revelou-se não apenas como uma oportunidade para o estabelecimento de uma nova instituição de ensino superior, mas também como um marco na minha trajetória acadêmica. A visão e o comprometimento da equipe fundadora, aliados ao suporte irrestrito do Prof. Wolfgang, foram fundamentais para o sucesso do empreendimento.

Assim, ao completar três décadas, a UENF não apenas celebra sua existência, mas também a riqueza de suas contribuições para o cenário educacional brasileiro. O Laboratório de Ciências Ambientais, resultado desse esforço conjunto, destaca-se como um exemplo concreto do impacto positivo que a visão de Darcy Ribeiro trouxe para a comunidade acadêmica e para o país como um todo.

Destaco o ano de 1992 como um marco significativo, uma vez que a Constituição promulgada em 1989 estipulava que a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) deveria iniciar suas atividades nos próximos 3 anos. Desta forma, e graças à participação ativa de diversos jovens doutores que conseguimos inaugurar diversos cursos na UENF, estabelecendo parcerias fundamentais, como aquela com a Fundação Norte Fluminense de Desenvolvimento Regional (FUNDENOR).

Vale ressaltar que cursos importantes, a exemplo de Medicina Veterinária, tiveram seu início nas instalações dessa fundação. Ao longo de muitos anos, o setor administrativo da Fundação Estadual Norte Fluminense (FENORTE) também operou nesse ambiente. Este cenário alinhava-se com uma das utopias do saudoso Chanceler Prof. Darcy Ribeiro, que idealizou a colaboração entre a UENF e a FENORTE. Conforme essa visão, a UENF se beneficiaria do suporte administrativo da FENORTE, proporcionando aos professores todo o respaldo necessário para a gestão de seus projetos e aquisição de materiais para suas pesquisas.

Lamentavelmente, ao longo do tempo, essa relação não se concretizou conforme planejado, e, por diversos motivos, os quais não serão abordados neste momento, a FENORTE foi extinta em fevereiro de 2016. Essa realidade evidencia parte dos desafios enfrentados e as transformações ao longo da trajetória da UENF, marcando um capítulo importante em sua história institucional.

Na fundação da UENF, contamos com a significativa contribuição de vários membros da Academia Brasileira de Ciências e pesquisadores estrangeiros. Esses profissionais foram fundamentais durante o período inicial da instituição, e muitos deles permaneceram por anos. A experiência acumulada por esses cientistas foi essencial para consolidar diversos grupos de pesquisa que continuam contribuindo de maneira essencial para a UENF.

O modelo institucional da UENF estabeleceu um marco ao ser a primeira instituição de ensino superior no Brasil a contar com 100% do seu quadro docente permanente composto por doutores dedicados exclusivamente à pesquisa e ao ensino, e hoje, com atuação na extensão. Este modelo possibilitou o início simultâneo dos cursos de graduação e pós-graduação. Apesar de debates ocorridos nos conselhos superiores da instituição, nos quais a alteração desse modelo foi pautada, acredito não apenas na sua defesa, mas também na conexão direta entre esse modelo e os inúmeros resultados positivos experimentados por nossa instituição. Esse é um ponto que considero uma cláusula pétrea institucional e se tornou um alicerce fundamental para o crescimento e a qualidade da UENF.

Diferentemente de outras instituições, na UENF não adotamos uma estrutura departamental convencional. Nossos laboratórios buscam operar de maneira horizontal, abrangendo diversas áreas do conhecimento. Essa abordagem visa evitar a sobreposição excessiva de profissionais com formação semelhante. Embora reconheçamos a complexidade dessa abordagem, essa estruturação me parece adequada para os enfrentamentos necessários da ciência contemporânea. Além disso, a estrutura física de laboratórios compartilhados visa não apenas evitar a replicação desnecessária de infraestrutura analítica, mas também expandir as possibilidades de aquisição de novos equipamentos. Acreditamos que a multidisciplinaridade é a essência dessa abordagem, estimulando a interação entre diferentes áreas da ciência, enriquecendo as possibilidades de avanço nas pesquisas. Ao enfrentar os desafio e as resistências pela busca da horizontalidade nos laboratórios entendemos que este é o caminho que favorece a excelência acadêmica e a inovação.

Este não será meu último escrito sobre a instituição que moldou a maior parte da minha carreira acadêmica. Ao longo dos últimos anos, tenho testemunhado situações em que a história desta instituição é negligenciada. Com o início de uma nova administração em 2024, expresso minha sincera esperança de que conduzam a UENF com o devido cuidado para superar os desafios que persistem ao longo da rica trajetória desta instituição.

Dedico este texto a todos que, diariamente, contribuem para o crescimento da UENF, dedicando-se a respeitar o nome da nossa universidade e a sociedade que possibilitou sua criação por meio de uma mobilização significativa, agradeço.

Feliz Ano Novo


Carlos Eduardo de Rezende é  PQ 1B do CNPq, CNE da FAPERJ e Professor Titular da UENF, Fundador do Laboratório de Ciências Ambientais do Centro de Biociências e Biotecnologia (CBB). Na UENF foi Vice-Reitor, Pró-Reitor de Graduação e Diretor do CBB.