Por Luciane Soares da Silva
Você poderia se imaginar caminhando em várias instituições, entre delegacias, hospitais, Instituto Médico Legal (IML)? Indo na casa de cada amigo, lugares públicos, bares, lojas, procurando um parente ? Um tio, uma vizinha de anos, um afilhado, um sobrinho, uma irmã, um pai, um marido, um filho? O sentimento de cada hora, as informações desencontradas, as redes sociais, os bandos armados,
No Rio de Janeiro esta é a realidade de centenas de mulheres na Baixada Fluminense, na ilha do Governador,na favela. Em áreas de milícia e de atuação do Estado no policiamento ostensivo.As vezes áreas de uma pobreza árida, as vezes bairros antigos, as vezes prédios de ocupação ou programas sociais. Ou a Avenida Brasil, quando se está voltando de Seropédica. Simplesmente a ideia tranquilizadora de outras épocas não anda mais tranquilizando a população (nem aqui, nem na Baixada Santista)
A possibilidade de perder alguém na mão do Estado me dá arrepios desde muito jovem. Pelo temor da tortura. Mas principalmente pela clareza do funcionamento da justiça desde cedo. Um homem comum, motorista de ônibus , branco ou negro, confundido ou não, pode ser desaparecido pelo Estado em infinitas situações. Erro durante uma ação, erro de identificação ou simples antipatia sádica do dia são apenas algumas delas. Vingança, simples decisão, desacerto de contas (pois o acerto de contas só pode gerar morte se algo dá errado).
Longe de serem apenas os comunistas (como se fossem tantos assim) o que o Estado opera, são pilhas de corpos que enchem um Maracanã. Mas você não pode sentir este peso, porque tornou-se diário e parece que há um hiato entre Ditadura a redemocratização. Não estamos vendo os tanques, os jovens tomando porrada na rua, as chamas da Usina. E se eu te contasse que eles se especializaram na ação? Estamos falando de tecnologias de poder, talvez eles ajam nas duas frentes. Grosseria pura e simples nas execuções e ameaça para dominação como instrumento de poder territorial. Não precisa de uma teoria inalcançável. A realidade tem um didatismo incontornável. Mas você não compreende? É que você nunca foi a Baixada certo?
Mas se você morasse em um local no qual o Caveirão entra semanalmente? Se houvesse um helicóptero sobrevoando sua casa com rajadas? Se seu filho fosse morto com a camiseta do colégio? O filho que até aqui foi criado com um amor de guerra. Pois sabem as mães que é este o fato. Este amor de guerra é intenso, violento na clareza do cotidiano, religioso no pedido de proteção. Este amor de guerra não é sereno. É alto, pisa fundo, enfrenta até o tráfico.
Mas se desaparecido pelo Estado é enfrentar um fuzil, é tomar tapa na cara sendo uma mãe de família. É calar diante da execução sem a possibilidade de revidar o ato imediatamente. Não há justiça nesta relação. O Estado movimenta milhões de papéis sobre mortos e desaparecidos. Papéis timbrados. Certidões, comprovantes, laudos, processos de 500 páginas com endereços e até boletim escolar.
As mães rezam para que seus entes sejam encontrados. Rezam pelo advogado, pelo juiz, até pelos inimigos. Existem aquelas que perdoam. Não são pessoas melhores que as outras ou santas. E que fardo se fossem. Não. Mas a justiça dos homens lhes foi negada e este tipo de ferida não fecha. Não há hiato temporal no Brasil entre estes tempos, não há garantia de direitos. Há um pedacinho de território para quem sabe, não ser desaparecido. Mas este pedacinho diminuiu nos últimos anos. Pois não esqueçam do dia em que um parlamentar evocou Carlos Brilhante Ustra. Não se evoca este nome em uma democracia sem que haja consequências. Os votos demostraram que a esperança equilibrista teve a corda arrebentada. E ele governou sob o comando de seu ídolo.
Observem o aumento das atividades da milícia e a atuação de outras formas de desaparecimento pelo Estado.
Os mortos e desaparecidos enchem um Maracanã.
Luciane Soares da Silva é professora associada do LESCE/CCH/UENF e também é coordenadora do Núcleo de Estudos Cidade Cultura e Conflito (NUC)

