Desmatamento e direitos indígenas são questões de segurança nacional, afirma Paulo Moutinho

Em webinário, pesquisador sênior do IPAM aponta defesa dos povos originários e das florestas da Amazônia como chave para a proteção do planeta

tapajos munduruku

Durante episódio da série de webinários “Perguntas sobre o Brasil”, realizado no dia 19 de abril, o pesquisador sênior do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), Paulo Moutinho, alertou para o papel fundamental desempenhado pela Amazônia e pelos povos originários na viabilidade da economia brasileira. O encontro foi promovido pelo Sesc São Paulo em parceria com a Apbra (Associação Portugal Brasil 200 anos), a Folha de São Paulo e a Universidade de Coimbra.

“O desmatamento na Amazônia e as violações dos direitos indígenas são uma ameaça à segurança nacional. O desmatamento em certas regiões já chegou em tal ponto que notamos o colapso do clima regional. Em São José do Xingu, a crise climática atingiu um nível que o IPCC previa como o pior dos casos para 2050. A situação só não é pior porque temos justamente o Parque Indígena do Xingu que produz 40% da umidade da região”, afirmou Moutinho.

O pesquisador também defendeu o respeito aos direitos dos povos originários como, além de uma exigência ética, um ponto chave para qualquer planejamento do futuro brasileiro. Segundo Moutinho, investir em sustentabilidade passa, necessariamente, por investir na proteção dos indígenas e suas terras.

“Todos aqueles produtores de grãos e carne da Amazônia devem proteger áreas como o Parque do Xingu ou aceitar que vão ser forçados a mudar de profissão. É isso que precisamos trazer à tona. Preservar o modo de vida dos indígenas não é só a proteção de um direito que deve ser respeitado, mas ele é chave para a sobrevivência do mundo inteiro. Quer investir na sustentabilidade dos seus negócios? Invista na proteção de indígenas e na recuperação de florestas”, completou.
 

A jornalista e editora de Ambiente e do projeto especial Planeta em Transe na Folha, Giuliana de Toledo, e a escritora e ativista Márcia Kambeba, do povo Omágua/Kambeba do Alto Solimões, no Amazonas, também participaram do debate. O evento pode ser assistido, na íntegra, através do canal do Sesc São Paulo no Youtube.

A nova cara da grilagem

O webinário também serviu para reforçar a preocupação com o crescimento da grilagem de terras na Amazônia, consequência direta do desmonte dos órgãos de fiscalização ambiental ocorrido nos últimos anos. Apesar da boa vontade do governo atual em combater a invasão e o desmatamento de terras públicas, Moutinho destaca que a solução está na inovação e na proteção das terras indígenas, e não apenas no restabelecimento de antigas práticas.

“O que acontece na Amazônia hoje é muito diferente do que vimos há 10 anos e ainda sofremos com um desmonte maior do que conseguimos compreender. As terras públicas e indígenas estão sendo diretamente afetadas e é lá que ocorre metade do desmatamento. Retomar aquela queda que vimos em 2005 e 2012, quando reduzimos em 80% o desmatamento, é mais difícil agora, mas é possível. Creio que grande parte desse esforço deve estar na proteção dos direitos dos povos indígenas, na demarcação de novas terras e na reorganização fundiária de toda a Amazônia”, afirmou o pesquisador.

Segundo dados do IPAM, cerca de dois terços do desmatamento registrado em terras públicas ocorrem em áreas com registros de CAR (Cadastro Ambiental Rural), uma ferramenta do Código Florestal para registro autodeclarado de propriedades rurais. Dos 56,5 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas na Amazônia, 18,6 milhões de hectares possuem CARs ilegais sobrepostos às áreas preservadas.

“Uma coisa é muito clara: o desmatamento via invasão de terras indígenas aumentou cerca de 60% nos últimos anos. Esse processo acontece por conta de pessoas que querem tomar essas terras por meio da violência e que fazem o uso irregular do CAR, uma conquista do povo brasileiro, para roubar terras”, pontuou.

Uma nota técnica publicada pelo IPAM no início de 2023 aponta que cerca de 7% das terras indígenas possuem alguma sobreposição irregular de CAR. Pesquisadores e indigenistas também destacam o risco desproporcional que a grilagem representa para os povos isolados, que tem 10,9% das áreas de suas terras sobrepostas por cadastros irregulares.

Cidadania Amazônica

Indagado sobre os caminhos para unir a redução do desmatamento e o crescimento econômico da região amazônica, Moutinho afirmou que o desenvolvimento sustentável da região passa, obrigatoriamente, pela participação dos povos originários na tomada de decisões.

“Quando escutarmos o que esses povos têm a dizer, teremos um futuro digno para as próximas gerações. É ouvindo eles que pautamos os critérios do desenvolvimento econômico e social da Amazônia. Não em critérios econômicos, mas em critérios amazônicos. Escutem os povos indígenas. Essa é a primeira regra para o desenvolvimento da Amazônia”, afirmou.

Moutinho também defendeu que a sabedoria dos povos indígenas e suas técnicas milenares de produção sustentável são inestimáveis para o Brasil e devem ser protegidos.

“A Amazônia e seus povos são uma biblioteca gigantesca, com milhares de livros e que ainda conhecemos muito pouco. Acontece que estamos queimando esses livros antes de abrí-los e, assim, perdemos o conhecimentos fantásticos. Precisamos construir uma cidadania amazônica, essa região imensa que precisa da nossa participação, porque a humanidade, no estado que está e com os problemas que enfrenta, não pode se dar ao luxo de não ouvir a Amazônia”, concluiu.

O calvário lento e doloroso dos Yonamami

wp-1674315309350

Enock Taurepang* para o “Uma gota no oceano”

“O que os olhos não veem, o coração não sente”, diz um ditado do homem branco. As últimas imagens da campanha de extermínio contra os Yanomami ganharam páginas de jornais, sites e emissoras de TV do planeta. São cenas que preferíamos que não fossem reveladas, em respeito aos que sofrem e porque elas também nos envergonham como seres humanos – sim, nós fazemos parte da mesma espécie de quem nos faz mal. Não fomos todos gerados por Omama? Tínhamos nossas razões para não querer olhar para aquilo; vimos 570 de nossas crianças morrerem nos últimos anos. O resto do mundo, não. Este tinha o dever.

Agora, diante das fotos de anciãos e crianças esqueléticos, não faltaram comparações ao horror nazista. A diferença é que o Holocausto que assassinou milhões judeus, homossexuais, ciganos, negros, durou 12 anos e o os seus carrascos foram derrotados e julgados; enquanto o Yanomami é uma lenta agonia, como uma doença dolorosa e incurável, de número incerto de perdas. Esse sentimento de empatia é bem-vindo, pois nós, indígenas, não somos apenas Guardiões da Floresta, mas também pais, mães, filhos, filhas, avôs e avós que choram a perda de seus entes queridos.

A ideia de Brasil grande nunca foi para todos. Os garimpeiros começaram a chegar 20 anos depois, mas a invasão de garimpeiros se acelerou na década de 1970, graças à construção de estradas e de projetos de mineração pela ditadura. Não é possível calcular o número de vítimas, mas obras como a da BR-210 causaram contatos involuntários entre trabalhadores e Yanomami. Segundo a Comissão da Verdade, não se pode afirmar quantos se foram por doenças transmitidas por essa proximidade ou por conflitos, mas se sabe que a vacinação dos indígenas foi negligenciada. 

Hoje, calcula-se que haja por volta 20 mil garimpeiros ilegais na Terra Indígena (TI) Yanomami – mais ou menos quanto a população indígena no território. Mas, acredite: já foi muito pior. A partir de 1987 eles começaram a entrar aos milhares, de uma vez. Mais de 100 aeroportos clandestinos foram abertos em meio à mata e acredita-se que, em 1990, 40 mil garimpeiros haviam invadido. A situação se tornou insustentável e a Terra Indígena Yanomami, que cobre uma área de 96.650 km², na fronteira com a Venezuela, foi homologada em 25 de maio de 1992. 

A ironia é que quem assinou o documento foi Jarbas Passarinho, então ministro da Justiça de Collor, que já havia servido à ditadura – tão exaltada por Bolsonaro. O relatório da Comissão da Verdade responsabilizou não apenas o regime militar, mas também o governo do ex-presidente José Sarney pelas invasões. Mas nada disso foi o suficiente para manter a segurança do povo. A chacina de 12 Yanomami por garimpeiros, em 1993, gerou a primeira condenação por genocídio no Brasil. O julgamento do massacre de Haximu durou três anos. Em 1996, Pedro Emiliano Garcia, Eliézio Monteiro Neri, Juvenal Silva, João Pereira de Morais e Francisco Alves Rodrigues foram condenados por tentativa de extermínio de etnia, e não só por homicídio. Mas, atualmente, os assassinos se vangloriam do que fizeram e ganharam o respeito e a admiração dos demais criminosos. 

Um laudo recente da Polícia Federal revelou que quatros rios da Terra Indígena Yanomami têm uma contaminação por mercúrio absurda: 8.600% maior que o permitido. Em 2019, um estudo de pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) constatou uma contaminação de 56% das mulheres e crianças Yanomami na região de Maturacá, no Amazonas. Não podemos regar hortas, beber água, nem comer peixe de nossos rios. Dá para imaginar morrer de fome e sede na maior concentração de água doce e biodiversidade do planeta? Não é exagero afirmar que a população da capital de Roraima também se encontra já com um grau de contaminação por mercúrio, uma vez que os rios que cortam a TI Yanomami são os mesmos que desaguam no principal rio que abastece a capital Boa Vista.

Bolsonaro está mais próximo de Haia do que imagina. Sua própria obsessão o condena; a compulsão de produzir provas contra si é incalculável. “Torna sem efeito o Decreto de 25 de maio de 1992, que homologa a demarcação administrativa da terra indígena Yanomami”, diz o projeto de decreto legislativo 365/1993, escrito por ele de próprio punho, no estilo lacônico que caracterizou sua passagem pela presidência. Ele, que iniciava seu primeiro mandato, não se deu ao trabalho de inventar uma justificativa qualquer. 

O documento foi arquivado e o ex-presidente tentou levá-lo mais três vezes à votação. “A Cavalaria brasileira foi muito incompetente”, afirmou na Câmara, em 16 de abril de 1998. “Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”, continuou. Só em 2007 a ideia foi sepultada de vez. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) vai acrescentar o Holocausto Yanomami à denúncia que apresentou em 2021 a Haia, e que está em processo de avaliação. Entre as provas apresentadas há 21 ofícios com pedidos de ajuda dos Yanomami que foram ignorados.

“Estamos apreensivos, para além de nossa própria vida, com a da terra inteira, que corre risco de entrar em caos. Os brancos não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu. Mas um dia talvez tenham tanto medo disso quanto nós!”, alertou um sábio do povo Yanomami, Davi Kopenawa. Muitos já perceberam que o céu já está caindo. Nenhuma pessoa sensata não acredita nas mudanças climáticas e em seus efeitos devastadores. Nós, povos indígenas, ajudamos a sustentar o céu desde tempos imemoriais. Mas há uma minoria que não entende que, quando se mata o indígena, está também matando sonhos e a possibilidade de um futuro. E que vidas indígenas importam.

* Enock Taurepang, vice-coordenador geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização que atua nas 35 terras indígenas de Roraima, atendendo uma população de 58 mil indígenas das etnias Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona, Sapará, Taurepang, Wai-Wai, Yanomami, Yekuana e Pirititi.


compass black

Este texto foi originalmente publicado pelo site “Uma gota no oceano” [Aqui!].

A anatomia do desmonte das políticas socioambientais

Em editorial, ISA critica redução drástica da importância e subordinação de órgãos de defesa do meio ambiente, de indígenas e quilombolas provocadas por reforma ministerial de Bolsonaro

bolso salles

Posse do novo ministro de Meio Ambiente, Ricardo Sales | Alan Santos / PR


Por Instituto Socioambiental

A Medida Provisória (MP) n.º 870/2019 e os decretos editados pelo presidente Jair Bolsonaro para reorganizar a estrutura e as competências ministeriais deixaram, deliberadamente, graves lacunas nos instrumentos e políticas socioambientais. A medida denota contrariedade a deveres atribuídos à administração federal pela Constituição e legislação correlata.

Já comentamos o caráter secundário com que ministérios importantes para essa agenda, como os do Meio Ambiente e Direitos Humanos, foram tratados na formação do governo (saiba mais). Agora a sinalização negativa, porém, traduz-se na drástica redução ou mesmo na eliminação de estruturas e competências.

Da lista de atribuições do MMA, espanta a ausência de qualquer menção ao combate ao desmatamento, que sempre constituiu atividade nuclear da política ambiental. Caso se confirme a inação estatal contra o crime ambiental, como dá a entender a nova normativa governamental, as consequências serão danos irreversíveis ao meio ambiente, caracterizado pela Constituição como patrimônio de toda a sociedade.

No momento em que atingimos 19% de desmatamento acumulado na Amazônia e os índices anuais crescem, importante recordar o alerta da comunidade científica (leia estudo). As pesquisas mostram que, atingidos entre 20% e 25% de desmatamento, a maior floresta tropical do mundo entraria em um “ponto de não retorno”, a partir do qual todo o seu equilíbrio seria modificado de forma irreversível, com a perda de serviços ambientais, incluindo a manutenção do regime de chuvas do qual dependem, entre outros, a agropecuária brasileira.

A desestruturação das políticas socioambientais parece fazer de conta que seus desafios e demandas não existem mais. A nova normativa chegou ao ponto de praticamente extinguir as referências ao combate às mudanças climáticas na estrutura do MMA. A Secretaria de Mudança do Clima e Floresta não existe mais. Restou apenas uma referência, de passagem, ao Fundo Nacional sobre Mudança Climática e ao seu comitê gestor. É como se o presidente quisesse acabar com o problema omitindo referências a ele.

Termômetros não têm ideologia

No entanto, o problema existe e é reconhecido por 99% da comunidade científica mundial, que, ao contrário do que Bolsonaro imagina, não é um bando de comunistas. Também é reconhecido e objeto de políticas públicas em praticamente todos os países do mundo. Os termômetros não mentem e não têm ideologia. Entre outras evidências, segundo a Organização Mundial de Meteorologia, os últimos quatro anos foram os mais quentes da história. Trata-se de questão pragmática, que coloca em risco a qualidade de vida em todo planeta, mesmo daqueles que fingem discordar do consenso global.

O nível dos oceanos está subindo, o que põe em risco a vida de milhões de brasileiros. A seca deixou de ser um problema nordestino e crises hídricas assolam cidades outrora abundantes em água. Processos de desertificação – que também deixaram de ser objeto das atribuições do MMA – se expandem. Fenômenos climáticos extremos ocorrem com intensidade crescente. Os impactos das mudanças climáticas sobre cidades e regiões agrícolas serão cada vez maiores (assista ao documentário ‘O Amanhã é Hoje’).

O esvaziamento do MMA seguiu com a transferência das políticas e instrumentos de recursos hídricos, incluindo a Agência Nacional de Águas (ANA), ao Ministério do Desenvolvimento Regional, além do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e seu principal instrumento, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), repassados ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Outra marca da nova estrutura administrativa é a subordinação de direitos fundamentais de minorias a interesses econômicos. Ficaram sob a responsabilidade do MAPA a oficialização de terras indígenas e quilombos, além de outros temas fundiários, como a reforma agrária e a regularização fundiária na Amazônia Legal e nos territórios tradicionais. Os temas ficarão sob o comando da nova Secretaria Especial de Assuntos Fundiários.

Direitos Humanos mais magro

Já o Ministério dos Direitos Humanos ficou ainda mais magro. Havia sido anunciado como gestor de políticas para vários segmentos sociais e minorias, mas ficou reduzido a um conjunto de secretarias sem instrumentos executivos, destinado a cumprir função retórica e ideológica. A Fundação Nacional do Índio (Funai) é o único (pedaço de) órgão vinculado à sua estrutura, mas, com o seu esvaziamento, não se sabe exatamente quais serão suas funções. A Fundação Cultural Palmares, responsável pela certificação de comunidades quilombolas, ficou vinculada ao Ministério da Cidadania.

A desestruturação dos instrumentos de governo e a irresponsabilidade para com o País e as populações mais vulneráveis deixarão o próprio governo sem anteparos para responder a eventuais crises, que tenderão a bater na sua porta. A impressão é de que o novo desenho administrativo não implica apenas subordinação da agenda socioambiental a interesses econômicos e perda de poder de alguns órgãos, mas abre caminho ao desmonte de políticas reconhecidas, inclusive internacionalmente, construídas ao longo de décadas de avanços.

Fonte: Instituto Socioambiental [Aqui!]