
Enquanto agricultores que tiveram suas terras tomadas aguardam pelas indevidas devidas há mais de uma década, a Uenf serve para dar credibilidade às fantasias de ESG do Porto do Açu
Graças a uma iniciativa singular de um colega, pude revisitar brevemente a criação da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) como um daqueles produtos benignos do fim do ciclo militar inaugurado com o golpe de estado de 1964. O fato é que foi graças à mobilização popular ocorrida em Campos dos Goytacazes e à eleição de um líder político exilado pelo regime militar, no caso Leonel Brizola, que a Uenf foi criada. E se sublinhe, com um desenho institucional altamente inovador, pois Brizola entregou a um intelectual militante, Darcy Ribeiro, a tarefa de desenvolver um modelo institucional que estivesse à altura dos desafios impostos pela realidade socialmente injusta que existia (e persiste) na região Norte Fluminense.
Passadas mais de três décadas da criação da Uenf, sua gênese nas lutas populares está majoritariamente esquecida, e na instituição fundada por exigência do povo pobre de Campos dos Goytacazes está instalada uma visão empresarial (que nada tem de empreendedora) que não apenas ignora os objetivos fundacionais da instituição, mas dá passos largos para apagá-los.
Um exemplo disso é um termo de cooperação em vias de ser assinado com o Porto do Açu, empreendimento que não passa de um enclave geográfico que está posto na paisagem do V Distrito como um elemento estranho para sugar tudo o que puder, deixando um rastro de destruição social e ambiental. Nas palavras de um respeitado pesquisador aqui da região “o Porto só quer tirar e só se importa com o que é bom para ele”.
O fato é que para o Porto do Açu e seus proprietários alojados no fundo de “private equity“, o EIG Global Partners, acordos com instituições universitárias públicas como a Uenf (mas também a UFF-Campos e o IFF) são muito interessantes porque garantem mais uma meia página (ou uma, quando muito) nos relatórios anuais de governança corporativa. Isso acaba valendo milhões de dólares para os acionistas secretos de fundos de private equity, pois no mercado da governança sócio-corporativa (ESG), este tipo de acordo serve para acomodar preocupações dos seus investidores. Já para a Uenf (e UFF e IFF), o que fica é uma enorme mancha na imagem de que são instituições realmente voltadas para contribuir para um processo de desenvolvimento social e ambientalmente justo, e não para perpetuar um modelo que é social e ambientalmente desagregador e segregador.
Tenho que frisar aqui o estudo recentemente completado pela minha orientanda Jesa Mariano no Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais que mostrou que os programas de ESG do Porto do Açu não mudaram em nada a vida dos habitantes do V Distrito de São João da Barra, especialmente agricultores familiares e pescadores artesanais, que receberam e recebem as piores consequências da instalação desse enclave geográfico.
Aliás, como alguém que vem realizando pesquisas no V Distrito de São João da Barra desde antes do início da instalação do Porto do Açu, posso dizer que as questões que valem a pena de serem pesquisadas ocorrem fora das cercas que demarcam o território desse enclave internacional. Tanto é verdade que já desses estudos já saíram dissertações de Mestrado e teses de doutorado que resultaram em capítulos de livros e incontáveis artigos científicos.

Agricultores protestam na Barra do Açu contra a tomada de suas terras para implantação do Porto do Açu
O inconveniente para o Porto do Açu e seus proprietários é que esses trabalhos realizados sem a chancela oficial de acordos de cooperação como o que está para ser assinado com a Uenf mostram os graves efeitos ambientais e sociais que o enclave vem causando em São João da Barra. A começar pelo fato de que as centenas de propriedades forçosamente tomadas, muitas vezes com o uso de violência extrema, pelo governo do Rio de Janeiro de seus legítimos proprietários agora se encontram sob controle de fato do Porto do Açu, sem que seus proprietários, agricultores pobres, tenham sequer a perspectiva de que um dia serão ressarcidos pela perda de suas terras.

Agricultor mostrando seu plantio de abacaxi afetando pela salinização causada pelo Porto do Açu
Mas estudos realizados pelos meus orientandos no Setor de Estudos sobre Sociedade e Meio Ambiente (Sesma) do Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA) também já identificaram a ocorrência de um processo erosão costeira e de salinização de águas continentais, fatos que complicam ainda mais a existência daqueles que se recusam a abandonar um território forte e negativamente impactado pela implantação do Porto do Açu.
Apesar da eventual assinatura de um termo de cooperação entre Uenf e Porto do Açu, uma coisa é certa: os estudos que documentam os malfeitos do enclave geográfico vão continuar, pois na instituição criada por Brizola e Darcy ainda há quem queira cumprir os objetivos fundacionais do que deveria ser uma Universidade do Terceiro Milênio comprometida com a felicidade do povo e não de quem o faz sofrer. E mais importante, enquanto os atingidos não forem ressarcidos e os danos ambientais continuarem avançando, o que não faltará é objeto de pesquisa. E no que depender de mim e dos meu grupo de pesquisa, o compromisso sempre será com os atingidos, compromisso esse que nunca caberá em acordos que só beneficiarão os donos do enclave.












