Brasil está preparado para novas ondas de calor em 2024?

País teve em 2023 quase um quinto do ano com altas temperaturas extremas, mas não conta com infraestrutura necessária para lidar com as mudanças climáticas e suas consequências

praia cheiaFoto: Tercio Teixeira/AFP via Getty Images 

Por Nilson Brandão para a Deutsche Welle

Com nove ondas de calor em 2023 e seguindo uma tendência mundial, o Brasil deverá continuar com uma sucessão de altas recordes de temperatura em 2024, segundo especialistas ouvidos pela DW. O grande problema é que a infraestrutura do país não está preparada para isso.

“Entraremos em um ano em que os extremos se tornarão ainda mais frequentes e, em alguns casos, com maior intensidade”, afirma Gilvan Sampaio, coordenador de Ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Além do calor forte no Sudeste e no Centro-Oeste, devem haver secas de diversas intensidades no Nordeste e chuvas e inundações na região Sul.

Em 2023, o país somou 65 dias de muito calor, o equivalente a quase um quinto do ano (18%), de acordo com dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Entre julho e novembro, foram cinco recordes seguidos de temperatura média. As novas ondas de calor acontecerão já neste verão e ao longo do primeiro semestre de 2024.

Consequências na saúde

Mas o que ondas de calor cada vez mais frequentes podem representar? O impacto pode ser sentido desde a saúde até problemas na natureza.

“O calor extremo tem consequências para as pessoas e sistemas naturais no Brasil. As ondas de calor em 2023 foram acompanhadas de alta umidade relativa, que impacta as pessoas”, explica Yasna Palmeiro, pesquisadora do Lancet Countdown América Latina, citando riscos de desmaios, doenças cardíacas e até morte.

Mulher se refresca jogando água de uma garrafa pet na cabeça

Sensação térmica de aproximou de 60ºC no Rio de Janeiro em novembroFoto: Silvia Izquierdo/AP Photo/picture alliance

Em novembro, a temperatura beirou os 45ºC em Araçuí, no interior de Minas Gerais, e a cidade do Rio de Janeiro registrou a sensação térmica recorde de 58,5ºC.

O calor extremo aumentou o número de atendimentos médicos e atrasou a manutenção da principal estação de tratamento de água.

O atendimento na rede de saúde aumentou em diagnósticos relacionados ao calor, como mal-estar, fadiga, pressão baixa e síncope. Na segunda semana de novembro, a mais quente daquele mês, o movimento foi 51% maior que na segunda semana do mês anterior. A prefeitura abriu 100 pontos de hidratação, acelerou o reflorestamento e o uso de drones semeadores.

Causas do calor extremo

O ano de calor atípico foi motivado por vários fatores. Um deles foi os impactos do fenômeno El Niño, caracterizado pelo aquecimento anormal e persistente da superfície do Oceano Pacífico na região da Linha do Equador.

Para os especialistas, as ondas de calor cada vez mais frequentes também se devem ao aquecimento global.

“Além da elevação da temperatura dos oceanos, outros fatores têm contribuído para a ocorrência de eventos cada vez mais extremos, como o aumento da temperatura global da superfície terrestre por conta do aumento das emissões de gases do efeito estufa“, registra o Inmet.

“Os oceanos geram mais vapor, o que esquenta a atmosfera, e isso intensifica as ondas de calor”, diz a cientista da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Regina Rodrigues.

Homem sem camisa dentro de uma fonte, de costas para o chafariz de uma fonte

Em 2023, Brasil somou 65 dias de muito calorFoto: PILAR OLIVARES/REUTERS

Dados do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da ONU mostram que as emissões de gases de efeito estufa devem ser reduzidas em 43% até 2030 (sobre 2019) para limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC até fim do século em relação aos níveis pré-industriais e evitar impactos catastróficos como ondas de calor, secas e chuvas mais frequentes e graves.

“O Brasil tem experimentado os efeitos das mudanças climáticas de forma especial por três razões principais: a grande dimensão geográfica, diversos nichos ecológicos naturais e as megacidades”, explica a pesquisadora Yasna Palmeiro, da Lancet Countdown América Latina.

Documento recente do Lancet Countdown para o Brasil elenca os eventos extremos deste ano, como a onda de calor de inverno que afetou grande parte do país, enchentes catastróficas no Rio Grande do Sul e secas e incêndios florestais recordes na região amazônica.

“Até agora, 2023 foi um ano de extremos meteorológicos no mundo e o Brasil não foi exceção”, prossegue o documento, afirmando que “as alterações climáticas são a maior ameaça à saúde global do século 21”.

Diretora-executiva do Instituto do Clima e Ciência (ICS), Maria Netto explica que a grande novidade é que estes fenômenos estão ocorrendo de forma exacerbada nos últimos cinco anos, com maior frequência e intensidade.

“O Brasil não tinha, historicamente, uma visão muito clara sobre como financiar a adaptação e a resiliência da nossa infraestrutura, da nossa economia a esses eventos climáticos”, afirma Maria Netto.

Despreparo da infraestrutura

A opinião de Netto é compartilhada por todos os especialistas ouvidos pela DW: atualmente, o Brasil não tem a capacidade necessária para lidar com as mudanças climáticas – assim como a maior parte do mundo.

“É muito claro que o país não está preparado para enfrentar o aumento da frequência e intensidade dos eventos climáticos intensos”, destaca o físico Paulo Artaxo, cientista do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU.

Homem sem camisa atira um balde de água na própria cabeça, em uma região muito pobre

Pescador se refresca à beira de um lago, em ManausFoto: BRUNO KELLY/REUTERS

“Não estamos preparados de jeito nenhum para esse tipo de eventos extremos, nem no Brasil, nem no mundo. Mas precisamos nos preparar”, afirmou em um evento recente a secretária nacional de Mudanças Climáticas, Ana Toni.

Para a diretora do ICS, seria necessário uma política integral e análise profunda com formas de promover maior resiliência e resposta aos eventos climáticos. 

“Carecemos de instrumentos financeiros, análise paramétrica de riscos análise fiscal mais profunda sobre custos econômicos que resultem em mecanismos ágeis de compartilhamento de riscos e respostas rápidas aos eventos do clima”, destaca.

O que o Brasil já está fazendo

Netto pondera, entretanto, que o governo está ciente do problema e que já existem estudos setoriais para promover a adaptação, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

“Será fundamental priorizar de forma integrada a necessidade de um plano de adaptação nacional e planos subnacionais que possam impulsionar melhores adaptação, prevenção, resiliência, gestão de riscos e mecanismos de resposta rápida”, explica.

Toni ressalta que os efeitos das alterações climáticas estão chegando mais rápido que o previsto. Segundo Toni, na perspectiva do governo federal, o Comitê Interministerial de Mudança do Clima (CIM) decidiu fazer pelo menos 14 planos de adaptação em diversas áreas, como energia, agricultura, cidades e transporte.

Além do planejamento, maior inclusão de critérios de riscos climáticos e ações operacionais, os especialistas reforçam a necessidade de combater a evolução do efeito estufa.

“As soluções para resolver o problema a gente sabe: acabar com os combustíveis fósseis e com o desmatamento tropical. Parece simples, mas envolve o reordenamento completo da economia mundial”, destaca o coordenador de Política Internacional do Observatório do Clima, Claudio Angelo.

E os eventos extremos não são uma preocupação apenas dos especialistas: as mudanças climáticas e ameaças ao meio ambiente são motivo de medo para 32% dos entrevistados na seção Brasil da pesquisa O que Preocupa o Mundo, realizada pelo do Instituto Ipsos em outubro – índice bem acima dos 20% registrados na pesquisa anterior.

“É inegável que o brasileiro tem sentido na pele os reflexos destes problemas”, diz o CEO do Ipsos Brasil, Marcos Caliari.


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Este texto foi originalmente publicado pela Deutsche Welle [Aqui!].

Calor recorde deve castigar o Hemisfério Sul com o início do verão

O Hemisfério Norte experimentou um verão sufocante devido aos padrões climáticos e meteorológicos. Os cientistas dizem que o Hemisfério Sul não escapará do mesmo destino

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Uma combinação semelhante de padrões climáticos em 2019-2020 resultou nos devastadores incêndios florestais do “verão negro” na Austrália. Crédito: Carla Gottgens/Bloomberg via Getty

Por Bianca Nogrady para a Nature

O hemisfério sul enfrenta um Verão de extremos, dizem os cientistas, à medida que as alterações climáticas amplificam os efeitos da variabilidade climática natural. Isto surge na sequência de um verão no hemisfério norte que assistiu a ondas de calor extremas em toda a Europa, China e América do Norte, estabelecendo novos recordes de temperaturas diurnas e noturnas em algumas áreas.

Andrew King, cientista climático da Universidade de Melbourne, na Austrália, afirma que há “uma grande probabilidade de vermos temperaturas recordes, pelo menos na média global, e de vermos alguns eventos particularmente extremos em algumas partes do mundo”.

Efeitos do El Niño

À medida que 2023 chega ao fim, meteorologistas e cientistas do clima estão prevendo padrões climáticos que levarão a temperaturas recorde da superfície da terra e do mar. Estes incluem um forte El Niño no Oceano Pacífico e um Dipolo positivo no Oceano Índico.

“Esses tipos de grandes fatores podem ter uma grande influência na seca e nos extremos em todo o hemisfério sul”, diz Ailie Gallant, cientista climática da Universidade Monash em Melbourne, Austrália, e investigadora-chefe do Centro de Excelência para Extremos Climáticos do Conselho Australiano de Pesquisa. Na Austrália, ambos os fenómenos tendem a “causar condições de seca significativas, especialmente no leste do país”.

Durante 2019 e 2020, a mesma combinação de fatores climáticos contribuiu para incêndios florestais que arderam durante vários meses em mais de 24 milhões de hectares no leste e sudeste da Austrália.

Na África Oriental, a combinação do El Niño e de um Dipolo positivo do Oceano Índico está associada a condições mais húmidas do que o normal e a uma maior probabilidade de ocorrência de chuvas extremas e inundações. Prevê-se precipitação acima da média para grande parte da África Austral entre meados e finais da Primavera (Outubro a Dezembro), seguida de condições quentes e secas no Verão.

Um homem carrega um idoso por uma estrada inundada durante fortes enchentes na vila de Sir Lowry, na África do Sul.A África do Sul sofreu inundações na primavera de 2023. Crédito: Rodger Bosch/AFP via Getty

Na América do Sul, o El Niño tem um efeito mais quadriculado. Traz condições húmidas e inundações para algumas partes do continente, particularmente Peru e Equador, mas condições quentes e secas para a Amazónia e regiões do Nordeste.

Antes de 2023, os três anos consecutivos de contraparte do El Niño, La Niña, trouxeram condições relativamente frias e húmidas ao leste da Austrália e conduziram a secas recordes e a clima quente na metade inferior da América do Sul. Mas o “triplo mergulho” do La Niña ajudou a mascarar os aumentos da temperatura global associados ao aumento das emissões de gases com efeito de estufa e às alterações climáticas, diz King.

Ele diz que, juntamente com as condições do El Niño, todo o efeito da mudança climática está “emergindo adequadamente”.

Entretanto, a atividade humana continua a contribuir para os níveis de gases com efeito de estufa na atmosfera.

A cientista climática Danielle Verdon-Kidd, da Universidade de Newcastle, Austrália, diz que as ondas de calor — um dos eventos climáticos mais mortais — são uma grande preocupação para o verão de 2023. “Sabemos que com as condições que temos agora é mais provável que esse tipo de sistema se desenvolva durante o verão”, diz ela

O verão de 2023 no hemisfério norte registou temperaturas elevadas sem precedentes na China, em partes da Europa e no Norte de África, a pior época de incêndios florestais alguma vez registada no Canadá e graves ondas de calor marinhas no Mediterrâneo. As grandes massas de terra no hemisfério norte criam áreas de circulação de ar quente e seco, conhecidas como cúpulas de calor, que bloqueiam os sistemas de baixa pressão que, de outra forma, trariam condições mais frias e húmidas.

No hemisfério sul, as cúpulas de calor são menos preocupantes. “Também temos uma grande massa terrestre na Austrália”, diz Verdon-Kidd, mas o hemisfério sul tem uma proporção oceano-terra muito maior, “portanto, os nossos sistemas são diferentes”.

Além desses fenômenos convergentes, o Sol e o vapor de água atmosférico influenciarão o clima. King diz que o Sol está se aproximando do pico do seu ciclo de atividade de 11 anos, o que poderia contribuir com um pequeno mas significativo aumento nas temperaturas globais. Entretanto, a erupção do vulcão subaquático Hunga Tonga – Hunga Ha’apai em Janeiro de 2022 aumentou a quantidade de vapor de água na alta atmosfera, o que também deverá aumentar ligeiramente as temperaturas globais. As mudanças de temperatura são “centésimas de grau em relação à média global, portanto não são nem de longe tão importantes como as alterações climáticas ou mesmo o El Niño neste momento, mas são um factor pequeno”, diz King.

Aquecimento do planeta.  Gráfico mostrando o aumento da temperatura média global desde 1970.

Fonte: Clima Central

Oceanos quentes

Os oceanos também estão sentindo o calor. As temperaturas médias globais da superfície do mar atingiram um máximo recorde em Julho deste ano, e algumas áreas estiveram mais de 3 ºC mais quentes do que o habitual. Houve também níveis recordes de gelo marinho ao redor da Antártica durante o inverno, o que poderia levar a um ciclo de feedback, diz Ariaan Purich, cientista climático da Universidade Monash. “Grandes áreas do Oceano Antártico que normalmente ainda estariam cobertas por gelo marinho em Outubro, não estão”, diz ela. Em vez de ser refletida no gelo branco, a luz solar que entra tem maior probabilidade de ser absorvida pela superfície escura do oceano. “Isso aquece a superfície e derrete mais gelo marinho, para que possamos ter esse feedback positivo.”

Icebergs derretidos são vistos na Ilha Horseshoe, na Antártica.À medida que o gelo da Antártida derrete, a água mais escura absorve mais luz solar, provocando mais derretimento. Crédito: Agência Sebnem Coskun/Anadolu via Getty

Outro elemento meteorológico presente neste verão é o Modo Anular Sul, também conhecido como Oscilação Antártica, que descreve a mudança para o norte ou para o sul do cinturão de ventos de oeste que circunda a Antártida.

Em 2019, a Modalidade Anular Sul esteve numa fase fortemente negativa. “O que isto significou foi que em todo o leste da Austrália havia muitos ventos muito quentes e secos soprando do deserto para o leste da Austrália, o que realmente exacerbou o risco de incêndios florestais”, diz Purich. Um Modo Anular Sul positivo está associado a maiores precipitações na maior parte da Austrália e no sul da África, mas a condições secas na América do Sul, Nova Zelândia e Tasmânia.

O Modo Anular Sul está atualmente em um estado positivo, mas a previsão é que retorne à posição neutra nos próximos dias, e “eu diria que não esperamos ter um Modo Anular Sul negativo muito forte nesta primavera”, diz Purich. 

E, por mais quente que seja o verão, o pior ainda pode estar por vir. O cientista atmosférico David Karoly, da Universidade de Melbourne, que foi membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, afirma que o maior impacto do El Niño provavelmente será sentido no verão de 2024–25. “Sabemos que o impacto nas temperaturas associado ao El Niño acontece um ano após o evento”, diz Karoly.

doi : https://doi.org/10.1038/d41586-023-03547-9


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Este texto escrito originalmente em inglês foi publicado pela Nature [Aqui!].

À espera do pico do El Niño

temperatura

As altas temperaturas dos últimos dias deveriam estar despertando um senso de urgência em todos os governantes brasileiros, mas a maioria deles parece estar entretida com outras coisas.  Já as pessoas que não governam, mas são governadas por eles, tenta sobreviver do jeito que dá, especialmente aqueles que compõe a imensa maioria pobre da população brasileira que não dispõe das condições financeiras para sequer ventilar suas casas.

A questão que esses dias quentes atualizam é a da necessidade de que comecemos um urgente processo de adaptação climática nas nossas cidades, pois a situação ainda vai piorar muito em face da indisposição de se controlar a emissão de combustíveis fósseis que estão na raiz dos problemas climáticos que estamos atravessando.

Tenho me interessado pela questão da adaptação climática, pois já está apontado pela comunidade científica que uma das facetas da crise climática é que ela será sentida de forma diferenciada e se abaterá mais pesadamente sobre os pobres. Basta pensar na capacidade de pagar as contas de eletricidade e água que vão encarecer ainda mais no futuro, ou no espaço reduzido que os pobres têm comparativamente aos ricos dentro de suas casas.  Com casas menores e densamente povoadas, os efeitos das alterações climáticas serão muito mais sentidas pelos pobres.

Mas o que significa adaptação climática?

Mas falando em adaptação climática, o que significaria em um país de características tropicais como o Brasil se tornar mais adaptado? A primeira coisa seria considerar a necessidade de inserir ferramentas de ajuste climático nos chamados planos diretores para que o principal instrumento de gestão municipal possa refletir as demandas de adaptação a um clima em transição para mais quente.

Muitos não conhecem, mas existe uma iniciativa chamada “Programas Cidades Sustentáveis” (PCS) que se apresenta, entre outras coisas, como uma ferramenta para gerir alternativas de adaptação. Ao verificar quantos municípios brasileiros já aderiram, verifiquei que dentre os 5.568 existentes, apenas 290 já se tornaram signatários (ou seja, apenas 5,3%), e 145 concentrados na região Sul (exatos 50%). 

Ainda que se possa considerar que o PCS seja apenas uma das muitas iniciativas do gênero, essa baixa adesão me parece refletir bem o estado da arte da compreensão da maioria dos governantes brasileiros sobre a necessidade de começarmos a internalizar nos planos diretores municipais as prioridades que a mudança climática está impondo de forma inexorável.

Campos dos Goytacazes: um exemplo que combina extrema segregação social, problemas climáticos e despreparo para a adaptação

Agora pensando em Campos dos Goytacazes, cidade onde vivo há quase 26 anos, o que chama a atenção é o fato de que apesar de se ter um prefeito “jovem” no comando do executivo municipal, há uma completa ignorância sobre os problemas que já estão por aqui.

Assim é que a simples análise do atual Plano Diretor Municipal apontará que não há qualquer menção à adaptação climática. Não bastasse isso, o que se assiste nas ruas é a remoção tresloucada das poucas árvores existentes nos espaços públicos, a aplicação de camadas asfálticas escuras, e a imposição de um modelo de cidade segregada que coloca os mais pobres isolados em áreas desprovidas de elementos essenciais como água e esgoto, enquanto que os ricos se isolam em condominados de alto luxo nos quais o governo municipal destina a infraestrutura que é negada aos pobres.

Há ainda que se considerar que sendo a água um dos elementos mais afetados pelo aquecimento global,  uma concessionária privada continua exercendo um controle férreo sobre quem recebe ou não o líquido precioso para suprir necessidades básicas.  Aí já se sabe como fica a situação, pois os mais pobres são aqueles que ficam na ponta de lança de formas draconianas de distribuição e de cobrança.

Não se pode esquecer que um dos primeiros atos do prefeito Wladimir Garotinho foi extinguir a secretária municipal de Meio Ambiente, tornando um mero apêndice de um hipertrofiada secretária municpal de Planejamento Urbano, Mobilidade e Meio Ambiente. Não surpreende então que não haja atual qualquer vislumbre de que estamos evoluindo em termos de planejamento urbano, mobilidade ou, pior ainda, meio ambiente.

Assim, é que chegamos a uma condição em pleno século XXI em que o município de Campos dos Goytacazes continua completamente estagnado no tocante a um ajuste cada vez mais urgente na forma de tratar a questão ambiental.

E o pico do El Niño ainda vai chegar….

Sendo habitante de Campos dos Goytacazes ou de qualquer um dos 5.278 em que os prefeitos continuam alienados da necessidade de adotar políticas de ajuste climático, uma coisa é certa: o atual ciclo de altíssimas temperaturas só deverá se encerrar no primeiro trimestre de 2024, e pior ainda está por vir porque o atual episódio do El Niño ainda nem chegou ao seu pico. 

Assim, ainda que não parece, a questão climática precisa ser pautada de forma direta e inexorável por todos os que se preocupam com a capacidade de nossas cidades de estarem minimamente adaptadas para os impactos mais duros das mudanças climáticas que deixaram definitivamente o domínio do debate teórico dos cientístas para se tornar um elemento central no planejamento urbano.

 

El Niño, mudanças climáticas e desmatamento: cientistas explicam o que pode estar por trás da seca da Amazônia

Região Norte do Brasil tem a pior estiagem do século, com sérios impactos climáticos, econômicos e sociais. Tema foi debatido em evento promovido pela FAPESP no dia 17 de outubro

black riverO rio Negro registrou este mês o nível mais baixo da história (foto: Alex Pazuello/Secom)

Julia Moióli | Agência FAPESP

A situação da Amazônia é crítica: os Estados do Acre, Amapá, Amazonas e Pará tiveram os menores índices de chuva desde 1980 entre os meses de julho e setembro. E o rio Negro registrou este mês o nível mais baixo de água desde 1902, quando teve início a medição. A mais intensa seca na região em cem anos é consequência da influência do fenômeno El Niño, mas também há indícios de estar associada às mudanças climáticas. A avaliação foi feita por especialistas que participaram do webinário “Eventos Climáticos Extremos em Ano de El Niño”, promovido pela FAPESP em 17 de outubro.

O El Niño é um fenômeno que envolve alterações na temperatura do oceano Pacífico Tropical e no comportamento da atmosfera e contribui para alterações nos ventos e na precipitação em várias áreas do planeta. De modo geral, modifica o comportamento dos sistemas frontais (sucessões de frentes), que se tornam mais frequentes e persistentes sobre a região Sul, provocando ali um aumento das precipitações e diminuição das chuvas nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.

“Em anos de El Niño, portanto, o fenômeno costuma provocar chuvas abaixo da média na região da Amazônia, não apenas no Amazonas, mas também nos outros Estados da região Norte, bem como na região Nordeste”, explicou Regina Alvalá, diretora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). “Neste ano, observamos ainda que os impactos do El Niño podem estar combinados com a situação do oceano Atlântico Tropical Norte, que influencia no aumento das chuvas acima do Equador, mas diminui ainda mais as precipitações na Amazônia. Portanto, precisamos aprofundar os estudos para avaliar a associação com as mudanças climáticas. A situação da escassez de chuvas precisa ser acompanhada mês a mês, inclusive para subsidiar a adoção de ações adequadas para mitigar os seus impactos.”

Regina Rodrigues, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), destacou um estudo recente que estima perdas econômicas globais – considerando o Produto Interno Bruto (PIB) de diversos países – de aproximadamente US$ 5 trilhões ao ano relacionadas aos El Niños de 1982-1983 e 1997-1998, com efeitos que duram até cinco anos.

“Estamos caminhando para outro evento desse porte”, alertou. “É importantíssimo frisar que, embora seja um fenômeno natural do sistema climático, as mudanças climáticas decorrentes de atividades humanas alteram sua frequência e intensidade. Estudos trazem evidências de que haverá um aumento na magnitude dos El Niños”, disse Rodrigues.

Na avaliação de Gilvan Sampaio, coordenador-geral de Ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), há uma tendência bastante clara de os eventos extremos se tornarem cada vez mais frequentes e intensos. “Estudos indicam que, até o fim do século, viveremos em um clima de El Niño semipermanente”, afirmou.

“Estudos mostram que o aquecimento da atmosfera se expande da região tropical para médias latitudes, impactando o regime de chuvas”, reforçou Tércio Ambrizzi, coordenador do Grupo de Estudos do Clima do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP).

O desmatamento da Amazônia também agrava a seca, já que diminui a evapotranspiração, isto é, a emissão de vapor d’água pela floresta, que forma as chuvas.

Outros aspectos importantes que merecem atenção este ano na avaliação dos especialistas: antecipação da estação seca, que costuma ocorrer entre novembro e março, para abril a outubro; excesso de chuvas na região Sul, especialmente nos Estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina; e temperaturas acima da média em praticamente todo o Brasil.

Impactos sociais e econômicos

A seca já impacta a população local na Amazônia: comunidades ribeirinhas ficam isoladas por conta da diminuição dos níveis dos rios; botos e peixes morrem em razão da temperatura mais alta da água; a produção de energia elétrica é comprometida; e queimadas prejudicam a qualidade do ar.

Embora as consequências econômicas possam durar anos e se complicarem num futuro próximo, alguns problemas são sentidos desde agora: em setembro, 79 municípios da região Norte tiveram mais de 80% de suas áreas agrícolas afetadas, de acordo com o Cemaden.

Alvalá reforça também que a navegabilidade dos rios vem sendo afetada, causando transtornos em uma região que depende de navegabilidade para transporte de diversos insumos. Fabricantes da Zona Franca de Manaus enfrentam dificuldades para receber componentes para a produção e distribuição de produtos para o resto do país.

“Como não é possível garantir que as chuvas voltarão a níveis normais, é preciso atuar na gestão da crise imposta pela seca para diminuir seus impactos”, ponderou Alvalá. “Designar equipes para a fiscalização das queimadas e o combate ao fogo contribui para reduzir a poluição atmosférica que impacta a saúde das pessoas e, consequentemente, reduz a demanda por insumos importantes para a área de saúde”, exemplificou.

Embora esse tipo de ação imediata pareça trivial, vale lembrar que a região da Amazônia se insere em uma área de mais de 3 milhões de quilômetros quadrados, o que demanda ações coordenadas envolvendo diversos órgãos e atores. Nesse sentido, Alvalá destacou os esforços do governo federal, que tem organizado reuniões periódicas para monitoramento da seca na região Norte e articulação e ações no âmbito do poder executivo federal.

Os pesquisadores apontam a necessidade de intensificar as estratégias de planejamento: “Temos um conhecimento muito claro dos impactos climáticos e do ônus que o El Niño ocasiona”, afirmou Ambrizzi. “Portanto, é possível se preparar com antecedência de três a seis meses, especialmente no caso das defesas civis.”

Os cientistas ressaltaram a importância de estratégias focadas no planejamento urbano, com planos diretores mais eficientes, para que a população possa conviver com o clima mais seco nos próximos anos.

Sampaio citou, por exemplo, possíveis alterações nas variedades agrícolas cultivadas. “O plantio de milho e feijão no Nordeste, que demanda quantidade considerável de água, provavelmente precisará ser substituído.”

Difusão do conhecimentoPromovido pela equipe do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG https://mudancasclimaticas.fapesp.br/), o webinário analisou a intensificação dos eventos climáticos extremos nas últimas décadas e sua associação com fenômenos meteorológicos recorrentes, entre eles o El Niño.

Apresentado por Maria de Fátima Andrade, membro da coordenação do PFPMCG, e moderado por Ambrizzi, o evento foi transmitido pelo canal da Agência FAPESP no YouTube.

Em sua apresentação, o professor do IAG-USP Ricardo Trindade destacou a importância estratégica do PFPMCG, que, há 15 anos, busca entender como as alterações climáticas acontecem, como mitigá-las e qual é o papel do ser humano nos eventos relacionados.

Outros palestrantes, além dos já mencionados, foram Renata Tedeschi Coutinho, pesquisadora do Instituto Tecnológico Vale; e Marcelo Romero, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e membro do Comitê de Mudanças Climáticas da Prefeitura do Município de São Paulo.

Eventos extremos no Brasil e o impacto nas cidadesGilvan Sampaio, que é autor de uma série de livros sobre mudanças climáticas, e Renata Coutinho, que desde 2002 estuda a influência dos fenômenos El Niño e La Niña sobre a precipitação e seus extremos na América do Sul, dividiram a apresentação, que comentou estudos recentes sobre a importância do El Niño na situação climática extrema atual. Trataram ainda do fenômeno chamado de “Super El Niño”, que deve ser o caso deste ano, com anomalias da temperatura da superfície do mar acima de 2° C ou mais.

Na sequência, Romero expôs o painel “Medidas de mitigação e resposta a eventos extremos nas cidades”: “As cidades são o local escolhido pela maior parte da população mundial para viver, e essa tendência vem aumentando”, afirmou.

Romero chamou atenção para dois relatórios elaborados pelo United Nations Environment Programme (Unep), o programa para o meio ambiente da Organização das Nações Unidas (ONU): o primeiro sobre tendências do clima e medidas de mitigação, com destaque para aspectos como energias renováveis (indústria, transporte, edifícios); e o segundo sobre medidas de adaptação para tornar as mudanças climáticas menos agressivas, sobretudo nos ambientes urbanos. E, considerando que o Acordo de Paris dificilmente será cumprido, destacou a importância de medidas de crosscutting, ou seja, que unem estratégias de mitigação e adaptação, como é o caso do plantio de áreas verdes, restauração de rios e agricultura urbana.

Coube a Regina Alvalá apresentar um panorama dos impactos dos eventos extremos mais recentes, associados ao El Niño atualmente em curso. A pesquisadora citou números alarmantes: “Entre os dias 1 e 4 de setembro, foram registrados aproximadamente 300 milímetros de chuvas, que impactaram 103 cidades da região do Rio Grande do Sul. Isso é praticamente o dobro da média climatológica esperada para o mês de setembro”.

Além disso, o Cemaden emitiu para o mês de setembro 173 alertas, 75% deles para municípios da região Sul, e registrou 194 eventos, dos quais 87% estavam associados a inundações e deslizamentos de terra.

Alvalá trouxe ainda dados sobre o monitoramento das condições atuais de seca, e sobre o risco de seca na agricultura familiar, este incluindo a severidade e a vulnerabilidade socioeconômica que varia de região para região (apesar de ser mais impactante no Nordeste, também é significativa no Norte, mas menos expressiva no Sul); sobre o volume de energia armazenada para diferentes sistemas de reservatórios (diminuição do volume de energia armazenada nas regiões Norte e Nordeste e aumento na região Sul); e sobre o risco de fogo, com mais de 340 municípios com níveis de alerta alto.

O webinário Eventos Climáticos Extremos em Ano de El Niño está disponível na íntegra em: www.youtube.com/watch?v=_1ddjHDQhNk.


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Este texto foi originalmente publicado pela Agência Fapesp [Aqui!].

Mudanças no clima associadas ao El Niño aumentam incidências de doenças na América Latina

salud-el-nino-2-996x567Chuvas intensas e enchentes aumentam a ocorrência de doenças relacionadas ao consumo de água e transmitidas por mosquitos. Crédito da imagem: Lynn Greyling/Public Domain Pictures , imagem em domínio público

Por Rodrigo de Oliveira Andrade para a SciDev

[SÃO PAULO] As mudanças no regime climático e pluviométrico desencadeadas pelo fenômeno El Niño impactam inclusive os regimes de caça de certos animais que favorecem a transmissão e propagação de doenças infecciosas na América Latina e no Caribe. Na região amazônica, esse é o caso da equinococose policística, que pode ser mortal, descobriu um novo estudo.

O El Niño e suas mudanças no clima , dizem os especialistas, já estão afetando a incidência e distribuição, especialmente daqueles transmitidos por vetores, como roedores, mosquitos e carrapatos.

El Niño e suas birras

O El Niño é caracterizado pelo aquecimento das águas no Pacífico equatorial central e leste, que faz com que os ventos enfraqueçam, a massa de água quente não circule, libere mais calor na atmosfera e favoreça o aparecimento de chuvas na região. Em outras áreas, ao mesmo tempo, pode gerar secas.

“Na América Latina, o El Niño produz aumento de temperatura e chuvas na costa do Pacífico, sul e sudeste do Brasil e norte da Argentina, enquanto causa secas na América Central, parte do Caribe e norte da América do Sul.”

Christovam Barcellos, Departamento de Informação e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Brasil

Apesar de se formar no Pacífico, influencia o clima em várias partes do mundo. “Na América Latina, o El Niño produz aumento de temperatura e chuvas na costa do Pacífico, sul e sudeste do Brasil e norte da Argentina, enquanto provoca secas na América Central, parte do Caribe e norte da América do Sul.”, aponta Christovam Barcellos, do Departamento de Informação e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Brasil.

Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, no Brasil, acrescenta que essas mudanças afetam a incidência de doenças infecciosas. No entanto, ele observa que é difícil dizer quais se destacarão porque o clima não é o único fator envolvido. ” Os riscos à saúde associados ao El Niño variam de acordo com a região, país e época do ano”, disse ele ao SciDev.Net.

Além do impacto direto do clima na saúde, a pesquisa também encontrou fatores indiretos. Um trabalho recente publicado no PNAS constatou que em parte da região Pan-Amazônica o El Niño pode interferir no padrão de caça de certos animais consumidos por populações indígenas e rurais, favorecendo a transmissão e disseminação da equinococose policística.

Essa doença negligenciada é causada pelo verme Echinococcus vogeli , que costuma infectar pacas ( Cuniculus paca ) e cutias ( Dasyprocta leporina ), comumente caçadas na região.

Cuniculus paca , uma das espécies comumente infectadas pelo verme Echinococcus vogeli e cuja caça pode espalhar a doença para as pessoas. Crédito da imagem: Marcos Antonio Vieira de Freitas/Wikimedia Commons , sob licença Creative Commons (CC BY-SA 4.0) .

Os caçadores costumam descartar as vísceras cruas no ambiente ou utilizá-las como alimento para cães domésticos, “que se infectam e eliminam os ovos de vermes em suas fezes, contaminando o solo, os alimentos e a água consumidos pelos humanos”, explica o biólogo Leandro Siqueira de Souza , da Fundação Fiocruz, que estuda a doença no Norte do Brasil.

O estudo internacional analisou mais de 400 casos de equinococose policística na região e dados sobre práticas de caça registradas em 55 áreas nos últimos 55 anos.

“Em algumas áreas, a seca causada pelo fenômeno pode afetar a pesca , obrigando os moradores a recorrer à caça de pacas e cutias, aumentando o risco de contaminação por E. vogeli “, disse Adrià San José, do Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal ), na Espanha, um dos autores do artigo.

“O estado do Acre, no Brasil, e o Peru abrigam as áreas com maior potencial de circulação do parasita”, disse à SciDev.Net Xavier Rodó, também do ISGlobal e outro dos autores do estudo .

Mais parasitas, vírus, bactérias e mosquitos

O El Niño também pode produzir fortes chuvas e inundações, além de aumentar a ocorrência de doenças relacionadas ao consumo de água , como esquistossomose, hepatite A e doenças diarreicas.

“Nas favelas urbanas, devido à má coleta de lixo e má drenagem, esses eventos podem desencadear surtos de leptospirose”, disse Creuza Rachel Vicente, do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Espírito Santo, ao SciDev.Net no

Essas chuvas contribuem para a formação de poças de água estagnada onde crescem os mosquitos Aedes aegypti , causadores da dengue, zika e chikungunya. “Na dengue, as temperaturas mais quentes aumentam a velocidade de replicação do vírus [que causa a doença], bem como a sobrevivência, reprodução e picada do vetor”, Rachel Lowe, pesquisadora da Escola de Higiene e Medicina Tropical

A incidência de dengue tem crescido significativamente nas últimas duas décadas. Enquanto em 2000 foram registrados 505 mil casos em diferentes partes do mundo , no primeiro semestre de 2023 apenas as Américas registraram mais de três milhões , o que superou os 2,8 milhões de casos em 2022.

O Brasil tem mais de 2,3 milhões de casos, seguido pelo Peru (mais de 215 mil) e Bolívia (mais de 133 mil). Na Argentina, que vive a pior epidemia de dengue, o boletim epidemiológico mais recente indica que já causou 66 mortes e mais de 129.000 casos .


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Este artigo escrito originalmente em Espanhol foi produzido pela edição América Latina e Caribe de  SciDev.Net e publicado [Aqui!].

Impacto da meteorologia na atual crise hídrica

11 fatos que você precisa saber sobre a crise hídrica no Brasil

O Brasil está enfrentando mais uma crise hídrica ou ainda estamos na mesma crise que começou em 2012? O fato é que o País, com extensão continental, com abundância de vento, água e sol e com grande potencial para geração renovável, está com problemas. Antes de explicar a relação da meteorologia com o tema, é importante ressaltar que a matriz elétrica brasileira é alimentada principalmente por fontes renováveis (83%), um ponto extremamente positivo quando comparado com a média mundial que é de 25% (BEN, 2020). No Brasil, estamos acompanhando um grande crescimento da produção de energia proveniente de fontes eólicas, a qual ultrapassou recentemente o marco de 18 GW de capacidade instalada, equivalente a 10,3% da matriz elétrica brasileira. Ainda assim, as hidráulicas representam a maior fonte de geração de energia no país, tal que alterações no volume ou padrões irregulares de precipitação afetam todo o setor de energia.

Principais Sistemas Climáticos e a crise hídrica

Apesar do Brasil ser um país com enorme extensão continental, o grande regulador dos padrões meteorológicos que influenciam no continente são os oceanos, que interagem com a atmosfera e regulam o balanço de energia através da redistribuição do vento e da água. O padrão de precipitação de uma região pode ser alterado por diversos sistemas meteorológicos e climáticos, que possuem diferentes resoluções espaciais e temporais. Um dos sistemas climáticos mais conhecidos e monitorados é o El Niño – Oscilação Sul.

O El Niño é um dos sistemas climáticos que mais recebe atenção da mídia e da comunidade científica, por representar cerca de 40% da variabilidade climática no Brasil, principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste (GRIMM et al., 1998; KAYANO, ANDREOLI, 2016). No entanto, outros sistemas também são capazes de alterar o padrão de precipitação nas bacias de geração hídrica, especialmente quando estes sistemas de menor influência atuam simultaneamente. Alguns exemplos destes sistemas são: Oscilação Antártica (OA) ou Modo Anular Sul (SAM), Oscilação de Madden Julian (OMJ), Oscilação Quase Bienal (QBO) entre outras.

Quer saber mais sobre o El Niño? Acesso o Especial mensal de Dezembro.

A atual crise hídrica possui diversas semelhanças com a crise que enfrentamos nos anos de 2014 e 2015. Porém, para compreender o impacto da meteorologia na crise atual, é necessário um maior entendimento dos sistemas citados anteriormente.

A Oscilação Antártica, também conhecida como Modo Anular Sul, é um fenômeno de variabilidade climática que domina a circulação extratropical. Essa circulação está associada a um cinturão de baixa pressão, que se concentra próximo à Antártica em sua fase positiva e se expande até o sul da América do Sul em sua fase negativa (Figura 1). O processo de expansão ou retração do cinturão de baixa pressão normalmente dura de semanas a meses.

Figura 1: Primeira EOF de anomalia mensal de altura geopotencial em 700 hPa (1980-2006) abril (esquerda) e julho (direita) representando as fases positiva e negativa, respectivamente. Adaptado de Vasconcellos (2012).

De forma geral, a fase positiva reduz o avanço dos sistemas frontais pela América do Sul, diminuindo o volume de precipitação no centro-sul brasileiro. Enquanto a fase negativa permite que estes sistemas transientes adentrem o continente, favorecendo positivamente a geração hídrica e manutenção dos reservatórios.

No índice da oscilação Antártica, observa-se o predomínio da fase positiva desde os últimos meses de 2020, padrão que também foi observado nos anos de 2015 e 2016 (Figura 2).

Figura 2: Média móvel trimestral do Índice AAO. Fonte NOAA CPC.

Por outro lado, a Oscilação de Madden Julian (OMJ) é uma oscilação intrasazonal que se propaga através da faixa tropical do globo, com ciclo em torno de 30 a 60 dias. Esse pulso de convecção promove o aumento/diminuição da precipitação regional. Nas fases 4 e 5 (1 e 8) a oscilação é desfavorável (favorável) à precipitação no Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do Brasil (DE SOUZA, AMBRIZZI, 2006).

No ano de 2020 a configuração de um bloqueio atmosférico persistente promoveu recordes de temperaturas e baixos volumes pluviométricos entre setembro e outubro no Brasil, principalmente no Sudeste, influenciado pela OMJ (Figura 3). No verão de 2013 a 2014, a OMJ também ficou estacionada por muito tempo nas fases 5 e 6, o que influenciou na presença de bloqueio atmosférico no Sudeste, deixando o tempo seco na região, e com temperaturas elevadas, condições que acarretaram o agravamento da crise hídrica.

Figura 3: Índice da Oscilação de Madden Julian de 16/09/2020 a 14/12/2020.

Ainda não há o entendimento por completo do porquê a OMJ persistiu por tanto tempo nas fases 5 e 6 (desfavorável a precipitação) em 2020 e em 2013/2014. Uma das possíveis explicações é a influência da Oscilação Quase-Bienal (QBO), no qual a fase negativa da QBO é capaz de alterar a duração e intensidade das fases da OMJ.

Na crise hídrica de 2013/2014, foi no verão que o nível do sistema Cantareira (abastecimento humano) começou a ficar mais crítico. O ano de 2014 contou com vários meses com chuva abaixo da média, em 2015 os volumes de chuva apesar de acima da média (influenciados pelo El Niño) não foram suficientes para recuperar o volume dos reservatórios, uma vez que este se encontrava no volume morto. Além do impacto causado pelo consumo acima da média (MARENGO; ALVEZ, 2015)

De forma geral, a fase e posição destes sistemas climáticos, influenciaram também os níveis dos reservatórios de geração de energia e da energia natural afluente (ENA) na crise hídrica de 2014/2015 e estão impactando de forma negativa novamente nos anos de 2020/2021.

E por fim estamos na fase negativa da ODP (Oscilação Decadal do Pacífico; MANTUA; HARE, 2002), que é quando há a diminuição das temperaturas do Oceano Pacífico. A fase negativa da ODP é capaz de aumentar a incidência e intensidade de eventos de La Niña em a diminuição e enfraquecimento do El Niño. Para a fase positiva da ODP o impacto é observado principalmente no leste do Brasil de novembro a fevereiro, sobre o Norte e Noroeste da América do Sul durante março e abril. Enquanto a fase negativa apresenta impacto sobre o Nordeste março e abril (KAYANO, ANDREOLI, 2016).

Diante de todas os fenômenos analisados, a conclusão para a primeira questão: O Brasil está enfrentando mais uma crise hídrica ou ainda estamos na mesma crise que começou em 2012? é que sim, estamos na mesma crise hídrica, que teve momentos mais brandos e agora está na sua fase crítica novamente.

Qual a expectativa para os próximos meses?

Estamos praticamente no Inverno e nesta época do ano não se espera por chuva significativa para a região central do Brasil. Não há nenhum fenômeno meteorológico previsto que possa mudar este quadro. No Sul, ao contrário, apesar da pouca sazonalidade anual nas Bacias, é o período das melhores chuvas. A previsão ainda é de irregularidade na precipitação, mas em uma condição muito melhor do que o observado até o início de maio, quando as frentes frias praticamente não provocavam instabilidades sobre a Região. A boa notícia é que não há expectativa de atraso na entrada do próximo período úmido!

Referências Bibliográficas

DE SOUZA, Everaldo B.; AMBRIZZI, Tércio. Modulation of the intraseasonal rainfall over tropical Brazil by the Madden-Julian oscillation. International Journal of Climatology: A Journal of the Royal Meteorological Society, v. 26, n. 13, p. 1759-1776, 2006.

EPE [Empresa de Pesquisa Energética] Balanço Energético Nacional (BEN) 2018 Balanço Energético Nacional (BEN) 2018: Ano base 201 : Ano base 201 : Ano base 2017, 2018. Disponível em < https://ben.epe.gov.br>. Acesso em jun/2020.

GRIMM, Alice M.; FERRAZ, Simone ET; GOMES, Júlio. Precipitation anomalies in southern Brazil associated with El Niño and La Niña events. Journal of climate, v. 11, n. 11, p. 2863-2880, 1998.

KAYANO, Mary T.; ANDREOLI, Rita V. Relationships between rainfall anomalies over northeastern Brazil and the El Niño-Southern Oscillation. Journal of Geophysical Research: Atmospheres, v. 111, n. D13, 2006.

MANTUA, Nathan J.; HARE, Steven R. The Pacific decadal oscillation. Journal of oceanography, v. 58, n. 1, p. 35-44, 2002.

MARENGO, Jose Antonio; ALVES, Lincoln M. Crise hídrica em São Paulo em 2014: seca e desmatamento. GEOUSP Espaço e Tempo (Online), v. 19, n. 3, p. 485-494, 2015.

Sobre a Climatempo

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