Campos dos Goytacazes tem epidemia de dengue decretada… como se chegou a isso?

mosquitos ogm

As mudanças climáticas estão favorecendo a disseminação das populações de vetores causadores de doenças impactantes, como da COVID-19 e das distintas arboviroses, incluindo principalmente a dengue. Essas mudanças deveriam estar sendo acompanhadas de uma série de ações por parte das autoridades municipais em todo o Brasil, mas não estão.  Continuamos com a mesma postura de ignorar o problema, na esperança de que alguma solução mágica apareça de algum lugar.

Hoje leio que o município de Campos dos Goytacazes chegou, como muitos outros em todo o Brasil, na condição de epidemia em função do alto número de casos da Dengue, doença transmitida pelo mosquito Aedes Aegypti.

Agora arrebentada a porta, tomo conhecimento que o governo de Wladimir Garotinho publicou  o Decreto Municipal nº 36 ( Aqui! ), qur instituiu o Gabinete de Crise da Dengue e outras Arboviroses no Município de Campos. A finalidade desse tal gabinete será “unificar as ações de combate à epidemia”. 

Lembrando a irreverância campista, eu diria ao prefeito e candidato à reeleição: por que demorou tanto? É que esse decreto só saiu depois que a epidemia está instalada e deixando milhares de pessoas adoecidas e sob risco de morte?

Dias passados, ouvi do médico infectologista e profundo conhecedor do problema, Luiz José de Souza, que um dos problemas por detrás da atual epidemia de dengue no Brasil é que os governos abandonaram medidas básicas de prevenção, deixando de fazer coisas corriqueiras que contribuíram para a proliferação dos mosquitos portadores do vírus da Dengue. E nesse cenário desolador, Campos não foi exceção, mas a regra.

Assim, em vez de lançar mais um decreto que eventualmente sofrerá o destino do esquecimento, o que o governo municipal deveria estar fazendo é agir para ajudar a população a debelar os incontáveis focos de mosquitos que proliferaram em Campos dos Goytacazes.

Nota Técnica da Abrasco frente à liberação comercial de mosquitos transgênicos pela CTNBio

Associação posiciona-se sobre o uso de mosquitos geneticamente modificados

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva recebeu com grande preocupação a cópia da transcrição da 171ª Reunião Ordinária da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança –  CTNBio – de 03/05/2014 em que autoriza a liberação comercial de mosquitos transgênicos.

As decisão da CTNBio ocorreu no contexto em que uma fábrica de produção de mosquitos transgênicos já estava instalada na  cidade de Campinas – SP. Os mosquitos transgênicos serão usados para pesquisa e combate ao  vetor da dengue, o mosquito Aedes aegypti, no país.

A responsável pela produção é empresa inglesa de biotecnologia Oxitec. A instalação da fábrica de mosquito  começou em 2013. A equipe técnica é formada basicamente por especialistas estrangeiros, que na Europa desenvolvem biotecnologias adotadas pela indústria farmacêutica para a malária e febre amarela.

A unidade produtiva (Technopark) da Oxitec, em Campinas produz em laboratório mosquitos machos de Aedes aegypti geneticamente modificados (linhagem OX513A), mediante a utilização de tetraciclina usada para a modificação das larvas selvagens.

Mesmo sem ter a autorização da CTNBio para a produção em escala do mosquito transgênico, a empresa disponibilizou o Aedes aegypti transgênico desde 2011,  para experimentos inicialmente na cidade de Jacobina e posteriormente em Juazeiro, ambas do Estado da Bahia e que contou com o apoio do governo do estado e das prefeituras dos respectivos municípios. As pesquisas foram apoiadas por organização social denominada Moscamed.

Os experimentos foram executados nessas duas cidades, considerados como projetos específicos e isolados.   A proposta é que cada cidade brasileira poderá montar sua fábrica de ovos transgênicos. Após os testes nessas duas cidades, a Oxitec protocolou a solicitação de liberação comercial na CTNBio.

Apesar do uso por  dois anos de mosquito transgênico na  cidade de Jacobina, Bahia, o Decreto Nº 089 de 10 de Fevereiro de 2014,  pela  prefeitura Municipal de Jacobina (D.O. Terça-feira • 18 de Fevereiro de 2014 • Ano IX • Nº 798) prorrogou a situação de emergência para  dengue no Município. Para fundamentar esse decreto o Prefeito da cidade considerou: “que Jacobina é endêmico para a dengue e conta em sua série histórica duas epidemias de dengue registradas nos anos de 2009 e 2012; que no ano de 2012 o Município não realizou os trabalhos de campo de forma adequada, registrando 1708 casos suspeitos e inclusive a ocorrência de dois óbitos; que as ações empreendidas em 2013 com o trabalho de campo, ainda não encerrou a cadeia epidemiológica, devendo a municipalidade em ação continuar a manter o controle antes do período de início de atividade do mosquito Aedes aegypti; que os casos de dengue se concentram principalmente no primeiro semestre do ano, com pico no mês de abril, conforme perfis de sazonalidade do mosquito Aedes aegypti observadas no país, e que para encerrar a cadeia epidemiológica é necessário iniciar as atividades de controle antes desse período de maior atividade do mosquito; que as ações em 2014 são planejadas e realizadas de modo a tentar conter uma nova epidemia, buscando proteger a população, investindo em ações de prevenção, combate”. (http://aspta.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Decreto-Jacobina2014.pdf).

Perguntamos, como se aceita fazer experimentos que afetam uma doença de notificação compulsória em um contexto sanitário absolutamente sem controle? Como os resultados de experimentos com mosquito transgênico para controle da dengue  em Jacobina  foram utilizados para validar a decisão da CTNBio que autorizou a liberação de mosquito transgênico para o controle de dengue?

Sabemos que não houve ainda posicionamento e autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa – sobre a produção, venda e uso desses mosquitos transgênicos.  Mas,  como fica  a situação da fábrica de mosquitos que está propagandeando esse produto em Prefeituras  Municipais para que comprem milhões de mosquitos  transgênicos a serem liberados  semanalmente em seus territórios?

Essas pesquisas com mosquitos transgênicos foram apoiadas pela Fundação Bill Gates, que abriu edital internacional em 2004, para o qual concorreram diversas universidades. Sobre esse tema o Gt de Saúde e  Ambiente da Abrasco já alertava em Carta ao Editor da Revista Científica Cadernos de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz- sobre “Os verdadeiros desafios da saúde global” (GOUVEIA; LIEBER; AUGUSTO, 2004).

O controle da endemia e dos surtos epidêmicos de dengue seguem protocolos da Secretaria de Vigilância em Saúde , do Ministério da Saúde – SVS/MS – e orientação internacional da Organização Pan-americana de Saúde – OPAS. A despeito das controvérsias sobre a eficácia dos sucessivos programas de controle vetorial da dengue no Brasil,  até o momento não houve nenhuma norma técnica desses órgãos orientando mudanças no programa de controle vetorial da dengue incluindo a modalidade trangênica. Sobre uma perspectiva crítica do controle vetorialpara dengue é possível ler outro alerta feito por pesquisadores na mesma revista (AUGUSTO et al, 1998) e também,  entre outros, no livro de  Augusto e Colaboradores (2004), onde diversos entomologistas se posicionaram. A questão da dengue é complexa e vai para além de medidas focais. O Brasil, nas últimas duas décadas,  deixou de ser um país epidêmico para dengue, para ser endêmico em todo território nacional.

A doença dengue é uma virose, na qual estão implicados, no Brasil, os quatro sorotipos do virus. Embora, considerada de baixa letalidade, as dificuldades no acesso à assistência médica, a baixa resolutividade dos serviços de saúde, os equívocos de orientação e isuficiências de medidas sanitárias, faz com que nesse contexto, as complicações da infecção pelo virus do dengue se tornam mais frequente, mais grave e a mortalidade da dengue maior no país. A complicação mais preocupante tem sido a Febre Hemorrágica, mas que não é necessariamente letal, quando há atendimento médico correto.

Mais uma vez, a decisão de controlar essa endemia, apenas focando no vetor, é um equívoco. Pois, a determinação da dengue é muito mais social e ambiental do que biológica, embora estejam envolvidas na sua produção três ecologias: do virus, do vetor e do ser humano, todas interdependentes.

Analisando a Ata da 171ª Reunião Ordinária da CTNBio acima referida foram observados diversos elementos com  análise inadequada ou com  questões sem resposta técnica suficiente. Também se observa argumentos pouco consistentes por parte do representante da saúde nessa comissão, de quem se esperaria maior compromisso com os aspectos sanitários envolvidos.

Abaixo apenas alguns destaques para ilustrar como esse  assunto,  de tamanha importância para a saúde pública, foi tratado na CTNBio:

1) Dados Insuficientes: Os dados preliminares dos testes realizados nas cidades de Jacobina e Juazeiro, do estado da Bahia, “são  insuficientes para um posicionamento consistente de qualquer órgão de pesquisa, muito mais, para a CTNBio” (posicionamento de um dos conselheiros, Linha 180).  Um conselheiro indagou: “Que motivos justificariam a aceitação precipitada de resultados preliminares com antecipação da avaliação pela CTNBio” …, “contrariando a prática até então utilizada recomendada por esta própria Comissão?” (Linha 197). Os dados preliminares foram colhidos em três municípios do interior do país. “Foram somente realizados três estudos de caso — liberações em Caiman, Juazeiro e Mandacaru, Bahia”… “anos de 2012 e 2013”.  Esses  municípios possuem sistemas de vigilância epidemiológica incipientes e com “pouca sensibilidade no registro de casos da doença e da análise médica de alguma intercorrência da doença durante e depois da liberação planejada do organismo modificado. Portanto, não é possível aferir uma alta eficácia dessa biotecnologia, nem muito menos extrapolar esses resultados para uma escala planetária, como sugere o relatório da empresa” (Posicionamento de um dos conselheiros, Linha 174 e 177). Destacou-se também outro aspecto: “A ocupação do nicho ecológico preferencial do Aedes Aegypti nas áreas urbanas não mereceu suficiente atenção por parte do dossiê ou dos demais pareceristas” (Posicionamento de um dos conselheiros, Linha 297).

2) Rapidez no processo:  O  “tratamento concedido pela CTNBio a esse caso, se distingue pela excepcionalidade”.  Foi protocolado em três de julho de 2013 e publicado no dia 15 de julho de 2013, recebendo pareceres favoráveis dos relatores nas Subcomissões Humana e Animal, aprovada em fevereiro de 2014 e nas Subcomissões Vegetal e Ambiental.  Um dos conselheiros considera este fato indício de prevaricação, pois “ainda na fase de avaliação do processo, na Subcomissão Humana e Animal, Saúde Humana e Animal, de forma não protocolada e inesperada, registrou-se a intervenção do representante da proponente que realizou exposição do mérito da biotecnologia, confundindo-se com uma espécie de marketing institucional. O impacto dessa concessão, no que diz respeito à isonomia de tratamento com as outras biotecnologia e empresas não deve ser desprezado” (Posicionamento de um dos conselheiros, Linha 163, 186, 204 e 216).

3) Ausência de dispositivo de biossegurança: A liberação planejada é um dispositivo de biossegurança imprescindível. A Resolução Normativa Nº 6, de 6 de novembro de 2008, que dispõe sobre as normas para esse processo no meio ambiente de Organismos Geneticamente Modificados (OGM), somente trata de organismos de origem vegetal e seus derivados.  No entanto, essas normas não são adequadas para avaliação de insetos (posicionamento de um dos conselheiros, Linha 188).  Sabe-se que  liberação planejada deve ser testada em todos os ecossistemas relevantes para a avaliação de risco e até o final.  Por exemplo, no caso do Milho D5, a  Justiça suspendeu a decisão  de sua produção e comercialização, com base no argumento que não foram realizados os estudos nos biomas do Norte e Nordeste, proibindo-se o cultivo naquelas regiões.

4) Falta análise entomológica e epidemiológica: O fato do Aedes aegypti ter sido considerado erradicado no Brasil na década de 70,  e que hoje se faz  presente em todo o território nacional, em que pese a sua capacidade de voo autônomo não ultrapassar os 200 metros, não foi considerado relevante. A liberação em larga escala do OX513A, alterando as condições de reprodução do Aedes Aegypti pode atrair outros vetores, como o A. albopictus, espécie selvagem  existente no Brasil e  com capacidade vetorial  para o vírus da dengue. Pergunta sem resposta feita por um dos conselheiros: nessa situação quais seriam as implicações sobre os mecanismos adaptativos do vírus em termos epidemiológicos? (Linha 254 a 252; 299).

5) Incongruências do relatório –  Classificação do risco: Com base na Resolução Normativa 02, de 27 de novembro de 2006, a subcomissão enquadrou o mosquito GM na classe do risco 1 (baixo risco individual e baixo risco para a coletividade), enquanto que a empresa afirma ser a classe de risco 2 (moderado risco individual e baixo risco para a coletividade).  Assim, a CTNBio foi  menos restrita que a própria empresa interessada.

Diante do Exposto, a Abrasco vem se manifestar contrária a autorização pela Anvisa e pela SVS/MS de utilização de mosquitos transgênicos para o controle vetorial da dengue. Propomos também que sejam criados fórum de debates públicos sobre o controle da dengue realizado por meio do mosquito transgênico. A Associação também se posiciona para abrir um debate nacional sobre a forma como a CTNBio delibera sobre temas de interesse da saúde pública e ambiental.

Em 15 de setembro de 2014

FONTE: http://www.abrasco.org.br/site/2014/09/nota-tecnica-da-abrasco-frente-a-liberacao-comercial-de-mosquitos-transgenicos-pela-ctnbio/

O mais novo fantasma da Monsanto

POR JEFF RITTERMAN, M.D.

140811-Monsanto

Estudo sugere: doença ainda inexplicada, que destrói rins e já matou milhares de agricultores, pode estar relacionada ao glifosato, herbicida-líder da transnacional

Por Jeff Ritterman, no Truthout | Tradução Maria Cristina Itokazu

O herbicida Roundup, da Monsanto, foi vinculado à epidemia de uma misteriosa doença renal fatal que apareceu na América Central, no Sri Lanka e na Índia.

Há anos, os cientistas vêm tentando desvendar o mistério de uma epidemia de doença renal crônica que atingiu a América Central, a Índia e o Sri Lanka. A doença ocorre em agricultores pobres que realizam trabalho braçal pesado em climas quentes. Em todas as ocasiões, os trabalhadores tinham sido expostos a herbicidas e metais pesados. A doença é conhecida como CKDu (Doença Renal Crônica de etiologia desconhecida). O “u” (de “unknown”, desconhecido) diferencia essa enfermidade de outras doenças renais crônicas cuja causa é conhecida. Poucos profissionais médicos estão cientes da CKDu, apesar das terríveis perdas impostas à saúde dos agricultores pobres, de El Salvador até o sul da Ásia.

Catharina Wesseling, diretora regional do Programa Saúde, Trabalho e Ambiente (Saltra) na América Central, pioneiro nos estudos iniciais sobre o surto ainda não esclarecido na região, diz o seguinte: “Os nefrologistas e os profissionais da saúde pública dos países ricos não estão familiarizados com o problema ou duvidam inclusive que ele exista”.Wesseling está sendo diplomática. Na cúpula da saúde de 2011, na cidade do México, os EUA rechaçaram uma proposta dos países da América Central que teria listado a CKDu como uma das prioridades para as Américas.

David McQueen, um delegado norte-americano do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, que posteriormente se desligou dessa agência, explicou a posição de seu país. “A ideia era manter o foco nos fatores de risco chave que poderíamos controlar e nas grandes causas de morte: doença cardíaca, câncer e diabetes. E sentíamos que a posição que assumimos incluía a CKD”.

Os norte-americanos estavam errados. Os delegados da América Central estavam certos. A CKDu é um novo tipo de doença. Essa afecção dos rins não resulta da diabetes, da hipertensão ou de outros fatores de risco relacionados com a dieta. Diferentemente do que acontece na doença renal ligada à diabetes ou à hipertensão, muitos dos danos da CKDu ocorrem nos túbulos renais, o que sugere uma etiologia tóxica.

Agricultor salvadorenho voltando dos campos. Palo Grande, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Agricultor salvadorenho voltando dos campos. Palo Grande, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Hoje, a CKDu é a segunda maior causa demortalidade entre os homens em El Salvador. Esse pequeno e densamente povoado país da América Central tem atualmente a maior taxa de mortalidadepor doença renal no mundo. Os vizinhos Honduras e Nicarágua também têm taxas extremamente altas de mortalidade por doença renal. Em El Salvador e Nicarágua, mais homens estão morrendo por CKDu do que por HIV/Aids, diabetes e leucemia juntas. Numa região rural da Nicarágua, tantos homens morreram que a comunidade é chamada “A Ilha das Viúvas“.

Além da América Central, a Índia e o Sri Lanka foram duramente atingidos pela epidemia. No Sri Lanka, mais de 20 mil pessoas morreram por CKDu nas últimas duas décadas. No estado indiano de Andhra Pradesh, mais de 1.500 pessoas receberam tratamento para a doença desde 2007. Como a diálise e o transplante de rim são raros nessas regiões, a maioria dos que sofrem de CKDu irão morrer da doença renal.

Numa investigação digna do grande Sherlock Holmes, um cientista-detetive do Sri Lanka, dr. Channa Jayasumana, e seus dois colegas, dr. Sarath Gunatilake e dr. Priyantha Senanayake, lançaram uma hipótese unificadora que poderia explicar a origem da doença. Eles argumentaram que o agente agressor deve ter sido introduzido no Sri Lanka nos últimos trinta anos, uma vez que os primeiros casos apareceram em meados da década de 1990. Essa substância química também devia ser capaz de, em água dura, formar complexos estáveis com os metais e agir como um escudo, impedindo que esses metais sejam metabolizados no fígado. O composto também precisaria agir como um mensageiro, levando os metais até o rim.

Mural celebrando a vida agrária tradicional. Juayua, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Mural celebrando a vida agrária tradicional. Juayua, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Sabemos que as mudanças políticas no Sri Lanka no final dos anos 1970 levaram à introdução dos agroquímicos, principalmente no cultivo do arroz. Os pesquisadores procuraram os prováveis suspeitos. Tudo apontava para o glifosato, um herbicida amplamente utilizado no Sri Lanka. Estudos anteriores tinham mostrado que o glifosato liga-se aos metais e o complexo glifosato-metal pode durar por décadas no solo.

O glifosato não foi originalmente criado para ser usado como herbicida. Patenteado pela Stauffer Chemical Company em 1964, foi introduzido como um agente quelante, porque se liga aos metais com avidez. O glifosato foi usado primeiramente na remoção de depósitos minerais da tubulação das caldeiras e de outros sistemas de água quente.

É essa propriedade quelante que permite que o glifosato forme complexos com o arsênio, o cádmio e outros metais pesados encontrados nas águas subterrâneas e no solo na América Central, na Índia e no Sri Lanka. O complexo glifosato-metal pesado pode entrar no corpo humano de diversas maneiras: pode ser ingerido, inalado ou absorvido através da pele. O glifosato age como um cavalo de Troia, permitindo que o metal pesado a ele ligado evite a detecção pelo fígado, uma vez que ele ocupa os locais de ligação que o fígado normalmente obteria. O complexo glifosato-metal pesado chega aos túbulos renais, onde a alta acidez permite que o metal se separe do glifosato. O cádmio ou o arsênio causam então danos aos túbulos renais e a outras partes dos rins, o que ao final resulta em falência renal e, com frequência, em morte.

Por enquanto, a elegante teoria proposta pelo dr. Jayasumana e seus colegas pode apenas ser considerada geradora de hipóteses. Outros estudos científicos serão necessários para confirmar a hipótese de que a CKDu realmente se deve à toxicidade do glifosato-metal pesado para os túbulos renais. Até agora, esta parece ser a melhor explicação para a epidemia.

Outra explicação é a de que o estresse por calor pode ser a causa, ou a combinaçãoentre estresse por calor e toxicidade química. A Monsanto, claro, tem defendido o glifosato e contestado a afirmação de que ele tenha qualquer coisa a ver com a origem da CKDu.

Ainda que não exista uma prova conclusiva a respeito da causa exata da CKDu, tanto o Sri Lanka quanto El Salvador invocaram o princípio da precaução. El Salvador baniu o glifosato em setembro de 2013 e atualmente está procurando alternativas mais seguras. O Sri Lanka baniu o glifosato em março deste ano por causa de preocupações a respeito da CKDu.

Mural celebrando a vida camponesa tradicional, Palo Grande, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

O glifosato tem uma história interessante. Depois de seu uso inicial como agente descamador pela Stauffer Chemical, os cientistas da Monsanto descobriram suas qualidades herbicidas. A Monsanto patenteou o glifosato como herbicida na década de 1970 e tem usado a marca “Roundup” desde 1974. A empresa manteve os direitos exclusivos até o ano 2000, quando a patente expirou. Em 2005, os produtos com glifosato da Monsanto estavam registrados em mais de 130 países para uso em mais de cem tipos de cultivo. Em 2013, o glifosato era o herbicida com maior volume de vendas no mundo.

A popularidade o glifosato se deve, em parte, à percepção de que é extremamente seguro. O site da Monsanto afirma:

O glifosato se liga fortemente à maioria dos tipos de solo e por isso não permanece disponível para absorção pelas raízes das plantas próximas. Funciona pela perturbação de uma enzima vegetal envolvida na produção de aminoácidos que são essenciais para o crescimento da planta. A enzima, EPSP sintase, não está presente em pessoas ou animais, representando baixo risco para a saúde humana nos casos em que o glifosato é usado de acordo com as instruções do rótulo.

Por causa da reputação do glifosato em termos de segurança e de efetividade, John Franz, que descobriu a sua utilidade como um herbicida, recebeu a Medalha Nacional de Tecnologia em 1987. Franz também recebeu o Prêmio Carothers da Sociedade Americana de Química em 1989, e a Medalha Perkins da Seção Americana da Sociedade da Indústria Química em 1990. Em 2007, foi aceito no Hall da Fama dos Inventores dos EUA pelo seu trabalho com o herbicida. O Roundup foi nomeado um dos “Dez Produtos que Mudaram a Cara da Agricultura“ pela revista Farm Chemicals, em 1994.

Nem todo mundo concorda com essa percepção a respeito da segurança do glifosato. A primeira cultura de Organismo Geneticamente Modificado (OGM) resistente ao Roundup (soja) foi lançada pela Monsanto em 1996. Nesse mesmo ano, começaram a aparecer as primeiras ervas daninhas resistentes ao glifosato. Os fazendeiros responderam usando herbicidas cada vez mais tóxicos para lidar com as novas superpragas que haviam desenvolvido resistência ao glifosato.

Além da preocupação a respeito da emergência das superpragas, um estudo com ratos demonstrou que baixos níveis de glifosato induzem perturbações hormonal-dependentes graves nas mamas, no fígado e nos rins. Recentemente, dois grupos de ativistas, Moms Across America (Mães em toda a América) e Thinking Moms Revolution(Revolução das Mães Pensantes), pediram à Agência Americana de Proteção Ambiental (EPA) para pedir um recall do Roundup, citando um grande número de impactos adversos sobre a saúde das crianças, incluindo déficit de crescimento, síndrome do intestino solto, autismo e alergias alimentares.

O glifosato não é um produto comum. Além de ser um dos herbicidas mais usados no mundo, é também o pilar central do templo da Monsanto. A maior parte das sementes da empresa, incluindo soja, milho, canola, alfafa, algodão, beterraba e sorgo, são resistentes ao glifosato. Em 2009, os produtos da linha Roundup (glifosato), incluindo as sementes geneticamente modificadas, representavam cerca de metade da receita anual da Monsanto. Essa dependência em relação aos produtos com glifosato torna a Monsanto extremamente vulnerável à pesquisa que questiona a segurança do herbicida.

As sementes resistentes ao glifosato são desenhadas para permitir que o agricultor sature os seus campos com o herbicida para matar todas as ervas daninhas. A safra resistente ao glifosato pode então ser colhida. Mas se a combinação do glifosato com os metais pesados encontrados na água subterrânea ou no solo destroi os rins do agricultor no processo, o castelo de cartas desmorona. É isso que pode estar acontecendo agora.

Um confronto sério está tomando corpo em El Salvador. O governo norte-americano tempressionado El Salvador para que compre sementes geneticamente modificadas da Monsanto ao invés de sementes nativas dos seus próprios produtores. Os EUA têmameaçado não liberar quase US$ 300 milhões em empréstimos caso El Salvador não compre as sementes da Monsanto. As sementes geneticamente modificadas são mais caras e não foram adaptadas para o clima ou para o solo salvadorenho.

A única “vantagem” das sementes OGM da Monsanto é a sua resistência ao glifosato. Agora que ele se mostrou uma possível, e talvez provável, causa de CKDu, essa “vantagem” já não existe.

Mural, Concepción de Ataco, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Mural celebrando a vida camponesa tradicional, Palo Grande, El Salvador. Foto: cortesia de Vivien Feyer.

Qual a mensagem dos EUA para El Salvador, exatamente? Talvez a hipótese mais favorável seja a de que os EUA não têm ciência de que o glifosato pode ser a causa da epidemia de doença renal fatal em El Salvador e que o governo sinceramente acredita que as sementes OGM vão proporcionar um rendimento melhor. Se for assim, uma mistura de ignorância e arrogância está no coração desse tropeço na política externa norte-americana. Uma explicação menos amigável poderia sugerir que o governo coloca os lucros da Monsanto acima das preocupações acerca da economia, do meio ambiente e da saúde dos salvadorenhos. Essa visão poderia sugerir que uma mistura trágica de ganância, descaso e insensibilidade para com os salvadorenhos está por trás da política americana.

Infelizmente, existem evidências que corroboram a segunda visão. Os EUA parecem apoiar incondicionalmente a Monsanto, ignorando qualquer questionamento a respeito da segurança dos seus produtos. Telegramas divulgados pelo WikiLeaks mostram que diplomatas norte-americanos ao redor do mundo estão promovendo as culturas OGM como um impertativo estratégico governamental e comercial. Os telegramas também revelam instruções no sentido de punir quaisquer países estrangeiros que tentem banir as culturas OGM.

Qualquer que seja a explicação, pressionar El Salvador, ou qualquer país, para que compre sementes OGM da Monsanto é um erro trágico. Não é uma política externa digna dos EUA. Vamos mudar isso. Vamos basear nossa política externa, assim como a doméstica, nos direitos humanos, na vanguarda ambiental, na saúde e na equidade.

Pós-escrito: Depois que vários artigos a respeito da questão das sementes apareceram na mídia, o The New York Times informou que os EUA reverteram sua posição e devem parar de pressionar El Salvador para que compre as sementes da Monsanto. Até agora, os empréstimos ainda não foram liberados.

FONTE: http://outraspalavras.net/capa/o-mais-novo-fantasma-da-monsanto/