Quando o Porto do Açu se encontra com o “Expulsões” de Saskia Sassen

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Agricultores do V Distrito resistindo ao processo de expulsão promovido para beneficiar o Porto do Açu

Em meio à minha constante procura por produções intelectuais que me ajudem a ir além do que já li. Com isso, acabei de me deparando com o livro da socióloga holandesa Saskia Sassen que se chama “Expulsões:  brutalidade e complexidade na economia global que foi lançado no Brasil pela editora Paz e Terra.

Expulsões, de Saskia Sassen, por Debora Diniz - Grupo Editorial Record

Este livro de Sassen é um esforço analítico para compreender como a financeirização da economia capitalista abriu caminho para mecanismos de apropriação e expropriação de todo tipo de bem, incluindo a terra.  Todo esse processo serve aos processos de acumulação de riqueza por um grupo cada vez menor de pessoas e empresas que se encontram dispersas em diferentes pontos do planeta, mas que, invariavelmente, agem para deslocar multidões de seus territórios tradicionais para o estabelecimento de grandes projetos econômicos, principalmente aqueles voltados para a mineração e a implantação de grandes áreas de monoculturas, seja de alimentos, carne ou árvores.

Quando comecei a ler o “Expulsões” encontrei passagens que, apesar da escala em que o fenômeno aconteceu, são perfeitas para explicar o processo de expropriação de terras que ocorreu no V Distrito de São João da Barra para a implantação do Porto do Açu.  É interessante notar que nos casos analisados por Sassen não aparece nenhum envolvendo portos, e eu desconfio que tem a ver com a novidade que são as expropriações de terras para implantação de estruturas portuárias no sul Global.   E apenas no caso do Brasil podemos citar os casos dos portos do Açu (RJ), Pecém (CE), Suape (PE) e Sudeste (RJ).

A coisa simplesmente ainda não estava acontecendo ou sendo detectável quando Sassen escreveu o “Expulsões”.  Isso em parte é bom porque me permitirá alavancar as análises sobre o papel desses empreendimentos portuários, mesmo porque eles estão diretamente articulados com as causas primárias das expulsões de Sassen. É que esses portos estão destinados a serem o ponto de transbordo das produções que ocorrem nos territórios onde as expulsões ocorrem.  É uma espécie de articulação que merece ser melhor compreendida e analisada.

O papel da aquisição de terras por empresas estrangeiras na desarticulação do Estado nacional

Uma das elaborações de Sassen que mais me chama atenção no seu “Expulsões” é da conexão que ela faz entre o controle de terras por empresas ou fundos de investimento (como é o caso do EIG Global Partners que detém a propriedade do Porto do Açu) na criação de um “buraco estrutural no tecido do território nacional soberano”. 

Nesse sentido, vejam o que Sassen diz:

“Em conjunto, essas aquisições de terras em grande escala produziram um espaço operacional global que está parcialmente incorporado aos territórios nacionais. Eles produzem uma desnaturalização parcial e profunda no tecido dentro dos Estados nacionais, um buraco estrutural no tecido do território nacional soberano. Vejo a aquisição de terras por estrangeiros como um dos vários processos que desagregam o território nacional. Os contratos criados para essas aquisições tornam-se capacidades de uma lógica organizadora desarticulada do Estado nacional, apesar de essas aquisições operarem dentro de seu território. Além do mais, muitas vezes os contra os interesses de grande parte da população e do capital local, que teria muito mais probabilidade de gerar ciclos positivos de retroalimentação em diversas do país…”

Assim ainda que o montante terras efetivamente desnacionalizado no V Distrito seja relativamente pequeno em relação ao estoque global, toda a experiência do Porto do Açu me mostra que este já é suficiente para gerar o impacto diagnosticado por Saskia Sassen.  Assim, o que temos é a imposição de uma lógica que se coloca de fora do Estado nacional brasileiro, implicando na criação de um enclave geográfico que opera por fora da soberania nacional.  E o mais grave, contra os interesses da população local que, diga-se de passagem, continua até hoje sem receber o devido ressarcimento pela tomada de suas pequenas propriedades.

Especulação imobiliária contribui para expulsões ligadas à Copa do Mundo

Obras no Itaquerão, São Paulo, 2012.

Obras no Itaquerão, São Paulo, 2012.

Flickr/Ze Carlos Barretta
Silvano Mendes

A expulsão de milhares de pessoas de suas casas por causa das obras de preparação da Copa do Mundo foi um dos assuntos que mais suscitaram polêmica nos últimos meses. A questão chegou a ser tema de uma campanha da Anistia Internacional no Brasil e esteve no centro de debates em Paris. Mas para especialistas ouvidos pela RFI, as expropriações camuflam uma situação muito mais complexa, na qual a especulação imobiliária tem um papel fundamental.

Dois dias antes do pontapé inicial da Copa do Mundo, as associações francesas Autres Brésils e Ritimo organizaram em Paris a projeção dos filmes Jeux de pouvoir, de Susanna Lira, e A caminho da Copa, de Carolina Caffé e Florence Rodrigues. O evento tinha como objetivo discutir a questão do direito à moradia no Brasil, levando em consideração as denúncias de remoção forçada de milhares de moradores de suas casas nos meses que antecederam o mundial.

A professora brasileira Teresa Peixoto Faria, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), participou de uma mesa-redonda organizada logo após a projeção na capital francesa. Para ela, essas “remoções são práticas que já existiam anteriormente, sobretudo no período militar”. No entanto, a pesquisadora, especialista em estudos urbanos, lembra que com a “desculpa da Copa”, o fenômeno tem se acentuado. Ela chama a atenção para os interesses especulativos camuflados por essas expulsões. “Essas populações já estavam há muito tempo e alguns assentamentos já existiam há mais de 30 anos, mas o grande interesse surge quando esses terrenos estão em áreas que hoje estão sendo valorizadas”.

Renata Neder, assessora de direitos humanos da Anistia Internacional Brasil e coordenadora da campanha “Basta de remoções forçadas!”, comenta essa valorização ligada aos grandes eventos esportivos. Baseada em um estudo feito pelo arquiteto Lucas Faulhaber, que traçou um mapa das remoções cariocas, ela explica que “no Rio de Janeiro, as pessoas estão sendo removidas do início da zona norte, do centro, da zona sul e da Barra da Tijuca, que são as zonas mais nobres da cidade, para serem reassentadas nas áreas periféricas da zona oeste, que são muito distantes e controladas pelas milícias”.

Segundo ela, os estudos levam a crer que “existe um padrão de relocalização das famílias mais pobres nas regiões mais afastadas da cidade, mesmo se há terrenos públicos em áreas centrais do Rio de Janeiro que poderiam recebê-los”. Para ela, esse é um dos fatores que contribuem para a especulação imobiliária e o aumento dos preços dos imóveis. “Um prédio em Copacabana que está ao lado de uma favela vale menos que um prédio que não está ao lado de uma favela”.

Mas a representante da Anistia ressalta que a bolha imobiliária atinge todos, inclusive aqueles que não oficialmente expulsos de seus lares. Além disso, ela explica que esse fenômeno não é novo e também não é uma exclusividade do Brasil. “Remoção, encarecimento do custo da moradia a o processo e ‘gentrificação’ já foram documentados em outros países. Em cidades como Pequim, por exemplo, isso levou a mobilidade de quase um milhão de pessoas. É como se existisse um padrão do impacto negativo da realização dos megaeventos esportivos. O lamentável é que os governos não estejam atentos para isso e não tomem medidas para prevenir”.

FONTE: http://www.portugues.rfi.fr/geral/20140611-especulacao-imobiliaria-contribui-para-expulsoes-ligadas-copa-do-mundo