Estudo da Faculdade de Saúde Pública da USP confirma a existência de uma estratégia federal de disseminação da COVID-19 no Brasil

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Um estudo realizado pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo em parceria com a Organização Não-Governamental Conectas Direitos Humanos até janeiro de 2021 e, desde então, com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, coletou as normas federais e estaduais relativas ao enfrentamento da pandemia da COVID-19 para avaliar o seu impacto sobre os direitos humanos no Brasil. A linha do tempo revela que foi implantada no âmbito do governo Bolsonaro uma estratégia de disseminação da  COVID-19 no Brasil.

O documento é composto de duas partes principais: o relatório, que apresenta a metodologia e a síntese dos resultados do estudo; e a linha do tempo, que apresenta a sistematização dos dados coletados.  O estudo teve por objetivo aferir a hipótese de que está em curso no Brasil uma estratégia de disseminação da Covid-19, promovida de forma sistemática em âmbito federal.  O estudo se baseia em pesquisa documental com dados de caráter público, realizada por equipe interdisciplinar com competências nas áreas de  Saúde Pública, Direito, Ciência Política e Epidemiologia, tendo como fontes normas federais, jurisprudência, discursos oficiais, manifestações públicas de autoridades federais e busca em plataformas digitais. A coleta de dados para fins específicos deste estudo compreendeu o período de 03/02/20 a 28/05/21, e buscou informações correspondentes a eventos (ações e omissões) que demonstram a presença de intencionalidade, aqui compreendida simplesmente como a confluência entre a consciência dos atos e omissões praticados, e a vontade de praticá-los.

A coleta resultou na identificação de três tipos de evidências:  a) atos normativos adotados na esfera da União, incluindo vetos presidenciais; b) atos de governo, que compreendem ações de obstrução de medidas de contenção da doença adotadas por governos estaduais e municipais, omissões relativas à gestão da pandemia no âmbito federal, e outros elementos que permitam compreender e contextualizar atos e omissões governamentais; e c) propaganda contra a saúde pública, aqui definida como o discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular a recomendações de saúde baseadas em evidências científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da COVID-19.

Os resultados do estudo apontam para uma confluência entre esferas normativa, de gestão e discursiva da resposta federal à pandemia, havendo coerência entre o que se diz e o que se faz. Os autores da pesquisa apontam que procede, portanto, a hipótese da existência de estratégia de disseminação da doença, por meio, em suma, dos seguintes atos e omissões:  

1) Defesa da tese da imunidade de rebanho (ou coletiva) por contágio (ou transmissão) como forma de resposta à Covid-19, disseminando a crença de que a “imunidade natural” decorrente da infecção pelo vírus protegeria os indivíduos e levaria ao controle da pandemia, além de estimativas infundadas do número de óbitos e da data de término da pandemia;

2) Incitação constante à exposição da população ao vírus e ao descumprimento de medidas sanitárias preventivas, baseada na negação da gravidade da doença, na apologia à coragem e na suposta existência de um “tratamento precoce” para a COVID-19, convertido em política pública;

3) Banalização das mortes e das sequelas causadas pela doença, omitindo-se em relação à proteção de familiares de vítimas e de sobreviventes, propalando a ideia de que faleceriam apenas pessoas idosas ou com comorbidades, ou pessoas que não tivessem acesso ao “tratamento precoce”

4)  Obstrução sistemática às medidas de contenção promovidas por governadores e prefeitos, justificada pela suposta oposição entre a proteção da saúde e a proteção da economia, que inclui a difusão da ideia de que medidas quarentenárias causam mais danos do que o vírus, e que elas é que causariam a fome e o desemprego, e não a pandemia;

5) Foco em medidas de assistência e abstenção de medidas de prevenção da doença, amiúde adotando medidas apenas quando provocadas por outras instituições, em especial o Congresso Nacional e o Poder Judiciário;

6) Ataques a críticos da resposta federal, à imprensa e ao jornalismo profissional, questionando sobretudo a dimensão da doença no país; e

7) Consciência da irregularidade de determinadas condutas.

Irresponsável e negacionista, Bolsonaro é contaminado pela Covid-19 |  Partido dos Trabalhadores

Os responsáveis pelo estudo apontam ainda que, embora não exaustiva, a linha do tempo seria suficiente para oferecer uma visão de conjunto de um processo vivido de forma fragmentada. Segundo eles, os resultados da pesquisa afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência da parte do governo federal na gestão da pandemia. Ao contrário, a sistematização de dados revela o empenho e a eficiência em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível, o que segundo o Tribunal de Contas da União, configura a  opção política do governo Bolsonaro de priorizar a proteção econômica..

Finalmente, os pesquisadores chamam a atenção a persistência do comportamento de autoridades federais brasileiras diante da vasta disseminação da doença no território nacional e do aumento vertiginoso do número de óbitos, embora instituições como o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público Federal tenham apontado, inúmeras vezes, a inconformidade à ordem jurídica brasileira de condutas e de omissões conscientes e voluntárias de gestores federais, assim como o fizeram, incansavelmente, entidades científicas e do setor da saúde.

Congregação da Faculdade de Saúde Pública da USP emite nota sobre a evolução pandemia da COVID-19 no Brasil

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Nota à Imprensa da Congregação da Faculdade de Saúde Pública da USP sobre a evolução da pandemia de COVID-19 no Brasil

“Com 102 anos de história, sendo uma das instituições pioneiras da saúde pública no Brasil, a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), por meio de sua Congregação, dirige-se aos meios de comunicação para informar o seguinte. Não há contradição entre proteção da economia e proteção da saúde pública. A recessão econômica decorrente da pandemia será global e já é inevitável. Medidas de proteção social, especialmente o provimento de renda mínima para trabalhadores informais e complemento de renda para populações vulneráveis, a exemplo do que outros países estão fazendo, devem ser adotadas imediatamente. Esta proteção econômica é um dever do Estado que garantirá tanto a subsistência dos beneficiários como a preservação de um nível básico de consumo, protegendo a vida e a economia, inclusive os pequenos comércios. Neste cenário, os cortes de salários, inclusive de servidores públicos, constituiriam dano irreparável à economia, com queda ainda mais brusca de patamares de consumo. Não há que se confundir a economia brasileira com interesses econômicos de determinados grupos.

O isolamento exclusivo de pessoas em maior risco não é uma medida viável, especialmente em um país com as características do Brasil, com elevados índices de doenças crônicas não transmissíveis que constituem comorbidades relevantes diante da incidência do novo coronavírus. É importante ressaltar que a COVID-19 pode ser assintomática, tem largo potencial de propagação e, como bem revelam os dados de outros países, pode acometer igualmente jovens saudáveis que, com a sobrecarga dos serviços de saúde públicos e privados, podem vir a engrossar as estatísticas de óbitos evitáveis. Ademais, a experiência de outros países demonstra que, na falta de isolamento, parte significativa dos profissionais de saúde está sendo infectada por transmissão comunitária, ou seja, em seu convívio social, reduzindo o contingente de trabalhadores disponíveis, em prejuízo da saúde desses profissionais e de toda a sociedade.

Neste momento de crise, mostra-se urgente e essencial reforçar as capacidades do Sistema Único de Saúde no Brasil, ampliando o seu financiamento, articulando de forma eficaz e cooperativa as ações e serviços públicos de saúde prestados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, ampliando as ações de vigilância em saúde e consolidando protocolos e diretrizes terapêuticos nacionais que orientem a sociedade brasileira de forma segura e cientificamente eficaz. Deve haver imediata regulação da distribuição dos leitos de UTI, articulando os setores público e privado, a fim de garantir o acesso equitativo ao tratamento intensivo para o conjunto da população.

Ainda no que se refere à valorização do SUS, deve ser ressaltada a importância dos profissionais de saúde que vêm se dedicando à atenção dos infectados pelo novo coronavírus. É fundamental que o Estado brasileiro proteja esses profissionais para o pleno desenvolvimento de suas atividades, uma vez que são extremamente expostos ao risco de contaminação e às jornadas de trabalho intensas e exaustivas. Para tanto, deve-se garantir o fornecimento dos equipamentos de proteção individual essenciais no manejo clínico da doença, assim como organizar rotinas e jornadas que evitem a sobrecarga de trabalho e ofereçam a esses profissionais ambientes de trabalho adequados e seguros.

A situação dos idosos merece particular atenção. A banalização da ideia da prescindibilidade de suas vidas no discurso político constitui afronta inadmissível à dignidade humana. A subsistência dos idosos deve merecer políticas específicas, pautadas por preceitos éticos.

O sucesso da política de saúde voltada à contenção do coronavírus depende da adesão da população às medidas orientadas pelo Estado, que deve ser capaz de organizar e incentivar a ação social coletiva nesse momento estratégico. Assim, as ações e serviços públicos de saúde devem pautar-se pelas melhores evidências científicas, com total transparência, clareza e objetividade. As medidas restritivas de direitos devem ser devidamente motivadas, proporcionais, potencialmente eficazes e atentamente monitoradas pela sociedade brasileira.

Por fim, o investimento em pesquisa e formação superior deve ser não apenas mantido mas incrementado de forma significativa e permanente. A experiência da COVID-19 demonstra o quanto a ciência é imprescindível na resposta às emergências, além do extraordinário proveito da vinculação estreita entre a produção científica e os grande sistemas públicos de saúde, com alto grau de fecundação recíproca. No entanto, a ciência requer investimentos de curto, médio e longo prazo, que podem ser altamente comprometidos pela instabilidade ou suspensão temporária de recursos.

Reiterando sua missão, seus valores e compromissos com o Estado Democrático de Direito e com a sociedade brasileira, a Congregação da FSP/USP coloca-se à disposição e solidariza-se com as autoridades sanitárias neste momento de extrema dificuldade, reconhecendo o empenho dos mandatários dos Estados da federação brasileira em salvar vidas. Nossa união e nossa solidariedade será fundamental para o êxito da resposta à COVID-19.

Como sanitaristas com formação plural e multidisciplinar que dedicamos nossa vida à formação e à pesquisa nesta área, pedimos: fiquem em casa, busquem informação confiável e defendam políticas imediatas de proteção social.

Congregação da Faculdade de Saúde Pública da USP”