Porto do Açu: oscilando entre a miragem e o fato

Pode não soar muito popular, mas eu sempre digo que o enclave portuário conhecido como “Porto do Açu” até hoje é mais espuma do que chopp. É que promessas grandiloquentes não faltam para tentar turbinar a imagem do empreendimento que é controlado por 3 entidades multinacionais (i.e., EIG Global Partners, o Fundo Mubadala e o Porto de Antuérpia). 

Os anúncios de novos projetos geralmente segue a tônica: mais um projeto incrivelmente inovador vem por aí, milhares de empregos serão gerados, e haverá a prometida e nunca concretizada dinamização da economia regional. É sempre a mesma ladainha, independente do tamanho e da importância do veículo de mídia que divulga a “novidade”.

A mais recente bomba semiótica saindo das prensas do Porto do Açu é um tal de “hub de ferro metálico” cujas estruturas seriam “voltadas para o beneficiamento do minério de ferro que chega ao Porto do Açu“.  O press release que está sendo circulado aponta que a tecnologia a ser utilizada “permitirá reduzir em até 60% as emissões de CO₂, contribuindo para o processo de descarbonização e para consolidar o porto como referência em transição energética no Brasil“.  Faltou apenas dizer qual vai ser o montante das emissões que ainda vão alcançar a atmosfera via o Porto do Açu que, aliás, já é um grande contribuinte, especialmente via o funcionamento das termelétricas ali instaladas.

Um detalhe a mais é que está se falando que esse “hub” vai ocupar uma área de 308 hectares. Supondo que essa área está no perímetro que foi desapropriado e nunca pago, fica ainda mais evidente o descalabro que é ter esses projetos em terras que, na verdade, foram levadas pelo estado do Rio de Janeiro passadas a Eike Batista que depois as repassou para o EIG Global Partners, sem que se tenha pago as devidas compensações financeiras às centenas de famílias que perderam seus meios de produção e reprodução social.

Arteris oferece o outro lado da moeda

Um raro exemplo de desconformidade  com as imagens exitosas do Porto do Açu veio de um local inesperado.  Falo aqui do documento depositado pela Arteris Fluminense, empresa que detém o controle de trechos privatizados da BR-101 e que está tentando ser liberada do contrato com a União.  Um dos motivos que teriam sido alegados pela Arteris é justamente o “baixo desempenho do Porto do Açu”, pois segundo a Arteris teria havido uma frustração extraordinária” no tráfego projetado, já que a região não entregou o crescimento esperado com a operação do Açu. 

Ainda que não me esteja claro qual será o destino do trecho do qual a Arteris quer se livrar, o fato é que a situação alegada pela empresa é um desses raros momentos de quebra da imagem de perfeição que o Porto do Açu tanto tenta construir.  É graças à Arteris que se tem esse raro momento em que o fato transcende ao poder da miragem corporativa.

Defendendo a ciência em tempos difíceis

Retirado da edição de março de 2021 da Physics World, onde o artigo apareceu sob o título “Apoiando a ciência em tempos difíceis”. Membros do Instituto de Física podem ler a edição completa por meio do aplicativo Physics World .

Com o COVID-19 fomentando conspirações anticientíficas, Caitlin Duffy diz que os cientistas têm o dever de falar abertamente e desafiar a desinformação 

factfake

Questão de identidade Podemos combater a ideologia anticientífica diretamente ou quebrando publicamente os estereótipos que significam que os cientistas são “alheios” e desconfiados. (Cortesia: Shutterstock / Yeti studio)

Por Caitlin Duffy para a Physics World

A cada minuto, todos os dias, cerca de 300 horas de vídeo são carregadas no YouTube e milhões de discussões estimulantes, mas não regulamentadas, ocorrem diariamente em sites de fóruns. Enquanto a Internet permite o acesso instantâneo às informações e entre si, o viés dos algoritmos favorece sugestões que atraem o usuário. Junto com o sensacionalismo da mídia e a corrupção política, a Internet cultivou uma insurgência de ideologia anticientífica, alimentada pela desinformação, sub-representação e paixão enraivecida. Em um mundo onde quase 60% da população tem acesso à Internet, os cientistas são necessários mais do que nunca para salvaguardar os fatos, a confiabilidade, a paz global e a saúde. 

A retórica anticientífica tem nucleado na última década, especialmente quando se trata do clima. Apesar do pior cenário, mostrando um aumento da temperatura global de 8°C e um aumento do nível do mar de 1 m até 2100 – bem durante a vida de nossa geração mais jovem – muitos optam por ignorá-lo ou desafiar as evidências subjacentes. Na esteira do COVID-19, a ignorância e a incapacidade de ouvir os cientistas agravaram o problema. Os espectadores assistem enquanto os países guiados pela ciência lentamente voltam a uma normalidade cautelosa, enquanto outros países sofrem taxas de mortalidade dolorosas, bloqueios de longo prazo e frustração com reviravoltas nas políticas. 

No Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson inicialmente apertou a mão de pacientes COVID-19 hospitalizados, em seguida, priorizou a economia sobre a saúde, ignorou os membros de seu governo que violavam as leis do COVID e mudou de ideia a esmo em relação à educação, merenda escolar gratuita e celebrações de Natal. Quando os cientistas modelaram extensivamente os resultados do COVID e detalharam as etapas necessárias para prevenir o pior, um governo complacente deveria ter ouvido. Bater potes e panelas para o NHS subfinanciado e sobrecarregado e outros trabalhadores-chave estressados ​​não é a resposta. E nos Estados Unidos vimos uma rebelião semelhante no COVID, com seu ex-presidente Donald Trump pedindo protestos contra o uso de máscaras e lockdowns, bem como promovendo a ingestão de alvejante e hidroxicloroquina, fornecendo estatísticas falsas e destacando o cinismo da vacina. Agradecidamente, 

Quando pessoas influentes mostram tanto desprezo, desrespeito e desconfiança em relação à ciência, é fácil entender como as conspirações são formadas e cultivadas nas comunidades, dando origem à perigosa cruzada anticientífica. O papel de um cientista é ser a voz eletiva da razão contra o absurdo e as proclamações da visão de túnel. É vital, então, que as figuras de autoridade confiem no julgamento científico e ajam de acordo. A confiança dos políticos e da mídia pode ajudar a combater a retórica anticientífica e algumas das questões mais urgentes enfrentadas pela humanidade. Com a necessidade óbvia de cientistas visíveis, deveria ser nosso dever falar sobre nossas preocupações sobre certas políticas. 

Colocando-se lá fora

Os cientistas são treinados ao longo de muitos anos para vasculhar jargões e dados para estabelecer fatos, detectar falhas e – principalmente – deixar de lado suas convicções pessoais caso as evidências as considerem improváveis. Afinal, nem mesmo Einstein poderia culpar a mecânica quântica, apesar de seu profundo problema filosófico com a teoria. Os cientistas são abordados com situações complexas e detalhadas, às vezes que estão além do escopo de seu campo. À medida que as pessoas procuram encontrar uma visão equilibrada das notícias hiperbolizadas, os cientistas parecem um bom primeiro ponto de contato para seu pensamento crítico treinado. 

Embora gratificante, sendo a pedra da razão que apura fatos e faz malabarismo com o jargão, muitas vezes é desgastante, pois requer não apenas tempo e esforço, mas também ginástica mental para produzir uma resposta satisfatória. Ser a referência para questões factuais pode adicionar uma complexidade diferente, às vezes indesejada. Como alternativa, a estimulação mental constante e a resolução de problemas são um ponto de prosperidade para alguns cientistas que usam essas conversas interessantes como uma pausa – ou mesmo para procrastinação – de seu trabalho diário.

A demanda por e de cientistas é alta. Mas sabemos que para cada cientista que escolhe ser vocal, há outro que detesta preencher um papel tão aberto, até porque não tem tempo. Na verdade, falar e se expor nem sempre é fácil. A resposta de quem está fora da comunidade às vezes é ostracizante e ofensiva: repleta de misoginia para as mulheres, crítica em relação às pessoas de cor e cheia do conceito equivocado de que os cientistas acreditam que são melhores do que o público em geral. 

Isso, em combinação com um trabalho diário muitas vezes não relatável, pode levar os cientistas a reduzir seus laços sociais com os não-cientistas, acabando por remover uma conexão indispensável com a maioria da população. Parte de ser vocal é quebrar estereótipos e desafiar o estigma. Isso demonstra a “normalidade” que está por trás dos gráficos, nitrogênio líquido e estatísticas sérias; por trás de cada cientista está uma pessoa única com interesses, famílias e histórias distintas. Isso é crucial para retratar se os jovens de hoje querem crescer com confiança e paixão na ciência e se as minorias vão se sentir bem-vindas na comunidade científica. 

As pessoas costumam ficar surpresas quando um cientista tem hobbies inesperados – seja fisiculturista, chef profissional, sommelier, artista ou músico. Quando o mundo exterior vê apenas “cientista” como a identidade de alguém, inadvertidamente menospreza talentos e hobbies que levaram décadas para dominar. Um cientista pode, a seus olhos, se transformar de uma pessoa chata que fica atrás de um computador o dia todo em alguém que faz ciência, mas também corre ultramaratonas ou produz sua própria música. 

Demonstrar que a ciência está ao alcance de qualquer pessoa não se trata apenas de melhorar a imagem dos cientistas. É também um passo fundamental para apagar o fogo anticientífico e abafar as conspirações – ambas vitais se quisermos continuar o avanço global em direção a um futuro mais pacífico, seguro e saudável.

fecho

Este artigo foi originalmente escrito em inglês e publicado pela “Physics World” [Aqui!].