Corrupção, fraudes e hackers mascaram a origem ilegal da carne na Amazônia

Novo relatório da ‘Repórter Brasil’ mostra como são facilmente adulterados documentos usados pelos frigoríficos para bloquear compras de bois ligados ao desmatamento ou trabalho escravo, abrindo brecha para fraudes envolvendo até mesmo funcionários públicos

amontado gado

Pela Repórter Brasil

Os maiores frigoríficos brasileiros anunciaram planos para garantir que, até o fim da década, não vão comprar um gado sequer de áreas desmatadas. Para isso, JBS, Marfrig e Minerva vêm investindo em ferramentas para monitorar a origem dos bois, incluindo tecnologias inovadoras que, em breve, permitirão o monitoramento ambiental dos seus fornecedores indiretos – ou seja, os pecuaristas que fornecem os animais jovens engordados nas fazendas que negociam diretamente com os frigoríficos.

No entanto, um novo relatório da Repórter Brasil, o Monitor 16 – De Olhos Fechados pro Desmatamento, mostra como há nestes planos um problema de origem que dificulta o cumprimento da meta: o rastreamento total da cadeia produtiva do gado segue baseado em documentos oficiais sujeitos a fraudes frequentes e cuja fragilidade dificulta, no contexto atual, o monitoramento até mesmo dos fornecedores diretos.

As violações vão desde esquemas para burlar os sistemas de controle dos frigoríficos até golpes envolvendo servidores públicos e hackers, que atuam de forma criminosa para apagar dos registros oficiais dados como as multas ambientais de fazendas fornecedoras. 

Alguns dos esquemas ilegais envolvem quadrilhas como a identificada na Operação Tokens, da Polícia Federal, em 2020. Os criminosos falsificavam certificados digitais (tokens) de funcionários do Ibama. Feito isso, acessavam os sistemas eletrônicos do órgão para desembargar, de forma clandestina, áreas interditadas na Amazônia por crimes como desmatamento ilegal.

Esquemas para burlar sistemas de controle dos frigoríficos e golpes envolvendo servidores públicos e hackers são algumas das violações compiladas no relatório ‘Monitor 16 – De Olhos Fechados pro Desmatamento’ (Foto: Daniel Beltrá/Greenpeace)

À época, foram constatados 122 desembargos irregulares em nome de 54 pessoas físicas ou jurídicas. Algo que afeta os sistemas de controle dos principais frigoríficos brasileiros, já que eles são signatários de acordos para não adquirir animais de fazendas com áreas embargadas.

Em 2021, mais uma apuração da Polícia Federal apontou outras formas criminosas para alcançar o mesmo objetivo. Um assessor do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, estaria pressionando servidores do Ibama para cancelar embargos incidentes em algumas fazendas – incluindo áreas de pastagem. A denúncia do caso levou à exoneração do servidor.

Também no ano passado, a Operação Fake Bois, deflagrada pela Polícia Civil do Acre, revelou outro lado da fragilidade no monitoramento da pecuária: a participação de servidores públicos em esquemas de corrupção para mascarar o trânsito de gado de origem desconhecida.

A fraude ocorria por meio de adulterações nas Guias de Trânsito Animal (GTAs) – documentos obrigatórios para acompanhar o transporte do gado entre fazendas ou para o abate. Segundo as investigações, por anos um ex-servidor inseriu informações falsas no sistema responsável pela emissão destes documentos. Desde 2018, haviam sido detectadas 135 inserções falsas e ao menos 30 fazendas entre as áreas possivelmente beneficiadas.

Outra fiscalização – a Operação Boi Fantasma – foi deflagrada pela Polícia Civil de Rondônia em abril de 2021, identificando esquema semelhante também naquele estado.

Mentiras sem consequências

É justamente por meio de informações das GTAs que os frigoríficos pretendem identificar e monitorar seus fornecedores indiretos. Mas há proprietários que, mesmo sem a ajuda de servidores corruptos, conseguem emitir guias “fictícias” para mascarar a real origem do gado transportado.

Também foram destacadas no relatório as fraudes nas Guias de Trânsito Animal (GTAs), que são documentos obrigatórios para acompanhar o transporte do gado entre fazendas ou para o abate (Foto: João Laet/Repórter Brasil/The Guardian)

Isso ocorre quando uma propriedade com áreas embargadas ou inserida na “lista suja” do trabalho escravo emite a GTA em nome de fazendas “limpas”, que podem ser do mesmo dono, de parentes ou amigos. Dessa forma, usa o documento para acobertar o transporte dos animais criados na área desmatada ilegalmente.

Em 2020, a Repórter Brasil publicou uma investigação na qual foram identificados fortes indícios da prática. Um pecuarista desmatador e foragido da Justiça repassou 143 animais fêmeas para um sítio pertencente a um ex-funcionário seu. Onze minutos depois, segundo os próprios registros de GTAs, esse ex-funcionário transferiu 143 animais, com as mesmas características de sexo e idade, para o abate em um frigorífico da JBS.

Muitas vezes, as adulterações são grosseiras. Um exemplo são propriedades que emitem GTAs indicando a saída de um número alto de animais em um curto período de tempo – muito além do que seria factível, dado o tamanho da fazenda. É um forte indicativo de que o gado transportado teve origem em outros locais. Ou seja, teve a sua real origem “lavada”.

O mapa da mina

As indústrias compradoras de gado checam a existência de desmatamento em áreas fornecedoras através do Cadastro Ambiental Rural (CAR). O CAR é um documento federal onde os fazendeiros indicam os limites de suas propriedades, as áreas de preservação obrigatória e os remanescentes de vegetação nativa.

São inúmeras as fraudes realizadas em seu preenchimento. Por exemplo, muitos pecuaristas falsificam o perímetro de suas fazendas simplesmente removendo da área declarada as partes que foram desmatadas ilegalmente.

Outra prática comum é a “quebra” da propriedade. Nesses casos, uma fazenda é convertida – ao menos no papel – em diversas fazendas menores que fazem fronteira entre si. Caso exista um embargo ou um registro de desmatamento ilegal em alguma delas, basta informar aos frigoríficos o CAR vizinho como a área de origem dos animais vendidos.

Uma alternativa para, de fato, acabar com a venda de gado ligado ao desmatamento seria rastrear os animais com chips, de forma semelhante à já realizada em outros países; mas o setor trata essa tecnologia como uma possibilidade distante (Foto: Verena Glass/Repórter Brasil)

Por ser autodeclarado, o CAR precisaria, segundo a lei, passar pela validação das secretarias de meio ambiente estaduais, que devem fiscalizar a veracidade das informações incluídas. Mas esse processo está muito longe de ser concluído. Muitos dos CARs de áreas fornecedoras de gado sequer foram analisados pelas autoridades.

Horizonte nebuloso

Organizações da sociedade civil defendem a necessidade de avançar na transparência dos dados públicos – especialmente os CARs e as GTAs – para inibir as fraudes através do maior controle social da atividade agropecuária. Mas o governo federal e diversos governos estaduais resistem a isso.

As GTAs, por exemplo, são tratadas como documentos sigilosos, embora desde 2015 o Ministério Público Federal recomende que elas sejam de acesso público. O órgão já chegou a ingressar com uma ação judicial para obrigar a publicação das guias, mas sem resultados até o momento.

Outra alternativa seria rastrear individualmente os animais com chips, de forma semelhante à já realizada em outros países. Mas a adoção da tecnologia ainda é tratada como uma possibilidade distante pela indústria e por observadores externos.

Em 2021, um projeto de lei federal chegou a ser proposto na Câmara dos Deputados para exigir o uso de identificação eletrônica em animais criados em pastagens. A proposta, no entanto, já foi arquivada.


Leia o relatório completo aqui, disponível também em inglês.

compass black

Este texto foi originalmente publicado pela “Repórter Brasil [Aqui!].

Grandes frigoríficos seguem alimentando o desmatamento e a grilagem na Amazônia

Pesquisa do Greenpeace mostra relação dos Frigoríficos JBS e Frigol com fazendas em áreas públicas e desmatadas recentemente. PLs da Grilagem no Senado podem piorar o quadro

São Paulo – Investigação do Greenpeace Brasil revela que grandes frigoríficos do país compram gado, de forma direta ou indireta, de fazendas localizadas em áreas públicas federais da Amazônia e suspeitas de grilagem. Isso significa que a carne vendida tanto no Brasil como no exterior por essas empresas está “contaminada” com desmatamento ilegal, contribuindo com a destruição da floresta.

Entre os frigoríficos aparecem a JBS, maior produtora de proteína do mundo, e a Frigol, quarta maior do setor no país. Os frigoríficos foram identificados como destino final de gado com origem indireta (em um dos casos, direta) em fazendas sem registro junto ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), com históricos de crimes ambientais, ligadas a trabalho escravo e até mesmo pertencentes a pessoas acusadas de envolvimento em assassinatos.

O levantamento ilustra o tipo de apropriação ilegal de terra que pode aumentar na Amazônia caso seja aprovado qualquer um, ou ambos, os Projetos de Lei conhecidos como PLs da Grilagem (PL 2633/2020 e 510/2021). Atualmente em discussão no Senado, os projetos facilitam a legalização de terras da União que foram apropriadas ilegalmente.

Sob protestos da oposição, Câmara aprova ‘PL da Grilagem’. Texto vai ao Senado

De acordo com análise do Greenpeace sobre a taxa de desmatamento na Amazônia para 2021, 30% da área perdida se concentrou nas chamadas Florestas Públicas Não Destinadas. Essas florestas são áreas pertencentes à União ou aos estados, mas que ainda não possuem finalidade específica, diferentemente das unidades de conservação e territórios indígenas.

Além dos casos evidenciados nesse levantamento, uma análise recente do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) identificou que 75% das florestas públicas não destinadas, entre 1997 e 2020, são ocupadas por pastagem, o que indica ocupação ilegal para pecuária. “A redução do desmatamento passa pelo combate à grilagem e passa pelo Congresso rejeitar novas flexibilizações nas leis que incentivem um ciclo contínuo de invasão de terras públicas.”, afirma Cristiane Mazzetti, porta voz do Greenpeace.

Como funciona a grilagem (Arte: Greenpeace Brasil)

A pesquisa

O cruzamento de dados foi feito com base nas 50 maiores áreas de desmatamento na Amazônia entre os meses de agosto de 2020 e julho de 2021. A partir de informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por meio do sistema de alertas Deter, foram levantados dados de cerca de 150 fazendas nos estados do Mato Grosso, Amazonas e Pará.

As três fazendas que acabaram identificadas pelo Greenpeace se localizam em São Félix do Xingu, no Pará. O município possui a maior quantidade de cabeças de gado do país (2,4 milhões), foi o terceiro município que mais desmatou a Amazônia em 2021 e o que mais emitiu gases de efeito estufa em 2018.

Além disso, o município conta com 500 mil hectares de florestas públicas não destinadas. No entanto, 67% dessa área têm registros irregulares de propriedades rurais, por meio de documentos conhecidos como Cadastro Ambiental Rural (CAR). O CAR é um cadastro meramente autodeclaratório para fins de adequação ambiental da propriedade e não tem validade como posse ou propriedade de imóvel rural.

Durante a pesquisa, o Greenpeace também não identificou na Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará nenhum tipo de autorização de desmatamento nas propriedades alvos da investigação. Além disso, todas as áreas não apresentam cadastro no Incra, o que poderia indicar algum processo de titulação de terras.

Envolvimentos

As áreas foram identificadas por meio do Cadastro Ambiental Rural. Uma delas é a Fazenda Bom Jardim. O registro do CAR traz como proprietário João Cleber de Souza Torres, atual prefeito de São Félix do Xingu (MDB). Ele foi candidato a deputado estadual nas eleições de 2018, mas não se elegeu.

A lista de acusações contra João Cleber é longa: ele já foi acusado de liderar uma quadrilha de grilagem na região e de ser mandante de assassinato de trabalhadores rurais. Além disso, de acumular embargos e multas ambientais em seu nome, incluindo uma multa aplicada em 2014 no valor de R$ 6,6 milhões. O agropecuarista também já constou na lista suja do trabalho escravo, em decorrência das péssimas condições de trabalho impostas aos trabalhadores da fazenda Bom Jardim.

Imagem de satélite da Fazenda Bom Jardim

A apuração do Greenpeace mostra que a Fazenda Bom Jardim comercializou gado com a Fazenda Novo Horizonte, que por sua vez vendeu os animais para abate aos frigoríficos Frigol São Félix do Xingu e JBS Tucumã. Também foi comercializado gado com a Fazenda Recanto do Buriti, que vendeu bois para a mesma Frigol de São Félix do Xingu e Frigol Água Azul do Norte. Por último, a Bom Jardim vendeu gado para a Fazenda Ouro Branco, que forneceu animais para a JBS Tucumã e, de novo, a Frigol São Félix do Xingu.

Parte desse rebanho acabou indo para o exterior. Por exemplo, entre março de 2019 e julho de 2021, a Frigol São Félix do Xingu exportou para o Egito, Geórgia, Hong Kong, Israel, Jordânia, Arábia Saudita e Emirados Árabes.

Para detalhes relacionados às datas das transações e quantidades exportadas, acesse o relatório na íntegra

O Cupim

A segunda fazenda sob análise pelo Greenpeace foi a Flor da Mata III. Registrada em nome de Edson Coelho dos Santos (conhecido como Cupim), na região conhecida como “complexo Divino Pai Eterno”. A área é palco de um grande conflito agrário marcado por violência e assassinatos, no qual Edson está envolvido. Ele foi preso em 2014 acusado de participação em mortes e ameaças a agricultores.

A lentidão quanto à destinação das terras nessa região levou a conflitos pela posse. De um lado, agricultores familiares pleiteiam as áreas para assentamento. Do outro lado, “fazendeiros” tentaram regularizar as áreas por meio do programa Terra Legal, em que existem evidências de fracionamento das áreas e uso de “laranjas” a fim de obter o título da terra.

Imagem de satélite da Fazenda Flor da Mata

O levantamento do Greenpeace mostra que a fazenda Flor da Mata III comercializou gado diretamente com a JBS de Marabá. E, indiretamente, por meio da Fazenda Nova Conquista, também pertencente a Edson. A apuração mostra que a JBS de Marabá exportou entre julho de 2020 a junho de 2021 para Angola, Aruba, Congo, Costa do Marfim, Egito, Gabão, Gana, Hong Kong, Indonésia, Israel, Jordânia, Kuwait, Libéria, Líbia, Peru, Tunísia, Turquia e Emirados Árabes. Também exportou como produto final, em 2020, couro semi-processado para a Itália para o Gruppo Mastrotto e Conceria Priante (que é do grupo JBS).

Queimada

A terceira fazenda da pesquisa foi a Nossa Senhora Aparecida. A fazenda está registrada no CAR em nome de Antonio Francisco da Silva Filho e está sobreposta à Floresta Pública Não Destinada, sem registro no SIGEF (Sistema de Gestão Fundiária) do Incra.

No caso da fazenda Nossa Senhora Aparecida, o Deter, sistema de alertas do Inpe, registrou 248 hectares com avisos de desmatamento em 2021. A “propriedade” também apresenta embargos e multas ambientais. O cruzamento de informações feita pelo Greenpeace mostra que a fazenda comercializou animais para a Fazenda Santa Izabel I e II. Em sequência, repassou gado para abate ao frigorífico JBS de Tucumã, que por sua vez exportou, entre junho de 2019 até junho de 2021, para Congo, Costa do Marfim, Gabão e Hong Kong.

Imagem de satélite da Fazenda Nossa Senhora Aparecida

Ao não monitorar todos os fornecedores indiretos e a chamada “lavagem de gado” (boi repassado de áreas desmatadas para fazendas regulares), os frigoríficos permitem a contaminação da cadeia de fornecimento com animais que pastaram em áreas irregulares (possivelmente envolvidas com desmatamento, conflitos e grilagem).

Sem monitoramento dos frigoríficos, a pecuária continua alimentando os incêndios, e o desmatamento que consome a região, colocando a Amazônia, seus serviços ambientais e sua biodiversidade em risco.

O que precisa acontecer?

A Amazônia está chegando cada vez mais próxima do seu ponto de não retorno, um ponto muito perigoso para a sociedade brasileira e global. Além de prover uma série de contribuições da natureza para nossas economias e bem-estar humano, a floresta estoca grandes quantidades de carbono e biodiversidade.

De imediato, o Senado Federal deve rejeitar os PLs da Grilagem, que se aprovados incentivarão ainda mais a invasão e o desmatamento de florestas públicas.

A lavagem de gado no Brasil (Arte: Greenpeace Brasil)

“É necessário rever o modelo vigente, visando uma transição para formas de produção que convivam com a floresta e seus povos. Também restabelecer a capacidade de coibir e punir o crime ambiental, e de destinar áreas para conservação e uso sustentável, reconhecendo os direitos à terra de povos e comunidades tradicionais, povos indígenas e agricultores familiares. Além disso, é fundamental que os frigoríficos cumpram seus compromissos firmados anteriormente e avancem na rastreabilidade total da cadeia, incluindo o monitoramento de todos os fornecedores indiretos. A rastreabilidade deve ser feita por meio de um sistema público e acessível de maneira a permitir que os consumidores saibam de onde vem a carne que compram. “, afirma Cristiane Mazzetti.

Em meio a desmatamento recorde na Amazônia, PL da Grilagem é ‘coroação de todas as ações ilícitas’

O mercado internacional – incluindo empresas, instituições financeiras e governos –, também não pode ser cúmplice da destruição dos ecossistemas e muito menos de violação de direitos humanos. A falta de ações concretas e efetivas desses atores perpetuam o desmatamento, que resulta em mais emissões e colapso da biodiversidade.

Bruno Kelly/Amazonia Real
Sobrevoo flagra área de fazenda desmatada na Amazônia para criação de pastagens ilegais: “carne lavada” para um mercado que só quer consumir, de um lado, e lucrar, de outro (Foto: CC-BY-2.0/Bruno Kelly/Amazônia Real)/

Edição RBA: Fábio M Michel

blue compass

Este texto foi inicialmente publicado pela Rede Brasil Atual [Aqui!].

Agronegócio em xeque: carne bovina brasileira sofre ampliação de banimento depois da descoberta de casos do Mal da Vaca Louca

carnes

Uma crise silenciosa está se expandindo sem muita cobertura da mídia corporativa após a descoberta de casos de Mal da Vaca Louca em frigoríficos de Minas Gerais e Mato Grosso. É que após a proibição de importação de carne brasileira por China e Arábia Saudita, agora mais quatro países resolveram banir importações brasileiras (Rússia, Indonésia, Irã e Egito).  O problema aqui é estes países representam uma parte substancial do montante total de compras de carne bovina feitas no Brasil, a começar pela China que é o nosso principal importador.

Mas é preciso lembrar que quando ainda era deputada federal em 2018, mas já anunciada como futura ministra da Agricultura,  Tereza Cristina (DEM/MS) anunciou a intenção, que depois seria levada a cabo, de afrouxar a fiscalização diária do governo federal em frigoríficos, sob a alegação (esfarrapada, diga-se de passagem) de que as regras então  vigentes não permitiam ampliar a produção aos finais de semana, porque os fiscais do governo não trabalhavam sábado e domingo, nem podiam receber horas extras.

A conversa anunciada e defendida com unhas e dentes pelos donos de frigoríficos é de que seria possível adotar regras de “autocontrole” que deixariam sob as responsabilidades dos abatedores as principais medidas para fiscalizar a sanidade dos animais sendo abatidos em suas unidades industriais. 

É importante frisar que já em 22 de dezembro de 2018, publiquei uma nota neste blog indicando a minha opinião de que a proposta do autocontrole nada mais era do que uma senha para “chutar o balde” no controle da produção de carne e do desmatamento. Eu, aliás, também afirmei que os anúncios de Tereza Cristina já tinham acendido todas as luzes de alerta em muitos países que adquirem produtos de origem animal que são produzidos pelo Brasil.  Agora passados quase  três anos daquela postagem, o que se vê é a confirmação de tudo o que escrevi. 

Mas o que está acontecendo era previsível, por que se permitiu o afrouxamento de regras que agora resultam no banimento da carne brasileira? É que claramente falou mais alto a disposição do lucro a qualquer custo, mesmo que isso colocasse em risco a saúde da indústria de carne brasileira, provavelmente por causa da aposta furada de que nossos compradores mais latem do que mordem quando se trata de impor suas regras sanitárias. Agora se vê que o caso não é bem esse.

Finalmente, se esse banimento se mantiver ou até mesmo for ampliado, o consumidor brasileiro pode ter até um alívio no preço interno. Mas esse barateamento poderá sair caro se as regras de fiscalização dentro dos frigoríficos não forem recolocadas nos níveis que garantam que não estamos comendo carne fora dos padrões internacionais.

Desigualdades na cadeia da carne comprometem política de desmatamento zero na Amazônia

DESMATAMENTO1

  • Uma década depois da assinatura de acordos para banir o desmatamento da cadeia do gado, a pecuária segue sendo a maior responsável pelo desaparecimento da floresta na Amazônia.
  • Pesquisa revela disparidades entre frigoríficos, produtores e fiscalização que dificultam cumprimento dos acordos e permitem persistência de ilegalidades.
  • Dos 160 frigoríficos da Amazônia, somente 100 assinaram algum pacto. Auditorias que checam conformidade de compras são feitas apenas em 56 unidades.
  • Entre criadores, diferença é sócio-econômica: os grandes têm recursos para ampliar produtividade sem abrir novas áreas de pasto e conhecimento de tecnologias disponíveis. Já os pequenos sequer contam com registro formal de terras e são invisíveis para a fiscalização.
Por Naira Hofmeister para a Mongabay Brasil

De um lado, frigoríficos monitorados e auditados para cumprirem critérios de compras com zero desmatamento; de outro, abatedouros irregulares que não ligam para as regras. Fazendas com área e recursos para ampliar a produtividade sem derrubar árvores convivem com pequenas propriedades que não têm sequer registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – e para as quais a única opção de maximizar lucros é abrir novas áreas de pasto na selva. Do mesmo modo, criadores antenados e com laços sociais que reforçam a decisão de produzir gado sem desmatar concorrem com fazendeiros isolados, sem acesso a estradas e longe de qualquer estímulo para atender ao compromisso ambiental.

A desigualdade, chaga brasileira que está por trás de estatísticas preocupantes do país, também explica o desmatamento na Amazônia – ou, pelo menos, ilustra a dificuldade de se fazer cumprir a política de desmatamento zero imposta a frigoríficos em 2009 pelo Ministério Público Federal por meio de um acordo setorial chamado Compromisso Público da Pecuária (CPP).

“Uma década depois, a implantação dos acordos da cadeia da carne ainda é incompleta e as dúvidas sobre como diminuir o papel da pecuária no desmatamento permanecem”, observam as quatro autoras de um estudo publicado em setembro de 2020 no periódico Tropical Conservation Science.

Não é novidade que parte dos compromissos incluídos nos pactos ficaram pelo caminho nessa década. O Greenpeace abandonou a mesa do CPP em 2017 ao identificar a falta de apetite das empresas em cumprir a meta do desmatamento zero. Em 2019, o procurador federal Daniel Azeredo assegurou que, apesar das auditorias do MPF terem concluído que mais de 90% das compras dos frigoríficos cumpriam parâmetros mínimos exigidos, nenhuma companhia operante na Amazônia poderi“dizer que não tem gado vindo de desmatamento em sua atividade produtiva”.

No ano passado, foi a vez de os maiores processadores de proteína animal do Brasil, JBS e Marfrig, admitirem publicamente que falharam. Eles conseguiram implementar um monitoramento rigoroso sobre seus fornecedores diretos, mas a fiscalização não avançou para os elos anteriores da cadeia – um problema que adquire grandes dimensões em um setor em que um animal pode passar por uma dezena de fazendas antes daquela que finalmente vai mandá-lo para o abate.

Mas o levantamento que originou o artigo, liderado pela engenheira agrônoma brasileira Ritaumaria Pereira, oferece uma novidade nesse panorama já conhecido: o testemunho de 131 criadores de gado e gerentes de sete frigoríficos da região sudeste do Pará, que falaram sem rodeios sobre problemas e demandas do setor. “Pesquiso a cadeia da carne desde 2005, e pela primeira vez consegui entrar em todos frigoríficos; ninguém bateu a porta na minha cara, todos queriam falar. Naquele momento, estavam muito abertos”, comemora Pereira.

O trabalho abrangeu dez municípios do sudeste do Pará, uma região entre São Félix do Xingu e Marabá onde estão concentrados 30% do rebanho bovino do Estado e 10% de todas as cabeças de gado da Amazônia. O Pará é o pioneiro na assinatura de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) entre frigoríficos e o MPF, um instrumento que se expandiu na última década para quase todos os estados da Amazônia Legal – embora com diferenças significativas de efetividade entre eles.

A pesquisa foi realizada entre os anos de 2013 e 2014, mas as autoras assinalam que os dados “descrevem desafios estruturais que continuam a ser enfrentados pelos fazendeiros”, assim como estratégias que eles “continuam a usar para evitar o cumprimento dos acordos”.

MAPA

Ilegalidades cruzam divisas 

Contando com a colaboração dos entrevistados, as pesquisadoras ouviram depoimentos “francos sobre como é fácil evitar as exigências” dos acordos enganando a fiscalização e promovendo a chamada “lavagem de gado” – troca de animais de uma fazenda irregular para outra legalizada – ou simplesmente vendendo para frigoríficos que não fazem parte dos pactos firmados por MPF e Greenpeace. A prática é tão comum que a promotoria do Mato Grosso precisou enquadrar nos seus TACs plantas de abate no vizinho Tocantins, onde o MPF ainda não atua com o mesmo rigor, segundo Ritaumaria Pereira.

Um criador admitiu à pesquisadora que “muitos animais deixam o Pará sem a Guia de Trânsito Animal para serem lavados em outros estados. Os municípios do sudoeste enviam gado para o Mato Grosso, e os do sul fornecem para Tocantins e Goiás”.

Roraima e Amapá não tem nenhum frigorífico sob monitoramento do MPF, embora o Compromisso Público da Pecuária seja aplicado a todo o território da Amazônia, mas apenas para as três maiores indústrias: JBS, Minerva e Marfrig.

Dados do projeto Boi na Linha – uma parceria da ONG Imaflora com o MPF para facilitar o acompanhamento dos resultados dos TACs – mostram essa disparidade. Em 2016, foram mapeadas 160 plantas frigoríficas na Amazônia, mas até hoje apenas 100 assinaram o compromisso de exigir conformidade ambiental de seus fornecedores.

Cobertura do TAC da Carne na Amazônia Legal

Pouco mais de 60% das plantas de abate na região são monitoradas pelo Ministério Público Federal

FRIGOS

Fonte: Imaflora

Dessas, somente 56 são alvo regular de auditorias que checam a conformidade dos abates com o firmado nos pactos setoriais. Isso quer dizer que há frigoríficos que são cobrados publicamente em maior grau que outros – e ainda que há uma quantidade significativa de empresas que sequer estão no raio de atenção das autoridades. “Quando colocamos no mapa, vemos que é uma concorrência muito desleal. Dez anos após o lançamento dos acordos, deveríamos ter todos os frigoríficos alinhados”, aponta Pereira.

Exigência de auditoria para comprovar cumprimento dos TACs

Apenas 56 dos 100 frigoríficos monitorados pelo MPF se submetem à checagem de conformidade.

AUDITA

Fonte: Boi na Linha – Imaflora

As empresas signatárias dos acordos precisam criar sistemas internos de monitoramento de suas compras e podem responder na Justiça se houver problemas. “Mas o frigorífico que não assinou acordo nenhum paga a mesma coisa pelo gado do produtor, o que incentiva esse criador a não buscar se adequar aos parâmetros do desmatamento zero”, lamenta a pesquisadora.

A floresta não está mais lá

A diversidade de perfis dos produtores é outro entrave para a efetividade dos acordos de desmatamento zero na Amazônia. Na pesquisa de Ritaumaria Pereira, ela encontrou propriedades que variavam de 29 hectares a 57 mil hectares – uma diferença que reflete as oportunidades que esses criadores terão em seus negócios.

Os fornecedores indiretos, que estão fora do radar de monitoramento implementado até agora, possuem fazendas menores e são o elo mais frágil da cadeia. Quase 70% não têm registro oficial no Cadastro Ambiental Rural – uma formalidade autodeclaratória que é, digamos assim, o ponto zero da política agrária do país. “Fornecedores indiretos disseram que não se registraram porque vendem apenas bezerros ou animais para a engorda em fazendas de intermediários, e essas ações não exigiam que eles tivessem CAR”, assinalam as pesquisadoras.

Sem um número de CAR, o fornecedor se torna invisível para as autoridades de fiscalização, mas também perde qualquer oportunidade de estímulo produtivo, como acesso a crédito ou iniciativas de fomento – torna-se quase impossível modificar seu status socioeconômico. 

Perfil de propriedades fornecedoras da cadeia da pecuária do Sudeste do Pará

AREAS

Fonte: Pereira et al. (2020) • Dados do estudo coletados entre 2013 e 2014.

Segundo a pesquisa, fazendas com acesso a tecnologia e a informações sobre as melhores práticas agrícolas tinham produtividade sete vezes superior a outras onde esse conhecimento e acesso não estava disponível. Por isso, 76% dos entrevistados queriam investir na recuperação de pastagens, mas esbarravam no alto custo e no difícil acesso à tecnologia: enquanto investir em técnicas de melhoramento de pastagem de um hectare custava em média US$ 752 em 2009, derrubar essa mesma área de floresta podia ser feito por pouco mais de US$ 400.

Todos os que conseguiram dar esse pasto eram fornecedores diretos na amostra de Pereira. “O pequeno não tem essa condição, até porque ele não tem terra mesmo para fazer lavoura ou melhorar o pasto rotando áreas. E aí ele fica refém da escassez, de um sistema de baixa produtividade”, lamenta Pereira.

O que é, sim, padrão entre grandes e pequenos, diretos e indiretos é a ausência de cobertura florestal original. Mais de 95% dos entrevistados admitiu manter uma área de Reserva Legal menor do que a exigida pela lei. Nas fazendas pesquisadas, a floresta remanescente não chegava a 20% da área – um flagrante desrespeito ao Código Florestal Brasileiro, que determina a preservação de 80% da cobertura vegetal no bioma Amazônia.

Propriedade real x propriedade legal no sudeste do Pará

Área média das propriedades é de 2.423 ha. Lei brasileira prevê reserva legal na Amazônia com 80% de área de florestas preservadas.

LEGAL

Fonte: Pereira et al. (2020) • Dados do estudo coletados entre 2013 e 2014.

Por isso quando, no ano passado, os grandes frigoríficos anunciaram novas metas para que toda sua cadeia esteja adequada à política de desmatamento zero na Amazônia, houve uma mistura de frustração e reconhecimento. Os planos são adequar gradativamente fornecedores indiretos no período entre 2025 e 2030. “Os grandes frigoríficos têm mostrado que vão fazer investimentos, é uma luz no fim do túnel. O que é difícil de aceitar é que talvez demore ainda muito tempo: mais dez anos, é isso mesmo?”, se insurge Ritaumaria Pereira, cobrando avanços mais velozes e em direções variadas para que o desmatamento zero possa finalmente ser uma realidade.

Imagem do banner: Fazenda de gado em Novo Progresso, Pará. Foto: Felipe

fecho

Este artigo foi originalmente pela Mongabay Brasil [Aqui!].

Trabalhadores de frigoríficos do Brasil sob risco de plano ‘inconcebível’ para reduzir os intervalos em locais de baixas temperaturas

Com o boom das exportações, os donos dos frigoríficos brasileiros estão apoiando planos para restringir os períodos de descanso para aqueles que realizam trabalhos perigosos em baixas temperaturas

marfrig

Trabalhadores em um frigorífico da Marfrig. As propostas apoiadas pela indústria da carne limitariam as pausas regulares, que os sindicatos dizem que são destinadas a proteger os trabalhadores. Fotografia: Ricardo Funari / Lineair / Greenpeace

Por  Carlos Juliano Barros para o “The Guardian”

A saúde de centenas de milhares de trabalhadores de frigoríficos no Brasil está em risco devido a um plano apoiado pela indústria para reduzir as pausas concedidas aos empregados, dizem grupos de direitos dos trabalhadores no país.

Em meio a uma pandemia que ceifou a vida de mais de 350.000 brasileiros, o governo do presidente Jair Bolsonaro, o parlamento e a indústria da carne têm pressionado por uma mudança para revisar as leis e regulamentos que protegem os trabalhadores nos frigoríficos.

As novas regras em discussão limitariam os intervalos regulares dados aos trabalhadores que enfrentam baixas temperaturas, o que os especialistas em trabalho dizem que ajuda a reduzir o potencial de lesões.

“É inconcebível que durante a pior crise de saúde da história, quando os frigoríficos foram qualificados como essenciais e continuaram a trabalhar normalmente para garantir o abastecimento de alimentos à sociedade, eles devessem ter quaisquer direitos relacionados à saúde e segurança no trabalho retirados”, disse Lincoln Cordeiro, que trabalha para o Ministério Público do Trabalho, órgão federal independente do governo.

Os intervalos de 20 minutos a cada hora e 40 minutos permitem a “recuperação térmica” das baixas temperaturas. As alterações propostas significariam que essas pausas só seriam concedidas a funcionários sujeitos a temperaturas abaixo de 4C ou movimentação de cargas entre locais com diferença de temperatura de 10C. Isso cobriria cerca de 5% dos trabalhadores da frigorífica, diz Cordeiro.

“Há estudos que mostram que o trabalho contínuo em ambiente frio deteriora os músculos e o funcionamento neural”, disse Cordeiro. “A exposição ao ar frio também causa alterações inflamatórias e piora do sistema respiratório.”

A revisão das regras trabalhistas nos frigoríficos ocorre em um momento em que se levantam questões na Europa sobre a sustentabilidade das exportações brasileiras de carne, no valor recorde de  US$ 17 bilhões em 2020.

Sob Bolsonaro, o desmatamento ilegal em biomas sensíveis disparou. Uma vasta extensão da floresta amazônica sete vezes maior que a Grande Londres foi desmatada entre agosto de 2019 e julho do ano passado.

“O setor empresarial pressionou o governo, argumentando que as regras atuais estão causando prejuízos”, disse Célio Elias, líder da Federação Democrática dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação de Santa Catarina, um importante estado produtor de aves. “[Mas] se a proteção dos trabalhadores for prejudicada, veremos um grande número de pessoas feridas e mutiladas. Não temos dúvidas sobre isso. ”

Trabalhadores processam carne na planta de processamento do Minerva SA em Barretos, BrasilTrabalhadores da indústria de processamento de carnes da Minerva SA em Barretos, Brasil. O governo e a indústria têm pressionado por uma redução na proteção aos trabalhadores. Fotografia: Bloomberg / Getty Images

Foram quase 23 mil acidentes em frigoríficos no Brasil em 2019, segundo o Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho , uma média de 62 por dia.

Além das mudanças propostas para a legislação trabalhista do país, o governo de Bolsonaro anunciou planos de revisão das normas federais (conhecidas como NR36) que cobrem a distância mínima entre os trabalhadores e o uso de móveis adequados para evitar acidentes, bem como intervalos.

A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), que representa as indústrias de aves e suínos do país, disse que as mudanças propostas no código de trabalho do Brasil iriam “colocá-los em linha com as regras internacionais” e dar aos trabalhadores um modelo mais flexível de pausas que não obrigá-los a abandonar as instalações.

Tanto a ABPA quanto a secretaria do trabalho do Ministério da Economia afirmaram que as mudanças na NR36 visam “simplificar, harmonizar e desburocratizar”. A ABPA acrescentou em comunicado que a revisão da NR36 foi necessária “devido aos avanços nas tecnologias de produção” e que “o trabalho é essencialmente pautado pela melhoria constante das condições de saúde e segurança de todos os trabalhadores”.

A Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), que inclui frigoríficos de bovinos, não comentou as propostas de mudanças na legislação trabalhista ou na NR36.

 Carlos Juliano Barros é repórter investigativo da Repórter Brasil

Inscreva-se na atualização mensaldo Animals farmed para obter um resumo das melhores histórias de agricultura e comida em todo o mundo e manter-se atualizado com nossas investigações. Você pode nos enviar suas histórias e pensamentos para animalsfarmed@theguardian.com

fecho

Este texto foi escrito originalmente em inglês e publicado pelo jornal “The Guardian”  [Aqui!].

Devorando a Amazônia: a atração dos chineses por carne bovina impulsiona as exportações do Brasil

As vendas cresceram 76% no ano passado e não mostram sinais de desaceleração, alimentando a crise ambiental na Amazônia e no Cerrado

boi 1O Brasil é de longe o maior exportador de carne bovina para a China – em detrimento da floresta amazônica. Foto: Paulo Santos / Reuters

Por Dom Phillips no Rio de Janeiro e Michael Standaert em Shenzhen, para o “The Guardian”

Durante o jantar em uma churrascaria movimentada em Shenzhen, Lei Yong e Zhao Xu, dois empresários na casa dos 40 anos, refletiram sobre como o consumo de carne na China mudou drasticamente em suas vidas, especialmente nos últimos 10 a 15 anos.

“Talvez 20 anos atrás, as pessoas em vilarejos e cidades menores não comiam muita carne, mas as das grandes cidades sim”, diz Zhao, referindo-se à movimentada megacidade em que ele e Lei estão criando suas famílias. “Agora, as pessoas nas cidades maiores estão mais preocupadas com a saúde e estão comendo mais vegetais, mas as das cidades menores têm mais dinheiro. Agora eles estão realmente comendo muito mais carne. Eles acham que ser rico significa comer mais carne. ”

A demanda voraz da China ajudou as vendas de carne bovina brasileira a níveis recordes – mas o boom tem um alto custo ambiental .

A economia do Brasil foi duramente atingida pela pandemia do coronavírus e mais de dois milhões de pessoas perderam seus empregos. Mas a agricultura continua a florescer, e o país é o maior exportador de carne bovina do mundo.

O Brasil forneceu 43% das importações de carne da China em 2020, calculou a consultoria Safras & Mercado usando dados do governo, com as exportações de carne bovina ao país crescendo 76% no ano passado em comparação com 2019.

“Houve esse boom”, diz Thiago de Carvalho, professor de agronegócio da Universidade de São Paulo, destacando a qualidade da carne bovina brasileira e seu baixo preço depois que a moeda brasileira, o real, despencou no ano passado. “A carne brasileira está [entre] as mais baratas do mundo.”

As vendas devem subir ainda mais este ano , à medida que a indústria suína da China luta para se recuperar da doença mortal da peste suína africana .

“A necessidade da China de comprar carne no ano passado foi impressionante”, diz Fernando Iglesias, analista da Safras & Mercado, que se traduz em Colheitas e Mercado. “O Brasil é mais do que capaz de fornecer o que os chineses precisam.”

Embora os chineses comam menos carne per capita do que os americanos, o consumo aumentou nas últimas décadas , à medida que a economia cresce. Tradicionalmente, a carne favorita da China é a carne de porco, mas em 2018 e 2019 mais da metade dos 440 milhões de porcos do país foram mortos pela peste suína africana ou abatidos para diminuir sua disseminação. As importações de carne bovina aumentaram enquanto a China buscava substituir a proteína.

Pesquisas com consumidores também mostram que mais chineses estão se voltando para a carne bovina. Uma pesquisa com consumidores chineses abastados pela empresa de marketing Meat & Livestock Australia descobriu que um terço havia comido mais carne durante o ano passado.

boi 2As exportações brasileiras de carne bovina para a China aumentaram impressionantes 76% em 2020 em relação ao ano anterior. Fotografia: VCG / Getty

Quase 70% das importações de carne brasileiras da China vieram do Cerrado, a vasta região de savana tropical, e da Amazônia em 2017, de acordo com a Trase (Transparência para Economias Sustentáveis), uma rede europeia que monitora cadeias de abastecimento. Cerca de metade do Cerrado e cerca de 20% da Amazônia brasileira foram desmatados – com um impacto devastador no aquecimento global, pois ambos são importantes sumidouros de carbono .

“A Amazônia forneceu cerca de um quinto das importações da China, mas na verdade é a metade do risco de desmatamento”, diz Erasmus zu Ermgassen, pesquisador da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e um dos autores de um estudo sobre o impacto das exportações de carne bovina.

“As exportações estão se expandindo para a Amazônia”, diz Zu Ermgassen. “Quando você aumenta a demanda no sistema agrícola brasileiro, você está empurrando a agricultura mais para dentro da floresta.”

Desde 2019, a China licenciou 22 frigoríficos brasileiros para exportação – 14 deles na Amazônia, enquanto quatro estão no extenso estado do Pará, que possui o quinto maior rebanho bovino do Brasil.

Isso teve um grande impacto no preço da carne, diz Maurício Fraga Filho, pecuarista e presidente da associação de pecuaristas do Pará.

Sob o presidente populista de extrema direita do Brasil, Jair Bolsonaro, que assumiu o cargo em janeiro de 2019, o desmatamento na Amazônia atingiu seu pico em 12 anos . Investidores e grandes empresas brasileiras têm pressionado o governo brasileiro a agir, e fazendeiros como Fraga Filho estão preocupados com potenciais boicotes.

O aumento da demanda nas fazendas do Brasil está empurrando a agricultura ainda mais para dentro da floresta. Foto: Bruno Kelly / Reuters

“Essa é uma grande preocupação”, diz Fraga Filho. “O mercado não deve barrar produtos da Amazônia. Isso será o caos. ”

Ele diz que mais esforços devem ser feitos para ajudar os agricultores a resolver problemas legais, como terras embargadas devido a infrações ambientais, permitindo-lhes fornecer legalmente às empresas de carne. Isso os impediria de vender para um mercado negro que “existe e sempre existiu”, diz Fraga Filho. “Hoje não é mais preciso desmatar.”

Os três maiores exportadores de carne bovina do Brasil – JBS, Marfrig e Minerva – administraram 72% das exportações de carne bovina do Brasil de 2015-17, de acordo com a Trase. Todos os três gastaram muito desenvolvendo sistemas para monitorar seus “fornecedores diretos” – agricultores como Fraga Filho, que vendem para frigoríficos – por infrações ambientais. Mas eles têm sido incapazes de monitorar seus “fornecedores indiretos” – fazendas que criam ou criam gado que abastecem os “fornecedores diretos”.

No ano passado, JBS e Marfrig prometeram monitoramento completo de sua cadeia de suprimentos até 2025 e o Minerva está testando um sistema de controle de seus fornecedores.

Embora a China ainda não tenha mostrado preocupação com a conexão entre as importações de carne bovina brasileira e o desmatamento na Amazônia, há pelo menos sinais de que seu governo quer cortar o consumo de carne , o que melhoraria a saúde pública e reduziria as emissões de carbono. Em setembro passado, o presidente Xi Jinping surpreendeu muitos quando disse que a China pretendia se tornar neutra em carbono até 2060 .

Mas enquanto o mercado para alternativas baseadas em plantas está crescendo , desmamar as pessoas da carne – e a sensação de riqueza que ela traz – pode ser mais difícil do que ele espera.

  • Dom Phillips é bolsista da Fundação Alicia Patterson em 2021

Inscreva-se na atualização mensal do Animals farmed para obter um resumo das melhores histórias de agricultura e comida em todo o mundo e manter-se atualizado com nossas investigações. Você pode nos enviar suas histórias e pensamentos para animalsfarmed@theguardian.com

fecho

Este texto foi escrito originalmente em inglês e publicado pelo jornal “The Guardian” [Aqui!].

A participação acionária da BlackRock em frigoríficos desafia a sustentabilidade na Amazônia

pasto 1

  • A BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, tem US $ 408 milhões investidos, por meio de vários fundos, nos três maiores frigoríficos do Brasil que operam na Amazônia.
  • Essas participações estão em desacordo com a posição declarada da BlackRock de buscar investimentos ambientalmente sustentáveis, visto que os frigoríficos – JBS, Marfrig e Minerva – estão intimamente associados ao desmatamento na Amazônia.
  • Especialistas dizem que o tamanho da participação da BlackRock nessas empresas pode ser decisivo para forçar os frigoríficos a adotar práticas livres de desmatamento.

Por Fernanda Wenzel, Pedro Papini e Naira Hofmeister

A gestora do fundo de Wall Street, BlackRock, administra 2,2 bilhões de reais (US $ 408 milhões) em ações dos três maiores frigoríficos brasileiros que operam na Amazônia hoje. As operações de compra e abate de gado da JBS, Marfrig e Minerva envolvem 6,9 milhões de hectares (17 milhões de acres) de terras com alto risco de desmatamento . Isso coloca os investimentos da BlackRock em desacordo com sua própria retórica pública dos últimos anos, na qual se posicionou como líder na priorização do setor financeiro de critérios ambientais, sociais e de governança (ESG) ao decidir onde investir o dinheiro de um cliente.

A maior parte de seu investimento nos frigoríficos brasileiros – 1,8 bilhão de reais, ou US $ 334 milhões – é na JBS, maior produtora de carne do mundo. A JBS também é a empresa mais exposta ao desmatamento na Amazônia ,segundo a organização conservacionista sem fins lucrativos Imazon. Em julho, relatório da Anistia Internacionalinformava que a JBS estava abatendo gado oriundo de fazendas ilegais localizadas em áreas de conservação e terras indígenas. A BlackRock também tem 213 milhões de reais ($ 39,5 milhões) investidos na Marfrig e 131 milhões ($ 24,3 milhões) no Minerva, que ocupam o quinto e décimo lugar , respectivamente, no ranking de risco de desmatamento do Imazon Investigações independentes também mostram que essas empresas têm fornecedores indiretos que criam gado ilegalmente na floresta.

A investigação da ((o)) eco analisou o conteúdo de 953 fundos de ações administrados pela BlackRock , dos quais 24 detêm ações de frigoríficos brasileiros. A BlackRock confirmou os dados para ((o)) eco; os valores são fornecidos na moeda local, com os valores em dólares baseados na taxa de câmbio de 18 de agosto.

Investimentos da BlackRock nos maiores frigoríficos operando na Amazônia (JBS, Marfrig e Minerva)

bb1

Em janeiro deste ano, o CEO da BlackRock, Larry Fink, publicou uma carta aberta em que anunciava medidas para “posicionar a sustentabilidade no centro da estratégia de investimento” da empresa, a maior administradora de recursos do mundo.

Essa visão, aplicada aos seus investimentos nos frigoríficos brasileiros, pode fazer da BlackRock a força motriz para segurar as maiores empresas do setor de carne bovina em sua promessa de oferecer exclusivamente carne de desmatamento zero. Esse compromisso vem de 2009 , mas nenhuma das empresas ainda o cumpriu. A questão ressurgiu em julho, quando as empresas começaram a sofrer pressões de investidores internacionais que não queriam se associar aos incêndios e ao desmatamento que devastavam a floresta amazônica.

“A BlackRock é líder global em gestão de ativos, portanto, suas ações têm um efeito significativo em todo o setor”, diz Moira Birss, diretora de clima e finanças da Amazon Watch. “Ainda assim, parece que a empresa espera que as pessoas não olhem de perto os dados de investimento e olhem apenas as manchetes, que parecem ótimas.”

A Amazon Watch em 2018 lançou uma campanha acusando a BlackRock de ser a “ maior causadora do caos climático do mundo” . De acordo com a ONG, a BlackRock está entre os principais acionistas de 25 das maiores empresas de capital aberto do mundo associadas ao desmatamento em florestas tropicais da América Latina, África e Sudeste Asiático.

Culpe os ETFs

Do investimento da BlackRock nas três frigoríficas brasileiras, 1,8 bilhão de reais é considerado “investimento passivo”, onde a carteira do fundo espelha uma cesta de ações de referência e o gestor do fundo não interfere na proporção de ações detidas na carteira. Eles são conhecidos como fundos negociados em bolsa (ETFs), e a família iShares de ETFs da BlackRock responde por dois quintos da participação no mercado global de ETFs. “É importante observar que mais de 90% dos ativos patrimoniais da BlackRock sob gestão estão em fundos que rastreiam índices de terceiros”, disse a empresa em um comunicado. Leia a resposta completa da BlackRock aqui .

Os 953 iShares analisados ​​pelo ((o)) eco report são todos ETFs. A ideia por trás deles é que, como replicam índices de referência em termos de sua composição, como a bolsa de valores local, podem servir como um guia útil para os investidores. Na prática, o sistema deixa espaço para distorção e greenwashing, como ((o)) eco mostrou em julho .

Como os ETFs refletem a lista e a proporção de ações rastreadas nos índices de referência, os administradores de fundos não podem usar seu critério para adicionar ou remover empresas do fundo, ou aumentar ou diminuir os investimentos em empresas individuais. E isso dá à BlackRock motivos para manter esses investimentos. Um exemplo é o iShares MSCI Brazil ETF , um fundo que replica o índice MSCI Brazil do Morgan Stanley, e por meio do qual a BlackRock administra quase 500 milhões de reais ($ 92 milhões) em ações da JBS. O ETF também inclui 56 outras empresas brasileiras cujo preço das ações seria afetado se a BlackRock fechasse o fundo.

Ainda assim, mesmo mantendo participações nos frigoríficos por meio desses fundos passivos, a BlackRock promete que, até o final do ano, todo o seu portfólio ativo será norteado por critérios ambientais e sociais; atualmente, cerca de 70% desses fundos atendem aos critérios ESG.

A BlackRock afirma que divulga o conteúdo dessas carteiras de acordo com as “regulamentações dos mercados em que atua”. Nos Estados Unidos, por exemplo, é obrigatória a publicação semestral e anual de relatórios com conteúdo aberto sobre investimentos para que o público verifique seu conteúdo. No entanto, nos documentos de divulgação de seus produtos em 34 outros países, não foi possível acessar informações completas sobre carteiras gerenciadas ativamente. A obtenção desses dados exige uma busca nos sites das agências reguladoras dos respectivos mercados, o que nem sempre é uma tarefa fácil para muitos investidores de varejo.

Além disso, alguns países não exigem transparência total da carteira, mas apenas a divulgação dos 10 principais ativos de cada carteira. Em situações como essa, “o próprio gestor de ativos pode decidir o quanto deseja divulgar”, diz Ward Warmerdam, pesquisador sênior da Profundo, organização holandesa que defende maior transparência nos investimentos. “Na Noruega, por exemplo, alguns gestores de fundos divulgam integralmente e alguns divulgam apenas os 10 principais investimentos”, afirma.

Proporção dos fundos da BlackRock consultados pela equipe de reportagem
Apenas 953 fundos puderam ter seus investimentos verificados por meio dos sites do gestor de ativos em 34 países

bb2

Carteiras administradas ativamente respondem por apenas 27% dos investimentos totais da BlackRock: 65% são em fundos passivos – incluindo os ETFs por meio dos quais a empresa continua investindo nos frigoríficos brasileiros. Uma ilustração de por que isso torna difícil conciliar a retórica de sustentabilidade da BlackRock com suas ações é a promessa do CEO Larry Fink de se desfazer de “produtores de carvão para usinas termelétricas”. Apesar do rebuliço que isso aumentou na imprensa e nos mercados financeiros, a nova postura da BlackRock significou a perda de apenas 20% desses ativos, de acordo com a Amazon Watch, frustrando aqueles que esperavam por um resultado mais significativo.

“Na verdade, a BlackRock se comprometeu a abrir mão de ações de empresas de carvão apenas entre seus fundos de administração ativa, que são uma pequena parte de seus negócios”, diz Birss, da Amazon Watch. “Além disso, existem muitas limitações quanto à quantidade ou tipo de carvão a ser evitado. Claro que isso é importante, mas é uma quantia muito pequena, considerando a escala da crise climática. ”

3 ° acionista da JBS

A participação da BlackRock na JBS, mesmo via ETFs, a torna a terceira maior acionista da empresa, atrás apenas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da família Batista que fundou a empresa. Segundo estudo da Forests and Finance , coalizão de seis ONGs que monitora a participação de instituições financeiras internacionais em atividades de risco ambiental.

Mesmo assim, a Forests and Finance não conseguiu rastrear totalmente a participação da BlackRock na JBS, avaliada em 1,3 bilhão de reais (US $ 240 milhões); A própria BlackRock disse à ((o)) eco que seus investimentos no frigorífico chegam a 1,8 bilhão de reais. “O setor financeiro é notório pela falta de transparência e por criar estruturas dentro das quais é quase impossível rastrear os proprietários [da empresa]”, afirma Merel van der Mark, coordenador de Florestas e Finanças. “Mas fazemos o nosso melhor para rastrear o máximo possível de participação dos acionistas”.

Com pelo menos 2% de participação na JBS, a BlackRock tem poder de voto nas decisões da empresa, ainda que sua influência direta seja reduzida. A estrutura acionária da indústria de carne bovina coloca mais poder nas mãos dos proprietários das empresas, limitando a capacidade de acionistas minoritários como a BlackRock de influenciar a conduta da empresa, afirma a BlackRock.

É por isso que a BlackRock afirma que buscará o diálogo institucional para promover mudanças na política ambiental e social. De acordo com sua assessoria de imprensa, promoveu encontros entre cinco empresas do agronegócio que atuam no Brasil – JBS, Marfrig, Minerva e as traders de commodities Bunge e ADM – “para discutir suas políticas e práticas sobre questões específicas de atuação na Bacia Amazônica, como uso da terra e gestão da cadeia de abastecimento.”

$ 90 milhões em investimentos ativos

A Forests and Finance também identificou a quantidade de títulos de dívida que a BlackRock comprou dos frigoríficos brasileiros, totalizando 64,5 milhões de reais ($ 11,9 milhões): 24 milhões de reais ($ 4,4 milhões) da JBS, 22 milhões de reais ($ 4,1 milhões) da Marfrig e 18 milhões de reais ($ 3,3 milhões) do Minerva. Florestas e Finanças calculou a proporção da compra de dívida que vai diretamente para atividades de financiamento relacionadas à pecuária; o valor total da dívida que a BlackRock comprou dos frigoríficos é mais que o dobro, em 134,2 milhões de reais (US $ 24,8 milhões).

Além disso, a BlackRock relata que seus investimentos ativamente gerenciados nos frigoríficos estão avaliados em 352 milhões de reais ($ 65 milhões). Isso coloca o valor total do investimento direto que o gestor mantém no setor mais associado ao desmatamento na Amazônia em 486 milhões de reais (US $ 89,7 milhões). Esse é o valor que a BlackRock opta ativamente por investir nas empresas, mesmo após análise de risco de exposição ambiental do setor. Ao contrário dos investimentos passivos, isso representa patrimônio e dívida que o gestor do fundo poderia desistir sem comprometer outras empresas.

Aqui, novamente, o principal destino dos investimentos ativos da BlackRock é a JBS. Só seu investimento direto, de 327 milhões de reais (US $ 60,4 milhões), é maior do que o valor desinvestido do frigorífico pelo banco finlandês Nordea em julho, após uma recente série de problemas como gado criado ilegalmente, corrupção e surtos de COVID-19 em suas fábricas no Brasil e nos Estados Unidos “A JBS foi de longe o mais problemático dos frigoríficos brasileiros”, disse Eric Pedersen , chefe de investimentos responsáveis ​​da Nordea, à ((o)) eco .

O desinvestimento chegou às manchetes em todo o mundo, inclusive no The Guardian e nas agências de notícias Bloomberg Reuters . Pela primeira vez, a maior empresa de carne bovina do planeta, com o maior número de fábricas na Amazônia – 31, segundo o estudo mais recente e ainda não publicado do Imazon – foi vista como tendo efeito real por causa do desmatamento.

Abandonar tantas ações de uma vez não teve o impacto esperado de sacudir o preço das ações da JBS. Em vez disso, o impacto foi mínimo. No início de julho, antes da venda do Nordea, as ações da JBS eram negociadas a 20,89 reais; chegaram a 22,95 em 7 de julho, antes de encerrar o mês com um aumento líquido de 21,54.

Não foi a primeira vez que um desinvestimento motivado por questões ambientais não obteve resultados práticos. No terceiro trimestre do ano passado , a gestora de investimentos Storebrand desinvestiu da Marfrig, segundo seu CEO, Jan Erik Saugestad, em comunicado à ((o)) eco em julho . No entanto, durante o período em que a Storebrand vendeu suas ações, o preço das ações da Marfrig aumentou 70%, 6,48 reais em julho para 11,02 em setembro.

Cotação de ações dos Meatpackers sob desinvestimento de bancos europeus
Storebrand vendeu suas ações na Marfrig no terceiro trimestre de 2019 e Nordea desistiu de suas ações na JBS em julho de 2020

bb3

O grande volume de participação da BlackRock na JBS pode fazer a diferença, afirma Luiz Macahyba, consultor e sócio da Aondê-Consultoria Econômica. O tamanho das empresas de investimento conta em casos como este: A BlackRock opera em 36 países e tem clientes em mais de 100, e possui pelo menos 193 subsidiárias diretas e indiretas ao redor do mundo, duas delas no Brasil. De acordo com seu relatório trimestral mais recente divulgado em julho, a empresa tem US $ 7,32 trilhões em fundos sob gestão – uma soma cinco vezes o PIB do Brasil em 2019.

“Uma coisa é o Nordea anunciar que está se desfazendo da JBS, e outra coisa é a BlackRock, a maior administradora de ativos financeiros do mundo, fazer esse anúncio”, diz Macahyba. “Isso pode afetar as expectativas dos investidores em relação à lucratividade futura do grupo”.

Tamanho comparado dos gestores de ativos. A BlackRock gerencia recursos maiores do que o PIB do Brasil

Este slideshow necessita de JavaScript.

A BlackRock parece ter reduzido sua participação na JBS desde o início do ano em 17,4% a partir de agosto, segundo dados da Forests and Finance.

Mas, assim como com o desinvestimento da Storebrand da Marfrig e do Nordea da JBS, essa venda não teve impacto no desempenho das ações da JBS no mercado de ações. “Provavelmente são vendas feitas separadamente e em dias diferentes. É por isso que não afetou o preço ”, diz Macahyba.

Essas negociações também são realizadas sob grande discrição para evitar perdas para o investidor. O desinvestimento só é anunciado após a efetivação da venda das ações, ainda que o desinvestimento simbolize uma crítica pública da financeira à empresa e coloque sua credibilidade no mercado em questão.

Uma analogia é o proprietário de uma casa vendendo um apartamento porque um enorme vazamento está danificando toda a estrutura do imóvel, mas não menciona o problema ao fechar o negócio. Nesse caso, o BackRock parece ter vendido primeiro e explicado depois, atribuindo sua decisão à associação da JBS com desmatamento e corrupção.

“Esses grupos financeiros estão de fato progressivamente engajados nas questões ambientais, mas ninguém arranca dinheiro”, diz Macahyba. “Se o administrador do fundo vender tudo de uma vez, ele terá um grande prejuízo. Então, ele vende as ações em pequenas parcelas e depois anuncia a venda total para ganhar impacto político com sua decisão. ”

Lucro em meio a incêndios florestais

Os desinvestimentos graduais não afetaram o preço das ações, nem frustraram o clima otimista que presidia à divulgação dos resultados do segundo trimestre pela JBS .

A pressão dos investidores foi rapidamente esquecida, obscurecida pelo lucro líquido de 3,4 bilhões (US $ 626 milhões) – um salto de 54,8% em relação ao mesmo trimestre do ano passado.

“Parabéns pelos resultados espetaculares! Fantástico!” um dos investidores declarou no evento de 14 de agosto.  Realmente impressionante”, disse outro. A apresentação online foi conduzida pelos principais executivos da JBS, incluindo o CEO global Gilberto Tomazoni e Wesley Batista Filho, CEO da JBS Brasil.

Um participante perguntou aos executivos se não seria melhor fechar todas as fábricas na Amazônia “por causa desse viés negativo vindo da imprensa, a que todos estão prestando mais atenção”. O assunto ganhou urgência no final de junho, quando se tornou pública uma reunião do governo do presidente Jair Bolsonaro . Naquela reunião, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu aproveitar a “oportunidade” proporcionada pela mídia e o enfoque público na pandemia do coronavírus – que matou mais de 100 mil pessoas no Brasil – para “dar um pulo ” e desregulamentar as normas ambientais.

Segundo executivos da JBS, a presença da empresa na Amazônia não é o problema, mas “parte da solução”. “Nossas operações podem trazer melhorias e mudanças positivas para a região com segurança”, disse Wesley Batista Filho. Ele ainda indicou que uma plataforma de controle de toda a cadeia produtiva da Amazônia está em estágio “muito avançado” de desenvolvimento, mas não deu previsão para o início do rastreamento indireto de fornecedores e nenhum dos investidores questionou a falta de uma linha de morte.

Os resultados do segundo trimestre da Marfrig, divulgados em 12 de agosto, também não mostraram nenhum impacto prejudicial da recente pressão de investidores internacionais contra o desmatamento. Em vez disso, a empresa teve “o melhor resultado de sua história, com lucro líquido de 1,6 bilhão [$ 295 milhões]”. Isso é um aumento de 1.743% em relação ao mesmo trimestre do ano passado.

Os acionistas e sócios do Minerva também têm motivos para comemorar. No último trimestre, a empresa obteve lucro líquido de 253,4 milhões ($ 46,7 milhões) , seu melhor segundo trimestre de todos os tempos.

pastoA substituição de floresta por pastagem é uma das principais causas do desmatamento no bioma amazônico. Há falta de controle na cadeia de abastecimento para garantir que o desmatamento não esteja associado à produção de carne. Imagem de Marcio Isensee e Sá.

‘É o efeito de contaminação’

Enquanto JBS, Marfrig e Minerva saem ilesos dos efeitos do desmatamento, outros setores da economia brasileira temem que a crise dos incêndios na floresta tropical tenha um efeito negativo sobre seus negócios, mesmo que suas operações estejam localizadas longe da floresta. No início de julho, dirigentes de 38 grandes empresas e quatro associações de classe enviaram carta ao vice-presidente Hamilton Mourão , alertando que a imagem negativa do país no exterior “tem um efeito potencialmente danoso para o Brasil, não só do ponto de vista de reputação, mas efetivamente para o desenvolvimento de negócios e projetos fundamentais para o país ”.

O movimento cresceu e a carta já conta com 72 signatários, de acordo com o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), que lidera a iniciativa. Entre os que assinaram está a fabricante de papel e celulose Suzano, cujo diretor financeiro, Marcelo Bacci, falou em levar um mapa às reuniões com estrangeiros para convencê-los de que as unidades de produção da empresa estão localizadas longe da Amazônia.

“Em breve, veremos empresas do Pampa do Rio Grande do Sul [estado do Brasil] sendo impactadas pelo que acontece na Amazônia”, diz Robson Dias da Silva, professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRRJ). “É o efeito da contaminação”, diz ele, acrescentando que quem depende de investimento estrangeiro pode ter mais dificuldade em obter financiamento ou pagar juros mais altos nos empréstimos.

Cole Martin, analista sênior de agronegócio da Fitch Solutions, diz que esforços como o mapa da Suzano e o rastreamento de produtos podem não ser suficientes para evitar que os exportadores brasileiros sejam prejudicados. “Para as empresas que importam, pode ser difícil rastrear e verificar o que é legal e o que não é, principalmente os fornecedores indiretos”, afirma. “Em vez de correr o risco de comprar algo que tem a ver com desmatamento e criar um problema para a empresa, com o tempo provavelmente será mais fácil para eles simplesmente constatar que não compram nada do Brasil.”

A preocupação com esse “efeito da contaminação” também levou o presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) a assinar a carta. Em entrevista coletiva em 12 de agosto, Marcello Brito pediu que o governo federal estabeleça uma meta clara de redução do desmatamento. Ele também burlou as declarações do presidente Bolsonaro , para quem a pressão internacional para preservar a floresta tropical está encoberta por interesses comerciais.

“Precisamos aprofundar e ser mais maduros ao discutir essas questões porque os interesses comerciais sempre permanecerão firmes”, disse Brito. “O mais importante é identificar a consciência coletiva que evolui rapidamente – é isso que precisamos abordar. Serão as ações coletivas de produção ambiental e socialmente sustentável que preencherão este futuro espaço de negócios contra qualquer barreira geopolítica ”.

Ainda em julho, outra iniciativa mostrou que o desmatamento é um problema que se expandiu para além do radar dos ambientalistas e agora preocupa economistas. Doze ex-ministros das finanças e cinco ex-presidentes de bancos centrais assinaram uma carta aconselhando o governo a definir um caminho em direção a uma economia de baixo carbono. Entre os signatários está um amplo espectro de personalidades políticas, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (do PSDB), Pedro Malan, que foi ministro da Fazenda no governo Fernando Collor (PROS), e Nelson Barbosa, que chefiou o planejamento do administração de Dilma Rousseff (PT).

O Ministério da Economia, chefiado por Paulo Guedes, disse em um e-mail para ((o)) eco que “é inegável que o desmatamento ilegal na Amazônia prejudica imensamente a economia e a população brasileira” e que “embora o desmatamento ilegal seja um problema histórico, hoje temos um problema de imagem nacional que sabemos que o governo tinha a responsabilidade de resolver ”. Veja a resposta completa do ministério aqui .

“Acendeu-se um sinal de alerta porque o tema migrou do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Economia”, diz Silva, professor de economia. “Em breve, a Avenida Paulista [a Wall Street do Brasil] começará a ter problemas para levantar capital porque o selo brasileiro foi queimado.”

Acordo comercial europeu em dúvida

O impacto econômico mais gritante por ora é o possível fracasso do acordo comercial entre a União Européia e o bloco comercial sul-americano Mercosul (Mercosul em espanhol). O acordo foi assinado em junho de 2019 após 20 anos de negociações e, para que entre em vigor, deve ser ratificado por todos os países membros. Mas, citando o aumento do desmatamento na Amazônia, o parlamento holandês rejeitou o acordo , e órgãos legislativos na Irlanda, França e Bélgica já enviaram sinais no mesmo sentido.

Em 21 de agosto, a chanceler alemã Angela Merkel disse ter “sérias dúvidas” sobre a implementação do acordo devido ao aumento do desmatamento na Amazônia. Sua declaração veio após uma reunião com a ativista ambiental sueca Greta Thunberg.

Segundo a Embaixada da Alemanha no Brasil, “informações sobre o aumento do desmatamento podem ter um impacto negativo na opinião pública de outros membros da União Européia e também no desejo de muitos parlamentares de ratificar esse acordo”. O Ministério da Economia do Brasil afirmou que as “possíveis preocupações” com o meio ambiente serão tratadas no âmbito do acordo e que não internalizá-lo “é minar esses avanços institucionais e … a agenda ambiental de interesse bilateral”.

Martin, da Fitch Solutions, diz de forma mais clara: “O acordo entre a UE e o Mercosul está morto por enquanto.” Com sede em Londres, Martin diz que está acompanhando de perto o lançamento do European Green Deal , um pacto econômico ambientalmente sustentável criado para estimular a economia pós-pandemia. Entre as muitas medidas previstas para os próximos anos – como ampliação de áreas de proteção ambiental, redução do uso de agrotóxicos e menor consumo de carne – está a proposta de afastar do mercado europeu produtos associados ao desmatamento.

Este relatório é o quinto de uma série que investiga a relação entre o mercado financeiro e a indústria brasileira de carne bovina. Se desejar entrar em contato com a Redação com sugestões de reportagens, escreva para: quemfinanciaodesmatamento@gmail.com .

Esta história foi publicada originalmente  em português  pela ((o)) eco. 

Imagem do banner de uma fazenda cercada pela fumaça das queimadas no município de Novo Progresso, estado do Pará. Imagem de Marcio Isensee e Sá.

Pesquisa aponta frigoríficos e produtores de soja com maior risco de serem associados a queimadas

Commodities agrícolas foram as grandes responsáveis por incêndios na Amazônia, segundo estudo que cruza dados da Nasa com cadeias de suprimentos das empresas

The Companies Behind the Burning of the Amazon

por Marcelo Coppola*

Em agosto do ano passado, imagens dos incêndios na Amazônia atraíram a atenção do mundo todo. Chefes de governo, organizações multilaterais, ambientalistas e celebridades manifestaram preocupação com o futuro da maior floresta tropical do planeta. “A Amazônia precisa ser protegida”, disse António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). “Nossa guerra contra a natureza precisa acabar”, tuitou a ativista Greta Thunberg.

unnamed (13)Os 10 principais estados brasileiros com alertas de incêndio durante os meses da estação de incêndio em 2019. Fonte: Alertas de incêndio da NASA VIIRS

O tamanho real do desastre ambiental só foi conhecido em janeiro, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apresentou um balanço final dos incêndios que atingiram a floresta. Em 12 meses, ocorreram 89 mil focos de incêndio na região, um aumento de 30% em relação a 2018. Um crescimento preocupante, apesar de o número ter ficado abaixo da série histórica (109 mil).

No auge da crise, o presidente Jair Bolsonaro lançou suspeita sobre ONGs que atuam na região. E o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) culpou a temporada mais seca, quando, na verdade, choveu mais do que no ano anterior. Pesquisadores do bioma atribuem os incêndios, porém, a outros fatores.

A especulação fundiária é hoje um dos grandes vilões da floresta amazônica. Trata-se de um negócio de alta rentabilidade que envolve a invasão de terras públicas, a derrubada e retirada das árvores mais valiosas e depois, por meio de correntes presas a tratores, a derrubada da vegetação mais baixa. Passadas algumas semanas, período necessário para a secagem do material destruído, basta pôr fogo ao que antes era uma floresta. É hora então de espalhar as sementes para criar o pasto, à espera do comprador.

“É dinheiro fácil. O invasor de terra pública que gasta R﹩ 1 mil para derrubar e colocar fogo em um hectare consegue vender o mesmo hectare por até R﹩ 2,7 mil”, afirma Raoni Rajão, pesquisador da Amazônia e professor do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). As queimadas costumam ser feitas no período mais seco da Amazônia, entre julho e outubro.

A floresta não queima apenas por conta da grilagem de terras. Para ampliar o pasto, muitos produtores põem fogo em áreas contíguas às suas propriedades ou destroem a mata existente dentro de suas próprias fazendas. O Código Florestal estabelece que, nos imóveis localizados na Amazônia Legal, 80% da mata nativa deve ser preservada. Há ainda as queimadas feitas por agricultores, indígenas e povos tradicionais com o propósito de renovar o pasto ou a área de cultivo, uma prática que tem impacto bem menor sobre o bioma, mas que pode sair do controle e provocar destruição em grandes áreas.

Levantamento realizado pelo MapBiomas — iniciativa que reúne universidades, organizações sociais e empresas de tecnologia – revela a dimensão das práticas criminosas citadas acima. De acordo com o estudo, realizado a partir do cruzamento de imagens de satélites com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e outros bancos de dados oficiais, 99% do desmatamento realizado no Brasil no ano passado foi ilegal. Dos 12 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa destruída, a maior parte está localizada no Cerrado e na Amazônia.

Pecuária e soja

Um estudo recente realizado pela Chain Reaction Research (CRR) , uma coalizão de consultorias ambientais europeias e americanas, ajuda a entender um pouco mais os interesses por trás dos incêndios ocorridos no ano passado na Amazônia. Os pesquisadores cruzaram imagens dos incêndios, feitas por satélites da Nasa, com a localização dos maiores frigoríficos da região, como JBS e Marfrig, e grandes silos de soja, controlados por gigantes como Bunge e Cargill.

O sistema de monitoramento da agência espacial americana detectou 417 mil focos de fogo nas “zonas potenciais de compra” da JBS e da Marfrig de julho a outubro do ano passado, um número que representa 42% de todos os incêndios ocorridos no Brasil no período – foram 981 mil, segundo a Nasa. Os focos de incêndios no entorno das duas empresas representam quase a metade (47%) do total detectado (885 mil) nas proximidades dos dez maiores frigoríficos da região.

Alerta VIIRS no Brasil (em cima) e número de alertas por mês (embaixo). Fonte: dados de incêndio da NASA VIIRS, imagens de satélite do Google

As zonas potenciais de compra dos matadouros foram estabelecidas pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) em 2017, a partir de entrevistas feitas com 157 frigoríficos da Amazônia Legal. Entre outras informações, essas empresas revelaram a distância máxima que percorrem para comprar os animais para abate. Os frigoríficos maiores uma distância máxima de 360 km a partir de suas instalações. Os menores, que têm certificados para atuar apenas dentro do Estado, compram gado a uma distância máxima de 153 km.

No caso da soja, a Chain Reaction Research estabeleceu um raio de 25 km a partir dos silos das maiores empresas do setor como área de sua cadeia de suprimentos. O levantamento indicou que as queimadas ocorridas no entorno da Bunge e da Cargill (39,9 mil) superaram a soma dos focos de incêndio registrados nas proximidades dos outros oito maiores traders do setor.

O levantamento não faz nenhuma acusação a esses conglomerados. “O objetivo foi mostrar a ocorrência de uma enorme quantidade de incêndios nas proximidades dessas empresas, o que não implica o envolvimento direto delas com essas práticas. Mas faz com que tenham de resolver as suspeitas que recaem sobre sua cadeia de suprimentos”, diz Marco Túlio Garcia, pesquisador da Aidenviroment e um dos autores do estudo, que analisou também os incêndios na Indonésia, onde as suspeitas recaem sobre a produção de óleo de palma.

“O desmatamento na Amazônia, causa principal dos incêndios, traz riscos a essas empresas. Nos últimos anos, os grandes investidores internacionais colocaram essas questões no centro de sua pauta. Elas não estão mais restritas a debates entre ambientalistas”, completa Tim Steinweg, coordenador de pesquisa da Chain Reaction Research. Um exemplo dessa preocupação do mercado global foi dado em dezembro último pela Nestlé, quando suspendeu suas compras de soja da Cargill, por suspeita de que o produto tenha origem em áreas desmatadas da Amazônia.

unnamed (9)Desmatamento de janeiro a julho de 2019 e alertas de incêndio em agosto de 2019 – área agrícola do Estado da Amazônia, Brasil. Fonte: dados da NASA VIIRS, alertas Deter e imagens de satélite do Google

Reportagem recente do jornal The Guardian revelou que bancos e outras instituições financeiras britânicas investiram nos últimos anos mais de US﹩ 2 bilhões nas principais empresas brasileiras de carne que atuam na Amazônia. Por conta do desmatamento, estudam reconsiderar seu apoio se essas companhias não mostrarem progressos no rastreamento de seus fornecedores. Gigantes do setor de alimentos manifestam a mesma preocupação. Em dezembro, a Nestlé suspendeu suas compras de soja da Cargill, por suspeita de que o produto tenha origem em áreas desmatadas da floresta.

Estudiosos avaliam que o setor de pecuária traz hoje mais riscos para a Amazônia do que a indústria da soja, que hoje ameaça mais o Cerrado. A imagem dos produtores do grão melhorou a partir do pacto, batizado de “moratória da soja”, firmado em 2006 com entidades ambientalistas, pelo qual se comprometeram a não comprar a commodity de áreas desmatadas no bioma. O acordo contou depois com o apoio do governo federal.

O setor pecuário carrega irregularidades dos mais variados tipos. Entre elas, animais que nascem em áreas desmatadas, muitas vezes embargadas pelo Ibama, e que são vendidos para pequenos e médios produtores. Depois da engorda, são comprados legalmente pelos grandes frigoríficos. Os sistemas de controle não conseguem pegar o vício de origem. “É uma cadeia muito complexa. Não existe um sistema que permita rastrear cada animal desde o início, e os frigoríficos não parecem interessados em implantar um monitoramento desse tipo”, lamenta Ritaumaria Pereira, diretora executiva do Imazon. “Há um ditado na região que traduz essa triste realidade. Boi não morre de velho na Amazônia. Sempre vai ter alguém para comprá-lo, independentemente de onde venha”, afirma a engenheira agrônoma.

Menos floresta, menos chuva

Para muitos especialistas, falta visão estratégica ao governo brasileiro e aos produtores rurais em relação à Amazônia, o principal ativo ambiental do país. Paulo Moutinho, pesquisador sênior do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), lembra que a floresta funciona como uma espécie de bomba de vapor d’água que, transportado por meio dos chamados rios voadores, irriga o Centro-Oeste e o Centro-Sul do Brasil. A destruição coloca em risco esse sistema de irrigação. “Ao desmatar, é como se fizéssemos um furo nesse regador, que garante o sucesso de boa parte da produção agrícola brasileira.” De acordo com estudo da Agência Nacional de Águas (ANA) e do IBGE, 92,5% da água consumida pela agricultura brasileira vêm das chuvas. Apenas 7,5% são de sistemas de irrigação.

Os riscos à floresta amazônica são reais, de acordo os cientistas. O bioma já perdeu cerca de 17% (dados de 2017) de sua vegetação nativa. Se esse percentual superar 20%/25%, corre grande risco de entrar em um processo de savanização, segundo estudo publicado há dois anos pelo pesquisador brasileiro Carlos Nobre e pelo americano Thomas Lovejoy. Na década anterior, os mesmos pesquisadores falavam que o tipping point (ponto sem volta) aconteceria quando fossem atingidos os 40% de destruição. Refizeram os cálculos em razão da aliança mortal entre desmatamento, incêndios e mudança climática.

Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que não é preciso destruir nenhum hectare a mais para aumentar a produção agropecuária. Bastaria aproveitar os 12 milhões de hectares que foram desmatados e abandonados na Amazônia, áreas que poderiam ser recuperadas. “Você tem muitas áreas que estão abertas e, com incentivo adequado, poderiam ser exploradas”, afirma Paulo Moutinho, do IPAM. Ritaumaria Pereira, do Imazon, concorda: “Além da regeneração dessas áreas, precisamos de políticas públicas para incentivar o aumento da produtividade da pecuária, que hoje é muito baixa, cerca de um animal por hectare”.

O que dizem as empresas

Em nota, a JBS reclama do fato de não ter sido procurada pelos pesquisadores da Chain Reaction Research. A empresa questiona os critérios técnicos do estudo e diz adotar uma abordagem de tolerância zero em relação ao desmatamento em toda a sua cadeia de fornecimento. “Todos as fazendas fornecedoras de gado da JBS na região amazônica são monitoradas por meio de imagens de satélite e dados georreferenciados da propriedade. Portanto, fornecedores que utilizaram fogo para desmatar a floresta serão detectados pelo sistema de monitoramento da Companhia e bloqueados para compra de gado.”

unnamed (12)Alertas de incêndio dentro da zona potencial de compra da JBS em Alta Floresta, Mato Grosso, 2019. Fonte: imagens de satélite do Google, IMAZON, dados de incêndio da NASA VIIRS

A Marfrig afirmou que adota “uma rígida política de compra de animais, bem como um protocolo com critérios e procedimentos que são pré-requisitos para a homologação de fornecedores”. A empresa diz manter uma plataforma que monitora, por meio de um sistema de georreferenciamento e geomonitoramento socioambientais, todos os seus fornecedores. A ferramenta cruza os dados georreferenciados e documentos das fazendas com informações públicas oficiais para identificar potenciais não conformidades, “coibindo que a matéria-prima seja oriunda de fazendas que produzam carne em áreas de desmatamento ou embargadas, sobrepostas a unidades de conservação ou terras indígenas, ou mesmo que utilizem ‘trabalho escravo”’.

A Bunge disse que está comprometida com uma cadeia de suprimentos livre de desmatamento e que condena qualquer uso do fogo para o desflorestamento. “A empresa mantém rigoroso controle sobre critérios socioambientais em suas operações em todo o Brasil. As ações incluem verificações diárias às listas públicas de não conformidades do Ibama e do Ministério do Trabalho e Emprego, além da checagem de outros requisitos legais, e bloqueio imediato de qualquer negociação comercial, em caso de desconformidade”. De acordo com a nota, “a empresa também é signatária da Moratória da Soja, compromisso reconhecido mundialmente que proíbe a compra de soja cultivada em áreas desmatadas após 2008 na Amazônia, e do Protocolo Verde de Grãos do Pará, uma iniciativa conjunta com o Ministério Público Federal (MPF), que estabelece critérios para transações comerciais com foco em evitar a comercialização de grãos oriundos de áreas ilegalmente desmatadas”.

A Cargill afirmou que está comprometida com a proteção das florestas e da vegetação nativa de maneiras que sejam economicamente viáveis para os agricultores. “O desmatamento ilegal e incêndios deliberados na Amazônia são inaceitáveis ​​e, juntamente com outras empresas do setor, continuaremos a fazer parcerias com comunidades locais, agricultores, governos, ONGs e nossos clientes para encontrarmos soluções que preservem esse importante ecossistema”, afirma a nota da Cargill. “Fazemos parte da Moratória da Soja na Amazônia desde 2006, quando assinamos um acordo voluntário com organizações industriais e ambientais de não comprar soja de terras que foram desmatadas após 2008 neste bioma. Esse esforço contribuiu para o declínio de 80% no desmatamento na Amazônia na última década e foi estendido indefinidamente em 2016.”

* Marcelo Coppola é jornalista e foi editor na revista Época. Trabalhou também no jornal Folha de S. Paulo e na revista Veja.

Repórter Brasil revela relações de frigoríficos com “bois piratas” criados em unidades de conservação e terras indígenas na Amazônia

O ‘boi pirata’ criado em terra indígena e a conexão com os frigoríficos Marfrig, Frigol e Mercúrio

Abatedouros são proibidos de comprar animais criados em reservas ambientais, áreas desmatadas ou terras indígenas, mas pecuaristas que atuam de forma irregular dentro da TI Apyterewa, no Pará, usam intermediação de outras fazendas para driblar restrições

rb 1A cidade paraense de São Félix do Xingu, que faz divisa com a Terra Indígena Apyterewa, tem 17 cabeças de gado para cada habitante (Foto: Daniel Beltra/Greenpeace)

Por André Campos e Carlos Juliano Barros  para a Repórter Brasil

Com 10% de seu território já desmatado e quase 500 focos de incêndio somente no ano passado, parte da Terra Indígena (TI) Apyterewa, no Pará, está virando pasto. E grandes multinacionais da indústria da carne, como Marfrig, além de frigoríficos regionais – como Frigol e Mercúrio – têm entre seus fornecedores diretos ou indiretos pecuaristas que criam gado ilegalmente nessa área protegida da Amazônia. Essas empresas, por sua vez, abastecem as principais redes de supermercados do país.

Um acordo firmado em 2009 por companhias de proteína animal com o Ministério Público Federal (MPF) proíbe o abate de bois provenientes de fazendas desmatadas ilegalmente, reservas ambientais e áreas indígenas. Porém, uma investigação inédita da Repórter Brasil identificou as estratégias usadas por pecuaristas para driblar as restrições e dar uma aparência de legalidade ao rebanho engordado irregularmente na Apyterewa. Em geral,  eles contam com a intermediação de fazendas fora do território indígena para escoar o gado criado em área proibida.

“O pessoal da Funai tinha contabilizado em torno de 50 mil cabeças de gado dentro da terra indígena em março de 2016”, relembra Nilton Tubino, que trabalhava na Secretaria-Geral da Presidência da República e era um dos coordenadores do processo de “desintrusão” — termo técnico para a retirada dos ocupantes não-indígenas da TI.

Destinada ao povo Parakanã em 2007, por meio de um decreto presidencial, a TI Apyterewa sofre há anos problemas com invasores. “Agora, em tempo que o mundo enfrenta uma pandemia, muitos não indígenas, incentivados por discursos e atos de diversos políticos, aproveitam para adentrar ainda mais em nosso território na prática de crimes contra nosso povo e contra a nação brasileira. Queremos nosso território livre de invasores”, afirma uma nota emitida pelo povo Parakanã.

“Muita gente que tinha gado lá não era dona dos bois. Eles traziam os animais para engordar para outro”, explica Tubino. “A gente estava lá e via passar os caminhões boiadeiros. Alguém ‘esquentava’ o gado pra eles”, acrescenta.

A expressão “esquentar” se refere aos esquemas criados pelos pecuaristas para dar um verniz de legalidade ao gado criado irregularmente dentro da terra indígena. Os casos analisados pela Repórter Brasil mostram uma variedade de expedientes com esse objetivo. Também revelam como os sistemas de monitoramento usados pelos frigoríficos ainda têm lacunas, sobretudo quando se trata de fornecedores indiretos.

rb 2

Um exemplo é o da Fazenda Lucélia, com 1.427 hectares dentro da TI Apyterewa. Documentos obtidos pela investigação mostram que, em dezembro de 2019, um carregamento de bois foi encaminhado para uma propriedade rural fora da terra indígena — a Fazenda Carajás. Nos três primeiros meses deste ano, a Fazenda Carajás negociou animais com a planta frigorífica do Mercúrio no município de Xinguara (PA).

A reportagem tentou contato com Antônio da Silva Arruda e Geremias Rocha de Freitas, donos respectivamente das fazendas Lucélia e Carajás, mas não conseguiu localizá-los. O Mercúrio também foi questionado sobre a compra de gado proveniente da TI Apyterewa, porém, não respondeu até o fechamento desta matéria.

Boi pirata

O segundo caso é o do pecuarista Antônio Borges Belfort, candidato derrotado a vereador do município de São Félix do Xingu em 2016. Ele é dono da fazenda Sol Nascente, umas das maiores estâncias abertas na Apyterewa, com quase 2 mil hectares. Entre fevereiro de 2018 e julho de 2019, dezenas de animais foram transportadas da Sol Nascente para outra propriedade de Belfort localizada fora do perímetro da terra indígena — a fazenda Serra de Pedra. Os dois imóveis rurais constam da declaração de bens do então candidato enviada ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) O valor da fazenda localizada dentro da Apyterewa foi estimado em R$ 1,1 milhão.

No entanto, o índice de produtividade da fazenda Serra de Pedra levanta suspeitas. Segundo o programa Boi na Linha, criado pela ONG Imaflora em parceria com o MPF e ratificado pelos principais frigoríficos e varejistas do país com o objetivo de coibir fraudes no setor, a produtividade máxima de uma propriedade rural na Amazônia dificilmente vai além de três animais por hectare ao ano.

rb 3A Terra Indígena Apyterewa vem sendo alvo da ação ilegal não apenas de pecuaristas, mas também de garimpeiros, madeireiros e grileiros (Foto: Polícia Federal/Divulgação)

Isso quer dizer que a Serra de Pedra, com somente 20 hectares de pastagens de acordo com o Cadastro Ambiental Rural (CAR), conseguiria comercializar 60 bois por ano. Porém, ao longo de 2019, só o frigorífico da Marfrig no município de Tucumã (PA) abateu 135 animais encaminhados pela fazenda. A unidade do Frigol em São Félix do Xingu (PA) também recebeu centenas de animais da propriedade.

Os dados indicam que a fazenda Serra de Pedra não teria condições de fornecer um número tão elevado de cabeças de gado aos frigoríficos. A matemática reforça a suspeita de que os bois tenham sido, originalmente, criados na fazenda de Antônio Borges Belfort localizada dentro da terra indígena.

Procurada, a Marfrig reconhece que a fazenda Serra de Pedra tem uma “razão de 6,61 cabeças por hectare” — mais do que o dobro do estipulado pelo programa Boi na Linha. A nota diz ainda que os critérios para compra de gado serão atualizados a partir de julho de 2020. A íntegra da resposta pode ser lida aqui.

Já o Frigol afirma que a última compra de gado da propriedade aconteceu em agosto de 2019. Segundo a nota, somente em fevereiro deste ano é que a empresa tomou ciência sobre o índice de produtividade estabelecido pelo Boi na Linha, apesar de ainda não ter sido “oficiado pelo MPF sobre as novas regras que serão estabelecidas para o monitoramento”. A empresa também garante que já está “tomando providências para atender ao novo protocolo”.

O pecuarista Antônio Borges Belfort chegou a ser contatado pelo presidente de uma associação de produtores rurais a pedido da reportagem, mas afirmou que não se pronunciaria.

Fornecedor ‘dentro da margem de erro’

O frigorífico da Marfrig em Tucumã, que teve suas operações encerradas em março deste ano, também foi o destino dos bois de um terceiro caso investigado pela Repórter Brasil. Entre maio de 2018 e dezembro de 2019, o abatedouro recebeu animais da Fazenda JR. O imóvel tem 8% de sua área dentro da Apyterewa, segundo coordenadas do CAR, registro autodeclaratório, ou seja, realizado pelo próprio dono do imóvel.

Porém, segundo mapas e planilhas da Funai, o pecuarista José Roberto Alves Resende, dono da Fazenda JR, aparece na relação de produtores instalados no interior da Apyterewa. Ele pleiteava uma área de 100 hectares dentro da terra indígena, mas a posse foi considerada de má-fé pelo órgão federal. Resende não foi localizado para esclarecer as dúvidas sobre a exata localização de sua fazenda e sobre o fato de criar bois dentro do território indígena.

Sobre esse caso, a Marfrig afirma que as coordenadas da Fazenda JR que aparecem no CAR colocam o imóvel rural na margem de erro prevista em uma norma expedida pelas autoridades competentes em 2010. “Os equipamentos de demarcação de áreas existentes antigamente não tinham tanta precisão e nem a tecnologia hoje disponível”, afirma a nota. A empresa afirma que, para mitigar possíveis falhas cartográficas, a metodologia utilizada nas análises de sobreposições [de terras] considera uma tolerância de 10%. Para ler a resposta completa, clique aqui.

Parakanã: acossados em seu próprio território 

rb 4A área onde está localizada a Terra Indígena Apyterewa foi oficialmente destinada ao povo Parakanã por meio de um decreto presidencial de 2007 (Foto: Associação Tato’a Parakanã)

Localizada em São Félix do Xingu, município paraense que tem 17 cabeças de gado para cada habitante, a terra indígena Apyterewa vem sendo alvo da ação ilegal não apenas de pecuaristas, mas também de garimpeiros, madeireiros e grileiros. A situação é tão crítica que, em janeiro, o Ministério Público Federal pediu que a Funai (Fundação Nacional do Índio) retomasse as atividades do Grupo de Trabalho (GT) responsável pela desintrusão da Apyterewa.

“Hoje há uma resistência da Funai de levar adiante a desintrusão e nós estamos tentando vencer essa resistência”, explica Robert Lucht, procurador do MPF. Em março, o MPF entrou com uma ação na Justiça Federal pedindo que a União pague uma multa diária de R$ 5 mil enquanto não for cumprida a retirada dos não-indígenas. Procurada, a Funai não se manifestou até a publicação desta reportagem.

“Infelizmente, também tem acontecido aumento de infrações ambientais ali”, complementa o procurador. Foi por essa razão que o órgão determinou ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis) que realizasse fiscalizações na Apyterewa.

Em abril, depois de comandarem uma operação que apreendeu equipamentos de garimpos irregulares em três terras indígenas, incluindo a Apyterewa, dois chefes da fiscalização do Ibama foram exonerados do cargo. A destruição do maquinário desagradou o presidente Jair Bolsonaro. Ele já havia acenado a garimpeiros sobre a possibilidade de revogar um decreto que autoriza a inutilização de equipamentos para extração de minério em áreas sem permissão. Até o presente momento, a promessa não foi cumprida.

“Mesmo homologada e regularizada, a TI Apyterewa não está na posse plena do povo Parakanã, fazendo que suas comunidades estejam acossadas em seu próprio território, vivendo em permanente insegurança, física e cultural”, afirma Aluisio Azanha, membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos Indígenas do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Apesar de a homologação da Apyterewa como território indígena já ter sido reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro da corte Gilmar Mendes determinou em liminar (decisão provisória) do último dia 26 de maio que a União fosse intimada para uma proposta de “conciliação”. A medida animou os posseiros que se recusam a sair da terra indígena e preocupou os que atuam para preservar o território do povo Parakanã.

O procurador Robert Lucht contesta a decisão de Gilmar Mendes. “Não cabe mais conciliação a essa altura. Até porque há inúmeras ações judiciais propostas pelos invasores que tramitaram pela primeira instância, pela segunda instância, pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça] e pelo STF. Em todas essas ações eles não têm nenhuma decisão que lhes seja favorável”, complementa.

Lideranças do povo Parakanã emitiram nota para criticar a decisão do ministro do Supremo. “Nós, Povo Parakanã, não aceitamos a tentativa de conciliação, pois no passado já foram feitos acordos e, mesmo assim, os posseiros continuam invadindo nosso território”, diz o documento. “O governo tem uma dívida com o nosso povo no trabalho de desocupação e retirada de todas as pessoas não indígenas de nossa terra”.

Problema antigo

Durante o processo de demarcação da TI Apyterewa, ao longo dos anos 2000, a Funai identificou 1.175 posseiros na área, segundo dados obtidos pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação. Desse total, o órgão reconheceu 292 como ocupantes de boa-fé, com direito a compensações por benfeitorias. Já os 883 restantes foram considerados de má-fé, sem qualquer direito às terras onde estavam instalados. Ao todo, R$ 6,8 milhões já foram pagos pela União em indenizações para a retirada dos ocupantes.

rb 5Além de ser a campeã brasileira em número de cabeças de gado, São Felix do Xingu é o terceiro município com maior área desmatada na Amazônia entre 2013 e 2018 (Foto: João Laet/Repórter Brasil/The Guardian)

Cerca de 300 famílias chegaram a ser transferidas para o Projeto de Assentamento (PA) Belauto, em São Félix do Xingu. Porém, alguns ocupantes que haviam deixado a terra indígena acabaram retornando.

“Voltaram porque foram jogados dentro do assentamento sem condição nenhuma, indenização irrisória, que não dá para pagar a mudança daqui de dentro”, explica Vicente Paulo Lima, presidente da Associação Vale do Cedro, que contestou na Justiça a demarcação da Apyterewa.

Novos posseiros também se instalaram no território dos Parakanã. Pelas contas de Lima, atualmente há cerca de 2.500 famílias na área. Ele continua na mesma fazenda, dentro da área indígena, e defende que o laudo antropológico que embasou a demarcação da Apyterewa seja refeito.

A retirada dos ocupantes não-indígenas da Apyterewa está prevista em decisão judicial desde 2009. Duas operações com esse objetivo chegaram a ser realizadas pelo governo federal até 2016, sem sucesso. A remoção dos posseiros era inclusive uma das condicionantes socioambientais da construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu.

“Com o atual cenário político, a tendência é piorar, aumentando as invasões, consolidando ocupações, acirrando conflitos e intensificando o assédio às lideranças Parakanã”, analisa Aluisio Azanha, da OAB.

______________________________

Esta reportagem foi originalmente produzida pela Repórter Brasil [Aqui!].

Suspendam o churrasco! Governo Bolsonaro vai acabar com fiscalização diária nos frigoríficos

Carne

Em 17 de Março de 2017, a Polícia Federal deflagrou a chamada “Operação Carne Fraca” para investigar as maiores empresas da produção de carne animal do Brasil, a JBS, (Seara, Swift, Friboi Vigor) e a BRF (Sadia e Perdigão) por causa da adulteração de carne que era vendida nos mercados interno e externo. O escândalo da carne adulterada no Brasil envolveu mais de trinta empresas alimentícias do país, que foram acusadas de comercializar carne estragada, mudar a data de vencimento, maquiar o aspecto e usar produtos químicos para buscar revenda de carne estragada,  e corromper fiscais governamentais para garantir a liberação destas carnes para comercialização.

Image result for operação carne fraca

Bloomberg publica matéria sobre a Operação Carne Fraca.

Pois bem, menos de dois anos depois da “Carne Fraca”, o governo Bolsonaro está se preparando para impor um novo modelo de fiscalização que deverá ser realizado pelas próprias empresas, no que está sendo alcunhado de autocontrole sanitário.

Agora, convenhamos, criar um sistema de autocontrole no país da “Operação Carne Fraca” equivale à entrega das chaves do galinheiros para as raposas.  Para alguém como eu que já percorreu boa parte de Goiás e Mato Grosso visitando unidades de abate, não há como não ficar com a sensação de que o caminho mais saudável em termos de alimentação seria adotar uma alimentação vegana. O problema é que com a velocidade recorde de liberação de agrotóxicos altamente tóxicos sob a batuta da ministra Tereza Cristina a salada que chega na mesa dos brasileiros não parece ser tampouco uma alternativa saudável.

Para quem acha que esta ideia estapafúrdia de autocontrole sanitário tem alguma chance de dar certo, lembro o caso recente que ocorreu na União Europeia quando foi descoberto o abate de animais doentes por um frigorífico na Polônia que fica apenas 100 km de Varsóvia.  É que na União Europeia o modelo que está sendo proposto não tem a menor chance de prosperar, e mesmo assim os donos dos frigoríficos se sentem tentados a abater animais doentes para aumentar suas taxas de lucros.  Imaginemos como ficaremos nós nas mãos de empresas que foram flagradas na Operação Carne Fraca. E, pior, num país continental com dezenas de plantas de abate situadas dentro da Amazônia Legal, onde as distâncias tendem a ser grandes por natureza.

Vacas doentes

Animais doentes eram abatidos em frigorífico na Polônia.

A minha expectativa é que os grandes parceiros comerciais do Brasil, a começar pela Rússia e pelos países árabes, dêem um chega para lá nessa proposta, salvando por tabela os consumidores brasileiros. Do contrário, dar um adeus ao consumo de carne será a decisão mais sábia que poderemos adotar.