Para bom entendedor, meia palavra basta. Essa foi a reação de um espectador privilegiado das idas e vindas da mineradora Anglo American em Minas Gerais. Segundo esse espectador, após meses de intenso greenwashing que apresentam sua mineração predadora como “sustentável”, a Anglo American viu aprovada a sua fusão com a mineradora canadense Teck Resources.
A nova criatura corporativa se chamará será dona, no Brasil, do projeto Minas-Rio, mega empreendimento de minério de ferro localizado em Conceição do Mato Dentro, na região central de Minas Gerais. A fusão foi aprovada por 99,17% dos acionistas da Anglo American e por mais de dois terços dos acionistas da Teck. A sede da nova empresa será em Vancouver, no Canadá.
A Teck tem operações de cobre e zinco no Canadá, EUA, Chile e Peru. Depois de vender seu negócio de carvão metalúrgico, o cobre é agora sua maior commodity, seguida pelo zinco.
Projeto Minas-Rio
O Minas-Rio é composto por uma mina e uma unidade de beneficiamento, localizadas em Conceição do Mato Dentro, um mineroduto e um terminal dedicado no Porto de Açu, no Rio de Janeiro. A Anglo American é dona da mina, da unidade de beneficiamento e do mineroduto, e de 50% do porto. A estimativa da companhia é de fechar o ano com uma produção da ordem de 23 a 25 milhões de toneladas de minério de Ferro.
Em dezembro de 2024, Anglo American anunciou a compra, por US$ 157 milhões, dos recursos de minério de ferro de alto teor localizados na Serra da Serpentina, que foi integrada ao Minas-Rio. O projeto continuará sendo operado pela empresa. A venda foi feita pela Vale, que passou a ter uma participação minoritária, de 15%, no Minas-Rio.
O documentário “ Desaparecido (Verschollen) – Negócios sujos com a proteção climática” (título original: “Verschollen – Schmutzige Geschäfte mit dem Klimaschutz”) revela uma operação internacional de greenwashing do suposto “aço verde”: no Brasil, plantações de eucalipto estão sendo “reflorestadas” para tornar a produção de aço neutra em carbono. Mas, para dar lugar às monoculturas, comunidades estão sendo expulsas e os direitos humanos violados.
O documentário mostra a realidade por trás da ficção e pode colocar em questão um programa de proteção climática que movimenta bilhões. A reportagem descreve as cadeias de abastecimento do aço verde, desde as plantações de eucalipto para a produção de carvão vegetal como fonte de energia barata, passando pela mineração de minério de ferro, fundição e produção de aço, até os consumidores finais na Europa, no setor de construção civil e engenharia.
O documentário descreve o contexto real do longa-metragem fictício “Verschollen” (Desaparecido), de Daniel Harrich, Alemanha, ARD, 2025. Assista ao documentário logo abaixo!
Como os representantes do agronegócio brasileiro pretendem influenciar a COP de Belém
Uma manada de gado durante um incêndio florestal na região amazônica brasileira. Foto: dpa/AP/Leo Correa
Lisa Kuner e Cecilia do Lago para o “Neues Deustchland”
As emissões do setor agrícola representam um grande problema climático, mas muitos atores no Brasil querem convencer o mundo do contrário na próxima COP 30, conferência climática em Belém: “A agricultura brasileira opera de forma social e ecologicamente responsável”, afirma Pedro Lupión, presidente da Frente Agrícola Parlamentar (FPA). O agronegócio também contribui para a conservação da natureza no país, diz o político do partido Progressistas, de centro-direita. O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, expressa visão semelhante: “O Brasil está mostrando ao mundo que é possível produzir, conservar e integrar. A agricultura brasileira será um componente essencial da solução global para os problemas climáticos.”
Os visitantes poderão vivenciar em primeira mão como isso poderá se concretizar na “Agrizone”, localizada a dois quilômetros da conferência climática em Belém, a partir de 10 de novembro. Organizada pela Embrapa, empresa brasileira de pesquisa agropecuária, a “Agrizone” contará com mais de 400 eventos. O financiamento provém de corporações como Bayer e Nestlé, bem como de diversos grupos de interesse. A “Agrizone” visa apresentar as melhores práticas — soluções para a agricultura de baixo carbono. Os organizadores também enfatizam seu compromisso em enfrentar simultaneamente a crise climática e a insegurança alimentar, por exemplo, por meio de abordagens agroflorestais, em que o gado pasta em florestas em vez de campos abertos. Agricultura tropical em harmonia com a floresta tropical — certamente parece promissor.
Na realidade, porém, a agricultura é um dos maiores impulsionadores da crise climática. No Brasil, diferentemente de muitas outras regiões do mundo, a maior parte das emissões provém de mudanças no uso da terra – devido ao desmatamento da floresta tropical, por exemplo, para o cultivo de soja ou a pecuária. Ao longo do “arco do desmatamento”, que se estende por todo o vasto país, muitas florestas já tiveram que dar lugar a enormes plantações de soja.
A situação global não é muito melhor: cerca de um terço de todas as emissões provém dos sistemas alimentares. E cerca de dois terços dessas emissões decorrem da produção de alimentos de origem animal, embora estes representem apenas 19% de todas as calorias produzidas mundialmente e 41% das proteínas. Isso se deve principalmente ao fato de o gado ser responsável por uma grande parcela das emissões de metano. A abordagem mais simples para reduzir as emissões desse setor é, portanto, clara: dietas com mais alimentos de origem vegetal e menos carne e laticínios. Esses fatos não são novidade – contudo, a agricultura raramente é mencionada nas discussões sobre a crise climática.
Isso pode ser explicado pelo fato de a produção de carne e laticínios ser um negócio gigantesco. Só no Brasil, o consumo de carne bovina é superior a 38 quilos por pessoa por ano, e cerca de um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) está ligado a esse setor. O agronegócio também desempenha um papel político importante: 303 deputados federais e 50 senadores são filiados à FPA.
Se o consumo de carne diminuir, isso também significa perdas significativas para o setor agropecuário. É por isso que o lobby do setor tem participado ativamente de conferências sobre o clima há algum tempo – nos últimos anos, centenas de representantes têm comparecido anualmente. Isso faz parte de uma campanha em larga escala com o objetivo de desviar a atenção da dimensão de sua contribuição para a crise climática. Essa abordagem é semelhante às campanhas de décadas da indústria de combustíveis fósseis.
Meias-verdades e até mesmo desinformação são frequentemente utilizadas. No Brasil, por exemplo, o agronegócio está promovendo um novo padrão para a contabilização de gases de efeito estufa que supostamente refletiria melhor as propriedades do metano. Críticos, no entanto, alertam para um “truque de cálculo” que minimiza o papel da pecuária nas mudanças climáticas. O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) também não utiliza esse padrão. Alguns lobistas vão ainda mais longe: Gilberto Tomazoni, CEO da JBS, a maior empresa de carnes do mundo, afirma que os métodos de contabilização de gases de efeito estufa estão “errados” porque não levam em consideração que gases também são capturados durante a produção de carne.
Tudo isso deverá ser apresentado na conferência climática: o lobby do agronegócio também está representado nas salas de negociação oficiais da “Zona Azul”, em Belém. Inicialmente, o agronegócio brasileiro chegou a cogitar organizar uma espécie de contracúpula, uma “Cop do Agro”. No entanto, o governo estadual se opôs, e o evento acabou sendo cancelado.
As expectativas para a COP no Brasil são altas após duas cúpulas sediadas por empresas petrolíferas, mas o agronegócio pode novamente comprometer o progresso climático
O agronegócio exerce forte influência sobre o Estado brasileiro, seja ele governado pela esquerda ou pela direita, por Lula ou por Bolsonaro. – Yasuyoshi Chiba / AFP
Por Larissa Parker
O agronegócio abriu caminho a passos largos nas últimas décadas, tornando o Brasil o maior exportador de carnes e rações para animais. Todas as maiores corporações agroalimentares do mundo colheram lucros enormes com esse boom, incluindo algumas empresas nacionais, como a gigante da carne JBS, com uma pegada climática que rivaliza com a de Bangladesh ou Espanha. A combinação de desmatamento, grilagem de terras, pecuária intensiva ecampos encharcados de agrotóxicos e fertilizantestornou o Brasil notório pela destruição climática. No entanto, embora o setor seja responsável por três quartos das emissões de gases de efeito estufa do Brasil, ele está excluído da lei nacional de carbono do país.
O agronegócio exerce forte influência sobre o Estado brasileiro, seja ele governado pela esquerda ou pela direita, por Lula ou Bolsonaro. Portanto, não é surpresa que aCOP deste ano esteja se configurando como um exercício monumental de greenwashing do agronegócio.
O destaque principal é uma “Zona Agrícola” próxima às sessões oficiais da COP. Enquanto todos os outros disputam espaço na superlotada “Zona Verde”, gigantes do setor de alimentos ultraprocessados como Nestlé e PepsiCo, e as grandes empresas agroquímicas Bayer e Yara, ganham um espaço exclusivo para impressionar os delegados da COP. Os principais grupos de lobby do setor, como a CropLife e o Conselho de Exportação de Lácteos dos EUA, realizarão sessões, assim como Bill Gates, cuja fundação, como uma das principais patrocinadoras da Zona Agrícola, apresentará a África como a próxima fronteira do agronegócio. A Netafim, empresa israelense de irrigação apontada pelo Relator Especial da ONU por seu envolvimento na ocupação ilegal de terras palestinas, também realizará uma sessão.
O povo brasileiro talvez não saiba, mas está arcando com a maior parte dos custos desse espetáculo corporativo. O evento está sendo organizado pela Embrapa, a agência nacional de pesquisa agropecuária do Brasil, que já está em parceria com grandes empresas para reformular a imagem do agronegócio brasileiro por meio de programas como “pecuária leiteira com emissão zero” com a Nestlé e “soja de baixo carbono” com a Bayer. Até mesmo o Ministério da Agricultura e Pecuária, que não implementa a reforma agrária devido a uma suposta falta de verbas, é um dos patrocinadores. Outros governos também participarão, como os da Austrália, Canadá, França, Alemanha, Japão, Holanda e Reino Unido.
O objetivo aqui não é apenas promover o agronegócio como empresa verde. As COPs do clima se tornaram palcos de negociações, comparáveis a Davos, e este ano o gigante brasileiro do agronegócio tem um grande acordo em jogo.
Na COP28 em Dubai, com o Brasil já escolhido para sediar a COP30, o governo brasileiro anunciou seus planos para uma parceria público-privada de US$ 100 bilhões para converter 40 milhões de hectares de pastagens degradadas em monoculturas de soja e outras culturas de exportação. Alega-se que o cultivo dessas culturas irá repor o carbono no solo e que as empresas podem investir como forma de compensar suas emissões de combustíveis fósseis.
Desde então, o governo brasileiro e o lobby do agronegócio têm enviado missões ao redor do mundo – incluindo Riad, Pequim e Nova York – para atrair investidores estrangeiros para o projeto, agora chamado Caminho Verde Brasil. O fundo soberano da Arábia Saudita, que detém participação majoritária na gigante brasileira de carnes Minerva, manifestou interesse e já está adquirindo créditos de carbono. O mesmo ocorre com o fundo soberano dos Emirados Árabes Unidos, Mubadala, por meio de uma subsidiária brasileira que está plantando 180 mil hectares do Cerrado com macaúba para produzir biocombustíveis para aviões a jato, como parte do programa. Grandes instituições financeiras do agronegócio também aderiram – como o Rabobank, da Holanda, e o BTG, do Brasil, ambos comprando terras para plantações de árvores e, assim, gerar créditos de carbono para a Microsoft.
O governo está agora tentando atrair investidores estrangeiros com participações acionárias em fazendas, utilizando um novo instrumento financeiro, chamado Fiagros, que lhes permitiria contornar as restrições à propriedade estrangeira de terras. Acordos de fornecimento também estão sendo elaborados com empresas chinesas, nos quais investimentos iniciais em dinheiro seriam pagos com soja, açúcar e carne.
Essa nova “forma verde” nada mais é do que uma expansão da antiga forma de fazer agronegócio no Brasil. A venda de pastagens desmatadas para conversão em fazendas intensivas de soja, cana-de-açúcar, eucalipto ou gado incentivará ainda mais o desmatamento e a grilagem de terras com o deslocamento do gado, além de aumentar o uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, com impactos drásticosna saúde pública, especialmente em comunidades camponesas e indígenas. Toda a produção será destinada à exportação, e todos os lucros continuarão sendo embolsados por banqueiros, latifundiários e acionistas de multinacionais. As emissões reais aumentarão mais rápido, mais longe e por mais tempo do que qualquer carbono que o programa consiga sequestrar temporariamente no solo.
Se houver alguma esperança de que a COP deste ano seja diferente, ela estará a poucos quilômetros da Zona Agrícola, na Cúpula dos Povos, onde comunidades que há muito sofrem com o boom do agronegócio brasileiro estão organizando seu próprio espaço. Ali, organizações e movimentos sociais trabalharão juntos para construir sistemas alimentares que possam realmente responder à emergência climática e às demais crises ambientais, sanitárias e sociais alimentadas pelo agronegócio.
Larissa Packer concentra-se nas tendências do agronegócio na América Latina, especialmente em relação à digitalização, reforma agrária, greenwashing climático e grilagem de terras. Ultimamente, ela tem se envolvido em trabalhos sobre leis de sementes e lutas mais amplas pela soberania alimentar na região. Ela representa a GRAIN na Alianza Biodiversidad (Aliança para a Biodiversidade), uma coalizão de 10 organizações/movimentos que lutam pela soberania alimentar em toda a América Latina.
Com a reunião de líderes em Belém para a COP30 em novembro, os mercados de carbono voltam aosholofotes. Antes celebrados como uma ferramenta fundamental para a redução de emissões, os créditos de carbono estão agora sob crescente escrutínio, com críticos questionando se eles proporcionam benefícios climáticos genuínos ou se simplesmente dão carta branca aos poluidores.
Durante anos, nos disseram que comprar créditos de carbono poderia anular nossa poluição e ajudar a proteger o planeta. Pague um pouco mais pela sua passagem aérea, compense as emissões da sua empresa e, em algum lugar, uma floresta tropical permaneceria de pé. Parece uma solução simples para um problema complicado, uma maneira de continuar como sempre enquanto alguém planta ou protege árvores para nós.
Mas uma nova pesquisa , liderada pelo Dr. Thales AP West, professor assistente titular do Instituto de Estudos Ambientais (IVM) da Vrije Universiteit Amsterdam, derrubou essa ideia.
O documento afirma que muitos esquemas voluntários de compensação de carbono REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal) são construídos “com base na esperança, não em provas”.
Publicada na revistaGlobal Change Biologye escrita por cientistas renomados da Europa, Américas e Ásia, a pesquisa conclui que a maioria das compensações de carbono não funciona. Na verdade, muitas se baseiam em suposições duvidosas, dados exagerados e uma espécie de ilusão conveniente.
Outro artigo publicado recentemente na Natureafirma que:
As compensações prejudicam a descarbonização ao permitir que empresas e países aleguem que as emissões foram reduzidas quando não o foram. Isso resulta em mais emissões, atrasa a eliminação gradual dos combustíveis fósseis e desvia recursos escassos para soluções falsas.
Créditos de carbono: um mercado construído com base na esperança e não na prova
O mercado voluntário de carbono (VCM) foi criado para ajudar pessoas e empresas a compensar suas emissões, financiando projetos que previnem o desmatamento e a degradação florestal. Cada crédito, equivalente a uma tonelada de dióxido de carbono evitado, pode ser negociado, comprado e vendido como uma ação.
No cerne do problema está a ” linha de base“. É o cenário imaginado do que teria acontecido sem o projeto, quanta floresta teria sido destruída. Quanto pior o futuro imaginado, mais créditos um projeto pode vender.
E é aí que o problema começa. Alguns projetos exageraram essas ameaças, alegando que estavam salvando florestas que nunca estiveram realmente em perigo. Alguns construíram modelos computacionais tão fracos que “não passavam de palpites”, revela a pesquisa. Outros foram realizados em áreas remotas onde ninguém planejava cortar árvores.
Portanto, embora as empresas se gabem de serem “neutras em carbono”, alguns desses créditos podem não representar nenhum benefício climático real.
O Dr. West diz que, embora alguns desenvolvedores ajam de boa fé, o sistema em si está configurado para falhar:
Nem todo desenvolvedor de projeto está inflando as linhas de base. Alguns realmente querem fazer a coisa certa, mas são forçados a seguir as metodologias aprovadas pela Verra. Mesmo com as melhores intenções, se você seguir a “receita errada”, provavelmente não obterá o resultado desejado.
Essas estruturas simplesmente não são adequadas para medir o desempenho ou o impacto do projeto. As ferramentas existem para fazer isso corretamente, mas elas adicionam incerteza e risco, o que é ruim para os negócios. A verdade incômoda é que a precisão pode não ser lucrativa.
Compensações se tornam greenwashing
De companhias aéreas a gigantes da tecnologia e marcas de luxo, as compensações se tornaram uma licença moral para continuar poluindo, com um halo verde associado.
As pessoas que certificam e vendem os créditos geralmente têm interesse financeiro em manter o sistema vivo. Todos se beneficiam de grandes números, exceto o planeta.
O artigo expõe como esse sistema, que visava canalizar dinheiro para a conservação, está repleto deconflitos de interesse.
Os organismos de certificação, pagos pelos próprios projetos que auditam, têm todos os incentivos para manter os créditos fluindo. As agências de classificação competem por negócios oferecendo avaliações favoráveis.
Os desenvolvedores frequentemente retêm dados cruciais, escondendo-se atrás do sigilo comercial. Até mesmo alguns auditores, revela a pesquisa, “confiaram em relatórios próprios da equipe do projeto” em vez de verificação independente.
O Dr. West argumenta que sem independência estrutural a integridade é impossível:
Algumas pessoas acreditam que a supervisão governamental poderia ajudar, mas basta analisar o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Kyoto — há muitos casos conhecidos de corrupção generalizada. Trazer mais organizações não resolverá o problema se os incentivos permanecerem os mesmos.
Uma medida simples seria os desenvolvedores pagarem ao órgão certificador, que então designaria aleatoriamente um auditor. Também deveria haver padrões rígidos para a competência do auditor e o tamanho da equipe. Atualmente, uma pessoa pode inspecionar um projeto em dois dias, enquanto outra equipe leva uma semana. Esse tipo de inconsistência pode comprometer a qualidade da certificação.
Florestas ainda caindo
Os pesquisadores revisitam o projetoSuruíno Brasil, outrora celebrado como um modelo de conservação liderado por indígenas. Construído com base em ciência sólida, utilizou conhecimento local e até ganhou reconhecimento internacional.
Apesar de promissor, o projetofracassousob pressão de mineradores ilegais e criadores de gado. A lição, revela o artigo, é clara: mesmo a compensação mais bem planejada não pode deter o desmatamento se o sistema mais amplo — a política, a aplicação da lei e os direitos à terra — estiver quebrado.
Este mês, o Ministério Público Federal (MPF)entrou com uma ação judicial pedindo a paralisação imediata de um projeto de crédito de carbono em áreas protegidas do Amazonas, onde vivem comunidades indígenas e tradicionais. O MPF alega que o projeto, lançado pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Amazonas (SEMA), está avançando sem consultar as comunidades locais, violando as regras da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Estas não são histórias isoladas . Do Camboja ao Quênia, projetos foram prejudicados por corrupção, disputas de terras ou decisões governamentais de construir barragens e estradas em zonas “protegidas”. Outros restringiram o acesso da população local às florestas, cortando seus meios de subsistência.
Com muita frequência, as comunidadesrecebem pouco do dinheiro que flui por meio desses programas. Por exemplo, no Zimbábue, o governo decretou que metade de toda a receita de carbono deve ir para o estado, com apenas uma fração chegando às aldeias locais. Os “benefícios” geralmente são captados pelas “elites” comunitárias.
O Dr. West diz que o sistema recompensa consultorias voltadas ao lucro em vez de grupos de base com laços genuínos com a terra:
Algumas ONGs trabalham com comunidades locais há décadas, muito antes da existência dos créditos de carbono, mas muitas incorporadoras são empresas de consultoria internacionais em busca de lucro. Se conseguirem fechar um acordo para ficar com 90% da receita e entregar 10% à comunidade, provavelmente o farão.
Os governos devem intervir com regras claras para garantir repartições justas. Sem isso, as comunidades são deixadas a negociar em uma posição de fraqueza, sem o conhecimento ou a representação para proteger seus interesses.
O problema que nunca vai embora
Os pesquisadores também destacam o que chamam de “vazamento”. Proteger uma floresta simplesmente empurra o desmatamento para outra. A proibição da exploração madeireira em uma área, por exemplo, pode simplesmente transferir a exploração madeireira para o vale vizinho.
A maioria dos projetos assume que o vazamento é pequeno, geralmente apenas 1%, mas estudos sugerem que ele pode ser dez vezes maior.
Há também o problema da “não permanência”, quando as florestas queimam, apodrecem ou são cortadas após o término de um projeto. Incêndios na Califórnia e na Amazônia já destruíram vastas extensões de terra cujos créditos de carbono ainda circulam nos mercados globais.
Pelas regras atuais, muitos compradores estão essencialmente “alugando” reduções temporárias que podem desaparecer amanhã. Uma vez encerrado um projeto, muitas vezes não há responsabilidade legal de ninguém para repor esses créditos perdidos.
O Dr. West diz que as salvaguardas do mercado são muito fracas:
Se as empresas compram créditos de projetos florestais, a floresta deve estar lá. Se ela desaparece, os créditos também desaparecem. O problema é que mesmo cálculos certificados e auditados podem ainda carecer de credibilidade — a certificação por si só não garante nada.
A reservade seguro da Verra deveria cobrir perdas, mas pesquisas mostram que ela é muito pequena e se baseia em modelos de risco instáveis. A maioria dos projetos dura apenas algumas décadas; uma vez expirados, seus créditos também podem expirar. No entanto, ninguém quer falar sobre isso porque é inconveniente. O mercado voluntário simplesmente optou por não levar a questão da permanência a sério.
Um sistema construído para ter uma boa aparência
O mercado de carbono anterior da ONU, sob o Protocolo de Kyoto, rejeitou os créditos de proteção florestal precisamente porque eram muito difíceis de mensurar e muito fáceis de manipular. Duas décadas depois, o mercado voluntário os reviveu, mas desta vez com uma marca melhor e um marketing mais arrojado.
Agora, enquanto os governos consideram incluir tais projetos no Acordo de Paris, os pesquisadores alertam contra a repetição dos mesmos erros.
As empresas querem respostas fáceis, os consumidores gostam do conforto dos produtos “neutros em carbono” e os créditos de carbono tornam a história possível, mesmo que não seja verdade.
Perspectivas
Os cientistas por trás da pesquisa não são contra a proteção das florestas; eles apenas querem honestidade sobre o que esses projetos podem ou não fazer. A conservação real é vital para a biodiversidade, a estabilidade climática e a subsistência de milhões de pessoas.
Mas fingir que vender créditos de carbono para esses esforços pode “cancelar” as emissões de combustíveis fósseis é perigoso e ilusório. Ação climática de verdade significa cortar as emissões na fonte, não transferir a culpa para uma floresta a milhares de quilômetros de distância.
Alguns projetos poderiam fazer uma diferença genuína, como o manejo florestal, a exploração madeireira de impacto reduzido ou a restauração de ecossistemas nativos em vez do plantio de monoculturas de árvores. Mas esses projetos são mais lentos e menos rentáveis, o que significa que o mercado os ignora em grande parte.
Os autores defendem verdadeira transparência, dados públicos e auditorias independentes que não sejam pagas pelas próprias pessoas auditadas. Alertam que, sem uma reforma significativa, o REDD+ corre o risco de repetir as injustiças que alega resolver.
Até lá, cada dólar gasto em créditos ruins é dinheiro não gasto em soluções reais.
Hora da verdade
À medida que as promessas climáticas se tornam mais rígidas e a pressão aumenta, as empresas estão correndo para comprar compensações, mas alguns tribunais estão agoradecidindoque chamar um produto de “neutro em carbono” com base em tais créditos éenganoso.
Durante anos, os créditos de carbono ofereceram uma história fácil, de que poderíamos continuar queimando, voando e gastando sem parar, enquanto as florestas limpavam silenciosamente nossa bagunça, mas essa história está acabando.
À medida que a COP30 se prepara para colocar os mercados de carbono em destaque, o debate sobre seu futuro está se intensificando.
O Dr. West diz que é hora de um acerto de contas honesto: ou consertar o sistema ou encarar a verdade sobre seus limites:
Alguns dos meus coautores acreditam que o mercado não tem mais conserto; outros acreditam que ele pode ser consertado se finalmente confrontarmos suas falhas. Nunca tentamos realmente fazê-lo funcionar corretamente. Somente admitindo o que está errado e aplicando ciência rigorosa podemos descobrir se ele pode ser recuperado.
Mas o sistema atual é baseado em conflitos de interesse. As pessoas que o defendem ou não o entendem ou lucram com a sua quebra. A menos que haja uma mudança de atitude entre empresas, governos e organizações como a ONU, o mercado provavelmente continuará priorizando a conveniência em detrimento da integridade.
Os créditos de carbono permitiram que os ricos comprassem virtude enquanto o planeta continua queimando. É hora de parar de negociar fantasias e começar a cortar emissões de verdade.
Tribunal de Paris proíbe empresa de petróleo e gás de fazer propaganda com suposta preocupação com o meio ambiente
Vista dos parques de tanques e instalações da refinaria Total no Parque Químico de Leuna. Foto: DPA/Jan Woitas
Por Ralf Klingsieck para o Neues Deutschland
Pela primeira vez, organizações ambientais na França conseguiram condenar uma empresa multinacional por mentir sobre seu suposto compromisso ambiental. Um tribunal em Paris decidiu que a empresa de energia Total estava tentando convencer o público de seu suposto compromisso com a neutralidade de carbono por meio de publicidade deliberadamente enganosa . Na realidade, a produção de petróleo e gás continuará a ser expandida e continua a representar a parte mais importante das atividades da Total no país e no exterior, declararam os juízes. Portanto, é falso e enganoso que a Total alegue ser um dos atores mais importantes do mundo na transição para as energias renováveis.
Os juízes declararam em sua fundamentação que a multinacional sediada em Paris exagerou deliberadamente e de forma enganosa seu compromisso com o meio ambiente e induziu os consumidores a acreditar que estava fazendo algo para proteger o meio ambiente e o clima ao adquirir produtos ou serviços da Total. Ao fazê-lo, seguiram os argumentos dos autores quase que literalmente. O tribunal ordenou que a empresa pagasse às organizações autoras uma quantia simbólica como indenização por danos morais. A Total também deve publicar a decisão em seu website no prazo de um mês e mantê-la lá por 180 dias. No entanto, o tribunal rejeitou o pedido de condenação da Total por promover a produção de combustível a partir de produtos agrícolas e a extração de gás natural, embora evidências científicas mostrem que isso é prejudicial ao meio ambiente e à biodiversidade. Os juízes decidiram que não se tratava de publicidade direcionada ao público em geral, mas sim de informação para empresas parceiras e investidores, seguindo assim os argumentos dos advogados da Total.
Segundo o Greenpeace, a decisão representa um “ponto de virada na luta contra o greenwashing”que dará impulso a muitos processos semelhantes em outros países. Esta é a primeira vez que uma empresa de petróleo ou gás é condenada. Na Espanha, em fevereiro, a fornecedora de energia elétrica Iberdrola perdeu o processo contra a petrolífera Repsol, que havia afirmado: “A luta contra as mudanças climáticas está em nosso sangue”. Nos EUA, em janeiro passado, o governo da cidade de Nova York processou, sem sucesso, diversas empresas petrolíferas por não informarem adequadamente os consumidores sobre as consequências do uso de seus produtos. Em contraste, uma decisão judicial obrigou a Lufthansa a retirar o que os juízes chamaram de “publicidade enganosa” sobre a compensação das emissões de CO2 causadas por seus voos .
Em sua defesa, a Total argumentou que metade dos oito bilhões de euros investidos na França desde 2020 foram destinados a projetos de energia solar ou eólica. Dois gigawatts de eletricidade são produzidos anualmente no país, o equivalente à capacidade de duas usinas nucleares. A produção de petróleo e gás também se tornou mais ecologicamente correta. A direção da empresa enfatiza que o uso de novas tecnologias reduziu asemissõesde CO2 em 35% entre 2015 e 2024. Mas isso também é um fato: três quartos dos investimentos globais da Total são em petróleo e gás.
A União Europeia desenvolveu a Pegada Ambiental do Produto para medir o impacto ambiental dos produtos de forma uniforme. (Foto: Markus Spiske (Unsplash))
Por Sarah Vandoorne eAnna Roos van Wijngaarden para “Apache”
Um suéter de lã é menos sustentável do que um pulôver de poliéster? A União Europeia propõe um cálculo universal para mensurar o impacto de roupas e calçados, com base em uma estimativa de seu ciclo de vida. A fast fashion tem uma pontuação notavelmente alta. Os críticos a chamam de “puro greenwashing”.
No porão do Museu Stedelijk , em Amsterdã, vemos ovelhas por toda parte. Rebanhos na encosta de uma montanha. Raças extintas. Espécimes extremamente peludos. Criaturas desproporcionalmente grandes em telas. Entre as impressionantes fotografias, filmes, pinturas e esculturas daexposição de design Oltre Terra , que durou até julho, encontra-se uma pilha de papéis atrás do vidro do museu. Uma Recomendação da Comissão , como lemos no Jornal Oficial da União Europeiade 2021, “sobre a utilização da pegada ecológica para determinar o impacto ambiental de produtos e serviços”.
Regulamentações europeias em um pedestal, ao que parece. No entanto, a intenção do estúdio de design ítalo-holandês Formafantasma é exatamente o oposto.
A União Europeia (UE) quer impor novas regras para medir o impacto ambiental dos produtos de forma uniforme
A UE quer impor novas regras para medir uniformemente o impacto ambiental dos produtos. O impacto das roupas será avaliado usando os mesmos parâmetros que, por exemplo, pilhas e ração para cães. A Europa desenvolveu uma metodologia PEF para esse fim, a Pegada Ambiental do Produto .
As Regras de Categoria de Pegada Ambiental de Produtos(PEFCR) aplicam a metodologia PEF a uma categoria específica de produtos, como têxteis. As PEFCRs anteriores foram desenvolvidas para massas e cerveja. As PEFCRs para vestuário e calçados acabaram de ser finalizadas.
Na exposição Recomendação da Comissão , o designer da Formafantasma, Andrea Trimarchi, destacou o objetivo da metodologia: impor regras específicas às empresas para calcular informações ambientais relevantes, com foco no que é mais importante para cada categoria específica de produto, “para tornar os estudos de PEF mais fáceis, rápidos e menos dispendiosos”.
Elaborar um PEFCR como esse não é nada fácil e rápido: no caso dos têxteis, levou cinco anos para chegar a um texto de compromisso, que a consultora 2BPolicy lançou no final de junho em um hotel de Bruxelas. E mais barato? Ao usar a metodologia PEF, muito dinheiro flui para os consultores, e não para os esforços de sustentabilidade em si.
Dezenas de eurodeputados manifestaram a sua preocupação com esta nova forma de medição de impacto
Dezenas de eurodeputados expressaram preocupações com esta nova forma de medição de impacto. A metodologia visa “eliminar o greenwashing no setor têxtil”, mas a abordagem “mina a credibilidade da UE”. Hilde Vautmans (Open VLD) e outros 29 eurodeputadosescreveram isto em 2022. Apesar das críticas, Vautmans recusou o pedido de entrevista da Apache.
Em março passado, o social-democrata grego Yannis Maniatis (S&D) apresentou uma pergunta parlamentarno Parlamento Europeu sobre se este PEFCR realmente incentiva o greenwashing. Ele também se recusou a entrar em detalhes em uma entrevista, mas Sara Matthieu (Verdes) o fez. Ela considera a metodologia francamente perigosa. “Este é o método que a UE apoia. A Europa deve ter certeza de que o que propõe é realmente correto e não tem efeitos indesejáveis.”
A lã tem uma pontuação pior que a dos sintéticos
O segundo grupo que se opôs à perspectiva de um PEFCR para vestuário e calçados foi o setor de fibras naturais. Setenta e duas organizações, pesquisadores e empresas uniram forças sob o lema ” Make The Label Count” e publicaram artigos sobre como o método está falhando .
De acordo com a metodologia, materiais naturais como lã e algodão teriam um desempenho pior do que sintéticos como poliéster e acrílico. A Organização Internacional de Lã Têxtil (OIT) extrai essa conclusão da literatura acadêmica e de cálculos anteriores que constataram que a lã tem um desempenho inferior em termos de sustentabilidade. Dalena White , Secretária-Geral da OIT, apresentou números em uma entrevista, mas não nos foi permitido publicar seu gráfico.
Por que o setor de lã se recusa a fornecer números?
Nós mesmos verificamos isso usando um módulo de cálculo da empresa de software Glimpact. Ao comparar um suéter de lã com seu equivalente sintético, um suéter de acrílico, a versão de lã é 89,5% mais prejudicial ao meio ambiente do que a sintética. Quando comparada com o mesmo suéter de poliéster, a lã se sai 88,5% pior.
Pontuação ambiental de suéteres feitos de diferentes materiais Calculada em µPt, uma unidade de medida da pegada ambiental dos produtos. Quanto menor a pontuação, melhor para o meio ambiente.
A ativista Stijntje Jaspers acredita que o mundo está de cabeça para baixo. Como diretora local da fundação Fibershed , ela representa o setor de fibras naturais na Holanda. Ela critica, entre outras coisas, a falta de atenção dada aos microplásticos nos estudos do PEFCR. “Produtos que não precisam de plástico não deveriam tê-lo em sua composição”, afirma Jaspers, enfaticamente. “A economia quer se afastar do petróleo e do gás, mas vamos aplaudir isso nas roupas? Isso simplesmente não faz sentido.”
A razão para a alta pegada da lã é clara, afirma Baptiste Carriere-Pradal , da 2BPolicy, a consultoria que lidera o estudo do PEFCR. “Ovelhas arrotam e peidam”, explica ele. “Isso produz emissões de metano.” Há outras explicações para a pegada. “É preciso alimentar ovelhas, não petróleo”, acrescenta Christophe Girardier, diretor do Glimpact . “Além disso, elas precisam de terra para pastar.” Na simulação do Glimpact, o uso da terra para o poliéster é insignificante. “E aqueles campos de petróleo?”, pergunta Stijntje Jaspers. “Eles não contam?”
Girardier contesta a ideia de que alguns tecidos naturais são consistentemente classificados como piores que o poliéster. Em uma conferência organizada pela Glimpact em Paris, ele mostrou um gráfico em que o poliéster de fato perde para o algodão. Mas umestudoque ele publicou alguns meses antes mostrou o oposto. O algodão orgânico supera o algodão convencional em ambos os gráficos, mas outros dados da Glimpact mostram novamente o oposto. Que entendam.
Pontuação ambiental de camisas feitas de diferentes materiais Calculada em µPt, uma unidade de medida da pegada ambiental dos produtos. Quanto menor a pontuação, melhor para o meio ambiente.
Quando o poliéster tem mais impacto que o algodão?
“É uma questão complexa”, admite Girardier. “Tudo depende da origem precisa do seu material e, portanto, dos seus dados.” A maioria das empresas de moda depende de todos os tipos de (sub)fornecedores. A maioria não consegue dizer com certeza de onde vem o seu algodão, lã ou poliéster. É por isso que a UE está a disponibilizar bases de dados gratuitas até ao final deste ano , das quais as marcas podem extrair “dados secundários” para calcular o seu impacto. No entanto, estas estão longe de ser infalíveis.
Estimativas, não ciência
O método PEF baseia-se na chamada pesquisa LCA. No hotel de Bruxelas onde o novo PEFCR está sendo apresentado, os formuladores de políticas descrevem repetidamente esse método como “cientificamente robusto”. Karine Van Doorsselaer , na primeira fila, está visivelmente irritada.
Em uma avaliação do ciclo de vida financiada pela indústria, o pesquisador pode orientar conscientemente os resultados
O professor de ecodesign da Universidade de Antuérpia nos aconselha a não traduzir LCA, ou Avaliação do Ciclo de Vida , como ‘análise do ciclo de vida’, mas usar uma tradução mais literal da sigla em inglês: ‘estimativa do ciclo de vida’.
“O termo ‘análise’ dá a falsa impressão de que os resultados são 100% cientificamente sólidos e imutáveis”, escreve Van Doorsselaer em seu livro Ecodesign . “Não é o caso.” Em uma ACV financiada pela indústria, o pesquisador pode distorcer deliberadamente os resultados, alerta Van Doorsselaer. “Por exemplo, omitindo um parâmetro como o consumo de água.”
Para combater essa arbitrariedade, a metodologia PEF especifica quais parâmetros uma ACV deve medir. O consumo de água é sempre incluído, assim como outras quinze categorias de impacto, que vão do uso da terra ao impacto das mudanças climáticas.
“A metodologia PEF de fato oferece menos opções ao pesquisador de ACV, mas não é robusta”, alerta Michela Sciarrone, especialista em ACV da Sustainable Brand Platform . Ela utiliza o SimaPro, um software que extrai informações de bancos de dados como o Ecoinvent, e nos mostra dois gráficos que mostram a pontuação de impacto da lã. Ela os extrai de duas ACVs que seguem as diretrizes europeias, com base em dois bancos de dados diferentes. Em uma delas, a lã tem uma pontuação muito menor do que na outra.
“Como marca, você pode adivinhar qual banco de dados é o certo para você”, diz Anton Luiken , especialista têxtil holandês que fundou sua própria plataforma de ACV, a Bawear. “A origem dos dados nem sempre é clara. Será que eles se aplicam ao seu processo? É uma média do setor, o pior cenário ou o melhor cenário? É um jogo de adivinhação.” Ele, portanto, considera os resultados “aparentemente precisos”.
Fontes questionáveis
O especialista têxtil holandês Anton Luiken: “A origem dos dados nem sempre é rastreável.”
Pedimos a diversas fontes que nos ajudassem a navegar pelos bancos de dados. Apenas Sciarrone, após nos alertar que “é impossível entender todos os dados contidos nesses conjuntos de dados”, concordou em nos ajudar. Estávamos ansiosos para analisar os dados secundários que têm sido tão acaloradamente debatidos. Começamos como Ecoinvent, um dos bancos de dados que a UE abriu .
Rapidamente chegamos a uma fonte impressionanteusada para cálculos complexos: um artigo sobre estilo de vida intitulado “Como Encerar Seus Sapatos“, de uma autoproclamada marca de luxo, a Wyrbrit . Ela tem apenas 27 seguidores no LinkedIn.
“Muitas vezes, vemos sites aleatórios como fontes, que nem sequer contêm dados”, observou Sciarrone. Ela menciona um caso em que o impacto do processo de lavagem de uma peça de roupa foi examinado. “Você clica nos dados e a única fonte que vê é uma matéria sobre a melhor maneira de lavar suas roupas. Nenhuma revisão bibliográfica, nenhum artigo acadêmico, nenhuma menção à eletricidade necessária para operar tal carga.”
Van Doorsselaer confirma que dados secundários não são precisos nem específicos e também se tornam rapidamente desatualizados. Nos bancos de dados, encontramos regularmente fontes com vinte anos de idade. “Isso obviamente foi há muito tempo”, enfatiza.
A maioria das empresas de moda depende de uma variedade de fornecedores e não consegue dizer com certeza de onde vem seu algodão, lã ou poliéster. (Foto: Maria Kovalets (Unsplash))
Consultores criam dinheiro
Dados desatualizados? Como empresa, você não precisa consultá-los. O método PEF, na verdade, incentiva as empresas a gerar seus próprios “dados primários”, inerentes aos seus processos de produção específicos.
O método PEF incentiva as empresas a gerarem seus próprios ‘dados primários’
A pesquisadora Alessandra Zamagni , que fundou sua própria consultoria, a Econnovazione , expressou essa esperança na conferência Glimpact, em Paris. “Dados primários permitem que as empresas apresentem os resultados mais recentes.” Em geral, esses dados são melhores para o meio ambiente, pois os processos de produção estão se tornando cada vez mais eficientes.
“Dessa forma, as empresas europeias alavancam sua vantagem competitiva”, diz o italiano. “Elas terão vantagem sobre os players estrangeiros que dependem de bancos de dados.”
Segundo Van Doorsselaer, essa análise ignora a realidade. As empresas que encomendam suas próprias ACVs gastam de quatro a doze meses e entre € 10.000 e € 100.000. “Somente as clínicas de saúde que realizam ACVs”, escreve ela sem rodeios em seu livro, “se beneficiam financeiramente do método PEF — isso sim é gerar dinheiro.”
Materiais leves pesam menos porque
Anton Luiken suspeita que as empresas de fast fashion não tenham interesse em solicitar dados primários. Dados secundários são mais adequados para elas, pois seus próprios dados serão “menos favoráveis”. “Grandes bancos de dados não são especializados em têxteis e podem fornecer uma imagem distorcida do verdadeiro impacto ambiental.”
Usamos uma camiseta em média de 30 a 75 vezes. “Muito baixo para roupas de alta qualidade, muito alto para fast fashion”, acreditam Luiken e Van Doorsselaer.
Em sua pergunta parlamentar, o social-democrata grego Yannis Maniatis levanta o risco de o PEFCR favorecer empresas de fast fashion. O Secretariado Técnico, que elaborou o PEFCR sob a liderança da consultoria 2BPolicy, incluiu em seus cálculos um número médio de usos por peça. No entanto, esse número é alto, favorecendo assim o fast fashion.
Usamos uma camiseta em média de 30 a 75 vezes. “Muito baixo para roupas de alta qualidade, muito alto para fast fashion”, acreditam Luiken e Van Doorsselaer. Faltam evidências científicas para essa estimativa: outra consultoria, a Cascale , apresentou os números.
O peso também é levado em consideração no cálculo. Van Doorsselaer enfatiza que a fast fashion geralmente é menos bem-feita e, portanto, pesa menos do que roupas de alta qualidade. Tecidos sintéticos também são mais leves que algodão ou lã. Portanto, ela explica, não é surpresa que o poliéster tenha uma pontuação melhor.
Três aspectos em que o PEFCR para vestuário e calçado fica aquém
Tudo isso é muito conveniente para a fast fashion, afirma Dalena White, da federação de lã da OMT, porta-voz da campanha Make The Label Count. “O poliéster é mais barato que a lã. Dessa forma, as empresas de fast fashion protegem seus lucros.”
White não se surpreende que tenha chegado tão longe. “A fast fashion conseguiu liderar esse processo. E muito dinheiro foi investido para isso.”
Anunciada como um tipo de sistema alimentar que funciona em harmonia com a natureza, a agricultura “regenerativa” está ganhando popularidade nas áreas rurais dos EUA, recebendo elogios em livros e filmes e como uma das metas do movimento Make America Healthy Again, associado ao novo Secretário de Saúde e Serviços Humanos, Robert F. Kennedy Jr.
Os defensores da agricultura regenerativa dizem que a prática pode mitigar as mudanças climáticas prejudiciais, reduzir a poluição da água e tornar os alimentos mais nutritivos, à medida que os agricultores se concentram em melhorar a saúde do solo, da água e dos ecossistemas.
Um número crescente de fazendas e ranchos nos EUA está obtendo a certificaçãopara que os consumidores saibam que seus grãos, carne bovina, ovos e outros produtos são cultivados de forma regenerativa. Internacionalmente, aprevisão é de que o mercado de agricultura regenerativa cresça dois dígitos entre 2023 e 2030.
Mas todo esse ímpeto vem com um lado negro e sujo, de acordo com um novo relatórioque destaca o que está se tornando um debate cada vez mais controverso sobre os méritos da agricultura regenerativa.
O relatório divulgado na terça-feira afirma que programas regenerativos, que geralmente permitem o uso de herbicidas e outros produtos químicos, estão sendo usados para praticar “greenwashing”, ou seja “maquiar de verde”, o uso rotineiro de vários agrotóxicos perigosos em campos agrícolas.
As corporações que vendem esses agrotóxicos estão ligadas ao movimento, incentivando financeiramente os agricultores a adotar práticas regenerativas, observa o relatório.
“Com bilhões de dólares — e o futuro do nosso sistema alimentar — em jogo, precisamos garantir que a prática da agricultura regenerativa seja robusta e protegida contra o greenwashing”, afirma o relatório de 29 de abril emitido pela Friends of the Earth (FOE), um grupo de defesa ambiental.
Citando dados do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA), o relatório do FOE visa especificamente a produção de milho e soja, na qual os agricultores não cultivam o solo para erradicar ervas daninhas, como tradicionalmente é prática comum. Essas práticas de “plantio direto” são uma marca registrada da agricultura regenerativa, pois o preparo do solo pode ter múltiplos impactos ambientais negativos, incluindo a desorganização de microrganismos do solo considerados essenciais para a saúde das plantas.
Os hectares de plantio direto de milho e soja somam mais de 50 milhões, de acordo com o relatório da FOE. A “grande maioria (93%)” desses hectares depende de “agrotóxicos que prejudicam a saúde do solo e ameaçam a saúde humana”, afirma o relatório da FOE.
Aproximadamente um terço do uso anual total de pesticidas nos EUA pode ser atribuído exclusivamente ao milho e à soja cultivados em sistemas de plantio direto e mínimo, de acordo com a análise da FOE com base em dados do USDA. Estima-se que 61% do uso envolva pesticidas classificados como altamente perigosos para a saúde humana e/ou o meio ambiente, afirma o relatório.
A aposta da Bayer na regeneração
O novo relatório tem como alvo algumas das maiores empresas agroquímicas do mundo, incluindo a alemã Bayer, que comprou a gigante de sementes e produtos químicos Monsanto em 2018 e chama a agricultura regenerativa de sua “visão para o futuro da agricultura”.
“Produza Mais. Restaure a Natureza. Amplie a Agricultura Regenerativa ”, proclamaa empresa em seu site.
O glifosato, ingrediente ativo dos herbicidas Roundup, introduzidos pela Monsanto na década de 1970, é o pesticida mais utilizado na produção de milho e soja em sistema de plantio direto. O herbicida foi classificado como umprovável carcinogênico humano por especialistas em saúde mundial, e dezenas de milhares de pessoas processaram a Monsanto, alegando terem desenvolvido câncer devido ao uso dos produtos à base de glifosato da empresa.
Como parte de seu esforço pela regeneração, a Bayer oferece aos produtores recompensas pela adoção de determinadas práticas, incluindo a não lavragem do solo e o plantio de culturas de “cobertura” como forma de melhorar a saúde do solo. Os agricultores podem receber até US$ 12 por acre pela combinação de diversas “práticas de agricultura regenerativa”, promete a Bayer.
Para lidar com problemas de ervas daninhas em campos regenerativos, a Bayer recomenda uma combinação de estratégias, incluindo o “uso sustentável de herbicidas”.
Esse tipo de recomendação expõe a hipocrisia corporativa enraizada em práticas regenerativas de plantio direto, de acordo com a FOE.
“Empresas que fabricam agrotóxicos como Bayer e Syngenta capitalizaram o crescente interesse na saúde do solo promovendo o plantio direto convencional — que depende fortemente de seus pesticidas, sementes geneticamente modificadas e plataformas de agricultura digital — como regenerativo”, afirma o relatório da FOE.
Quando questionada sobre o relatório do FOE, a Bayer disse que produtos à base de glifosato, como o Roundup, são úteis para agricultores que estão implementando práticas agrícolas sustentáveis e regenerativas.
“Ferramentas como o Roundup são essenciais, à medida que mais agricultores recorrem a práticas como o plantio de culturas de cobertura para reduzir a erosão, capturar umidade e sequestrar carbono no solo”, afirmou a empresa em um comunicado. “Produtos como o Roundup também permitem que os agricultores adotem medidas de plantio direto que ajudam a reduzir drasticamente a quantidade de carbono liberada pelo solo durante o preparo do solo.”
A Syngentaafirma que a agricultura regenerativa “pode sustentar a transformação dos nossos sistemas alimentares globais” e que “insumos químicos” podem ser úteis, embora em quantidades reduzidas.
Em março, a Syngenta anunciou uma parceria com a PepsiCopara “apoiar e impulsionar” os agricultores na transição para a agricultura regenerativa.
Regenerativo versus orgânico
O relatório surge em meio ao crescente rancor entre alguns na indústria orgânica estabelecida e o crescente movimento regenerativo, já que líderes de cada lado dizem que seus respectivos modelos são os melhores para fornecer alimentos saudáveis e proteger a saúde ambiental e humana.
Em contraste com o movimento regenerativo relativamente jovem, a indústria orgânica opera dentro de uma estrutura estabelecida há mais de 30 anos, com supervisão por meio de um programa orgânico nacional dentro do USDA, com regras que geralmente proíbem pesticidas sintéticos e outros produtos químicos.
Os defensores dos produtos orgânicos concordam com o relatório da FOE, dizendo que certificar alguns produtos e marcas agrícolas como regenerativos é enganoso porque os agricultores que praticam a regeneração podem usar, e frequentemente usam, herbicidas químicos que são prejudiciais ao solo, às pessoas e ao meio ambiente.
Eles afirmam que descrever produtos como regenerativos se forem cultivados com produtos químicos dá aos consumidores uma falsa sensação de conforto em relação às práticas agrícolas utilizadas na produção de alimentos. E afirmam que, como a agricultura regenerativa não tem supervisão governamental nem padrões oficiais, a certificação privada pode ser facilmente corrompida.
“Os proponentes dos rótulos ‘regenerativos’ não orgânicos estão, na verdade, fazendo uma maquiagem verde na agricultura convencional e no uso de pesticidas tóxicos persistentes, bem como fertilizantes sintéticos de nitrogênio”, disse Gary Hirshberg, presidente daOrganic Voices, um grupo de defesa da indústria orgânica.
“É científica e eticamente desonesto afirmar que se está regenerando o solo enquanto se usa produtos químicos sintéticos, que prejudicam os microrganismos do solo, e é ciência bem estabelecida que os sistemas de plantio direto na verdade exigem mais, e não menos, fertilizantes químicos e pesticidas”, disse Hirshberg.
Em contraste, acadêmicos e aqueles que buscam o crescimento de práticas regenerativas dizem que a saúde do solo está na raiz, literalmente, da saúde planetária e, mesmo que pesticidas sejam usados, eles podem ser usados em níveis muito reduzidos em relação à agricultura convencional.
Eles dizem que os agricultores orgânicos geralmente cultivam seus campos para lidar com ervas daninhas, e essa prática é pior do que usar herbicidas.
“A ciência é muito clara sobre isso: há um benefício líquido maior em usar um herbicida para permitir o plantio direto do que evitá-lo completamente se isso significar recorrer à lavoura”, disse Andrew Margenot, diretor associado do Centro de Sustentabilidade de Agroecossistemas da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign.
Os defensores das práticas regenerativas as veem como uma série de etapas que podem começar com plantio direto e uso de herbicidas e outros pesticidas, mas eventualmente se expandir para incluir uma série de táticas, como o uso de “culturas de cobertura” para aumentar a matéria orgânica do solo e limitar surtos de pragas, além da incorporação de gado e esterco animal em esforços de melhoria do solo.
O uso de todas as práticas regenerativas pode eventualmente eliminar a necessidade de produtos químicos ou reduzi-la drasticamente, dizem os proponentes.
A agricultura regenerativa envolve muito mais do que não cultivar o solo, disse Gabe Brown, um fazendeiro de Dakota do Norte, autor de um livro sobre os benefícios da regeneração e fundou uma empresa de certificação chamadaRegenifiedpara orientar agricultores e pecuaristas nessas práticas.
Embora Brown tenha dito que é um consumidor de alimentos orgânicos, ele acredita que os agricultores orgânicos que não usam produtos químicos, mas perturbam seus solos por meio do cultivo, também estão prejudicando o meio ambiente.
“Não se pode afirmar que o plantio direto, por si só, tornará uma fazenda regenerativa, assim como não se pode dizer que o orgânico, por si só, é regenerativo”, disse Brown. “Se um produtor orgânico arar com muita frequência, pode ser altamente degradante. Se um agricultor usa muitos sintéticos, pode ser degradante.”
Brown disse que o movimento orgânico “fracassou”, pois obter a certificação orgânica pode ser desafiador e custoso para muitos produtores. A regeneração oferece oportunidades para que mais agricultores cultivem alimentos mais saudáveis e melhorem o meio ambiente, disse ele.
“O nível de interesse na agricultura regenerativa está realmente fazendo a diferença… é emocionante”, disse Brown.
Buscando mais fundos para orgânicos
Não cultivar o solo é um princípio fundamental das práticas regenerativas, mas o relatório do FOE afirma que os impactos do cultivo nem sempre são prejudiciais e que o uso rotineiro de pesticidas tem efeitos mais prejudiciais à saúde do solo do que o cultivo rotineiro.
Analisando apenas o milho e a soja convencionais de plantio direto, o relatório do FOE conclui que as “emissões equivalentes de CO2” associadas aos pesticidas e fertilizantes sintéticos usados no cultivo dessas culturas são comparáveis às emissões de 11,4 milhões de carros.
O relatório do FOE recomenda que, em vez de incentivar a agricultura sem plantio direto, que permite o uso de pesticidas, o Congresso aumente o financiamento para programas orgânicos, e os governos estaduais, locais e federais destinem mais recursos para pesquisas sobre tecnologias que possam erradicar ervas daninhas sem herbicidas químicos.
A FOE também pede:
Quaisquer definições de agricultura regenerativa promulgadas por governos federais, estaduais ou locais, certificações regenerativas públicas ou privadas, ou outras iniciativas regenerativas para centralizar e priorizar explicitamente a redução de agroquímicos se quiserem atingir seus objetivos declarados.
Os fabricantes e varejistas de alimentos devem definir metas mensuráveis e com prazo determinado para eliminar gradualmente pesticidas tóxicos e fertilizantes sintéticos e fazer a transição para abordagens ecológicas e menos tóxicas em toda a sua cadeia de suprimentos de alimentos e bebidas.
O USDA aumentará os incentivos para fazendas que reduzirem drasticamente ou eliminarem o uso de pesticidas e fertilizantes sintéticos e aumentará a assistência técnica para estimular a adoção de práticas que reduzam os insumos agroquímicos.
“Dada a urgência das crises de saúde pública, biodiversidade e clima que enfrentamos, o crescente interesse na agricultura regenerativa deve ser aproveitado a serviço de abordagens robustas que realmente aumentem a saúde do solo e o sequestro de carbono, melhorem a qualidade do ar e da água, fortaleçam a resiliência dos agricultores e protejam a biodiversidade e o bem-estar humano”, afirma o relatório.
Por Daniel Camargos e Simone Fant, de Turmalina (MG), e Emmanuelle Picaud, de Paris | Imagens Tamás Bodolay para a Repórter Brasil
Aos 85 anos, João Gomes de Azevedo lembra do tempo em que as águas corriam fartas pelo Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Havia peixes no rio, o gado pastava livre pelas veredas e a terra dava mandioca, milho e feijão em abundância.
Hoje, ele olha para o chão seco ao redor de sua casa, na comunidade de Poço d’Água, em Turmalina (MG), e vê apenas poeira. “A água foi embora. E a gente foi ficando para trás”, lamenta. Diante da secura, o nome do povoado, distante 500 quilômetros de Belo Horizonte, tornou-se uma ironia.
Enquanto Seu João luta para encontrar água, na fazenda vizinha crescem florestas de eucalipto a perder de vista. A dona das terras é a Aperam, a maior produtora de aço inox da América Latina. A empresa ostenta certificados de boas práticas ambientais, ao produzir aço com carvão vegetal de “florestas renováveis”, como ela nomeia o cultivo.
Quem discorda chama de “deserto verde”, pois as fazendas de eucalipto estão secando o solo, conforme relatam moradores de comunidades tradicionais e quilombolas. As denúncias são respaldadas por pesquisas científicas e levaram a uma revisão do selo de sustentabilidade da Aperam – o que pode virar um problema para os negócios da gigante europeia.
“Os eucaliptos secaram as nascentes. O que antes dava para plantar, agora virou terra morta”, conta João Batista, agricultor de Veredinha, município vizinho a Turmalina. Ao redor da casa dele, estendem-se plantações com árvores de 20 metros de altura.
O casal João Batista e Maria Mercedes recorda da abundância de peixe nos rios. “Pegava lambari com a peneira”, lembra João. “Depois do eucalipto foi só ‘destruimento’. Ficamos sem água, sem terra e sem peixes” (Foto: Tamás Bodolay/Repórter Brasil)
A Aperam tem 124 mil hectares no Vale do Jequitinhonha, sendo 76 mil de eucalipto, uma área plantada equivalente à soma dos territórios de Porto Alegre (RS) e Belo Horizonte (MG). A maior parte dessas terras foi repassada na década de 1970 durante a ditadura militar para uma estatal, a Acesita. Nos anos 1990, a companhia foi privatizada e comprada pelo grupo ArcelorMittal, maior acionista da Aperam.
Os militares consideravam as terras devolutas (sem uso) e desejavam desenvolver a região. Com isso, as chapadas que antes eram de uso comum, onde as comunidades criavam o gado solto, foram destinadas à monocultura de eucalipto.
A madeira obtida é queimada para produção de carvão vegetal, que abastece os altos-fornos da siderúrgica em Timóteo (MG), no Vale do Aço. A operação também possibilita a venda de créditos de carbono na Nasdaq (EUA), o segundo maior mercado de ações do mundo, a partir da produção do biochar – um subproduto do eucalipto capaz de sequestrar dióxido de carbono (CO2) da atmosfera.
A Aperam nega ser responsável pela escassez hídrica e diz que os eucaliptos consomem a mesma quantidade de água das árvores nativas. Porém, estudos demonstraram os impactos da floresta comercial.
Um grupo de pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e do IFNMG (Instituto Federal do Norte de Minas Gerais) estimou obalanço hídrico da chamada “Chapada das Veredas”, localizada no Alto Jequitinhonha.
A substituição da vegetação nativa pelo eucalipto reduziu a recarga dos lençóis freáticos em 31 milhões de metros cúbicos de água por ano, segundo o estudo. Notou-se ainda que o nível da água subterrânea baixou cerca de 4,5 metros em 45 anos, segundo o pesquisador Vico Mendez Pereira Lima, do IFNMG. “O problema não é a falta de chuva. O volume de precipitação na região praticamente não mudou nos últimos 70 anos. O que mudou foi o uso da terra”, explica.
Chapada das Veredas fica na bacia do rio Fanado, um subafluente do rio Jequitinhonha (Foto: Tamás Bodolay/Repórter Brasil)
Originário da Austrália, o eucalipto cresce rapidamente e, além de ser usado na produção de carvão vegetal e biochar, é matéria-prima para a indústria de papel e celulose. “As plantações podem parecer belas florestas verdes, mas, ecologicamente, são como desertos”, afirma Daniel Montesinos, pesquisador da Universidade James Cook, na Austrália. Ele classifica a espécie como “altamente prejudicial” à biodiversidade, pois grandes áreas plantadas criam um ambiente hostil para a fauna e a flora locais.
Na Chapada das Veredas, os pesquisadores estimam que mais de 60% da área estejam cobertas por eucalipto. Eles destacam também grande impacto nas veredas – áreas úmidas das chapadas que recarregam os lençóis freáticos e estabilizam o fluxo dos rios. Com os ciclos naturais de água interrompidos, no entanto, várias nascentes da região secaram.
Os moradores defendem a retirada das plantações de eucalipto das encostas das veredas, onde as nascentes se formavam. “Se plantarmos árvores nativas lá, a água pode voltar. Esse é o único recurso que temos”, afirma Salete Cordeiro, presidente da Associação de Mulheres Agricultoras do Córrego da Lagoa e Beira do Fanado, comunidades reconhecidas como quilombolas.
Enquanto isso não acontece, Salete usa água de um poço artesiano que vem da casa da irmã. Muitas outras famílias, porém, tiveram de abandonar a agricultura e migraram para a cidade. As que permaneceram passaram a depender de cisternas comunitárias e caminhões-pipa.
Nos últimos anos, o córrego que passava no fundo da horta de Salete secou. As águas corriam para o rio Fanado (Foto: Tamás Bodolay/Repórter Brasil)
Córrego seco na Chapada das Veredas, onde plantações de eucalipto são responsáveis pela escassez hídrica, segundo moradores e pesquisadores (Foto: Tamás Bodolay/Repórter Brasil)
Certificação ambiental sob questionamento
Os impactos socioambientais colocaram a certificação da Aperam sob escrutínio. O selo FSC (Forest Stewardship Council), que atesta boas práticas florestais, está em revisão por uma auditoria internacional após denúncia do CAV (Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica), ONG que reúne agricultores da região desde 1994.
A partir do questionamento, a ASI (Assurance Services International) – responsável pela fiscalização do selo – identificou falhas no processo. Um relatório da entidade afirma que a Aperam não comprovou que suas plantações não afetam a disponibilidade de água. O documento também sustenta que comunidades quilombolas da região não foram consultadas.
Depois da publicação do relatório, a certificadora inicial da operação foi afastada e o Imaflora assumiu a reavaliação. O novo certificador deve apresentar um plano de ação corretivo, além de evidências de sua implementação antes do fim do segundo trimestre de 2025, explica a ASI.
Se a Aperam não comprovar a sustentabilidade, a companhia pode perder o selo FSC. Isso pode dificultar suas exportações de aço para a Europa, onde as exigências ambientais são cada vez mais rigorosas.
Imagem aérea mostra plantações de eucalipto da Aperam, em Turmalina. Ao fundo, a Unidade de Produção Palmeiras, que transforma a madeira em carvão (Foto: Tamás Bodolay/Repórter Brasil)
Fornos artesanais para queima de carvão (Foto: Tamás Bodolay/Repórter Brasil)
Em nota enviada à Repórter Brasil, a Aperam diz que a ligação entre escassez hídrica e plantações de eucalipto foi descartada por diferentes pesquisas, como estudos da Embrapae de uma revista jurídica da UFMG. “O eucalipto, quando gerenciado de forma responsável, não esgota os recursos hídricos. Pelo contrário, ele pode contribuir para a manutenção do equilíbrio hidrológico e para a proteção do solo contra a erosão”, diz a nota.
Na resposta de 12 páginas, a Aperam enfatiza que tem compromisso com a sustentabilidade na produção de aço, destacando a utilização de energia renovável e a preservação de 50 mil hectares de vegetação nativa. A empresa ressalta seu engajamento com as comunidades por meio de diversos programas e alega adotar medidas de mitigação de impactos, como reservatórios de coleta de chuva, e priorizar o plantio em períodos chuvosos. Leia a íntegra da resposta da Aperam.
“Enquanto viola um direito humano fundamental, que é o acesso à água, a empresa continua se promovendo como modelo sustentável. Isso é um selo de fachada”, critica o coordenador do CAV, Valmir Soares de Macedo. Na avaliação dele, a movimentação da Aperam é um exemplo de greenwashing (ou “lavagem verde”, expressão usada para denunciar operações falsamente sustentáveis).
Macedo, contudo, tem pouca esperança de uma mudança significativa: “Mal fomos envolvidos nas discussões. Esses relacionamentos são, antes de tudo, comerciais.
Monocultura de eucaliptos em Turmalina, no Alto Jequitinhonha (Foto: Tamás Bodolay)
Fazendas de eucaliptos cobrem 60% da Chapada das Veredas (Foto: Tamás Bodolay/Repórter Brasil)
‘Ouro negro’ vai para Canadá, Suíça e Suécia
A revisão do selo de sustentabilidade tem grande potencial de impactos nos negócios da companhia. Isso porque, além de buscar o selo para tornar seu aço “verde” e palatável ao mercado europeu, a filial da Aperam no Brasil vendeu créditos de carbono associados ao biochar.
De aparência semelhante à terra preta, esse subproduto do eucalipto sequestra dióxido de carbono (CO2) da atmosfera e melhora a qualidade do solo, segundo a Aperam. Chamado internamente de“ouro negro”, o biochar rendeu R$ 40 milhões à companhia em um ano.
A primeira venda de créditos de carbono foi para a canadense Invert Inc., seguida pela Nasdaq, que adquiriu mais de 7 mil toneladas em 2024 para compensar suas próprias emissões. Outras empresas também adquiriram esses créditos, como o grupo financeiro sueco Skandinaviska Enskilda Banken AB, a consultoria Bain & Company, e o banco suíço Banque Pictet também compraram os créditos. As negociações ocorreram no marketplace Puro.earth, controlado pela Nasdaq.
Em seu relatório de sustentabilidade, a Nasdaq destaca que o biochar ajuda a melhorar as propriedades do solo e a retenção de água, e que o projeto da Aperam apoia programas de desenvolvimento social para agricultores locais.
O selo de sustentabilidade é importante também para a Aperam se adequar à Regulação Europeia de Remoções de Carbono. Aprovada em fevereiro de 2024, ela exige que créditos de carbono sejam concedidos apenas a empresas que comprovem não prejudicar a biodiversidade nem os recursos hídricos.
A eventual perda de certificação pode afetar outros interesses na Europa. A Aperam solicitou isenção de um imposto que taxa produtos com base nas emissões de CO2. Se aceita, a isenção concedida pelo Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira reduziria as tarifas ambientais sobre seu aço na Europa, tornando-o mais competitivo.
Nas comunidades cercadas pelas plantações de eucalipto é comum ver casas fechadas, algumas abandonadas. São de famílias que não resistiram à falta de água e mudaram para as cidades (Foto: Tamás Bodolay/Repórter Brasil)
Histórico de conflitos fundiários
A história da Aperam no Vale do Jequitinhonha remonta aos anos 1970, quando a siderúrgica Acesita, então estatal, recebeu terras da União e do governo mineiro para desenvolver a produção de aço com carvão vegetal. Com o tempo, a vegetação nativa do Cerrado, essencial para a regulação hídrica da região, foi gradativamente substituída por monoculturas de eucalipto.
Em 1992, a Acesita foi privatizada e, em 2002, comprada pela ArcelorMittal, a segunda maior produtora mundial de aço. Em 2011, a multinacional desmembrou sua divisão de aço inoxidável e criou a Aperam, hoje uma das maiores siderúrgicas da Europa, com cinco fábricas no continente e uma no Brasil, em Timóteo (MG).
Antes da chegada da empresa, as terras eram utilizadas comunitariamente por pequenos agricultores. “Originalmente, essa terra era para as pessoas, para alimentá-las, para permitir que vivessem com suas famílias. A natureza não é apenas um campo de produção”, recorda Valmir Macedo, diretor do CAV.
A empresa enfrenta há anos na Justiça diversos questionamentos sobre a posse das terras. Moradores afirmam que nunca assinaram documentos cedendo os territórios.
“A água foi embora e a gente foi ficando para trás”, diz João Gomes de Azevedo, que fez uma música narrando a mudança da paisagem e do modo de vida (Foto: Tamás Bodolay/Repórter Brasil)
A Aperam nega as alegações de expropriação de terras, afirmando que a aquisição pela Acesita na década de 1970 foi legal e autorizada pelas leis da época. A empresa sustenta que as terras eram originalmente do estado de Minas Gerais e estavam ocupadas ilegalmente. A empresa contesta a existência de expropriações generalizadas, mencionando apenas disputas isoladas.
“Era tudo do povo. Dependíamos da chapada para criar gado, colher frutos como pequi e jaca, e buscar ervas medicinais”, recorda João Batista da Silva. “Hoje, tudo isso acabou”, lamenta.
Mais velho, João Gomes de Azevedo corrobora: “A água corria por valetas que fazíamos no chão, e assim chegava até as casas. Com o tempo, isso foi mudando. Quando a empresa chegou, a água ainda resistiu por um tempo, mas foi diminuindo até secar.”
A história inspirou João a compor uma música, espécie de trova, em que narra a saga de quem resistiu na região e convive com a natureza se esvaindo e a água rareando nas chapadas e veredas.
Acabo de receber e estou compartilhando uma interessante dissertação de mestrado que foi defendida com êxito pela pesquisadora filandesa Hanna-Kaisa Sainio no Programa de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Helsinki. A pesquisa realiza uma análise sobre os limites do discurso ambiental que envolve o acordo de livre comércio entre a União Europeia (UE) e o Mercosul.
A partir de uma metodologia qualitativa, Hanna-Kaisa Sainio fez uma série de entrevistas com representantes de governos, pesquisadores e membros de organizações não-governamentais para tentar três questões de pesquisa: 1) que tipo de pensamento de sustentabilidade dominou as negociações e decisões do Acordo UE-Mercosul, 2) qual foi a situação da inclusão e das perspectivas das partes interessadas , e 3) qual foi caminho de sustentabilidade escolhido para nortear o Acordo comercial UE-Mercosul.
Uma das descobertas do estudo de Sainio é que a imprecisão do conceito de sustentabilidade e as diferentes perspectivas e circunstâncias de vida que afeta seu reconhecimento, como um dos principais alvos do acordo, fazem com que os compromissos globais de sustentabilidade pareçam parte de um cenário mundial ideal, que não será de fato seguido na sua implementação prática. Em outras palavras, é a imprecisão a serviço do “greenwashing” para manter tudo como dantes no quartel de Abrantes.
Outro aspecto que surgiu nas entrevistas realizadas por Hanna-Kaisa Sainio foi a natureza assimétrica dp acordo, o que resultaria não em condições mais equânimes de trocas comerciais, mas sim na manutenção da hegemonia colonial, o que seria reforçado pelo uso de tecnologia mais avançada e de restrições ambientais como alavancas para atingir esse objetivo em prol da União Europeia.
Por outro lado, um dos consensos que surgem das entrevistas de Sainio é que os compromissos ambientais do Acordo EU-Mercosul são tão vagos e podem ser interpretados de tantas maneiras que qualquer ação poderia ser chamada de sustentável. Este é, na verdade, um problema recorrente, já que o conceito de sustentabilidade é frequentemente usado em ações de marketing sem qualquer clarificação sobre seu significado prático. Além disso, como sustentabilidade significa coisas diferentes para pessoas diferentes, e não há consenso sobre os limites do sustentável e do insustentável, há o risco de que ocorra um alto nível de frustração com os resultados da implementação prática do acordo.
Ainda que esses sejam apenas uma síntese muito breve da pesquisa de Sainio, o que salta aos olhos é que aqui no Brasil as contradições existentes nos termos desse acordo foi muito pouco destrinchado pela comunidade acadêmica, e completamente ignoradas pelos membros do governo Lula que participaram da sua amarração final.
Quem desejar baixar a dissertação de mestrado de Hanna-Kaisa Sainio, basta clicar [Aqui!].