O sertanejo universitário é produto do lado mais sombrio do agronegócio

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Por Tiago Cardoso para o “PiauíHoje”

A hegemonia do sertanejo universitário no cenário musical brasileiro atual não é produto do talento dos cantores do aludido gênero musical, mas de uma estrutura econômica por trás destes cantores.

O sertanejo surgiu no Brasil em meados do século XX, onde seus artistas cantavam as agruras e os lamentos do campo e da vida rural. Com o processo de urbanização do país em decorrência do desenvolvimento industrial, a música sertaneja tradicional sofreu uma paulatina transformação e já nos anos 1990, o romantismo urbano suplantou a beleza e a pureza do autêntico sertanejo do campo.

Todavia, o que turbinou o sertanejo universitário foi o investimento milionário do agronegócio, que quis criar a imagem do homem de bem e do campo que sustenta a cidade, quando, na verdade, 75% dos alimentos que chegam às mesas dos brasileiros são oriundos da agricultura familiar, ou seja, do pequeno lote de terra. O agronegócio, basicamente, volta-se para exportação, o que é de conhecimento público e notório.

O filme “os filhos de Francisco”, que retrata a heróica saga da dupla sertaneja Zezé di Camargo, quis passar a imagem da meritocracia da vida no campo, fazendo as pessoas acreditar que as ligações telefônicas de um pai abnegado por seus filhos às rádios provocaram o seu sucesso. Milhões de pessoas viram este filme nas telas de cinema. Entretanto, isto fica apenas no cinema, não condiz com a realidade.
O que ocorre na indústria fonográfica é o famigerado “jabá”, que é uma importância em dinheiro que os produtores pagam para veicularem suas músicas. A empresária da polêmica cantora Anita declarou em entrevista que viralizou que, enquanto tenta pagar um “jabá” para tocar as músicas de seus artistas numa rádio, o agronegócio já as comprou. O resultado é que, em 2021, das dez músicas mais tocadas no aplicativo de música spotify, nove eram sertanejos universitários, com suas músicas cantadas no mesmo timbre e com as mesmas letras: balada, bebedeira e traição.

Ademais, existe um lobby fortíssimo do agronegócio na política nacional. Para que se tenha uma idéia, em 2014, a JBS patrocinou a campanha de 11 partidos políticos e a bancada ruralista fez 24 dos 27 senadores eleitos.

Isto mesmo que vocês leram. Não há uma bancada roqueira, funkeira, pagodeira, etc, mas há uma bancada ruralista, que possui como trilha sonora o sertanejo universitário.

Tudo isto produz uma indústria cultural, a famigerada “modinha”. Não é um sucesso orgânico, natural, é produzido.

Como vocês acham que qualquer dupla sertaneja, hodiernamente, já possui ônibus, jatinhos e milhares de seguidores em suas redes sociais logo no começo de suas carreiras? Fruto de seus talentos? Não. Fruto do investimento pesado do agronegócio, que vê no sertanejo universitário uma forma de alienar as pessoas com letras açucaradas e despolitizadas, ao passo que violam a legislação ambiental, expandem a fronteira agrícola, invadem terras indígenas, promovem o garimpo e assassinam os povos nativos. Vocês acham que os cantores sertanejos são bolsonaristas por acaso?

E o que vemos hodiernamente é o fim do autêntico sertanejo, da música que retratava a vida do campo, dando lugar a uma música urbana, cada vez mais pop e com riffs que lembram mais um pop rock medíocre.

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Ademais, o agronegócio compra espaço na mídia (o agro é pop, lembram?), promovem feiras pecuárias, onde promovem duplas sertanejas de “bons moços”, e agroshows, onde dão visibilidade aos cantores sertanejos. Mais que isto, compram emissoras de TV e colocam suas músicas em novelas. Quando um artista de outro gênero poderia ter este privilégio? Um  cantor de samba oriundo do morro, um roqueiro de uma banda de garagem? Por mais que tenham um talento superior, não conseguirão emergir na superfície da indústria fonográfica.

Embora sejam esmagadoramente reacionários e “contrários” à polêmica e desconhecida (inclusive por eles), são os cantores que mais recebem recursos públicos, pois, como veio à tona, sabe-se que recebem dinheiro de prefeituras pequenas que equivalem ao orçamento anual de suas pastas de saúde e educação.

Por todas as razões expostas anteriormente, é uma luta desigual com os demais gêneros, não pelo talento, o qual poucos possuem, mas pelo investimento extraordinário do agronegócio.

Mais que isto, a dobradinha agronegócio/sertanejo universitário está promovendo um morticínio da cultura, uma vez que festas tradicionais do São João nordestino estão tomadas por estas duplas, ao passo que o forró perde espaço, só para citar um exemplo. Não é diferente em outras festas tradicionais que nada tem a ver com o gênero, tal como o carnaval.

Espero que, com o que veio à tona, este assalto à cultura e ao dinheiro do contribuinte, a máscara destes falsos moralistas e pseudocantores seja retirada de modo que possamos expor a sujeira por trás deste sucesso.

Particularmente, não escuto destes cantores, pois sei que cada clique representa uma parcela do morticínio cultural e da devastação do meio ambiente.

Tiago Cardoso é  geógrafo.


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Este foi originalmente publicado pelo portal “PiauíHoje” [Aqui!].

Graças à tatuagem revolucionária feita por Anitta, finalmente descobrimos os meandros do financiamento público da ideologia “agro” na música brasileira

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Para quem achava que apenas as redes de TV serviam como braço ideológico do latifúndio agro-exportador rebatizado de “agronegócio” agora sabe que não.  Tudo isso graças à decisão inoportuna do cantor “Zé Neto” que decidiu partir para cima da cantora Anitta por causa de uma tatuagem que ela fez na sua região anal em 2021. 

O problema é que  Zé Neto (na verdade o paulista José Toscano Martins Neto) tivesse ficado apenas na crítica à região tatuada tudo teria morrido em um momento de empolgação. O problema é que Zé Neto resolveu optar por um ataque tosco (me desculpem o trocadilho infame) sobre uma possível dependência financeira de Anitta (o que está longe de ser verdade) da captação de recursos via a Lei Rouanet que, para começo de conversa, nem deveria ser problema para quem quer seja.

É que graças a uma série de posts do jornalista Demétrio Vecchioli na rede social Twitter, o Brasil ficou finalmente ciente de uma verdadeira orgia com recursos públicos para pagamento de shows que invariavelmente reúnem artistas que são ligados direta ou indiretamente ao agronegócio, e que combinam o engordamento das suas contas bancárias com a divulgação de elementos de uma ideologia que valoriza a monocultura de exportação que está na base, entre outras coisas, do desmatamento da Amazônia, do uso intensivo e abusivo de agrotóxicos e, não raramente , o emprego da mão-de-obra escrava.

O caso é que desde que Zé Neto resolveu vociferar contra Anitta, já sabemos que muito dinheiro que deveria estar sendo usado para financiar educação, saúde e habitação em cidades médias e pequenas estava tomando destino indevido. O maior exemplo desse descaminho de verbas acabou pegando outro astro do sertanejo, o cantor bolsonarista Gustavvo Lima iria abocanhar R$ 2 milhões, sendo R$ 1,2 milhões apenas no show que ele realizaria no município de Conceição do Mato Dentro em Minas Gerais.

Agora ficamos sabendo que um fundo de investimentos ligado ao mesmo Gustavvo Lima, o One7 (quer dizer 17, número eleitoral do PSL que era o partido pelo qual Jair Bolsonaro se elegeu presidente) obteve um financiamento público junto ao BNDES de R$ 320 milhões cuja finalidade era, pasmemos todos,   adiantar “o pagamento de espetáculos a artistas, com desconto, e depois embolsar o valor cheio pago por quem contrata os shows“.

Ivan Valente on Twitter: "O tal de Ze Neto e o tal de Gusttavo Lima são  típicos bolsonaristas. Adoram falar de armas, mas vivem dando tiro no  próprio pé." / Twitter

E a bola de neve das revelações sobre o uso de verbas públicas para contratar shows “sertanejos” não deverá parar de crescer tão fácil, pois vivemos um ano eleitoral em que normalmente chances douradas como essa não são desperdiçadas por quem está na oposição. Fala-se até em uma CPI sertaneja para investigar quanto dinheiro público escorreu para dentro das contas bancárias dos artistas que ajudam a disseminar a imagem de que “O agro é pop”.

No entanto, me parece que o estrago está feito, e as torneiras que vinham jorrando com abundância vão secar, ao menos no momento.  E só por isso temos que agradecer a Zé Neto e, por que não, ao tororó da Anitta. É que por causa da confusão iniciada na pacata Sorriso (que fica no coração do agronegócio mato-grossense), agora sabemos que há sim uma relação umbilical entre o tal “sertanejo universitário” e a naturalização da destruição ambiental causada pelo agronegócio por meio da hegemonia ideológica exercida sobre a programação musical de estações de rádios e de TV de todo o Brasil.  Minhas saudações à Anitta e sua tatuagem que nos trouxeram, ainda que inadvertidamente, revelações tão preciosas.