Dossiê liga Banco Mundial a violações ambientais na Amazônia

Empresa de logística que recebeu investimento e selo de qualidade do banco prejudica comunidades ao longo de rota internacional da soja que corta a floresta, diz relatório. Desmatamento e poluição estão entre impactos.

sojaNa nova rota da soja, grão sai de Mato Grosso, maior produtor nacional, e corta a Floresta Amazônica pela BR-163

Ao longo da rota internacional da soja que corta a Floresta Amazônica para levá-la a mercados como China e União Europeia, uma série de violações ambientais tem prejudicado a vida de comunidades, populações indígenas e a maior floresta tropical do mundo.

Os abusos envolvem empresas e instituições conhecidas por pregarem padrões de sustentabilidade nos negócios, denuncia o dossiê Enquanto a soja passa: impactos da empresa Hidrovias do Brasil em Itaituba, organizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), com base em documentos e relatos de lideranças locais.

Segundo a investigação, a Hidrovias do Brasil, empresa de logística instalada no distrito de Miritituba, no município de Itaituba, no Pará, descumpre medidas que deveriam ser adotadas para aliviar os impactos negativos de sua atuação na Amazônia.

A contradição, aponta o dossiê, é que a companhia tem entre seus acionistas a International Finance Corporation (IFC), braço de investimentos do Banco Mundial que, como condição para bancar parte do empreendimento, estipulou que fossem cumpridos os chamados Padrões de Desempenho sobre Sustentabilidade Socioambiental (PDs).

“O que é importante aqui é que o Banco Mundial e a IFC dão como se fosse um selo de qualidade socioambiental porque, a principio, eles têm políticas socioambientais muito fortes. O que a gente tentou provar no dossiê é que essas políticas não estão sendo implementadas”, afirma Livi Gerbase, assessora política do Inesc, sobre a operação da Hidrovias do Brasil.

Segundo o documento, a empresa se utiliza desse selo tentando mostrar que emprega boas práticas socioambientais. “Mas, quando a gente analisa, na realidade isso é mais um discurso do que de fato a empresa cumprindo a sua responsabilidade”, pontua Gerbase.

Nova rota e violações

É pelo rio Tapajós, que percorre mais de 800 quilômetros entre Mato Grosso e Pará até desaguar no rio Amazonas, que as barcaças de soja seguem até o Atlântico. O grão vem de Mato Grosso, maior produtor nacional, e corta a Floresta Amazônica pela BR-163, estrada que recebeu recentemente asfaltamento completo.

Nos últimos dez anos, essa rota, chamada de Arco Norte, tem virado opção por se acreditar que é mais barato passar por dentro da Floresta Amazônica para exportar soja e milho – o que, até então, ocorria apenas passando pelo Sudeste.

Consequentemente, empresas da cadeia global de commodities e de logística, como a Hidrovias do Brasil, se instalaram pelo trajeto. Desde 2013, pelo menos dez portos industriais foram construídos, por exemplo, ao redor de Itaituba. Outros 40 estão planejados, quase todos ligados ao agronegócio.

Rota da soja

Segundo o relatório, a principal violação cometida pela companhia analisada é relacionada a populações indígenas. “O selo do Banco Mundial para esse tema é muito forte. A política de salvaguarda do banco diz que, se forem identificados povos indígenas ou comunidades tradicionais perto do investimento, existe uma série de protocolos que devem ser seguidos, principalmente a consulta prévia, livre e informada desses povos”, diz o Inesc.

O problema, detalha Gerbase, é que a Hidrovias teria informado ao banco que não existem povos indígenas na região. Logo, os protocolos que o Banco Mundial deveria impor não foram cumpridos. “E existem aldeias indígenas coladas nos portos”, ressalta a assessora.

Indígenas munduruku, a principal etnia da região, relatam que não foram convocados para participar das audiências públicas sobre o investimento. “Nem a sociedade daqui de Itaituba foi convocada para essa audiência. Eles convocaram só um grupo de empresários que tinham um interesse grande com a implantação dos portos, e as comunidades daqui não foram chamadas”, afirmam lideranças indígenas. 

Duas ações civis públicas chegaram a ser protocoladas pelo Ministério Público Federal, mas até hoje não há uma sentença. Elas pediam anulação das licenças ambientais dadas pela secretaria estadual e realização de novas audiências.

“É quase escrachada a violação de um padrão de desempenho do Banco Mundial que eles simplesmente não cumprem e disseram que não vão cumprir porque não existem povos indígenas na região”, afirma Gerbase.

Impactos da nova rota

Impactos da rota da soja são sentidos por comunidades da região. Desmatamento, poluição do solo e de rios por agrotóxicos, reassentamento involuntário de populações e desmantelamento da agricultura familiar são apontados como os mais graves.

Em pouco tempo, Miritituba se transformou num complexo portuário. O distrito, que tinha uma população de 3.383 habitantes no censo de 2010, atualmente conta com cerca de 15 mil em parte devido à urbanização não planejada.

Pelo vilarejo, chegam a transitar 1.500 caminhões por dia durante a safra de soja, com aumento expressivo de atropelamentos e até mortes. “Isso gera também aumento dos casos de violência na região, pois aumenta muito a população sem expansão de infraestrutura. Nós deixamos isso bem claro no dossiê”, diz Gerbase.

A produção pesqueira dos moradores no Tapajós também caiu. Segundo as comunidades, cordões de isolamento impedem os pescadores de chegarem perto do rio. Além das barcaças, que se aglomeram e tiraram o espaço onde eles pescavam.

“Tem soja por toda a cidade. A chamada poeira de soja contém agrotóxicos, fica pela cidade, e o vento vai espalhando. É um dano tanto para a saúde das pessoas quanto para flora e fauna”, destaca o documento.

O que dizem a Hidrovias e a IFC

Consultada pela DW Brasil, a Hidrovias do Brasil repudiou o conteúdo do dossiê. Por meio de nota, a companhia afirmou que o documento responsabiliza “exclusivamente a empresa pelos impactos sinérgicos, cumulativos e históricos na região”.

A Hidrovias diz ainda seguir as diretrizes dos Padrões de Desempenho da IFC. “É com base nessas diretrizes que a empresa esclarece que não há população indígena lindeira ou diretamente afetada pelo empreendimento da companhia”, afirma.

Sobre os munduruku, a empresa admite a existência da Terra Indígena às margens do rio Tapajós e afirma que há estudo em curso para “qualificar e quantificar os eventuais impactos da operação dos terminais”, mas não especificou quando será concluído.

Já a IFC declara que supervisionou o projeto de acordo com seu mandato e procedimento interno e apoiou a empresa na implementação de seus compromissos de acordo com os Padrões de Desempenho Social e Ambiental da IFC.

“Embora a IFC concorde, em geral, com muitas das preocupações sobre as questões socioeconômicas na região, o relatório do Inesc contém afirmações que não apresentam uma imagem precisa e completa dos esforços da IFC em sua diligência e supervisão”, afirma por meio de nota.

Para o Inesc, a IFC e Banco Mundial não deixam de ter responsabilidades. “Nós estamos mostrando para o banco que ele precisa retomar o monitoramento da empresa e garantir que essas políticas estão sendo aplicadas nos seus investimentos”, pontua.

Na análise de Gerbase, o dossiê aponta que essas políticas têm grande deficiência na sua execução. “E, no meio disso, pequenas comunidades estão sendo inseridas nessas cadeias globais de produção e escoamento de commodities e estão sofrendo nas mãos  desses investimentos”, conclui.

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Este texto foi originalmente publicado pela Deutsche Welle |Aqui!  |

Dossiê revela série de violações socioambientais das operações da Hidrovias do Brasil no Pará

Documento publicado pelo Inesc, elaborado com base em denúncias de moradores, revela que a empresa não cumpre com as medidas para mitigar os impactos negativos de suas operações na região de Itaituba. Hidrovias tem dentre seus principais investidores a IFC, braço de investimentos do Banco Mundial para o setor privado.

Estação de transbordo e carregamento de barcaças - HBSA - Estrutural Zortea

Enquanto a soja passa: impactos da empresa Hidrovias do Brasil em Itaituba – revela que a empresa de logística Hidrovias do Brasil tem descumprido sistematicamente uma série de medidas que deveriam ser adotadas para mitigação dos impactos negativos de suas operações na região de Itaituba, no Pará, que se transformou nos últimos anos em um importante centro de transporte da cadeia global de fornecimento de commodities ao ligar a rodovia BR-163 com o Rio Tapajós, é que conclui um estudo divulgado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) publicado nesta terça-feira , 23/02.

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Durante a alta safra da soja, cerca de 1500 caminhões transitam diariamente em Miritituba, distrito de Itaituba, onde vivem 15 mil pessoas. O território é peça fundamental na reestruturação da Amazônia brasileira como caminho para a exportação de grãos do Mato Grosso para o Atlântico, com destino para a China, União Europeia e outros países. Atualmente, pelo menos 41 novos portos estão planejados ou em construção para os principais rios da região.

Na região, já foram construídos diversos empreendimentos, como hidrelétricas, hidrovias, garimpos e minas. Desde 2013, pelo menos 10 portos industriais – a maioria ligados ao agronegócio – foram construídos ao redor da cidade de Itaituba. Em Miritituba existem cinco Estações de Transbordo de Carga (ETC), instalações portuárias privadas que escoam os grãos pelos rios Tapajós e Amazonas até os portos Pará e do Amapá. O dossiê analisa os efeitos dos portos na região, com foco na empresa de logística Hidrovias do Brasil (HDB).

A instituição tem entre seus acionistas a Corporação Financeira Internacional (International Finance Corporation – IFC), braço de investimentos do Banco Mundial para o setor privado. A IFC, que é um banco multilateral de desenvolvimento, exigiu que a Hidrovias do Brasil, para receber o investimento, cumprisse com os Padrões de Desempenho sobre Sustentabilidade Socioambiental (PDs), um conjunto de medidas necessárias para impedir, diminuir ou mitigar os efeitos socioambientais negativos da sua atuação na região. 

No entanto, o dossiê do Inesc evidencia que a política socioambiental, aparentemente rigorosa da IFC, não está sendo cumprida pela Hidrovias do Brasil. O relatório produzido por meio de denúncias de moradores de Itaituba e Miritituba, representantes de movimentos sociais, lideranças indígenas, entre outros, analisa detalhadamente cada meta de sustentabilidade que deveria estar sendo executada pela Hidrovias do Brasil e aponta falhas na vistoria da instituição financeira investidora. 

“A Hidrovias do Brasil foi financiada por um banco que tem uma política socioambiental, à princípio, robusta, que envolve um monitoramento da empresa para ter certeza que, se estão previstos impactos negativos, deverão ser mitigados ou compensados. Existem instâncias que podemos apelar ao banco, para que monitore a empresa e faça estas políticas de fato serem cumpridas. Portanto, este dossiê é um primeiro passo para que a IFC retome o monitoramento da Hidrovias do Brasil e a faça cumprir a política socioambiental da própria instituição”, afirma Livi Gerbase, assessora política do Inesc e autora do estudo.

Um exemplo é a construção do desvio para que os caminhões contornem Miritituba ao invés de cortá-la, obra prometida pela Hidrovias do Brasil ao Banco e que não saiu do papel. Para além do trânsito e do aumento do número de acidentes, os 1500 caminhões geram poluição no ar e deixam parte da soja espalhada por toda a cidade, causando graves danos à saúde da população e interferência na fauna e na flora local. Um morador de Miritituba resume a sensação de viver entre o tráfego intenso: “aqui a gente disputa com as carretas, e o menor é quem tem que correr”. 

O aumento dos índices de violência, comércio ilegal de drogas e prostituição, trazidos com a multidão de caminhoneiros que chega diariamente, são outros impactos sofridos pela população local e ainda pouco mapeados pelos órgãos competentes. 

Moradores de Miritituba revelam, ainda, outras violações da parte da Hidrovias do Brasil e outras empresas portuárias na região, como a proibição da pesca em lugares tradicionalmente acessados pelos pescadores devido a utilização de cordões de isolamento como medidas de segurança por cinco portos instalados lado a lado. Além disso, pescadores também denunciam que a soja que cai nos rios, ao serem transportadas pelas barcaças, está sendo encontrada na barriga dos peixes. 

Indígenas do povo Munduruku também sofrem com as operações da Hidrovias na região que alegou, em seu relatório à IFC, não haver comunidades indígenas e tradicionais afetadas pela construção da sua ETC. A realidade é outra. Duas aldeias urbanas nas margens do Tapajós convivem diariamente com os portos e seus efeitos: Praia do Índio e Praia do Mangue. Para os Munduruku, porém, toda a população indígena do Médio Tapajós sente os efeitos do projeto, pois os impactos se espalham pela rede de parentesco que liga essas comunidades, afetando outros territórios indígenas da região, que possui 868 habitantes indígenas, de acordo com dados oficiais em 2019. Apesar disso, não houve consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas, tanto da Hidrovias do Brasil quanto dos outros portos instalados na região, uma clara violação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, um acordo do qual o Brasil é signatário. 

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Por fim, outra reclamação grave dos moradores é quanto à participação dos mesmos nos espaços de diálogos com a empresa. Eles relatam que reuniões acontecem em caráter meramente formal com os impactados, onde eles não são de fato ouvidos. “Ouvir a população é só com audiência pública de carta marcada. Na verdade, da população eles só querem a assinatura na ata ali, e o projeto todo já está sendo pronto e  implementado”, explica Josenaldo Luna de Castro, membro do Conselho Gestor de Fiscalização dos Empreendimentos e Investimentos no Distrito de Miritituba (CONGEFIMI). O conselho foi criado em 2018 para ser uma ferramenta de monitoramento da atuação de empresas como a Hidrovias do Brasil na região. 

Enquanto viola os direitos da população local e comunidades tradicionais, a Hidrovias do Brasil, com o sucesso de seus investimentos na Amazônia, completou em 2020 uma oferta pública inicial (IPO) de ações, arrecadando 600 milhões de dólares. Conforme reportagem publicada pelo site Mongabay, em novembro do ano passado, em um prospecto fornecido no seu IPO, a Hidrovias do Brasil descreveu seu porto de Itaituba, que não teve consulta dos Munduruku, como um ativo chave da empresa. A empresa também advertiu aos investidores que as regulamentações ambientais poderiam restringir severamente sua capacidade de fazer negócios e que suas operações logísticas poderiam “resultar em danos ao meio ambiente e a comunidades indígenas e quilombolas, cuja extensão e custos de reparação não são possíveis de estimar”.