Subsídios mortais: qual a lógica de subsidiar os agrotóxicos?

O STF decide entre o país e o agronegócio

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Por Jean Marc von der Weid

O STF estará julgando, no próximos dias, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5.553) impetrada pelo PSOL, questionando o projeto de lei 6.299/2002 que modifica a legislação sobre agrotóxicos vigente, visando ampliar os subsídios e isenções fiscais no Brasil. O agronegócio brasileiro já é há alguns anos o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, sendo que pelo menos um terço com alto grau de toxidade e muitos deles proibidos por órgãos reguladores tanto nos Estados Unidos como na União Europeia. As reduções de impostos têm um papel importante neste processo, mas o agronegócio quer mais, sobretudo reduzir em 60% o ICMS e zerar o IPI sobre os agrotóxicos.  

Em outras manobras legislativas, a bancada ruralista almeja facilitar ainda mais a liberação de novos agrotóxicos, apesar de estar conseguindo colocar estes produtos cada vez mais rapidamente no mercado interno, na base de centenas a cada ano, oito vezes mais ligeiro do que na União Europeia. Isto se faria pela retirada da competência da ANVISA e do IBAMA do sistema de aprovação, entregando-o estritamente nas mãos da complacente e cúmplice burocracia do MAPA. 

O agronegócio brasileiro argumenta que sem estes e outros subsídios (sobretudo para fertilizantes e sementes) não conseguiriam competir no mercado internacional e que teriam que cotejar as eventuais vantagens apontadas pelo agrobusiness com os impactos negativos (custos externos) das suas atividades. 

Com toda a propaganda de alta qualidade e alto custo na mídia brasileira (“agro é pop, agro é tec, agro é tudo…”) o nosso agronegócio confessa a sua ineficiência quando cobra do erário o custo da sua sobrevivência. 

O argumento da preocupação com a alta do custo dos alimentos é pura falácia. O aumento dos preços do arroz com feijão, que usaremos como indicativo da base de uma dieta nacional desejável, não é provocado principalmente pelos custos de produção (inclusive dos agrotóxicos), mas pela baixa oferta dos produtos no mercado interno. 

A oferta per capita de arroz e de feijão vem caindo regularmente ao longo dos últimos 50 anos. Entre 1977 e 2022, o consumo per capita de arroz caiu de 79 para 49 quilogramas por ano, uma redução de 38%. O de feijão caiu de 24,7 kg para 14 kg, 43% a menos.  

O consumo de outros alimentos básicos da dieta tradicional brasileira (aquela entronizada na lei do salário-mínimo de Getúlio Vargas nos anos trinta e que está longe de ser a mais correta do ponto de vista nutricional), como o milho e a mandioca, seguiram o padrão do arroz e feijão. Em 2022, o milho usado para consumo humano não superou os 8,7 kg per capita no ano, um sétimo do que foi consumido por animais sob forma de ração e a metade do que foi usado para produzir biodiesel. Ficou muito para trás o tempo em que a broa de milho era o pão de boa parte dos brasileiros 

Para apontar o destino da produção agropecuária brasileira de forma mais geral, basta olhar a área cultivada dos produtos dirigidos principalmente para o mercado interno e os dirigidos principalmente para as exportações. Entre os 22 cultivos mais importantes, ocupando em 2022/2023 perto de 88 milhões de hectares de lavouras, soja e milho (em grande parte exportados quer em grãos, farelo ou para a engorda de frangos, suínos e bovinos, também exportados em grande parte) ocuparam 71% da área total. Mais 15% da área foi destinada para outros produtos de exportação como cana de açúcar, algodão, café, cacau e fumo. Apenas 11,5 % da área de lavouras foi destinada a cultura alimentares do mercado interno, como arroz, feijão, trigo, mandioca, banana, batata, aveia, cebola, tomate, etc.). 

Este processo de internacionalização do nosso agro não é novo. Afinal de contas, o país nasceu e cresceu sob o signo da exportação de produtos agrícolas, açúcar, café, algodão, cacau e outros, nos famosos ciclos econômicos que só tiveram um período em que foram os minerais (ouro) que dominaram a exportação. O que é novo é que, depois de um período de desenvolvimento industrial acelerado iniciado nos governos de Vargas, mas que tiveram continuidade até no regime da ditadura militar, voltamos a ser essencialmente um país exportador de produtos primários, agrícolas e minerais, com a produção industrial caindo a pouco mais de 12 % do PIB.  

Esta regressão tem um efeito brutal no custo da alimentação dos brasileiros. Neste século, tivemos 6 anos apenas em que a inflação geral medida pelo IPCA ficou acima da inflação de alimentos (60% mais alta em média), enquanto nos outros 18 anos esta última bateu a primeira mais ou menos com a mesma média anual. 

Descartemos, portanto, o argumento de que os subsídios se dirigem a baratear a alimentação dos brasileiros. Eles se dirigem a aumentar a competitividade dos nossos produtos no mercado internacional, deixando o consumo interno de alimentos em permanente insuficiência frente às necessidades dos consumidores.  

Para dar uma ideia aproximada do problema, é só lembrar que a demanda anual reprimida de arroz (em casca) é de 18 milhões de toneladas, extrapolação realizada pelo autor a partir do consumo desejável indicado em pesquisa do Instituto de Nutrição da UERJ, publicada na Revista de Saúde Pública. A demanda anual reprimida de feijão é de 7,6 milhões de toneladas, pelo mesmo critério. Isto significa a necessidade de se multiplicar a produção de arroz por 2,8 e a de feijão por 3,4 para alimentar corretamente os brasileiros (sem contar, é claro, vários outros produtos alimentares necessários e igualmente deficitários). E, enquanto os preços da soja e do milho nos mercados internacionais de comodities forem mais altos do que os do feijão e arroz no mercado interno, a orientação do agronegócio será a de privilegiar as exportações. 

Enquanto isso, a produção de soja cresceu de 12 para 153 milhões de toneladas, entre os anos de 1977 e 2022. A de milho de 19 para 125. Ambos os produtos, como vimos acima, dirigidos essencialmente para o mercado externo sob diversas formas, grãos, farelo e carnes de frango e de suínos. 

O agronegócio é “tec”, como ele autoproclama na sua propaganda? Nem tanto. A produtividade da soja brasileira iguala a americana e supera a da Argentina, dois grandes exportadores, mas com uso mais intensivo de insumos. Já a produtividade do milho é muito menor: 2,78 e 1,7 vezes mais baixa do que nos Estados Unidos e na Argentina. Os nossos concorrentes têm algumas vantagens naturais de clima e de solos, mas isto não explica o nosso atraso em termos de produtividade. Entretanto, o Brasil hoje produz e exporta mais do que qualquer outro e não só nestes dois produtos dominantes. Como explicar? 

É simples. Por um lado, a legislação ambiental e a sanitária nos EUA e na União Europeia implicam em custos mais altos na aplicação das mesmas tecnologias. Temos custos bem menores pela fragilidade da aplicação da nossa legislação ambiental, cada dia mais permissiva. E temos custos de mão de obra também muito mais baixos. Mas, sobretudo, nós temos disponibilidade de terras baratas para expandir a produção, algo que falta para os concorrentes. Enquanto a demanda continuar aquecida pelas compras chinesas estaremos bombando com preços compensadores, mas com qualquer redução das cotações nós seremos os primeiros a perder mercado pois nossos custos de produção são mais altos. Como nossa produtividade é mais baixa, nem o custo quase zero da ocupação de terras griladas na Amazônia ou o trabalho mal pago compensará os custos maiores de produção. 

É claro que existem setores do agronegócio mais tecnificados e competitivos, mas a maioria vive de explorar as vantagens naturais e humanas locais sem pensar no amanhã. Se fossem de fato “high tec”, como proclamam, já estariam aplicando as tecnologias disponíveis para reduzir o uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos, ao invés de lutar para facilitar o uso de produtos cada vez mais perigosos … e caros. 

Na verdade, a experiência internacional mostra que o agronegócio é igual em todo o mundo. Os produtores americanos só adotam técnicas mais racionais e de menor risco ambiental ou para a saúde quando a pressão de legisladores ou do mercado os obriga. 

Um exemplo do outro lado do mundo é dos mais ilustradores deste axioma. Nas Filipinas dos anos 90, a FAO convenceu o governo da hora a montar um plano de redução do uso dos agrotóxicos na cultura do arroz, central na economia e na sociedade do país. O projeto visava não a erradicação do uso de agrotóxicos, mas o seu uso racional, na forma do manejo integrado de pragas ou IPM, na sigla em inglês. O programa dirigiu-se a agricultores de pequeno, médio e grande porte, mas seu sucesso inicial se deu principalmente no primeiro grupo. Os pequenos produtores, com menos acesso a recursos financeiros, perceberam a oportunidade de reduzir custos sem perder produtividade e filiaram-se ao programa em grandes números. Já os médios e grandes produtores só aderiram quando o governo filipino retirou os subsídios para o uso de agrotóxicos na produção de arroz. Em dez anos, as Filipinas reduziram o emprego de agrotóxicos no arroz a menos de 20% dos volumes anteriormente empregados. Com ganhos de produtividade e menores custos.  

O programa da FAO ganhou prêmios de excelência e passou a ser disseminado na Ásia e na África com apoio do Banco Mundial, que estava carente de alguma coisa para melhorar a sua imagem junto aos ambientalistas. Embora o IPM esteja longe de ser um programa agroecológico e que ele nem sequer imagine outros componentes de racionalização do uso de insumos, o resultado, embora estrategicamente diminuto, aponta na direção correta. Ele ficou ainda mais relevante com a escalada dos preços dos agrotóxicos e dos adubos químicos nas últimas décadas e que tende a se intensificar ainda mais. 

Ao que eu saiba, não existe no Brasil um cálculo sobre os custos indiretos do uso de agrotóxicos nos sistemas produtivos do agronegócio. Sabe-se que cerca de 25% das amostras de alimentos contêm, em média, doses de agrotóxicos acima do tolerável, segundo as definições da ANVISA. Também é sabido que a contaminação de trabalhadores agrícolas é um recorde mundial contínuo. Mas não se sabe quanto isto custa em termos de gastos privados ou do SUS. Os impactos ambientais sobre fauna e flora são constatados em grande escala, mas também sem avaliações de custos. A única indicação encontrada foi de um estudo da cooperação técnica da Alemanha, apontando para um custo indireto (abrangendo todos os impactos) de 20,00 reais para cada real de faturamento do agronegócio. Não tive acesso ao estudo, somente às suas conclusões que me parecem algo exageradas, mas por comparação com estudos em outros países estes “custos externos” apontados pelo estudo podem estar corretos. 

O que temos que entender no caso brasileiro é que o caráter predador e imediatista do nosso agronegócio só pode ser parado com maiores controles de seus impactos ambientais e na saúde e não com o programa da bancada ruralista que é desmontar a legislação e os instrumentos estatais de controle para poderem devastar a seu talante. 

Sem sombra de dúvida, o maior freio possível no uso dos agrotóxicos é o financeiro, na forma da diminuição paulatina até a eliminação dos subsídios existentes. O STF tem nas mãos a possiblidade de colocar limites nesta fúria devastadora, já que o governo Lula ou bem resolveu se aliar com o agronegócio, na ilusão de amansar a besta ou bem capitulou frente a bancada ruralista por total falta de poder de fogo. 

Resta saber se os votos restantes no STF (em seções anteriores suas excelências já votaram a favor do agronegócio por 6×2) vão equilibrar o resultado e estimular algum dos anteriores a se penitenciar e rever sua posição, talvez pensando no bem do Brasil, do seu povo e de sua fauna. 


Fonte: 68naluta 

Novo plano safra de agricultura familiar do governo Lula: repetindo erros

O atual plano é a reprodução, sem qualquer modificação, do modelo de crédito iniciado por Fernando Henrique Cardoso em 1996

lula safra

Por Jean Marc Von der Weid*

O novo plano de safra, que inaugura a ação do novo governo Lula para a agricultura familiar, foi festejado pelos movimentos sociais em cerimônia com a presença do presidente em ato apoteótico. No entanto, trata-se da reprodução, sem qualquer modificação, do modelo de crédito iniciado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 1996, quando foi criado o Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar, PRONAF e o próprio e recém recriado Ministério do Desenvolvimento Agrário, MDA.

Qual a orientação deste crédito? Ao longo de todos estes 27 anos, do governo liberal de FHC, passando pelos governos ditos populares de Lula e de Dilma Rousseff, pelo governo golpista de Michel Temer e o governo protofascista de Jair Bolsonaro, o crédito facilitado para a agricultura familiar foi orientado para promover o uso de insumos químicos (adubos e agrotóxicos), sementes melhoradas (híbridas e transgênicas) para melhor aproveitarem adubos sintéticos e uso de maquinário agrícola (tratores, colheitadeiras).

Esse modelo produtivo, idêntico ao adotado pelo agronegócio de grande porte, responde a um paradigma produtivo que busca a máxima artificialização e controle do meio ambiente para favorecer uma monocultura. É um modelo sabidamente insustentável em qualquer escala em que for aplicado, mas é mais arriscado para os agricultores familiares. Dependendo de combustíveis fósseis em todas as suas operações no campo e na produção dos insumos e máquinas, o modelo está à mercê dos preços e disponibilidade de petróleo e gás e de fósforo e potássio. E todos estes insumos estão em fase de esgotamento e, em consequência, com custos sempre mais elevados.

O crédito altamente subsidiado pelo governo permitiu que uma camada significativa, mas bastante minoritária, da agricultura familiar tivesse acesso a estes insumos e provocou uma enorme diferenciação entre os beneficiários. A parcela mais capitalizada ou mais bem-dotada em termos de condições naturais de produção (solos de melhor qualidade, clima mais favorável, sobretudo na região sul, relevo mais plano, áreas maiores) progrediu em termos de volume de produção e melhoria de renda. A maioria, entretanto, teve dificuldades em pagar os créditos e muitos quebraram, apesar das várias anistias e renegociações de dívidas concedidas pelos governos populares.

Se olharmos para as negociações anuais entre as organizações dos agricultores familiares (CONTAG, CONTRAF e MST, MPA e MMC) e os governos populares (Abril Vermelho, Marcha das Margaridas, outros) vamos notar que o foco das reivindicações foi se dirigindo cada vez mais para tentar enfrentar o problema do endividamento, sem nunca o resolver de forma estável. Isto lembrando que estes governos criaram seguros de safra para cobrir os riscos climáticos para a produção. Estes riscos foram se tornando cada vez mais importantes ao longo destes anos, com secas mais longas e intensas na região nordeste e com a ampliação, no tempo e no rigor, do chamado veranico na região sul. A instabilidade do regime de chuvas foi se agravando sem limites e não houve seguro ou subsídio que desse conta do estrago.

Muitos analistas apontam para o fato de que o agronegócio também foi afetado por todos estes fatores e, no entanto, parece ter convivido melhor com eles. É bom notar que o agronegócio recebeu apoios ainda mais importantes por parte dos governos e que os subsídios, facilitação de créditos e isenção de impostos também os favoreceram. Mas há um outro fator que deu vantagens ao agronegócio: a escolha do que produzir. O agronegócio centrou sua atividade sobretudo em commodities do mercado internacional ou produtos dirigidos para o mercado interno de alta renda.

Quando se olha para a evolução da produção da agricultura familiar no período indicado acima, verificamos que a produção de alimentos para o mercado interno, sobretudo os chamados alimentos de base como arroz, feijão, milho e mandioca, caiu de forma sistemática, enquanto a produção voltada para as commodities como soja e milho (para ração animal) de exportação só fez crescer.

Quase metade de todo o crédito distribuído pelo PRONAF foi dirigido a projetos de produção de commodities no final do governo de Dilma Rousseff, sobretudo na região sul, que voltou a concentrar a maior parte dos créditos do programa depois de alguns anos de diversificação regional. Os projetos dos agricultores da região sul foram ficando cada vez mais caros, inclusive levando à criação de novas categorias do PRONAF, com limites mais elevados de créditos. Qual a razão para esta opção? O risco financeiro dos créditos levou estes agricultores a escolherem produtos com preços mais altos e mais estáveis e, nas condições do mercado nacional e do internacional, as commodities são mais rentáveis.

A segunda política mais importante dos governos populares, no que toca a agricultura familiar, foi a de assistência técnica e extensão rural, ATER. Apoiando-se sobretudo nas entidades dos governos estaduais de assistência técnica e extensão rural, as EMATER, a política de assistência técnica convergiu para estimular o uso do pacote técnico típico do agronegócio, em sintonia com a orientação do crédito.

Qual o efeito destas políticas para a categoria dos agricultores familiares? Já foi dito que elas favoreceram a inclusão de parte deste setor na economia de commodities, mas qual o impacto sobre a renda e a sustentabilidade dos produtores?

Se olharmos para os resultados dos censos agropecuários de 2006 e de 2017, constatamos que o número de famílias camponesas diminuiu fortemente no período. São, aproximadamente, menos 470 mil famílias, 10,7% das que existiam em todo o país. Isto aconteceu apesar de terem sido assentadas perto de 480 mil famílias no programa de Reforma Agrária. Ou seja, quase um milhão de famílias deixaram o campo em 11 anos.

Estes números cobram uma explicação e nem na campanha eleitoral ou na fase de transição entre os governos de Jair Bolsonaro e de Lula alguém se debruçou sobre este dado importantíssimo para avaliar o efeito da ação governamental sob responsabilidade da esquerda.

Qual a origem geográfica desta pesada evasão de camponeses? O maior número veio do Nordeste, quase 350 mil famílias (16% do total de agricultura familiar na região). Da região Sul saíram quase 185 mil (22%). Da região Sudeste saíram 11 mil. Nas regiões Norte e Centro Oeste o número de agricultores familiares aumentou, 68 mil e 6 mil respectivamente.

Qual a causa destas evasões? Há um sabido e estudado processo de envelhecimento da população rural, com agricultores se aposentando e sem sucessores. Mas os números citados são muito altos para esta ser a explicação principal. A evasão no Nordeste é histórica e tem a ver com o impacto cada vez mais importante de secas cada vez mais longas e intensas. Mas também foi constatado um alto nível de inadimplência nos empréstimos do PRONAF na região, o que sugere que esta pode ter sido também uma causa importante. No entanto, o tipo de empréstimo que prevaleceu na região Nordeste, conhecido como PRONAF B, não se voltou para a promoção do uso de insumos químicos e sementes melhoradas, como nas regiões Sul e Sudeste.

Na região Sul, a que mais recebeu créditos do PRONAF, a orientação técnica foi voltada para as monoculturas de soja e milho e para o uso de adubos químicos, agrotóxicos, sementes transgênicas e maquinário agrícola. É neste público e nesta região que se deveria avaliar o programa de crédito, sobretudo pelos valores despendidos tanto no volume total como no volume por beneficiário. E o indicativo é que uma boa parte dos agricultores que deixaram o campo o fizeram por problemas financeiros.

Durante a campanha Lula adotou a política de prometer “mais do mesmo”, idealizando as realizações do seu governo, já que o de Dilma Rousseff foi mal avaliado. Deu certo eleitoralmente, mas a equipe de transição que tratou do tema da agricultura familiar adotou uma importante mudança em relação aos tempos passados: a meta do novo Ministério do Desenvolvimento Agrário passou a ser a promoção da agroecologia como estratégia para dar sustentabilidade à produção desta categoria.

Sem ter havido uma avaliação das políticas aplicadas no passado, esta decisão a favor da agroecologia implica em uma crítica implícita aos governos de Lula, já que neles, assim como nos de Dilma Rousseff, prevaleceu amplamente a promoção das práticas do agronegócio visando a sua adoção pela agricultura familiar. As medidas de apoio à produção agroecológica foram residuais.

O que a equipe de transição não fez foi discutir como traçar políticas de crédito, de assistência técnica e extensão rural, de seguro e de acesso a mercados para realizar o objetivo definido. A experiência mostra que as medidas, bem marginais, adotadas nos governos passados para favorecer a agroecologia tiveram muitos problemas. Os créditos PRONAF agroecologia, semiárido e floresta foram mal formulados e tiveram pouquíssimos acessos; as chamadas de assistência técnica e extensão rural para financiamento de projetos de promoção da agroecologia também tiveram enormes problemas de formulação e execução. As compras da CONAB (PAA, Programa de Aquisição de Alimentos) favorecendo produtos agroecológicos tiveram melhores resultados, mas os valores foram diminutos e beneficiaram poucos agricultores.

O novo Ministério do Desenvolvimento Agrário tem dificuldades em fazer esta revisão das políticas. Em primeiro lugar, porque virou uma praxe desde os governos populares escantear qualquer crítica às ações do governo. As quedas de braço entre membros do Conselho do Ministério do Desenvolvimento Agrário (CONDRAF) e técnicos e dirigentes deste ministério foram constantes e resultaram em pelo menos um enfrentamento público por ocasião da primeira conferência nacional de assistência técnica e extensão rural, no governo Dilma Rousseff, com Pepe Vargas como ministro.

Já o programa de crédito ficou blindado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, que conseguiu impedir a formação de um Comitê de acompanhamento/avaliação da política no CONDRAF ao longo de 13 anos. Apenas no apagar das luzes do governo Dilma conseguimos criar um grupo de trabalho para avaliar esta política, apoiado pelo ministro Patrus Ananias. Este GT chegou a reunir uns 10 pesquisadores de universidades do nordeste, sudeste e sul, técnicos de ONGs, agentes financeiros e responsáveis governamentais. Durou pouco. O golpe em Dilma Rousseff matou essa iniciativa no nascedouro.

Em segundo lugar, o novo Ministério do Desenvolvimento Agrário está composto por um grupo pequeno de técnicos, longe do número de pessoas que nele trabalhavam quando foi extinto por Michel Temer. O pior é que não consegui identificar, entre os que hoje se encarregam deste ministério, algum dos membros das equipes que nele trabalharam nos tempos de Lula I e II e de Dilma I e I/3. Não há hoje, na equipe atual, a memória viva das experiências, exitosas ou fracassadas, dos períodos anteriores.

De todas as políticas em prol da agricultura familiar, a de maior impacto e de maior durabilidade foi a de crédito. Ela foi concebida e dirigida por um técnico altamente competente, João Luiz Guadagnin, desde o governo FHC até a queda de Dilma. Foi o único programa a que Michel Temer e Jair Bolsonaro deram continuidade, promovendo técnicos que já trabalhavam no mesmo. E este programa, com todos os seus erros de concepção, está tendo continuidade neste governo, sem qualquer avaliação crítica. Me pergunto como é que o MST, importante participante do ato de lançamento do Plano de Safra no Planalto, recebeu esta “nova” proposta. Desde o governo Dilma Rousseff o MST tornou-se um defensor coerente e incisivo da agroecologia, assim como a CONTRAF e a CONTAG, embora estes dois últimos sejam menos convictos desta proposta, pelo menos como proposta universal.

A mesma crítica pode ser feita ao segundo dos programas mais importantes do antigo ou do novo Ministério do Desenvolvimento Agrário: o de assistência técnica e extensão rural. As novas chamadas para projetos de assistência técnica repetiram praticamente todos os vícios e erros das chamadas anteriores, em 2010/2016.

A necessidade de se fazer um planejamento rigoroso, baseado numa revisão das políticas passadas e dos seus efeitos é premente ou veremos a repetição dos resultados anteriores. A meu ver, não é apenas necessário discutir cada um desses programas, mas a própria abordagem do governo para a promoção do desenvolvimento da agricultura familiar.

Com efeito, não é de hoje que eu comparo os métodos e práticas dos projetos de promoção do desenvolvimento da agricultura familiar de entidades da ONU, como a FAO e o PNUD e as adotadas pelos governos populares. No Brasil as iniciativas de apoio à produção são distribuídas por várias políticas distintas (crédito, assistência técnica e extensão rural, compras governamentais, acesso a mercados, beneficiamento, seguro, pesquisa). Nos programas de desenvolvimento que acompanhei na África todas estas políticas estavam integradas em cada um dos projetos, com um só orçamento sendo gerido harmonicamente.

Na prática, a diferença se traduz (aqui) na necessidade de cada entidade que trabalha com um público definido de agricultores formular projetos para acessar os recursos que necessita: um projeto para a assistência técnica e extensão rural, centenas de projetos individuais para cada agricultor acessar crédito, centenas de outros para acessar o PAA, sendo que não existem recursos para projetos que envolvam pesquisas participativas ou para facilitar a integração com entidades como a EMBRAPA ou as equivalentes estaduais. Além dessa dispersão de recursos provocar enormes dificuldades operacionais para as equipes de apoio, existem incoerências na orientação de cada uma das políticas.

O modelo atual de políticas separadas funciona para a promoção de modelos convencionais de produção, mas são totalmente ineficazes para a promoção da produção agroecológica.

Se não for realizado um intenso esforço de avaliação das políticas e dos mecanismos de financiamento da promoção da transição agroecológica vamos assistir a repetição dos problemas já vividos pela agricultura familiar ao longo das últimas três décadas. Mais do mesmo não é uma solução.

*Jean Marc von der Weid


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Este texto foi originalmente publicado pelo portal “A Terra é Redonda” [Aqui!].