Grandes frigoríficos seguem alimentando o desmatamento e a grilagem na Amazônia

Pesquisa do Greenpeace mostra relação dos Frigoríficos JBS e Frigol com fazendas em áreas públicas e desmatadas recentemente. PLs da Grilagem no Senado podem piorar o quadro

São Paulo – Investigação do Greenpeace Brasil revela que grandes frigoríficos do país compram gado, de forma direta ou indireta, de fazendas localizadas em áreas públicas federais da Amazônia e suspeitas de grilagem. Isso significa que a carne vendida tanto no Brasil como no exterior por essas empresas está “contaminada” com desmatamento ilegal, contribuindo com a destruição da floresta.

Entre os frigoríficos aparecem a JBS, maior produtora de proteína do mundo, e a Frigol, quarta maior do setor no país. Os frigoríficos foram identificados como destino final de gado com origem indireta (em um dos casos, direta) em fazendas sem registro junto ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), com históricos de crimes ambientais, ligadas a trabalho escravo e até mesmo pertencentes a pessoas acusadas de envolvimento em assassinatos.

O levantamento ilustra o tipo de apropriação ilegal de terra que pode aumentar na Amazônia caso seja aprovado qualquer um, ou ambos, os Projetos de Lei conhecidos como PLs da Grilagem (PL 2633/2020 e 510/2021). Atualmente em discussão no Senado, os projetos facilitam a legalização de terras da União que foram apropriadas ilegalmente.

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De acordo com análise do Greenpeace sobre a taxa de desmatamento na Amazônia para 2021, 30% da área perdida se concentrou nas chamadas Florestas Públicas Não Destinadas. Essas florestas são áreas pertencentes à União ou aos estados, mas que ainda não possuem finalidade específica, diferentemente das unidades de conservação e territórios indígenas.

Além dos casos evidenciados nesse levantamento, uma análise recente do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) identificou que 75% das florestas públicas não destinadas, entre 1997 e 2020, são ocupadas por pastagem, o que indica ocupação ilegal para pecuária. “A redução do desmatamento passa pelo combate à grilagem e passa pelo Congresso rejeitar novas flexibilizações nas leis que incentivem um ciclo contínuo de invasão de terras públicas.”, afirma Cristiane Mazzetti, porta voz do Greenpeace.

Como funciona a grilagem (Arte: Greenpeace Brasil)

A pesquisa

O cruzamento de dados foi feito com base nas 50 maiores áreas de desmatamento na Amazônia entre os meses de agosto de 2020 e julho de 2021. A partir de informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por meio do sistema de alertas Deter, foram levantados dados de cerca de 150 fazendas nos estados do Mato Grosso, Amazonas e Pará.

As três fazendas que acabaram identificadas pelo Greenpeace se localizam em São Félix do Xingu, no Pará. O município possui a maior quantidade de cabeças de gado do país (2,4 milhões), foi o terceiro município que mais desmatou a Amazônia em 2021 e o que mais emitiu gases de efeito estufa em 2018.

Além disso, o município conta com 500 mil hectares de florestas públicas não destinadas. No entanto, 67% dessa área têm registros irregulares de propriedades rurais, por meio de documentos conhecidos como Cadastro Ambiental Rural (CAR). O CAR é um cadastro meramente autodeclaratório para fins de adequação ambiental da propriedade e não tem validade como posse ou propriedade de imóvel rural.

Durante a pesquisa, o Greenpeace também não identificou na Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará nenhum tipo de autorização de desmatamento nas propriedades alvos da investigação. Além disso, todas as áreas não apresentam cadastro no Incra, o que poderia indicar algum processo de titulação de terras.

Envolvimentos

As áreas foram identificadas por meio do Cadastro Ambiental Rural. Uma delas é a Fazenda Bom Jardim. O registro do CAR traz como proprietário João Cleber de Souza Torres, atual prefeito de São Félix do Xingu (MDB). Ele foi candidato a deputado estadual nas eleições de 2018, mas não se elegeu.

A lista de acusações contra João Cleber é longa: ele já foi acusado de liderar uma quadrilha de grilagem na região e de ser mandante de assassinato de trabalhadores rurais. Além disso, de acumular embargos e multas ambientais em seu nome, incluindo uma multa aplicada em 2014 no valor de R$ 6,6 milhões. O agropecuarista também já constou na lista suja do trabalho escravo, em decorrência das péssimas condições de trabalho impostas aos trabalhadores da fazenda Bom Jardim.

Imagem de satélite da Fazenda Bom Jardim

A apuração do Greenpeace mostra que a Fazenda Bom Jardim comercializou gado com a Fazenda Novo Horizonte, que por sua vez vendeu os animais para abate aos frigoríficos Frigol São Félix do Xingu e JBS Tucumã. Também foi comercializado gado com a Fazenda Recanto do Buriti, que vendeu bois para a mesma Frigol de São Félix do Xingu e Frigol Água Azul do Norte. Por último, a Bom Jardim vendeu gado para a Fazenda Ouro Branco, que forneceu animais para a JBS Tucumã e, de novo, a Frigol São Félix do Xingu.

Parte desse rebanho acabou indo para o exterior. Por exemplo, entre março de 2019 e julho de 2021, a Frigol São Félix do Xingu exportou para o Egito, Geórgia, Hong Kong, Israel, Jordânia, Arábia Saudita e Emirados Árabes.

Para detalhes relacionados às datas das transações e quantidades exportadas, acesse o relatório na íntegra

O Cupim

A segunda fazenda sob análise pelo Greenpeace foi a Flor da Mata III. Registrada em nome de Edson Coelho dos Santos (conhecido como Cupim), na região conhecida como “complexo Divino Pai Eterno”. A área é palco de um grande conflito agrário marcado por violência e assassinatos, no qual Edson está envolvido. Ele foi preso em 2014 acusado de participação em mortes e ameaças a agricultores.

A lentidão quanto à destinação das terras nessa região levou a conflitos pela posse. De um lado, agricultores familiares pleiteiam as áreas para assentamento. Do outro lado, “fazendeiros” tentaram regularizar as áreas por meio do programa Terra Legal, em que existem evidências de fracionamento das áreas e uso de “laranjas” a fim de obter o título da terra.

Imagem de satélite da Fazenda Flor da Mata

O levantamento do Greenpeace mostra que a fazenda Flor da Mata III comercializou gado diretamente com a JBS de Marabá. E, indiretamente, por meio da Fazenda Nova Conquista, também pertencente a Edson. A apuração mostra que a JBS de Marabá exportou entre julho de 2020 a junho de 2021 para Angola, Aruba, Congo, Costa do Marfim, Egito, Gabão, Gana, Hong Kong, Indonésia, Israel, Jordânia, Kuwait, Libéria, Líbia, Peru, Tunísia, Turquia e Emirados Árabes. Também exportou como produto final, em 2020, couro semi-processado para a Itália para o Gruppo Mastrotto e Conceria Priante (que é do grupo JBS).

Queimada

A terceira fazenda da pesquisa foi a Nossa Senhora Aparecida. A fazenda está registrada no CAR em nome de Antonio Francisco da Silva Filho e está sobreposta à Floresta Pública Não Destinada, sem registro no SIGEF (Sistema de Gestão Fundiária) do Incra.

No caso da fazenda Nossa Senhora Aparecida, o Deter, sistema de alertas do Inpe, registrou 248 hectares com avisos de desmatamento em 2021. A “propriedade” também apresenta embargos e multas ambientais. O cruzamento de informações feita pelo Greenpeace mostra que a fazenda comercializou animais para a Fazenda Santa Izabel I e II. Em sequência, repassou gado para abate ao frigorífico JBS de Tucumã, que por sua vez exportou, entre junho de 2019 até junho de 2021, para Congo, Costa do Marfim, Gabão e Hong Kong.

Imagem de satélite da Fazenda Nossa Senhora Aparecida

Ao não monitorar todos os fornecedores indiretos e a chamada “lavagem de gado” (boi repassado de áreas desmatadas para fazendas regulares), os frigoríficos permitem a contaminação da cadeia de fornecimento com animais que pastaram em áreas irregulares (possivelmente envolvidas com desmatamento, conflitos e grilagem).

Sem monitoramento dos frigoríficos, a pecuária continua alimentando os incêndios, e o desmatamento que consome a região, colocando a Amazônia, seus serviços ambientais e sua biodiversidade em risco.

O que precisa acontecer?

A Amazônia está chegando cada vez mais próxima do seu ponto de não retorno, um ponto muito perigoso para a sociedade brasileira e global. Além de prover uma série de contribuições da natureza para nossas economias e bem-estar humano, a floresta estoca grandes quantidades de carbono e biodiversidade.

De imediato, o Senado Federal deve rejeitar os PLs da Grilagem, que se aprovados incentivarão ainda mais a invasão e o desmatamento de florestas públicas.

A lavagem de gado no Brasil (Arte: Greenpeace Brasil)

“É necessário rever o modelo vigente, visando uma transição para formas de produção que convivam com a floresta e seus povos. Também restabelecer a capacidade de coibir e punir o crime ambiental, e de destinar áreas para conservação e uso sustentável, reconhecendo os direitos à terra de povos e comunidades tradicionais, povos indígenas e agricultores familiares. Além disso, é fundamental que os frigoríficos cumpram seus compromissos firmados anteriormente e avancem na rastreabilidade total da cadeia, incluindo o monitoramento de todos os fornecedores indiretos. A rastreabilidade deve ser feita por meio de um sistema público e acessível de maneira a permitir que os consumidores saibam de onde vem a carne que compram. “, afirma Cristiane Mazzetti.

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O mercado internacional – incluindo empresas, instituições financeiras e governos –, também não pode ser cúmplice da destruição dos ecossistemas e muito menos de violação de direitos humanos. A falta de ações concretas e efetivas desses atores perpetuam o desmatamento, que resulta em mais emissões e colapso da biodiversidade.

Bruno Kelly/Amazonia Real
Sobrevoo flagra área de fazenda desmatada na Amazônia para criação de pastagens ilegais: “carne lavada” para um mercado que só quer consumir, de um lado, e lucrar, de outro (Foto: CC-BY-2.0/Bruno Kelly/Amazônia Real)/

Edição RBA: Fábio M Michel

blue compass

Este texto foi inicialmente publicado pela Rede Brasil Atual [Aqui!].

Brasil: gado bovino criado ilegalmente na Amazônia é encontrado na cadeia de fornecimento da JBS, líder do setor de carne bovina

  • Dados do governo indicam forte aumento da pecuária bovina comercial ilegal em áreas protegidas da Amazônia brasileira
  • • Pecuária comercial ilegal impulsiona apropriações de terras, violência e ameaças contra povos indígenas e moradores tradicionais de reservas extrativistas
  • • JBS é instada a implementar sistema de monitoramento efetivo até o final de 2020

capa-do-relatorio-substituirCriação de gado em propriedade rural dentro da Reserva Rio Ouro Preto em Rondônia – Julho 2019

Gado bovino criado ilegalmente em áreas protegidas da floresta amazônica brasileira entrou na cadeia de fornecimento da maior produtora de carne bovina do mundo, a JBS, disse a Anistia Internacional hoje em relatório de 72 páginas, Da Floresta à Fazenda .

relatório anistia

Ao não monitorar efetivamente a entrada de gado bovino em sua cadeia indireta de fornecimento, a JBS falha na adoção de um processo adequado de devida diligência como estabelecido nos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos . De acordo com os Princípios Orientadores da ONU, a JBS contribui para abusos de direitos humanos dos povos indígenas e comunidades tradicionais residentes em reservas extrativistas ao participar nos incentivos econômicos para o gado bovino criado ilegalmente em áreas protegidas, afirma a Anistia Internacional.

“Desde pelo menos 2009 a JBS tem conhecimento dos riscos de gado bovino criado ilegalmente em áreas protegidas entrar em sua cadeia de fornecimento”, disse Richard Pearshouse, diretor de Crises e Meio Ambiente da Anistia Internacional.

“A JBS deixou de implementar um sistema de monitoramento efetivo em sua cadeia de fornecimento, inclusive de seus fornecedores indiretos. Ela precisa reparar os danos causados e imediatamente implementar sistemas para evitar que isso volte a ocorrer”.

Ainda que a Anistia Internacional não tenha encontrado evidências de envolvimento direto da JBS em abusos de direitos humanos nos três locais investigados, pôde constatar que gado bovino criado ilegalmente em áreas protegidas ingressou na cadeia de fornecimento da empresa. A organização exorta a JBS a adotar medidas até o final de 2020 para reparar essa situação.

Maior exportadora mundial de carne bovina

O Brasil tem cerca de 214 milhões de bovinos, mais que qualquer outro país. Sua indústria de carne bovina movimenta R﹩ 618 bilhões (US﹩ 124 bilhões), sendo responsável por 8% do PIB nacional .

Cerca de três quartos da carne bovina brasileira é consumida no país, mas o quarto remanescente entra na cadeia de fornecimento global em quantidades suficientes para fazer do país o maior exportador mundial de carne bovina. Os principais destinos da carne brasileira incluem China, Hong Kong, Egito, Chile, União Europeia, Emirados Árabes Unidos e Rússia.

A região amazônica vem assistindo a maior expansão da indústria brasileira da pecuária bovina. Desde 1988 o número de bovinos na região quase quadruplicou, chegando a 86 milhões em 2018 – 40% do total nacional. Parte dessa expansão vem destruindo grandes áreas de floresta protegida situada em terras indígenas e reservas extrativistas.

Ao todo, 63% da área desmatada entre 1988 e 2014 virou pastagem para gado bovino – uma superfície cinco vezes a de Portugal. A Anistia Internacional documentou esse processo com detalhes em um briefing em novembro de 2019.

De acordo com dados governamentais, as terras indígenas na Amazônia perderam 497km² de floresta entre agosto de 2018 e julho de 2019 – um aumento de 91% em relação ao período anterior.

Abusos de direitos humanos em três áreas protegidas

A Anistia Internacional visitou três locais em sua investigação: a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau e as reservas extrativistas Rio Jacy-Paraná e Rio Ouro Preto, todas no estado de Rondônia.

A organização não encontrou qualquer evidência que indicasse envolvimento direto da JBS em abusos de direitos humanos nos três locais investigados.

Contudo, em todas as três áreas, recentes apropriações ilegais de terras levaram a uma perda de terras tradicionais, protegidas pela legislação brasileira. Os direitos dos povos indígenas às suas terras são protegidos sob o direito internacional dos direitos humanos. A pecuária bovina comercial é proibida por lei nos três locais.

Ameaças, intimidações e violência frequentemente acompanham essas apropriações ilegais de terras, que ocorrem em um contexto mais amplo de violência no campo. Segundo uma estimativa, em 2019 houve sete assassinatos, sete tentativas de assassinato e 27 ameaças de morte contra indígenas na região amazônica brasileira.

Em dezembro de 2019, alguns indígenas Ueu-Eu-Wau-Wau, enquanto patrulhavam seu território, encontraram uma área de cerca de 200 hectares desmatada e queimada recentemente. Araruna, um Uru-Eu-Wau-Wau de cerca de 20 anos, disse à Anistia Internacional:

“Nos últimos meses estamos preocupados com as invasões que vêm aumentando cada vez mais e chegando mais perto das aldeias. Vimos uma grande derrubada, imensa, recente. Vimos um helicóptero semeando capim para que eles possam colocar gado futuramente”.

Em janeiro de 2019, outro grupo de Uru-Eu-Wau-Wau se deparou com cerca de 40 invasores armados, provavelmente grileiros, na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, a apenas dois quilômetros de uma aldeia indígena. Outros descreveram anteriormente que ouviram tiros durante a noite ou que receberam ameaças de morte às suas crianças.

Em outros lugares, comunidades inteiras foram expulsas da terra e temem a morte, caso voltem. A maioria dos moradores da Reserva Extrativista do Rio Jacy-Paraná foi expulsa nas duas últimas décadas para dar lugar a fazendas de gado bovino. Segundo uma antiga moradora, restam apenas três pessoas entre as cerca de 60 famílias que antes habitavam a reserva.

“Virou tudo fazenda”, contou Sara, antiga moradora da reserva que foi expulsa de sua terra em 2017, à Anistia Internacional.

Imagens de satélite analisadas pela Anistia Internacional corroboram os depoimentos dos antigos moradores: gado bovino e bebedouros de água agora são visíveis em terras que antes estavam cobertas por florestas.

Os dados não mentem

A lei brasileira exige que agências estaduais coletem dados detalhados sobre a pecuária bovina. Esses dados incluem informações sobre a localização das fazendas de gado bovino, inclusive das que se situam em áreas protegidas; o número, faixa etária e sexo dos bovinos do rebanho, e as movimentações de animais entre fazendas. Apesar desses dados serem de interesse público, eles não estão atualmente disponíveis ao público.

A Anistia Internacional registrou junto à IDARON, a agência de defesa sanitária animal de Rondônia, sete pedidos de informação com base na Lei de Acesso à Informação.

Os dados fornecidos pela IDARON indicam uma expansão forte da pecuária bovina comercial em áreas protegidas em que a atividade é ilegal. Entre novembro de 2018 e abril de 2020, o número de bovinos subiu 22%, de 125.560 para 153.566 animais.

Dados da IDARON também mostram que ao longo de 2019 foram transferidos 89.406 bovinos de fazendas situadas em áreas protegidas em que a pecuária bovina comercial é ilegal. A grande maioria desses animais é enviada para outras fazendas antes de ir para o abate. Isso significa que mesmo o gado bovino de fazendas em situação legal pode ter sido criado anteriormente de modo ilegal em áreas protegidas.

A Anistia Internacional considera que agências estaduais de defesa sanitária animal como a IDARON efetivamente facilitam a pecuária bovina comercial ilegal. Elas facilitam ao registrar fazendas comerciais de gado bovino e emitir documentos para movimentações de gado bovino apesar das fazendas estarem situadas em uma reserva extrativista ou terra indígena.

“Os dados que acessamos e analisamos – fornecidos pelos próprios órgãos governamentais – fazem soar o alarme”, disse Richard Pearshouse “Essa informação não deve ficar escondida do olhar público”.

“Como acabar com a criação ilegal de gado bovino na Amazônia brasileira? Um bom ponto de partida seria parar oficialmente de registrar fazendas comerciais em áreas protegidas e parar de emitir guias de trânsito para o gado bovino oriundo dessas fazendas”.

A cadeia de fornecimento contaminada da JBS

O gado bovino brasileiro frequentemente é transferido entre diferentes fazendas. As fazendas que vendem gado aos frigoríficos são chamadas de fornecedores diretos, e outras fazendas em que o gado pastou antes disso são conhecidas como fornecedores indiretos. Pesquisadores estimam que até 91%-95% das fazendas compram gado de fornecedores indiretos.

A Anistia Internacional, em colaboração com a ONG Repórter Brasil, analisou documentos oficiais de controle de saúde animal que revelam que a JBS comprou gado bovino diretamente de uma fazenda situada na Reserva Extrativista do Rio Ouro Preto em duas ocasiões em 2019.

Além disso, em 2019 a JBS comprou gado bovino várias vezes de dois fazendeiros que operam tanto fazendas ilegais em áreas protegidas, quanto fazendas legais fora dessas áreas. Um dos fazendeiros cria gado ilegalmente na Reserva Extrativista do Rio Jacy-Paraná e o outro na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau.

Em ambos os casos, os fazendeiros registraram movimentações de gado bovino de uma fazenda no interior de uma das áreas protegidas para uma fazenda fora da área protegida e, em seguida, registraram movimentações separadas de gado bovino da fazenda legal para a JBS.

Em duas ocasiões, a segunda movimentação foi registrada apenas minutos após a primeira. As duas movimentações envolveram um número idêntico de animais, da mesma faixa etária e do mesmo sexo. Os animais tinham mais de 36 meses de idade, uma faixa etária comum do gado bovino que é levado para o abate. De acordo com especialistas entrevistados pela Anistia Internacional, isso pode ser indício da prática de lavagem de gado.

A lavagem de gado – transferir gado entre fazendas intermediárias para dar uma aparência de legalidade aos animais – burla os sistemas de monitoramento existentes.

A Anistia Internacional buscou informações específicas da JBS para saber se em 2019 a empresa processou animais vindos de fazendas situadas nas três áreas protegidas. A empresa respondeu: “Não compramos gado bovino de qualquer fazenda envolvida na pecuária ilegal em áreas protegidas” e disse ainda que a empresa adota uma “abordagem inequívoca de desmatamento zero em toda sua cadeia de fornecimento”.

Ela também afirmou: “A JBS monitora de perto seus fornecedores para verificar o cumprimento de todos os aspectos de nossa Política de Compra Responsável e não identificou previamente quaisquer problemas relacionados a abusos de direitos humanos de comunidades indígenas ou outros grupos protegidos”.

A JBS não respondeu a uma pergunta sobre o monitoramento de seus fornecedores indiretos, destacando em lugar disso que “a rastreabilidade de toda a cadeia de fornecimento é um desafio de toda a indústria e uma tarefa complexa”.

A JBS tem conhecimento dos riscos de que gado bovino ilegal entre em sua cadeia de fornecimento – em 2009 a empresa assinou dois acordos contra o desmatamento com o Ministério Público Federal e, em separado, com o Greenpeace –, mas tomou medidas insuficientes para resolver o problema. Auditorias externas observaram que a JBS não monitora seus fornecedores indiretos.

A Anistia Internacional exorta a JBS a adotar prontamente um sistema de monitoramento efetivo, inclusive de seus fornecedores indiretos, e a garantir que gado bovino criado ilegalmente em áreas protegidas durante alguma etapa de sua vida não entre na cadeia de fornecimento da empresa. No mais tardar, esse sistema deve ser implementado até o final de 2020.

Um procurador federal no Pará concluiu em 2019 que: “Hoje nenhuma empresa que compra da Amazônia pode afirmar que não tem gado de desmatamento em sua atividade produtiva (…) Nenhuma empresa frigorífica e nenhum supermercado também”.

“Com o desmatamento na Amazônia no nível mais alto em uma década, cabe agora à JBS e outros frigoríficos no Brasil adotar processos de diligência devida para garantir que seus fornecedores diretos e indiretos não estejam contribuindo para abusos de direitos humanos contra povos indígenas e moradores tradicionais da Amazônia”, disse Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil.