
Por Luciane Soares da Silva
No dia 10 de março de 2024 retornei à Novo Horizonte[1] para concluir um trabalho iniciado em abril de 2021. Não foram poucas as vezes em que voltei de lá, e demorei muito tempo para organizar as ideais após vivenciar experiências diversas naquele território com aproximadamente duas mil pessoas, sendo metade delas, crianças. O mundo que víamos em abril de 2021, era incerto em muitas dimensões. Política, com a eleição de Jair Bolsonaro, enfrentávamos uma epidemia e a verdade é que quando vi mais de 500 pessoas em situação de vulnerabilidade precisando urgentemente de ajuda[2], não imaginava a jornada a enfrentar. Foram muitas as pessoas, os coletivos, os movimentos e os partidos que ali atuaram[3]e sem dúvida, ao longo do tempo constituíram o alicerce para estruturação da Ocupação[4]. Buscando contatos parlamentares e sua vinda ao território, com escuta direta, na organização de Assembleias, na pressão sobre a Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes (PMCG), na atuação jurídica que nos possibilitou o não despejo durante a pandemia. Foram centenas de reuniões, em igrejas, na rua, virtuais, em horários distintos e meu trabalho com ambos os grupos (a sociedade organizada e os ocupantes) foi colaborar na construção de um conhecimento sobre estas famílias.
Na madrugada de maio de 2021 mais de dez pessoas alimentavam um banco de dados que permanece como um dos melhores levantamentos feitos até hoje e reconhecido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro. Ali tínhamos um perfil completo de uma ocupação de mulheres, chefes de família, negras, vivendo de benefícios do governo federal. Quem falhou na entrega das casas não pode culpar pessoas que pagam aluguel por terem ocupado este território. Elas aguardaram a casa como aguardam médicos, justiça, emprego. Elas simplesmente desistiram de esperar. Nada é mais equivocado que chamar trabalhadores em busca de moradia de invasores.
Ao contrário do que dizem agentes da Caixa Econômica Federal, eles não são invasores. Não se pode invadir o que é seu por direito. E a moradia é um direito[5]. Se há algo errado neste processo todo é a morosidade com a qual as instituições atuam quando se trata de direito para a classe trabalhadora. E neste caso, estamos falando de gênero. Das quarenta casas que visitei esta semana, apenas duas tinham homens como chefes de família dispostos a responder o questionário. Temos de fazer políticas públicas com as mulheres. Inclusive na proposição de autoconstrução. A precariedade não está na distância geográfica mas na construção de conjuntos habitacionais sem escola, sem posto de saúde, sem coleta de lixo, sem transporte, sem praça. Quem viu as primeiras cercas de arame farpado que nos machucavam ao tentar cruzar os espaços sabe o que aquele lugar lembrava. E era horrível ver uma população inteira segregada dentro de uma cidade com esta extensão territorial.
O projeto no qual atuo hoje[6] e com o qual aprendo diariamente junto ao Instituto Federal Fluminense vai além do morar. Estamos avançando globalmente para a necessidade de repensar as cidades possíveis diante da mudança climática. Ontem, enquanto terminávamos uma pesquisa estratificada com esta população sentíamos o calor do asfalto e víamos as soluções dadas pela população. Existem problemas de abastecimento de água. Crianças em piscinas de plásticos e muito, muito asfalto. Longe víamos árvores nativas e frondosas. Por que a opção da cidade pelo não cultivo de árvores em locais extremamente quentes? Lugares sem CEP como dizemos. Sim, cartas não chegam em alguns destes conjuntos. Que cidadania mínima é esta?
Desde o início a posição da PMCG foi virar as costas para uma população negra, ocupando uma área distante, perto do Aeroporto. Sem transporte na localidade, sem coleta de lixo ou creche. A má fé institucional está posta na falta de qualidade dos atendimentos básicos. Fazemos frequentemente o exercício de especular as razões que tornam nossa cidade tão precarizada em quesitos básicos de um marco civilizatório. Ontem ouvi histórias sobre pessoas aguardando cirurgia, mães que precisam de diagnóstico para encaminhamento de saúde para seus filhos, pessoas que sofrem de depressão. E nenhuma árvore sequer. Uma quadra que não se pode usar antes do anoitecer, urubus no lixo e o pior, um erro estrutural no sistema de esgoto que está jorrando em algumas ruas. O cheiro é insuportável. Nestas ruas, o cenário é desolador.
Casas terminadas com base em auto construção. Em agosto de 2021 solicitamos que o então secretário de infraestrutura e obras do Estado, Max Lemos[7] (atualmente deputado federal) viesse ao local e atualizasse o cadastro incompleto da Prefeitura. Não é aceitável que se ofereça colchonetes (proposta da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social ) ou que se pense em retirar estas pessoas de suas casas neste momento. Lá se foram três anos. Elas usaram o pouco de dinheiro que tinham para conseguir o mínimo de conforto e viver ali. Quadros na parede, folhagens, alguns comércios, carros antigos para suprir a ausência de transporte, mundos construídos ao longo de 3 anos. E eles importam. Esta é a questão para além do voto. Cada ano vivido importa, desde nossa comemoração na qual os bebês puderam ver sua própria foto projetada na parede das casas.
A Novo Horizonte tem sido o mais rico laboratório de pesquisa e ação sobre políticas públicas. É possível questionar as construtoras com o esgoto voltando por dentro das casas, pensar como os aventureiros atuam pedindo voto e prometem o que não podem dar a população, pensar como as relações de violência estão postas no local por atuação de grupos paralelos, pensar as formas de cozinha comunitária, hortas, bibliotecas e praças. A Novo Horizonte é uma ocupação de pessoas negras, vivendo em condições precárias bem longe dos olhos da população do lado de cá da ponte. Em Guarus. E durante todos estes anos, sempre grifei a palavra resistência em meus textos. Talvez porque fosse preciso chegar até março de 2024 para ter algum ceticismo e fazer avançar o que é necessário. A moradia, o bairro, a cidade, a dignidade de uma vida marcada pelo passado da usina.
A Novo Horizonte produziu um tipo de revolução político-científica em meu fazer sociológico. E muitas pessoas fazem parte deste caminho. Ontem, após o desalento de sentir o calor que aquela população sentia, era inevitável não sentir a raiva histórica do que aquele lugar representa. Então lembrei de uma Assembleia na qual por obra da necessária produção de engajamento, disse que só sairia de lá quando a casa estivesse assegurada para todos os moradores. Hoje avalio que a promessa tem de avançar. E que todos os estudantes de Universidades Públicas devem ir a locais como esta ocupação e pensar que a ciência pode criar mundos.
Nós criamos algo que poderia ter sido destroçado se os moradores aceitassem o aluguel social. Ao compreender em cada reunião, em cada consulta realizada que este tipo de benefício não resolveria o acesso a moradia, conseguiram manter-se na maior ocupação fora da região metropolitana do Rio de Janeiro. E uma das mais duradouras. Se isto foi possível, a moradia digna vai além uma casa padrão para depósito de pessoas. Tiramos as grades, os seguranças não ocupam mais os espaços, as pessoas criaram seus filhos. É possível que este seja um caso raro mais absolutamente didático de que podemos avançar nas principais pautas de uma cidade tão rica mas que utiliza bolsões de miséria como bolsões eleitorais.
[1] Sobre o início da Novo Horizonte https://www.brasildefatorj.com.br/2021/06/25/artigo-ocupacao-novo-horizonte-ha-64-dias-vida-resiste-persiste-e-se-reinventa
[2] https://www.brasildefatorj.com.br/2021/05/31/reintegracao-de-posse-pode-desabrigar-quase-700-familias-de-ocupacao-em-campos-rj
[3] https://aduenf.org.br/carta-aberta-dos-movimentos-sociais-sobre-a-situacao-da-ocupacao-novo-horizonte/
[4] https://capitalfmradio.com.br/2023/10/17/futuro-da-ocupacao-novo-horizonte-sera-definido-em-audiencia-na-justica-federal-em-campos/18619/
[5] https://j3news.com/2021/04/21/video-moradores-ocupam-casas-do-conjunto-habitacional-novo-horizonte-ha-temor-por-possivel-confronto/
[6] https://portal1.iff.edu.br/nossos-campi/campos-centro/noticias/professores-e-estudantes-da-arquitetura-apresentam-solucao-tecnica-para-resolver-impasse-em-ocupacao
[7] https://www.osaogoncalo.com.br/politica/111193/secretario-estadual-de-infraestrutura-recebe-deputada-zeidan-e-representantes-de-ocupacao