A luta por moradia digna: uma homenagem ao professor Antonio Godoy

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Antonio Godoy deixa um legado de excelência acadêmica e de compromisso com a construção de uma cidade mais justa, mas saudável e menos desigual

Por Luciane Soares da Silva

No ano de 2021 tive a oportunidade de unir forças com o Instituto Federal Fluminense no edital de seleção pública de projetos de apoio à assistência técnica em habitação de interesse social (ATHIS)  para patrocínio pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo  (CAU/RJ) Demetre Anastassakis. Fomos contemplados com o primeiro e segundo lugares e iniciamos a construção de instrumentos que possibilitassem a compreensão da urgência de acesso a moradia. O território escolhido foi a  Ocupação Novo Horizonte. Perto do Aeroporto de Campos dos Goytacazes este território continha à época aproximadamente 700 famílias. Sem luz, água e vivendo em condições de grande vulnerabilidade, abrigava principalmente mulheres e crianças. Desde então me aproximei do curso de Arquitetura e Urbanismo, seus professores, alunos e seu coordenador, o professor Antonio Godoy.

Nestes anos nossa cooperação se estreitou na troca de aprendizados, bancas, produção de artigos, trabalho de campo e envolvimento direto na divulgação de ATHIS, compreendendo a moradia como um processo muito mais amplo do que acesso à casa. As situações de vulnerabilidade urbana em Campos têm sido objeto de pesquisa ao mesmo tempo em que uma equipe multidisciplinar atua em áreas como a Chatuba, Margem da Linha e Novo Horizonte.

Antonio esteve presente na articulação de todas estas frentes, na relação com a Universidade Federal Fluminense e com a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Como professor, pesquisador e orientador entusiasmado, experiente, engajado, era especialmente cativante sua generosidade em compartilhar a vida como aposta de trabalho. Árduo. A rede construída a partir destas colaborações, frutifica não apenas na produção de conhecimento mas na possibilidade de impactar diretamente as políticas públicas municipais.

Em 2021, defendeu a tese “O resultado da aplicação dos royalties do petróleo na intensificação da segregação espacial e nas transformações de Campos dos Goytacazes/RJ (1997-2020)” no Programa de Pós Graduação em Arquitetura, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ao tratar da expansão urbana da cidade de Campos, abordou os conflitos que geram a cidade que conhecemos hoje. A valorização do solo, o crescimento da especulação imobiliária, a forma desigual da distribuição da produção habitacional. Godoy problematizou em sua tese a construção de conjuntos habitacionais em áreas periféricas, com  “menor oferta de equipamentos e serviços públicos”.

Recentemente estivemos juntos construindo coletivamente propostas que coloquem a assistência técnica em habitação de interesse social no centro de uma política municipal de governo para Campos. A possibilidade de “ouvir a sociedade” o motivava. E deve seguir motivando alunos, pesquisadores e toda população interessada em construir uma cidade mais justa, mas saudável e menos desigual.

Seu legado como professor e pesquisador seguirá conosco.

Ocupação Novo Horizonte: Contra a má fé institucional, a luta pela moradia digna

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Por Luciane Soares da Silva

No dia 10 de março de 2024 retornei à Novo Horizonte[1] para concluir um trabalho iniciado em abril de 2021. Não foram poucas as vezes em que voltei de lá, e demorei muito tempo para organizar as ideais após vivenciar experiências diversas naquele território com aproximadamente duas mil pessoas, sendo metade delas, crianças. O mundo que víamos em abril de 2021, era incerto em muitas dimensões. Política, com a eleição de Jair Bolsonaro, enfrentávamos uma epidemia e a verdade é que quando vi mais de 500 pessoas em situação de vulnerabilidade precisando urgentemente de ajuda[2], não imaginava a jornada a enfrentar. Foram muitas as pessoas, os coletivos, os movimentos e os partidos que ali atuaram[3]e sem dúvida, ao longo do tempo constituíram o alicerce para estruturação da Ocupação[4]. Buscando contatos parlamentares e sua vinda ao território, com escuta direta, na organização de Assembleias, na pressão sobre a Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes (PMCG), na atuação jurídica que nos possibilitou o não despejo durante a pandemia. Foram centenas de reuniões, em igrejas, na rua, virtuais, em horários distintos e meu trabalho com ambos os grupos (a sociedade organizada e os ocupantes) foi colaborar na construção de um conhecimento sobre estas famílias.

Na madrugada de maio de 2021 mais de dez pessoas alimentavam um banco de dados que permanece como um dos melhores levantamentos feitos até hoje e reconhecido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro. Ali tínhamos um perfil completo de uma ocupação de mulheres, chefes de família, negras, vivendo de benefícios do governo federal. Quem falhou na entrega das casas não pode culpar pessoas que pagam aluguel por terem ocupado este território. Elas aguardaram a casa como aguardam médicos, justiça, emprego. Elas simplesmente desistiram de esperar. Nada é mais equivocado que chamar trabalhadores em busca de moradia de invasores.

Ao contrário do que dizem agentes da Caixa Econômica Federal, eles não são invasores. Não se pode invadir o que é seu por direito. E a moradia é um direito[5]. Se há algo errado neste processo todo é a morosidade com a qual as instituições atuam quando se trata de direito para a classe trabalhadora. E neste caso, estamos falando de gênero. Das quarenta casas que visitei esta semana, apenas duas tinham homens como chefes de família dispostos a responder o questionário. Temos de fazer políticas públicas com as mulheres. Inclusive na proposição de autoconstrução. A precariedade não está na distância geográfica mas na construção de conjuntos habitacionais sem escola, sem posto de saúde, sem coleta de lixo, sem transporte, sem praça. Quem viu as primeiras cercas de arame farpado que nos machucavam ao tentar cruzar os espaços sabe o que aquele lugar lembrava. E era horrível ver uma população inteira segregada dentro de uma cidade com esta extensão territorial.

O projeto no qual atuo hoje[6] e com o qual aprendo diariamente junto ao Instituto Federal Fluminense vai além do morar. Estamos avançando globalmente para a necessidade de repensar as cidades possíveis diante da mudança climática. Ontem, enquanto terminávamos uma pesquisa estratificada com esta população sentíamos o calor do asfalto e víamos as soluções dadas pela população. Existem problemas de abastecimento de água. Crianças em piscinas de plásticos e muito, muito asfalto. Longe víamos árvores nativas e frondosas. Por que a opção da cidade pelo não cultivo de árvores em locais extremamente quentes? Lugares sem CEP como dizemos. Sim, cartas não chegam em alguns destes conjuntos. Que cidadania mínima é esta?

Desde o início a posição da PMCG foi virar as costas para uma população negra, ocupando uma área distante, perto do Aeroporto. Sem transporte na localidade, sem coleta de lixo ou creche. A má fé institucional está posta na falta de qualidade dos atendimentos básicos. Fazemos frequentemente o exercício de especular as razões que tornam nossa cidade tão precarizada em quesitos básicos de um marco civilizatório. Ontem ouvi histórias sobre pessoas aguardando cirurgia, mães que precisam de diagnóstico para encaminhamento de saúde para seus filhos, pessoas que sofrem de depressão. E nenhuma árvore sequer. Uma quadra que não se pode usar antes do anoitecer, urubus no lixo e o pior, um erro estrutural no sistema de esgoto que está jorrando em algumas ruas. O cheiro é insuportável. Nestas ruas, o cenário é desolador.

Casas terminadas com base em auto construção. Em agosto de 2021 solicitamos que o então secretário de infraestrutura e obras do Estado, Max Lemos[7] (atualmente deputado federal) viesse ao local e atualizasse o cadastro incompleto da Prefeitura. Não é aceitável que se ofereça colchonetes (proposta da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social ) ou que se pense em retirar estas pessoas de suas casas neste momento. Lá se foram três anos. Elas usaram o pouco de dinheiro que tinham para conseguir o mínimo de conforto e viver ali. Quadros na parede, folhagens, alguns comércios, carros antigos para suprir a ausência de transporte, mundos construídos ao longo de 3 anos. E eles importam. Esta é a questão para além do voto. Cada ano vivido importa,  desde nossa comemoração na qual os bebês puderam ver sua própria foto projetada na parede das casas.

A Novo Horizonte tem sido o mais rico laboratório de pesquisa e ação sobre políticas públicas. É possível questionar as construtoras com o esgoto voltando por dentro das casas, pensar como os aventureiros atuam pedindo voto e prometem o que não podem dar a população, pensar como as relações de violência estão postas no local por atuação de grupos paralelos, pensar as formas de cozinha comunitária, hortas, bibliotecas e praças. A Novo Horizonte é uma ocupação de pessoas negras, vivendo em condições precárias bem longe dos olhos da população do lado de cá da ponte. Em Guarus. E durante todos estes anos, sempre grifei a palavra resistência em meus textos. Talvez porque fosse preciso chegar até março de 2024 para ter algum ceticismo e fazer avançar o que é necessário. A moradia, o bairro, a cidade, a dignidade de uma vida marcada pelo passado da usina.

A Novo Horizonte produziu um tipo de revolução político-científica em meu fazer sociológico. E muitas pessoas fazem parte deste caminho. Ontem, após o desalento de sentir o calor que aquela população sentia, era inevitável não sentir a raiva histórica do que aquele lugar representa. Então lembrei de uma Assembleia na qual por obra da necessária produção de engajamento, disse que só sairia de lá quando a casa estivesse assegurada para todos os moradores. Hoje avalio que a promessa tem de avançar. E que todos os estudantes de Universidades Públicas devem ir a locais como esta ocupação e pensar que a ciência pode criar mundos.

Nós criamos algo que poderia ter sido destroçado se os moradores aceitassem o aluguel social. Ao compreender em cada reunião, em cada consulta realizada que este tipo de benefício não resolveria o acesso a moradia, conseguiram manter-se na maior ocupação fora da região metropolitana do Rio de Janeiro. E uma das mais duradouras. Se isto foi possível, a moradia digna vai além uma casa padrão para depósito de pessoas. Tiramos as grades, os seguranças não ocupam mais os espaços, as pessoas criaram seus filhos. É possível que este seja um caso raro mais absolutamente didático de que podemos avançar nas principais pautas de uma cidade tão rica mas que utiliza bolsões de miséria como bolsões eleitorais.

[1] Sobre o início da Novo Horizonte https://www.brasildefatorj.com.br/2021/06/25/artigo-ocupacao-novo-horizonte-ha-64-dias-vida-resiste-persiste-e-se-reinventa

[2] https://www.brasildefatorj.com.br/2021/05/31/reintegracao-de-posse-pode-desabrigar-quase-700-familias-de-ocupacao-em-campos-rj

[3] https://aduenf.org.br/carta-aberta-dos-movimentos-sociais-sobre-a-situacao-da-ocupacao-novo-horizonte/

[4] https://capitalfmradio.com.br/2023/10/17/futuro-da-ocupacao-novo-horizonte-sera-definido-em-audiencia-na-justica-federal-em-campos/18619/

[5] https://j3news.com/2021/04/21/video-moradores-ocupam-casas-do-conjunto-habitacional-novo-horizonte-ha-temor-por-possivel-confronto/

[6] https://portal1.iff.edu.br/nossos-campi/campos-centro/noticias/professores-e-estudantes-da-arquitetura-apresentam-solucao-tecnica-para-resolver-impasse-em-ocupacao

[7] https://www.osaogoncalo.com.br/politica/111193/secretario-estadual-de-infraestrutura-recebe-deputada-zeidan-e-representantes-de-ocupacao

Para além da cordialidade política: o desafio para construção da luta por moradia em Campos dos Goytacazes

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Por Luciane Soares da Silva

Observar uma cidade cujo passado escravocrata teria se reproduzido na centralidade das relações familiares no comando da política local, nos possibilita pensar nas formas de mudança social e principalmente, nas formas de mobilidade social em Campos dos Goytacazes. Durante a pandemia, pesquisadores do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito (NUC/UENF), foram até a comunidade da Portelinha para compreender as formas de cuidado no combate a COVID 19. Dois resultados chamam atenção: o número de contaminados naquele momento era baixo, mas o número de pessoas em situação de insegurança alimentar era alto. Nossas entrevistadas, em sua maioria desempregadas naquele momento, eram filhas de empregadas domésticas e netas de lavradoras. Ao longo de um século, estas mulheres não experimentaram nenhuma parte do quinhão prometido pela inclusão, pela universalização do acesso à educação, saúde, renda. E seus filhos seguem no mesmo caminho em uma das cidades que mais se beneficiou dos royalties do petróleo no Brasil. Esta é a mesma realidade de uma localidade na Tapera, construída dentro de um programa da Prefeita Rosinha Garotinho. O Morar Feliz em Ururaí/Tapera pode ser classificado como um gueto urbano. Seus moradores não recebem cartas, todos os serviços públicos são precários, o transporte é irregular, não há posto de saúde e parte de sua população vive com renda advinda de benefícios sociais. A gestão Diniz piorou em muito a vida destas pessoas e alguns trabalhadores voltaram para cana de açúcar. Longe demais dos bairros de classe média, as mulheres sequer ocupam postos no trabalho informal ou de limpeza. A remoção (para alguns, forçada)  destas famílias, significou a perda de renda e de espaço digno para viver.  Onde antes havia quintal, galinhas, árvores, plantas medicinais, hoje existe um muro. 

Mais recentemente, precisamente desde abril de 2021, a construção de luta por moradia na ocupação Novo Horizonte possibilitou a vocalização do problema habitacional em Campos. Temos ocupado com coletivos e quase 2000 pessoas, uma área próxima ao aeroporto de Campos. Durante todo este tempo, o prefeito e seus secretários, optaram por eximir-se das responsabilidades públicas, permitindo que mais de 600 famílias seguissem vivendo sem água, sem luz e em meio a grades que mais lembram um campo de concentração urbano em pleno século XXI. A luta pela manutenção destas famílias tem sido árdua. E feita exclusivamente pela sociedade civil organizada que vem mantendo diariamente esta Ocupação com doações diárias que já ultrapassaram os 40 mil reais. Além disto, é a sociedade civil organizada que tem organizado embates públicos, protestos, pautas na mídia e com isto, forçado o poder público a negociar.

A ida de dois ônibus com moradores da Novo Horizonte para a Câmara de Dirigentes Lojistas de Campos, foi um dos vários capítulos desta luta. Visivelmente o governador Cláudio Castro não queria lidar com as repercussões públicas de um ato desfavorável naquele momento. A celeridade com que recebeu as reivindicações da população comprovou seu medo de que aquela manhã fosse “tumultuada” pelo povo. 

Aberta a mesa de negociação na Secretaria de Obras e Infraestrutura no Rio de Janeiro, assistimos o secretário Max Lemos ligar para o prefeito Wladimir Garotinho no dia 19 de agosto. Naquele telefonema o prefeito demonstrou uma boa vontade inédita e uma reunião ocorreu no dia 22, entre ambos na capital.

A luta pela moradia exigiu (e exige) a superação de muitos desafios. Em primeiro lugar a cidade não conta com um movimento de luta urbana pela moradia. Tudo foi aprendido desde o primeiro dia na base de muita vontade, certo improviso e construção de instrumentos de mapeamento do terreno. Nosso banco de dados é muito superior ao feito pela Prefeitura. É mais completo e reflete o perfil de mulheres negras, mães sem renda, com pouca escolaridade e passado rural. Esta população quer casa e não aluguel social. 

Em segundo lugar, as disputas internas enfraquecem a luta coletiva. É preciso superar certa tendência do culto a personalidade e as relações pessoais. A cordialidade da qual nos fala Sérgio Buarque de Holanda, a doçura das relações próximas, é o avesso da universalização de direitos que faz avançar a luta coletiva. É neste momento que passado e presente entram em choque exigindo novas práticas de construção política. Talvez haja em Campos, como em muitas cidades de porte médio, um domínio das relações de amizade e familiares sobre o que deveria ser impessoal.  Neste momento, estamos assistindo o desfecho da luta da maior ocupação urbana do Rio de Janeiro fora dos centros metropolitanos. 

Quando pensamos a ação dos movimento sociais, coletivos e partidos progressistas dentro da Novo Horizonte, estamos mirando algo muito mais profundo na cidade de Campos. Miramos a potência de organização fora dos moldes já conhecidos de cooptação pelas famílias locais que dominam a política. E devemos colocar na agenda principal da cidade, o acesso à moradia como um direito humano de descendentes dos trabalhadores de usina. É preciso que este objetivo esteja fixado e seja reforçado. Sabemos como intrigas, disputas por terra e trações levaram líderes à morte em um passado recente. Assassinados sem que a justiça seja feita. 

Em memória a lutadores como Cícero Guedes e Regina dos Santos Pinho, devemos evitar qualquer ato que divida a luta. Sabemos como a difamação é arma corriqueira na mão saudosa dos donos do poder. E ainda temos de lidar com a urgência da construção de uma consciência de classe para além do imediatismo. 

Vamos em frente, vida longa à Novo Horizonte !

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 Luciane Soares da Silva é docente do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (Lesce) da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e também participa da diretoria da Associação de Docentes da Uenf (Aduenf).