A estrutura que sustenta os grupos criminosos no Brasil: entre desigualdade, prisões e ausência do Estado social

Falta de políticas sociais, o encarceramento em massa e a atuação fragmentada do Estado criaram as bases para o fortalecimento desses grupos e de economias ilícitas

A origem desses grupos revela como o sistema prisional se tornou terreno fértil para articulações, alianças e redes de poder que hoje atuam em escala nacional e internacional

Por DCI/Unifesp

As organizações criminosas brasileiras se constituíram, ao longo de décadas, como estruturas que atravessam dimensões sociais, econômicas e institucionais. Mais do que grupos que praticam delitos ou disputam territórios, elas surgem e se fortalecem em um contexto marcado por desigualdades históricas, ausência de políticas sociais abrangentes, fortalecimento de economias ilícitas e fragilidades institucionais persistentes. Compreender sua formação, expansão e permanência exige olhar para as condições que produzem vulnerabilidade – entre elas, pobreza, encarceramento e abandono estatal – elementos que, combinados, moldam a complexidade e a capilaridade do crime organizado no país.

Para Joana das Flores Duarte, docente e pesquisadora do Instituto de Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp) – Campus Baixada Santista – que há anos estuda a relação entre sistema prisional, criminalização e fluxos globais no mercado de drogas – ressalta que a compreensão dessas organizações exige reconhecer que sua consolidação deriva de processos históricos que atravessam múltiplas escalas. “As organizações criminosas vão ter formações distintas a partir de contextos globais, regionais e locais. Elas surgem na América do Sul como expressão do capitalismo periférico e dependente. No Brasil, elas se forjam dentro das prisões e se desenvolvem em áreas destituídas de direitos, em territórios marcados pela ausência do Estado social, o que implica em maiores desafios para a efetivação de direitos e acesso às políticas públicas por parte dessa população.”

Esse processo revela que populações submetidas a exclusões estruturais acabam servindo tanto como base de recrutamento quanto como espaço para a atuação cotidiana dessas redes. Nessas localidades, o Estado costuma se fazer presente de maneira fragmentada ou predominantemente repressiva, enquanto os serviços sociais se mostram insuficientes para assegurar direitos.

Da prisão às fronteiras globais

As raízes do crime organizado moderno no país estão diretamente vinculadas ao sistema prisional. O Comando Vermelho (CV) nasceu no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande (Rio de Janeiro), durante a ditadura militar, na década de 1970. Já o Primeiro Comando da Capital (PCC) surgiu em 1993, no presídio de Taubaté (São Paulo), em resposta ao massacre do Carandiru, no qual 111 detentos foram mortos. Embora os dois grupos tenham surgido em presídios, suas trajetórias se diferenciam.

O PCC estruturou-se financeiramente, modernizou sua cadeia de operações e expandiu sua atuação para o exterior. O CV manteve o foco territorial, mais dependente de economias locais, como a cobrança de taxas sobre o comércio e serviços em favelas. “O PCC se tornou uma organização criminosa internacional. Sua estrutura é sofisticada e financeirizada, comparável à de grupos como a máfia italiana ‘Ndrangheta’. Já o  Comando Vermelho, por outro lado, mantém um caráter mais regional, embora atue no mercado de drogas, tem entre suas receitas, o domínio territorial e cobrança de taxas à população, nos últimos anos expandiu seu envolvimento em confrontos regionais, em especial na região norte do país, evidenciando a capilarização desse grupo fora do estado do Rio de Janeiro”, aponta a docente.

A expansão territorial dessas organizações está diretamente relacionada à ocupação de espaços marcados pela falta de políticas públicas e pela ausência de mecanismos de proteção social. “As organizações vão ocupando esse espaço que, a priori, seria um espaço de proteção, de exigibilidade dos direitos humanos. Elas passam a ocupar tanto por uma economia ilícita e informal, mas que gera fonte de renda”, explica a docente. Em regiões vulnerabilizadas, grupos criminosos acabam assumindo funções que deveriam ser desempenhadas pelo Estado.


Grupos atuam em territórios marcados pela ausência de políticas públicas, ampliando controle sobre economias locais e dinâmicas sociais

Essa lacuna permite que economias paralelas se consolidem, empregando jovens e oferecendo oportunidades imediatas de renda em territórios historicamente negligenciados. Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), cerca de 28,5 milhões de brasileiros vivem em áreas com influência direta de facções ou milícias. “Essas práticas geram empregos informais e ilícitos dentro desse grande mercado para jovens em sua maioria negros e pobres e, mais recentemente, para o segmento de mulheres não jovens”, reforça a pesquisadora.

A base social do recrutamento e os impactos do encarceramento

A economia do tráfico, sobretudo no varejo, recruta jovens marcados pela precarização e pela falta de acesso a serviços essenciais. A pesquisa Raio-X da Vida Real, do Data Favela, revela que os envolvidos no varejo de drogas são majoritariamente homens (79%), negros (74%) e jovens entre 13 e 26 anos (50%). Cerca de 42% não concluíram o ensino fundamental.

No âmbito do sistema prisional, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), realizado pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, com dados de janeiro a junho/2025, o Brasil ultrapassa mais de 940 mil pessoas em cumprimento de pena, sendo que um quarto responde por crimes relacionados à Lei de Drogas. Mas a presença feminina também é marcante. O Painel Estatístico do Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões, aplicação desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aponta que, entre as mais de 36 mil mulheres presas no país, cerca de 61% respondem por crimes relacionados ao tráfico de drogas.


Jovens negros, periféricos e sem acesso a direitos continuam sendo os mais impactados por políticas públicas insuficientes e os mais vulneráveis às dinâmicas do tráfico e da violência

O mapeamento desenvolvido pela Diretoria de Inteligência Penitenciária (DIPEN), do Ministério da Justiça, identificou ao menos 88 grupos criminosos com atuação no sistema prisional. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) aponta três grupos com capilaridade nacional: PCC, CV e Terceiro Comando Puro (TCP), e outros 31 considerados com potencial para afetar a segurança de ao menos um estado. Além disso, o documento indica que tanto o PCC como o CV têm intensificado conexões com grupos colombianos no tráfico de drogas, mineração ilegal e contrabando de migrantes. “O PCC está presente em todo o território nacional, inclusive na região Sul e, também, em 28 países. Estamos falando de uma estrutura organizacional que tem o Brasil e outros países como rede de mercado”, ressalta.

Expansão internacional e o papel estratégico da costa brasileira

O Relatório Mundial sobre Drogas 2025, lançado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), aponta que Colômbia, Peru e Bolívia são os maiores produtores de cocaína no mundo.  E justamente a posição geográfica do Brasil, por possuir a maior costa da América do Sul, desempenha papel central no crescimento de redes criminosas, especialmente no mercado global de drogas.

A docente explica que essa condição faz do país um dos principais corredores logísticos para a exportação de cocaína. “Não há, no mundo, nenhuma costa tão extensa e tão próxima aos países produtores como a do Brasil. Isso cria um poder logístico que nenhuma outra nação possui”.

Esta é uma fotografia colorida com foco em um mapa antigo ou estilo vintage, que representa a América do Sul. A atenção está concentrada na área do Brasil. O nome do país está escrito em letras grandes no centro do mapa. O mapa tem uma textura envelhecida ou áspera (como papel papiro ou cortiça), predominando tons de amarelo e ocre na maior parte do território brasileiro. Há um alfinete duplo (ou dois pins) de cor escura (preto ou azul-marinho) fixado sobre o mapa, aproximadamente na região central-oeste do Brasil. Uma linha de barbante ou cordão fino de cor vermelha se estende a partir desse ponto central em duas direções diferentes, sugerindo a marcação de rotas, conexões, ou o mapeamento de um ponto de origem para outros destinos. Partes de países vizinhos são visíveis, como Bolívia e Paraguai ao sul, e os nomes de cidades como Manaus, Belém, Teresina, Goiânia, Brasília e Rio de Janeiro também podem ser lidos. A imagem sugere conceitos como geografia, rotas, planejamento, conexões, logística ou alcance territorial, especialmente no contexto de um país de grandes dimensões como o Brasil.
O Brasil tem um papel estratégico no mercado global de drogas, se tornando um corredor logístico central na exportação de cocaína para a Europa e outros continentes

Relatório da Europol (2024) indica que o Brasil está entre as três principais origens da cocaína apreendida na União Europeia. O Porto de Santos, conforme estimativa do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), concentra cerca de 60% da cocaína pura enviada à Europa. Investigações internacionais demonstram conexões entre o PCC e a máfia italiana ‘Ndrangheta. “A expansão do PCC se deu em articulação com outros grupos criminosos, como cartéis da Colômbia, do México e com a ‘Ndrangheta. Ele cumpre uma função de mediador e interlocutor nesse mercado global”, complementa Duarte.

Essa dinâmica segue lógica semelhante à fusão ou à parceria entre grandes corporações. A docente utiliza, inclusive, o vocabulário do mercado para explicar o fenômeno. “A expansão global implica fusão, parceria, junção de interesses. Grupos distintos se unem para dominar cadeias produtivas, logísticas e rotas de mercado”.

A lógica empresarial e a infiltração na economia formal

O avanço dessas estruturas se assemelha ao funcionamento de grandes corporações. Do “chão de fábrica” – expressão usada para designar trabalhadores do varejo de drogas – às operações financeiras transnacionais, desenvolve-se uma cadeia multifacetada. “Quando uma empresa deixa de ser micro e se torna grande, precisa aprimorar sua cadeia produtiva. O mesmo ocorre com essas organizações: elas passam a exigir outras funções além da base”, explica Duarte.

A lavagem de dinheiro é central nesse processo. O uso de fintechs, criptoativos e empresas de fachada tem se ampliado. “O PCC utiliza métodos semelhantes aos das máfias europeias, como a Kinahan e a ‘NDrangheta’, buscando lavar dinheiro ilícito no mercado lícito, mas também dentro de setores estratégicos da sociedade como serviços, habitação e transporte”, reforça.

O cenário de infiltração do crime na economia formal ganhou destaque em operações recentes. Em agosto de 2025, a Operação Carbono Oculto, deflagrada contra o PCC, desvendou um esquema sofisticado que demonstra a capacidade da organização de blindar seu patrimônio por meio de fundos de investimento e empresas de fachada.

Esta é uma fotografia colorida que retrata o tema de finanças digitais, investimentos ou transações monetárias modernas. Dominando a parte inferior do quadro, há uma pilha de moedas digitais (Bitcoins). As moedas são redondas, de cor dourada brilhante e apresentam o símbolo do Bitcoin (um 'B' com duas linhas verticais). Elas estão dispostas sobre o teclado escuro (preto ou grafite) de um notebook. O fundo é a tela do notebook, que exibe gráficos de negociação (trading charts) e dados de mercado. O fundo da tela é escuro, enquanto as linhas e colunas (velas/candlesticks) são apresentadas em cores contrastantes, tipicamente vermelho e verde, indicando tendências de baixa e alta do mercado, respectivamente. O gráfico inclui linhas de tendência e indicadores que são característicos de plataformas de negociação de ativos digitais ou do mercado de ações. A imagem simboliza a economia digital, a movimentação de capital, o investimento em criptomoedas e, no contexto do tema geral "Organizações Criminosas", pode representar o branqueamento de capitais (lavagem de dinheiro) ou o uso de ativos digitais para transações ilícitas e anônimas.
Operações recentes mostram como organizações criminosas utilizam fundos de investimento, empresas de fachada e setores estratégicos para lavar bilhões em patrimônio 

As investigações apontaram que o grupo movimentou mais de R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024, utilizando pelo menos 40 fundos de investimentos e controlando uma rede de postos de combustíveis nos estados do Norte e Nordeste do Brasil. A fraude ia além da lavagem de dinheiro, incluindo a venda de combustíveis adulterados e a sonegação de milhões em tributos, afetando diretamente a concorrência do mercado lícito.

Um ponto central apontado pela pesquisadora é que organizações criminosas não existem isoladamente. Elas dependem de mercado, do Estado, da economia formal, da política, do sistema financeiro e da tecnologia. Não são fenômenos à margem da sociedade, mas sim profundamente integrados a ela. “Uma organização criminosa não existe sem a estrutura lícita e jurídica do Estado, sem o mercado e sem a economia formal. O tráfico de drogas é um mercado globalizado e financeirizado. Sem regulação econômica e política, ele se fortalece”, afirma Duarte.

Citação: “Uma organização criminosa não existe sem a estrutura lícita e jurídica do Estado, sem o mercado e sem a economia formal. O tráfico de drogas é um mercado globalizado e financeirizado. Sem regulação econômica e política, ele se fortalece” Joana Duarte, professora do ISS/Unifesp

No caso do CV, embora existam fontes adicionais de renda, a infraestrutura financeira permanece mais restrita. “Ele ainda não desenvolveu uma estrutura equiparável à do PCC. Opera no mercado de drogas regional e na cobrança de taxas locais – de gás, segurança, habitação e comércio – cobradas da população em áreas sob seu domínio. Mas cabe atenção ao modo como esse grupo está se organizando na região norte do Brasil”, detalha.

Termos importam: facção, organização e terrorismo

No debate público, expressões como “facção criminosa” e “organização terrorista” são, muitas vezes, usadas de forma indistinta. A docente explica que, tecnicamente e juridicamente, são coisas diferentes, alertando para os riscos da confusão terminológica.

Para Duarte, “a facção tem um papel mais de filial, uma lógica mais local de dominação territorial”, enquanto a organização criminosa é definida por sua capacidade de operar dentro e fora do campo ilícito, utilizando mecanismos formais, corrupção institucional e conexões no sistema financeiro. “A organização criminosa tem uma relação muito direta com o mercado financeiro. Vai usar da estrutura do Estado, da corrupção, de pessoas com formação superior e lobby político.”

Ela é categórica: “Não podemos chamar esses grupos de terroristas. Isso é uma narrativa importada dos Estados Unidos, que tem implicações diplomáticas e pode abrir espaço para intervenções estrangeiras, sobretudo, pela via das sanções.”

Citação: “Não podemos chamar esses grupos de terroristas. Isso é uma narrativa importada dos Estados Unidos, que tem implicações diplomáticas e pode abrir espaço para intervenções estrangeiras, sobretudo, pela via das sanções.” Joana Duarte, professora do ISS/Unifesp

A preocupação da docente  torna-se central diante do Projeto de Lei 1283/2025, que visa equiparar as facções a organizações terroristas, alterando a Lei n° 13.260/2016, também conhecida como Lei Antiterrorismo.

Milícias: crime organizado que emerge dentro do Estado

Além dos grupos criminosos que se originam de contextos vulneráveis e do sistema prisional, a pesquisadora ressalta que as milícias exigem uma leitura específica. “As milícias têm uma formação que a gente pode denominar como paramilitar”, afirma a docente. São compostas por agentes públicos que utilizam conhecimento institucional, acesso privilegiado e aparatos legais para operar no mercado ilícito.

Segundo ela, “são pessoas, a priori, servidores do Estado brasileiro, que vão se beneficiar da estrutura do Estado, da legalidade do Estado, da condição de servidor para ter uma condução ilícita dentro do mercado informal ilícito de drogas.”

Essa dinâmica torna as milícias um fenômeno de difícil enfrentamento. Como sintetiza a docente, “a milícia mostra a capilaridade do Estado no próprio crime organizado”. Embora ligadas historicamente ao Rio de Janeiro, as milícias hoje se expandem para outras regiões do país.

Rio de Janeiro: letalidade policial e disputas territoriais

O Rio de Janeiro concentra, de maneira emblemática, alguns dos principais desafios da segurança pública brasileira. A presença consolidada de facções, a expansão das milícias, as disputas territoriais em áreas urbanas densas e o uso recorrente de operações policiais de alta letalidade compõem um cenário que se perpetua há décadas.

A Operação Contenção, deflagrada pelo governo do Estado do RJ, com cerca de 2.500 agentes, resultou em 121 mortos e dezenas de prisões, sendo considerada a mais letal da história do estado. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ) mostram que 5.421 jovens de até 29 anos foram mortos em intervenções policiais entre 2014 e 2024.

Esta é uma captura de vídeo que retrata uma operação de segurança em uma área urbana densa. O elemento central é um veículo blindado (conhecido popularmente como "Caveirão" em algumas regiões do Brasil) de cor verde escuro ou cinza escuro. O veículo tem um design robusto e é claramente utilizado por forças de segurança ou militares. Ele está se movendo ou parado no meio de uma rua íngreme. A cena se passa em uma rua de comunidade ou favela, caracterizada por: construções simples de múltiplos andares nas laterais da rua; um emaranhado de fiação elétrica e de telecomunicações sobre a rua; há evidências de confronto ou vandalismo, incluindo carros queimados ou destruídos (pelo menos dois visíveis) à direita, próximos a uma lixeira vermelha transbordando de lixo; é possível ver figuras humanas (possivelmente agentes de segurança) mais ao fundo da rua. O ambiente geral é de tensão, confronto e intervenção policial ou militar. A imagem simboliza a ação e o enfrentamento armado das forças de segurança contra grupos criminosos em áreas urbanas, bem como o impacto da violência na vida da comunidade local.
Operações de alta letalidade, presença de facções e expansão das milícias revelam um cenário histórico de conflito, desigualdade e vulnerabilidade no Rio de Janeiro

Segundo a pesquisadora, “o Rio de Janeiro já possui histórico de alta letalidade e intervenções violentas. Essa não é uma prática inédita.” Ela lembra que a cidade já passou por intervenção federal em 2018, quando as Forças Armadas assumiram o comando da segurança. Antes disso, a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), na década de 2000, foi apresentada como uma tentativa inovadora de reorganizar a presença do Estado nas favelas. Entretanto, o programa acabou enfraquecido por falta de continuidade, recursos e direcionamento social. “As UPPs perderam sua característica originária de articulação com políticas públicas. Hoje muitas unidades foram fechadas ou perderam sua função”, analisa.

A docente enfatiza que a dimensão racial é crucial para entender como essas dinâmicas se perpetuam. O perfil das vítimas evidencia um padrão estrutural que atravessa o país. “Quando a gente olha a cor dessas pessoas que são executadas, na maioria elas são pessoas negras. Quando a gente olha a maioria das mulheres que estão enlutadas, elas são negras. Essas mulheres não são vistas enquanto vítimas. Elas são nacionalmente, pelos meios de comunicação, culpabilizadas. Elas são taxadas de mães fracas, de mães que não cuidaram, de mães que não foram responsáveis.”

O impacto dessa violência vai além da perda de filhos, atingindo também o reconhecimento de sua dignidade e de seus direitos básicos. É nesse ponto que a pesquisadora relaciona presente e passado, destacando a necessidade de reparação histórica. “A forma como a gente vai pensar a mudança desse cenário, a longo prazo, passa por reconhecer o direito à maternidade das mulheres negras. O Brasil ainda não tem esse reconhecimento.”

Para ela, esse reconhecimento não se dará apenas pela via simbólica, mas pela construção de políticas sociais consistentes, articuladas e de longo prazo. Duarte destaca que a resposta estrutural ao ciclo de violência envolve fortalecer a seguridade social como base de proteção. “Um outro aspecto importante é o incentivo maior às políticas públicas como dever do Estado e não programa de governo. No Brasil ainda temos esse caráter descontinuado e exposto a todo tipo de ataque, o desfinanciamento é um deles.”

Nesse contexto, o enfrentamento da violência nas favelas exige mais do que ações policiais ou medidas de exceção. Implica reconstruir as condições mínimas de cidadania para populações historicamente vulnerabilizadas e, sobretudo, para as mulheres negras que sustentam o cotidiano desses territórios. Como resume a pesquisadora: “O enfrentamento é com políticas públicas, é com direitos sociais, é com a exigibilidade do direito humano à proteção social dessas famílias, mas é sobretudo um reconhecimento da dívida que a gente ainda tem com o passado em relação ao direito da maternidade das mulheres negras.”

Citação: “O enfrentamento é com políticas públicas, é com direitos sociais, é com a exigibilidade do direito humano à proteção social dessas famílias, mas é sobretudo um reconhecimento da dívida que a gente ainda tem com o passado em relação ao direito da maternidade das mulheres negras.” Joana Duarte, professora do ISS/Unifesp

Políticas públicas, encarceramento e desafios nacionais

O Brasil é o terceiro país que mais encarcera no mundo. A Lei de Drogas continua sendo um dos principais motores desse crescimento. As prisões se concentram majoritariamente em pessoas jovens, negras e de baixa renda, que enfrentam trajetórias marcadas por informalidade e ausência de políticas sociais. Como explica a pesquisadora: “Essas pessoas estão no subsolo da pirâmide do crime. São trabalhadores informais e ilícitos, sem acesso à educação ou a oportunidades de emprego. O aumento do tempo de prisão não resolve o problema; apenas o agrava.”

Esta é uma fotografia colorida com foco em um rolo de arame farpado em espiral (concertina), que serve como barreira de segurança. Dominando o centro da imagem, está o arame farpado em espiral, com seus espinhos pontiagudos claramente visíveis. O arame está no primeiro plano e ligeiramente desfocado, criando um efeito de túnel ou barreira visual que guia o olhar para o fundo. Ele simboliza restrição, segurança extrema, e separação. O arame está instalado sobre ou junto a uma cerca ou grade de metal, que delimita a propriedade. Atrás da cerca, há uma edificação de cor bege ou cinza-claro, que parece ser um armazém, galpão industrial ou instalação militar/prisional, com janelas simples e um telhado inclinado. À esquerda, um poste com fiação e, ao longe, montanhas sob um céu parcialmente nublado, indicando que a área é externa e pode ser rural ou suburbana. A imagem representa segurança perimetral, confinamento, delimitação de território e proteção de instalações, sendo um símbolo de controle de acesso, frequentemente associado a prisões, fronteiras ou áreas de alta segurança.
O encarceramento em massa no Brasil tem recorte: majoritariamente pessoas negras, jovens e pobres

Nos últimos anos, houve avanços na articulação institucional. O Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) foi fortalecido e, operações conjuntas envolvendo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o Banco Central (BC) e a Receita Federal (RF) tiveram aumento expressivo. Em 2024, foram registradas 3.393 operações de combate ao crime organizado, com apreensão de aproximadamente R$ 7 bilhões em bens ilegais.

Para Duarte, essa mudança de postura federal representa um avanço necessário, sobretudo ao deslocar o foco da repressão exclusiva nas periferias para o acompanhamento das redes financeiras que sustentam o crime organizado. “Não se discute segurança pública sem uma centralidade do governo federal e articulação com instituições centrais como: Polícia Federal, Receita Federal, Banco Central, Ministério Público, Coaf. Combater o crime organizado hoje é considerar que há com ele o crime financeiro. Ter maior controle sobre essas agências é primordial.”

No plano legislativo, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 5.582/2025, conhecido como Projeto Antifacção, que propõe ampliar penas e intensificar o combate ao poder econômico de organizações criminosas. A proposta aguarda análise no Senado. Para Duarte, esse caminho não atinge os mecanismos estruturais. “Isso é uma grande contradição, porque essas organizações, os grupos, eles se organizam a partir do cárcere. Então não vai mudar em nada se esse tempo da prisão vai aumentar 5, 10, 15 anos, porque a forma de organização é também muito estruturada e articulada a partir do sistema prisional.”

Ela defende que a reformulação da política de drogas é central nesse processo. “Eu diria que nós teríamos como horizonte de aprendizagem para diminuir a taxa de encarceramento, olhar para uma reformulação da política de drogas e para os processos de descriminalização, regularização e legalização do mercado. Ter o Estado atuando como regulador e, a partir disso, taxando com impostos e fazendo desses impostos uma devolutiva para a sociedade e, sobretudo, repensar o processo de aprisionamento das pessoas na Lei de Drogas.”

Nesse sentido, a consolidação de políticas públicas abrangentes, contínuas e voltadas à redução das desigualdades aparece como condição indispensável para que o país avance na redução da violência, na diminuição do encarceramento e no enfraquecimento das organizações criminosas. Como sintetiza Duarte: “o enfrentamento é com políticas públicas, é com direitos sociais”. É nesse horizonte de proteção e garantia de direitos que se estrutura um projeto possível para transformar os cenários que hoje alimentam a expansão das redes criminosas no país.


Fonte: Unifesp

Agrotóxicos fora da lei: MPSP identifica entrada do PCC no bilionário mercado dos agrotóxicos ilegais

Investigação no interior paulista mostra como a facção atua na falsificação e distribuição de defensivos agrícolas. Impacto financeiro é estimado em R$ 20 bilhões por ano pelo setor

Por Leonardo Zvarick para “CBN”

Foram trocas de mensagens entre membros do PCC que acenderam o alerta no Ministério Público de Franca, no interior de São Paulo, sobre o envolvimento de membros da facção na venda de agrotóxicos ilegais. A região, segundo o promotor de Justiça Adriano Mellega, é o principal polo de falsificação desses produtos no Brasil, com distribuição para todo o território nacional e até para o exterior.

A rede criminosa é composta por ao menos nove núcleos autônomos, especializados, por exemplo, em produzir embalagens, fraudar notas fiscais e negociar os produtos pela internet. Mais de uma década de investigação demonstrou que o mercado atrai desde quadrilhas pequenas a organizações criminosas mais estruturadas – o que faz crescer a preocupação das autoridades.

‘Quando o PCC e outras organizações começam a penetrar na logística e na cadeia lícita por meio de empresas ilícitas, eles não fazem de uma vez. Eles começam a atuar justamente em paralelo, eles começam a fazer uma transição e, quando a gente vê, eles dominaram aquele determinado nicho. Então é uma situação que causa preocupação porque a gente percebe agora esse tipo de atuação integrada em paralelo dessa organização’.

Os laboratórios clandestinos têm características semi-industriais, com esteiras e máquinas para preencher galões em larga escala. Rótulos e selos idênticos aos originais dão aparência de legitimidade aos produtos, que, em geral, são uma mistura química de água, solventes, corantes e uma parte menor de princípios ativos.

Em uma operação recente, os agentes do Ministério Público de Franca encontraram, em uma única instalação, embalagens suficientes para falsificar 155 mil litros de agrotóxicos- o que poderia levar a um prejuízo superior a R$ 30 milhões para o setor formal.

O mercado ilegal representa de 20% a 25% dos agrotóxicos vendidos no Brasil, conforme estimativas da indústria. As principais modalidades são o contrabando, seguido pela falsificação ou adulteração. Fabricados à margem do sistema regulatório brasileiro, esses produtos não têm eficácia e podem prejudicar a plantação.

O gerente de combate a produtos ilegais da CropLife, Nilto Mendes, explica que além dos impactos sociais, ambientais e de saúde, um dos maiores riscos é a perda de credibilidade nas exportações agrícolas.

‘A gente corre riscos, e isso já aconteceu, de sofrer embargos a commodities agrícolas exportadas para o mundo inteiro, se forem identificados contaminantes naquela produção agrícola. Aqui na região do interior de São Paulo, onde se falsifica bastante, tem relato de que há pelo menos 25 contaminantes diferentes naquela mistura química que deveria ser um defensivo agrícola legítimo’.

Diferentes órgãos do governo atuam no combate aos agrotóxicos ilegais, como Ministério da Agricultura, Ibama e Receita Federal. A Polícia Rodoviária Federal também monitora rotas estratégicas para distribuição desses produtos.

De acordo com Thiago de Castro, chefe do setor de enfrentamento aos crimes transfronteiriços da PRF, as fronteiras secas com o Paraguai, Argentina e o Uruguai – onde  agrotóxicos proibidos no Brasil são legalizados – são as principais portas de entrada. O volume de contrabando também tem crescido nos portos, em meio a mercadorias legais vindas da China e Índia.

Recentemente, a PRF observou crescimento nas apreensões em estados do Norte, em especial Pará e Roraima. Para Thiago de Castro, isso pode indicar que os criminosos estão buscando caminhos menos fiscalizados, utilizando inclusive modais alternativos, como rios, e compartilhando rotas utilizadas pelo garimpo e tráfico de drogas. Segundo ele, o transporte tem se tornado mais difícil de rastrear.

‘Quando a gente pega o transporte dessa mercadoria, ele se dá de forma fragmentada, é aquele contrabando formiguinha. Nem sempre vai ser um membro da organização criminosa fazendo o transporte do agrotóxico. Geralmente eles fazem a cooptação de pessoas vulneráveis para que possam levar esse material, seja num veículo, seja no compartimento de carga de um ônibus’.

Tanto o contrabando quanto a falsificação de agrotóxicos afetam toda a cadeia produtiva, gerando um impacto financeiro estimado em R$ 20 bilhões por ano pelo setor.


Fonte: CBN

Massacres em prisões privatizadas. Assim começou 2017 no Brasil

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O Brasil acordou para 2017 olhando para suas entranhas graças ao massacre promovido pela facção “Família do Norte” (FDN) contra seus inimigos do “Primeiro Comando da Capital” no Complexo Prisional Anísio Jobim (COMPAJ) em Manaus. As cenas que emergiram do COMPAJ são provavelmente as mais violentas que o brasileiro já pode assistir nas últimas décadas, pois envolveram não apenas o assassinato de prisioneiros, como o desmembramento dos corpos dos mortos. 

As cenas de horror que emergiram do COMPAJ são pedagógicas em muitos aspectos. A primeira se refere ao fato de podermos ver como são mantidos centenas de milhares de brasileiros que foram isolados da sociedade pelo Estado brasileiro por terem cometido crimes que vão desde o roubo de galinhas até crimes hediodondos.  O segundo ensinamento se refere a vermos de perto como as prisões brasileiros são equiparáveis às masmorras da Idade Média onde os infelizes que ali estão são desprovidos da sua humanidade em nome de uma suposta manutenção da ordem social.

Mas como bem alertaram o psicólogo e perito Lucio Costa e a sociológa e perita Thais Lemos Duarte, esta participante do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), em um artigo de opinião do jornal El País, o massacre do COMPAJ tem uma peculiariedade marcante: este complexo prisional se encontra sob administração privada desde 2014 quando sua administração foi passada para a empresa Umanizzare (Aqui!).

Essa não é uma informação qualquer, pois coloca em xeque duas noções básicas que os ultraneoliberais de plantão sempre gostam de alardear, quais sejam, o barateamento do custo da operação privada de presídios e uma suposta melhora das condições internas dos mesmos. O que já transpirou de informações sobre o massacre do COMPAJ é que não apenas o custo/prisioneiro é ali mais alto do que a média nacional, mas como as condições internas do presídio é que possibilitaram a realização da bárbarie. 

Outro detalhe que já apareceu é da relação direta entre a Umanizzare e o financiamento de campanhas eleitorais, incluindo a do próprio governador do Amazonas, José Melo (PROS) (Aqui!). Não é à toa que José Melo se apressou em declarar  que “não tinha nenhum santo” entre os detentos mortos. “Eram estupradores, matadores e pessoas ligadas a outra facção, que é minoria aqui no estado do Amazonas”. É que ao desumanizar os mortos, o governador amazonense tentou proteger o seu financiador eleitoral.

O problema é que além dessa declaração não explica por que o Estado se omitiu em cuidar da segurança dos seus priosioneiros,  e nem resolve o problema de que entre os mortos havia quem estivesse lá por crimes banais.  

De toda forma, agora que já tivemos a réplica do PCC em Roraima onde membros da FDN foram mortos como vingança ao ocorrido em Manaus, o gênio foi colocado para fora da garrafa e novos massacres dentro das prisões brasileiras estão sendo antecipados  (Aqui!). Enquanto isso, ficamos todos nós postados diante da realidade abjeta que são as condições subumanas que gracejam na maioria das prisões brasileiras. Exigir uma mudança urgente nessa situação é algo que deveria ser feito por todos que desejam que o Brasil não viva eternamente fincado numa estado de completa injustiça social.