O jornal que virou papel para embrulhar peixe

peixe reclamando

Por Douglas Barreto do Mata

Há muitos anos, quando os blogs exerciam mais influência na rede mundial de computadores, denominei um veículo de comunicação campista com essa utilidade citada no título.  Eram tempos de ingenuidade, quando acreditávamos no conto da internet como ferramenta de comunicação livre, e enfim, de exercício de liberdade de expressão e luta política contra o “sistema”. 

Bem, ficou claro que nem a internet era, ou será livre, e nem há possibilidade de liberdade de expressão dentro da institucionalidade capitalista, seja qual for o meio utilizado. Muito menos liberdade de imprensa.  O capitalismo se sustenta, principalmente, pela hegemonia ideológica. Há truques fantásticos, que nos fazem aceitar, e pior, aderir às ideias sem questionamento algum, normalizando absurdos.  As ciências (mormente as sociais e políticas), os entes políticos, o estado, a escola, as religiões, partidos políticos, e a mídia fazem parte dessa estrutura sofisticada e complexa.

Primeira prestidigitação: Capitalismo e Democracia são compatíveis. Já falamos por várias vezes dessa impossibilidade, por isso mesmo, vamos resumir:  Um sistema que se dedica à concentração e desigualdade econômica não pode ter na sua esfera política de controle (super estrutura) uma correspondência democrática.

Não sejamos tolos de imaginar que processos eleitorais sejam sinônimo de Democracia, ou que “o pleno funcionamento do Estado de Direito” também seja.  Qual nada. O Estado de Direito do capitalismo é garantir privilégios às elites e deveres aos pobres.  Esse é o “normal” no capitalismo.

Por outro lado, se concordamos que não há democracia no capitalismo, muito menos haverá liberdade de expressão ou de imprensa.  Pessoas, classes e empresas vocalizam suas demandas sempre filtradas por uma hierarquia (de classes), assim como tais atores são retratados e tratados com essa mesma clivagem, sempre.

Outra sacada genial do capitalismo:  Dizer que a existência de empresas de comunicação em pleno funcionamento, e sem qualquer regulamentação social ou controle social coletivo são sinônimos de plena democracia.

Ora, como empresas que são, os meios de comunicação de massa agem para defesa de interesses (e de seus pares, os ricos), e não em busca de uma verdade factual, ou de ampliar “os horizontes da democracia e dos direitos coletivos e individuais”, como gostam de recitar os empregados e os barões da mídia.

Acidentalmente, a verdade factual pode até servir a tais interesses, geralmente através de distorções e manipulações, usar uma parte desta verdade para legitimar uma mentira inteira.  Na essência, porém, a imprensa empresarial trabalha para dificultar que a maioria explorada se enxergue como tal, e quando há uma fresta de luz nestas trevas, logo é fechada com os poderes constituídos, dentre eles, o principal, o judiciário.

Não haveria problema algum em reconhecer que tais empreendimentos de mídia se inclinam a defender seus interesses de classe.  Isso seria honesto.  Daria a todos nós, os consumidores de conteúdo, a correta visão do que consumimos, fazendo o julgamento necessário. Nem sempre um interesse, como dissemos, invalida uma informação.  Mas não é assim que acontece.  Eles preferem seguir na lenga-lenga da democracia como valor universal. 

Desde que esse “universalismo” seja para garantir seus pontos de vista, como no caso da ferrenha luta pela democracia venezuelana, e a amnésia em relação ao regime saudita, por exemplo, ou para dar tons dramáticos à guerra russo-ucraniana, e banalizar o genocídio israelense.  Capturar os conceitos de liberdade (de imprensa e de expressão) como valores empresariais foi uma ideia brilhante, confesso.

Confesso que a angústia que tenho com o descalabro da internet e das redes sociais é suavizado, um pouco, quando assisto a luta (perdida) e renhida dos meios tradicionais de mídia e as redes sociais.

De tanto manipularem o conceito de liberdade de expressão (e de imprensa), agora são vítimas da “ditadura da liberdade de expressão” das redes, do “totalitarismo democrático” pós-capitalista, que tornou os grandes veículos meros papéis de embrulhar a sobra da feira. Os grupos de mídia aprendem, no leito de morte, que nem todo barulho é democracia, nem toda narrativa é liberdade de expressão, nem toda atividade econômica pode existir sem controle.

Foram engolidos pelo monstro que criaram.  Digo sempre que a luta agora, entre os escombros da mídia e as redes digitais, é pelo controle da mentira. Esse monopólio sempre foi dos grandes grupos nacionais e seus afilhados regionais, como o grupo referenciado nesse texto. Perderam essa batalha.

Se eu fosse sentimental, diria que sinto pena. Não, não sinto.

Mas também não cheguei a festejar, porque o que foi colocado no lugar da mídia corporativa pode ser bem pior. Em Campos dos Goytacazes, aquele que se jactava de ser o mais influente e poderoso grupo de comunicação, que se dizia, e se imaginava ter o poder de “fazer e derrubar reis e rainhas”, de estabelecer o padrão de costumes, na verdade, trejeitos “jecas” e provincianos, com sonhos de cosmopolitismo mal ilustrado e, quase sempre, preconceituoso, agora, se contorce na inutilidade absoluta.

Não imaginem um insucesso financeiro, nada disso. Ninguém vai passar fome. A questão central para um grupo de mídia é monopolizar o verbo, e aí sim, obter a verba, quer dizer, convencer a todos que ganha dinheiro porque detém “a verdade”, ou pior, aquilo que será “a verdade”, justamente, porque eles disseram que é. Esses dias ficaram no passado.

Todos os antigos empregados, com algo entre 2 e 5 neurônios, saíram em busca da autonomia, e arrecadam para si mesmos aquilo que faziam em troca de salários de fome, chantageados pela falta de opção e pelo delírio de “trabalhar em um jornal influente”.

No velho jornal, e na tentativa de versão digital, ficou só o pessoal do “copia e cola” dos “releases” das assessorias dos órgãos oficiais, cujos responsáveis ainda guardam alguma memória afetiva com a redação carcomida pela irrelevância, enquanto colocam recursos grossos nas redes sociais e nas suas próprias estruturas de mídia.  A morte de um jornal se dá pela sua irrelevância.

Vamos esperar a próxima Páscoa, e quem sabe, o jornal vai servir para o comércio de pescados descartar o peixe apodrecido?