
Por Luciane Soares da Silva
Importante esclarecer que não estudo economia, sistemas bancários, transações globais, golpes dados por grandes bancos ou inflação. O que me interessa é o aspecto antropológico da circulação de pessoas, mercadorias e crenças sociais sobre valor. Estudo mudança social e trânsitos. Em alguns momentos podem ser possessões e transes dependendo da ótica adotada.
Minha curiosidade endereçada aos meus alunos, ao mundo universitário, ao sistema político do qual participo e aos meus pares é objetiva mas exige o cruzamento de dois temas que podem frequentemente estar relacionados: a pós verdade e as fake news. Seria possível que pessoas aparentemente comuns, com condições de discernimento e em processo de formação aderissem ativamente a esquemas de pirâmide, golpes afetivos e mentiras capazes de alterar eleições e a vida política de instituições acadêmicas?
Algo que me interessa em pesquisa é “abrir as tripas” de fenômenos largamente comentados, transformados em conceitos e cujas consequências têm implicações concretas na vida de terceiros. Podem levar a demissões, separações, instaurar julgamentos cibernéticos, ameaças físicas e em casos raros, violência física e morte.
Temos visto isto em sites de fofoca, em montagens para redes sociais, denúncias mal apuradas. Estranhamente, não deveria ocorrer, mas vimos isto recentemente em nossa Universidade. E após seis meses, é importante que os registros sejam feitos. Eles não alterarão os resultados mas mostrarão em que poço nos enfiamos nestas últimas décadas. E colocam uma questão importante para os alunos que receberemos em março. Falhamos em mostrar métodos de pesquisa capazes de evitar narrativas inconsistentes e julgamentos apressados? Perdemos para uma rede subterrânea sem face e condenamos pessoas e processos democráticos à mesma lama na qual mergulham milhares de pessoas diariamente ao consumirem fake News? Não há nenhuma instância que proteja minimamente nosso espaço de produção das mesmas regras que regem as ações de mercados que apostam na tragédia como forma lucrativa de atividade? Quem permite que seja assim? Falamos em regulação da mídia. Mas o que fazemos nas instituições de ensino superior? Creio que absolutamente nada.
Não estamos diante de novidade alguma quando tratamos do uso de notícias falsas como instrumento político. Lembremos do objetivo de incriminar a esquerda no caso Rio Centro, da tentativa de ligar Lula ao sequestro de Abílio Diniz nas eleições de 1989. Convivemos com a imprensa marrom e recentemente sabemos do poder global de Steve Banon. Abertamente agindo como uma máquina industrial de mentiras viaja pelo mundo colaborando com golpes brancos. Os sistemas religiosos não poderiam ficar de fora desta nova era. Onde reside a novidade? Creio que talvez na escala e na velocidade e na porosidade com que invadem todos os espaços privados e públicos.
Aqui temos nossa própria contribuição para o mundo das moedas falsas e da pós-verdade. Vamos tratar de um caso real, alterando personagens e mantendo as consequências para todos os envolvidos. A síntese da cena é a seguinte: estamos em um grupo de pessoas tendo uma conversa com universitários. Um dos candidatos ali presente (em um ano de eleição) expressa sua opinião sobre concursos com ações afirmativas. É uma opinião carregada de fatos, avaliações e nenhuma delas determina uma posição desfavorável. Apenas apresenta ponderações importantes para ampliação de um debate. Naquele grupo, um dos seus opositores percebe que aquela opinião pode ser base para um ataque eleitoral. Edita o que ouve, aproveita esta habilidade crescente de selecionar qual parte de uma narrativa interessa e como em um passe de mágica a torna pública em menos de 24 horas. Na mesma noite, fora de qualquer contexto, em 150 palavras de uma rede social, o conteúdo é repercutido sem nomes, com referência a um certo candidato e este incidente recebe mais atenção da comunidade científica que a ausência concreta de política estudantil, banheiros sem funcionamento, crise institucional, problemas para acesso a diplomas. E perde-se a rara oportunidade de construção coletiva.

Nesta eleição alguns descem à um nível de desagregação completa na qual os boatos ganham a centralidade tóxica. Julgamento feito, os ativos do ódio se espalham repudiando as tentativas de diálogo com o argumento de que se tenta “limpar a barra de alguém”. Ou seja, servidores públicos com vinte anos de carreira agora são igualados aos grupos de fofoca do zap. Vejam que temos um terrível cruzamento aí entre má fé, questões cognitivas sobre moral, populismo e eleição. Banon sorri ao olhar para o caso e pensa: “wonderful”. Uma instituição gratuita de estudo. Fica realmente animado com o Rio de Janeiro.
Quando olhamos a situação de fora, pensamos em 1984. Em sistemas distópicos. A crença nas habilidades mágicas de indivíduos dotados do desejo de varrer o passado, varrer os caciques. Uma estranha macheza tão distante dos ideais de nossos eleitores juvenis que apostam em outro perfil. Mas que soltam um cão raivoso para fazer um papel conhecido. Aquele homem cordial que se agarra as grades do salão para que possa beber até cair, admirado por sua simpatia e leveza. Mas que mostra os punhos fechados quase disposto a desferir um soco no adversário quando contrariado. Leve, popular, jovem. E profundamente violento. O vencedor dos tempos atuais. O rei da popularidade. Escolhido a dedo para dar cor a uma campanha cujas propriedades lembram a água. O que dizer? Genial. E claro que temos o coroamento desta união. Quem nunca ousou defender o direito das docentes, acorda com todo o ideário de Simone de Beauvoir na cabeça. Aplausos para uma caixinha de música que repete ad nauseaum o discurso sobre mulheres na ciência aprendido ontem. Comovente, merece mesmo a vitória. Como dizia meu professor de história no segundo ano da faculdade, “ah, ela é tão esforçada”.
O quadro se completa com a crença que aposta em um empreendedorismo grotesco. Quase um quem quer dinheiro no meio do saguão. Assim, explícito, uniformizado, exuberante nas propostas. Trumps brasilis, um novo tipo de liderança que seduz ouvidos pouco comprometidos com Paulo Freire, Darcy Ribeiro ou uma educação transformadora. Tudo é utilizado como bravata mas com uma encenação digna de Oscar. E o sorriso do talentoso Ripley.

Vemos uma turba comemorar a democracia como se assistisse ao fim de Apocalipse Now. E passado o momento de império do ódio, quando todos precisam voltar ao trabalho, percebemos que seguimos sem luz, sem administração, sem sistemas modernos de conexão. Sem saúde mental. Estranhamente não é possível explicar facilmente como ocorrem fenômenos coletivos desta ordem. Alguns falam em ondas. O fato é que seria impossível negar um sentimento comum aos vencedores e perdedores: a frustração e o desânimo.
Podemos pensar na imagem de um balão em noite escura. Seu brilho fustiga os cegos, alimenta os míopes e dá alguma importância aos que podem seguir o balão, até que ele cai no meio do Paraíba e durante o seu resgate, fica tomado de lama. Alguns o abandonam sentindo que foram enganados. Outros se agarram ao resto de brilho, sonhando com cargos de importância. Há os que sempre aceitando pouco, querem manter alguns benefícios, uma viagem, um carro novo. Há mesmo quem se venda por pouco.
Sem conseguir explicar a perda de excelência, vemos avançar a perda de sentido, de discernimento, de vontade, e começam a ocorrer situações próprias de um passeio de trem fantasma. A mudança de escala está completa. As salas são violadas, as violências perpetuadas, as reuniões, mero arremedo democrático. Os alunos antes confiantes, perdem o interesse no voto depositado. E quem desejava o poder abre a mão deixando escorregar pepitas escada abaixo.
Não havia nobreza no ato de quem meses antes acusara um inocente. Só havia ódio ativo, desinformação e interesses inconfessáveis. Canetas em mãos sem coragem podem ser perigosas. Sumiram no anonimato os que ontem faziam a festa da diversidade, baixaram a cabeça os que enviaram as mensagens de ódio. Negaram aqueles que os formaram para aderir aos novos saqueadores. Ninguém mais queria ver-se no espelho. Ah, não existem mais espelhos por aqui. Aliás, parece que teremos apenas sombras até o Carnaval. É certo que teremos o baile de máscaras. Na verdade, já foi bailado.
Se em terra arrasada pode nascer algo, teremos de observar. Por aqui o terreno recente foi arado para plantar um estranho tipo de negacionismo. Aquele que de dentro dos laboratórios nega a própria vocação e vende por pouco o que custou o trabalho duro de gerações.


