Angra III começa em Santa Quitéria

uranio ce

Por Raquel Rigotto(1) 

Alimentar as usinas nucleares, inclusive Angra III, está entre as principais justificativas do projeto de mineração de urânio e fosfato em Santa Quitéria, no sertão do Ceará.

Por detrás das narrativas de atendimento às demandas energéticas com a produção de uma energia supostamente limpa, para atender ao imperativo de resposta ao aquecimento global, estão invisibilizados os graves e duradouros riscos e impactos, locais e remotos, deste projeto.

“Deixe o dragão dormir” é a sábia resposta dos povos indígenas, quilombolas e comunidades de terreiro, de camponeses e de pescadores que habitam tradicionalmente a região ameaçada pela exploração da jazida de Itataia, onde há muito desenvolvem ricos e diversificados modos de vida, em convivência com o semiárido.

O complexo minero-industrial projetado pelas Indústrias Nucleares do Brasil e pela Galvani S.A. propõe a lavra de 118 milhões de toneladas de colofanito (urânio + fosfato), por 20 anos, para a produção de urânio – alimentando a cadeia nuclear, e de compostos fosfatados para ração animal e fertilizantes químicos – fortalecendo o agronegócio produtor de commodities. Para isso demandam 855,2 metros cúbicos de água por hora, o equivalente a 54 caminhões-pipa, enquanto algumas comunidades da região, que há anos reivindicam uma adutora, recebem em torno de 26 a 36 caminhões-pipa por mês. Para além da gritante injustiça hídrica, esse volume de água não está disponível no semiárido, e essa inviabilidade tem sido a principal justificativa do Ibama para negar a licença prévia a este projeto, em tentativas sucessivas do consórcio empreendedor nos últimos 20 anos, e que segue insistindo.

CNDH aponta violação de direitos humanos em Projeto Santa Quitéria, de  exploração de urânio no Ceará | Plataforma de Direitos Humanos - DHESCA  Brasil

Duas pilhas com 83 milhões de toneladas de rejeito radioativo seriam a herança maldita para a região, contaminando o ar, as águas, o solo, a fauna, a flora, trabalhadores e moradores inclusive de regiões remotas, dadas as dinâmicas hidrológicas e de ventos.

Do ponto de vista da saúde humana, são fartas e robustas as evidências científicas nacionais e internacionais tanto sobre os danos do urânio, enquanto metal pesado, como de sua cadeia de decaimento sobre a saúde das pessoas: doenças geniturinárias, respiratórias, abortos e más formações congênitas, e o indiscutível câncer pulmonar, relacionado principalmente ao gás radônio. A isso se soma o comprometimento da soberania e da segurança alimentar e hídrica das populações, seja pela restrição do acesso à água para os sistemas produtivos locais, seja pela contaminação radioativa de cereais, carnes, leite, ovos e da própria água.

O histórico ambiental da INB em Caldas/MG e Caetité/Ba não afiança sua responsabilidade com a natureza humana e não-humana. Como acreditar que os mais de 30 programas de mitigação de riscos constantes no Estudo de Impacto Ambiental serão efetivamente implementados?

A sábia resistência dos povos ameaçados pelo projeto, movimentos sociais e pesquisadoras/es organizados na Articulação Antinuclear do Ceará não tem sido suficiente para barrar a violência do Estado, que tem dado repetidos sinais de que apoia politicamente o projeto de mineração, através de memorandos de entendimentos com os empreendedores, como os assinados pelos dois governos do Ceará; da desconsideração das irregularidades e insuficiências do projeto e, muito especialmente, da desconsideração da obrigação de realizar a Consulta Prévia, Livre e Informada aos povos e comunidades tradicionais afetados, como prevê a legislação vigente, derivada da adesão do Brasil à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

Com todo este lastro de violência, contaminação, adoecimento e destruição, é possível dizer que a energia produzida em Angra III seria limpa??


(1) Médica, Professora Titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Núcleo Tramas/UFC

Em entrevista ao Instituto Humanitas, pesquisadora fala da hecatombe química da fruticultura irrigada no Ceará

Oitenta e oito mil litros de calda tóxica são utilizados todas as noites no cultivo de fruticultura no Ceará. Entrevista especial com Raquel Rigotto

irriga

“É muito difícil vermos a gravidade dos impactos à saúde desse modelo de desenvolvimento”. O desabafo é da pesquisadora Raquel Rigotto, que há dez anos, junto ao Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde – Tramas, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, tem estudado as implicações do uso de agrotóxicos no cultivo de fruticultura irrigada para a exportação na região do baixo Vale do Rio Jaguaribe, localizada na fronteira do Ceará com o Rio Grande do Norte. Segundo ela, depois de uma série de evidências de que o uso de agrotóxicos tem causado problemas ambientais e à saúde dos trabalhadores e da população local, “tem sido muito difícil constatarmos que o Estado tem sido muito eficiente para atrair os empreendimentos, para produzir material de divulgação, mas incapaz de produzir um material de informação para os agentes comunitários de saúde, para os profissionais das Unidades Básicas e para os profissionais da vigilância”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por Skype, Raquel informa que o programa governamental de fruticultura desenvolvido na região desde os anos 2000, desapropriou “mais de 13 mil hectares de terra do Jaguaribe/Apodi e uma área semelhante também em Tabuleiro de Russas, com a promessa de que os agricultores familiares seriam depois inseridos no perímetro irrigado”, mas “apenas 19% dos desapropriados conseguiram se instalar no perímetro e tiveram muitas dificuldades de sobreviver ali em função das taxas que tinham que ser pagas, da manutenção da estrutura do perímetro etc.”

Entre os dados da pesquisa desenvolvida por Raquel Rigotto, destacam-se ainda a contaminação da água do aquífero Jandaíra, casos de má-formação congênita em pessoas da comunidade, mortalidade por câncer associada à contaminação por agrotóxicos. “Nós estamos em fase de investigação, neste momento, de cinco casos de crianças com má-formação congênita, que nasceram em uma das comunidades do entorno dessas empresas na Chapada do Apodi no ano de 2015. As más-formações congênitas são agravos de prevalência muito baixa, e ter cinco casos, em um único ano, em uma comunidade que tem em torno de 2.600 pessoas, é um número que chama muito atenção”. Outros estudos, relata a pesquisadora, têm demonstrado “alterações citogenômicas no DNA das células sanguíneas na medula óssea de trabalhadores que atuavam no cultivo da banana expostos a agrotóxicos organofosforados. Dos 50 trabalhadores analisados, 25% já apresentaram alterações no DNA das células sanguíneas, o que nos alerta para a possibilidade do desenvolvimento de neoplasias nesses trabalhadores”.


Raquel Rigotto | Foto: Youtube

Raquel Rigotto é graduada em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, especialista em Medicina do Trabalho pela Fundacentro, mestra em Educação pela UFMG e doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Atualmente é professora titular do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da UFC. É conselheira titular do Conselho Nacional de Saúde, participa do GT Saúde e Ambiente da Abrasco e compõe o Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco 2015-2018. Também é membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

Confira a entrevista Aqui!.

FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/560860-quatro-milhoes-de-litros-de-calda-toxica-foram-utilizados-em-uma-decada-de-cultivo-de-fruticultura-no-ceara-entrevista-especial-com-raquel-rigotto

A força dos agrotóxicos legais e ilegais no Brasil

Por Graça Portela & Raíza Tourinho

A economia do Brasil preocupa, mas, mesmo com queda no primeiro semestre de 2015, a indústria de agrotóxicos no país segue firme. Conforme dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal – Sindiveg, no Brasil foram comercializadas 708 mil toneladas de insumos em 2010; 730 mil toneladas, em 2011; e 823 mil toneladas em 2012. Em dólares, isto representa respectivamente US$ 7.303.918, US$ 8.487.944 e US$ 9.710.014. Já em 2013, apesar do crescimento reduzido, o setor movimentou US$ 11,454 bilhões e em 2014, atingiu US$ 12,249 bilhões. O que mostra que, independentemente da valorização do dólar, o setor segue em crescimento.  Mas não só a produção de agrotóxicos legais.

Embora enquadrados nas leis dos Crimes Ambientais (Lei 9605/1988) e dos Agrotóxicos (Lei 7.802/1989), e também no Código Penal (artigos 334 e 334-A), a produção, o transporte, a compra e venda, e a utilização de agrotóxicos contrabandeados ou falsificados só fazem crescer.  Segundo o Sindiveg, somente em 2013, as apreensões de agrotóxicos falsificados totalizaram 34,6 toneladas. Desse total, mais de 18 toneladas foram confiscadas no estado do Rio Grande do Sul, seguido por São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná. “Até 2013, o total apreendido pela Campanha Contra Defensivos Agrícolas Ilegais foi de 496,4 toneladas”, afirma Silvia Fagnani, vice-presidente executiva do Sindicato. A maioria do produto apreendido vem do Paraguai. Para combater o problema, o Sindiveg lançou há mais de 13 anos, a Campanha Contra Defensivos Agrícolas Ilegais, que já recebeu mais de 12 mil ligações. Todas, feitas para um número gratuito – 0800-940-7030, e que são repassadas diretamente às autoridades policiais.

O Sindicato mostra-se apreensivo sobre como “os produtos falsificados ganharam mercado na comercialização ilegal e se equipararam aos de contrabando”. Por que isto ocorre? Silvia Fagnani acredita que “o aumento da fiscalização nas fronteiras, pelas autoridades policiais e fiscalizatórias, fez com que as quadrilhas migrassem de contrabando para falsificação. Além desse fator, a falsificação permite maior lucro”.

O impacto da falsificação de agrotóxicos também se fez sentir nas vendas do primeiro semestre (janeiro a junho) de 2015. Segundo a vice-presidente do Sindicato: “O crescimento do mercado de ilegais teve forte influência na queda de vendas no primeiro semestre, além de altas temperaturas e seca prolongada, que reduziram significativamente a infestação de pragas, a alta do dólar e o número elevado de produtos em estoque nos canais de distribuição”. A queda a que Silvia Fagnani se refere foi de 25%, e conforme nota divulgada à imprensa, se deveu também “ao câmbio, estoques, menor nível de infestação, crédito que chega ainda de forma lenta no mercado e também ao produtor se adequando a preços de soja bem menores se comparados a 2014”.

País dos agrotóxicos

Enquanto a indústria se preocupa com a invasão dos agroquímicos falsificados, os números de comercialização de agrotóxicos seguem crescendo ano a ano. A maior parte das vendas agrotóxicos em 2014 foram de inseticidas (utilizados para o controle de infestações de insetos nocivos às lavouras e combater gravas) – 40%,  seguidos pelos herbicidas (usados para o controle das ervas daninhas) – 32% e fungicidas (que combatem doenças causadas por fungos) – 24%, conforme os dados do Sindiveg. Entre as culturas, os agrotóxicos se destinaram principalmente as de soja, com 56%. As demais ficam com fatias pequenas das vendas dos insumos: milho – 9%, algodão – 8%, cana – 8%, trigo – 3%, café, feijão e pastagem, 2% cada um; e as restantes ficaram com 10%.

Junte-se a isso a questão dos agrotóxicos ilegais e dos contrabandeados, e o quadro é aterrador para a saúde dos agricultores e dos consumidores. A Anvisa, como mostra o Relatório de Atividades de 2011 e 2012 do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), coletou em 25 estados e no Distrito Federal 1.628 amostras de produtos agrícolas. Desse total, no ano de 2011, 36% apresentavam inúmeras irregularidades, como ingredientes químicos não autorizados, ou agrotóxicos permitidos, mas com limites acima do determinado pela Agência, ou ainda os que reuniam essas duas irregularidades (veja a tabela abaixo).

A situação preocupa os pesquisadores. Karen Friederich, do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP)/Fiocruz e da Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva, explica que o programa é importante para demonstrar ao consumidor que ele também está exposto, uma vez que um prato pode conter “algumas dezenas de diferentes agrotóxicos, às vezes em um único alimento”: “O que temos visto no PARA é que alguns alimentos chegam a ter mais de dez agrotóxicos… Houve uma amostra de São Paulo, cujo laudo avaliamos em um estudo, que tinha 14 agrotóxicos”, destaca.

Risco para saúde

Uma amostra estar dentro dos limites aceitos pelo PARA e, portanto, constar como satisfatória, não quer dizer muito, segundo explica Karen. A presença de tantas substâncias com efeitos diferentes em um único prato pode invalidar a comprovação científica de segurança do alimento, a chamada Ingestão Diária Aceitável (IDA). Esse indicador é baseado no Limite Máximo de Resíduos (LMR) de agrotóxicos presente no alimento, estabelecido de acordo com testes laboratoriais realizados em ambiente controlado e com uma única substância. “Essa situação experimental que a indústria apresenta [são os próprios fabricantes que apresentam os estudos utilizados para definir o LMR] não condiz com a realidade da condição humana. Então, se estabelece aquele limite de segurança e na realidade estamos expostos a várias misturas (de agrotóxicos)”, afirma Karen Friederich.

A pesquisadora alerta que há no país diversos agrotóxicos que estão proibidos na Europa e EUA, principalmente, como são os casos do próprio glifosato, “o herbicida dos quatro dedos, o herbicida paraquate, a atrazina… Essa é a primeira questão que nos leva a divulgar que o uso de agrotóxicos no Brasil não é seguro”.

Raquel Rigotto, pesquisadora da Universidade Federal do Ceará (UFCE), vai mais além: “A avaliação de risco é baseada em estudos toxicológicos com animais de laboratório ou in vitro, extrapolando os resultados para a saúde humana; os estudos avaliam em separado cada ingrediente ativo (IA), desconsiderando os efeitos à saúde nas condições de múltipla exposição – que é o mais frequente na prática – e suas possíveis interações; e dos 527 ingredientes ativos registrados no Brasil, a Anvisa tem analisado apenas 235, excluindo até o glifosato, que responde por mais de 45% do consumo e que é provável cancerígeno”.

A preocupação dos pesquisadores é que a situação tome proporções que cada vez mais fogem do controle das indústrias e de todo o sistema de saúde que, mais cedo ou mais tarde, atenderá trabalhadores do campo ou da indústria de agrotóxicos, e cidadãos que apresentem os efeitos desses produtos químicos. “O que nos questionamos é se esses agrotóxicos interagem entre si? Um agrotóxico que seria seguro em uma determinada dose, na presença de outro ele não potencializaria a ação do outro? Acreditamos que sim”,  declara Karen Friederich.

Na reportagem feita pelo jornalista Roberto Cabrini para o programa Conexão Repórter, da TV SBT (veja na íntegra nos links ao lado), são exibidos casos de intoxicação por agrotóxicos em trabalhadores rurais ocorridos na cidade de Limoeiro do Norte (Ceará). Destacamos, um trecho da reportagem em que médicos da região falam da incidência de diversos problemas de saúde possivelmente oriundos do uso/manuseio de agrotóxicos. Veja abaixo: 

A opinião dos médicos entrevistados na reportagem só reforça o que foi divulgado no Dossiê Abrasco – Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde e na nota divulgada pelo INCA – Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva: os agrotóxicos causam sérios riscos à saúde, além do meio ambiente. Conforme descrito no Dossiê Abrasco, “mesmo que alguns dos IAs (ingredientes ativos) possam – com base em seus efeitos agudos – ser classificados como medianamente ou pouco tóxicos, não se pode perder de vista os efeitos crônicos que podem ocorrer meses, anos ou até décadas após a exposição, manifestando-se em várias doenças como cânceres, más-formações congênitas, distúrbios endócrinos, neurológicos e mentais”.

Veja abaixo a tabela da OPAS – Organização Panamericana de Saúde/OMS, que está publicada no Dossiê Abrasco. 

Esta é a quarta reportagem da série “Agrotóxicos: a história por trás dos números”, realizada pelo Icict, com matérias sobre uso de agrotóxicos no Brasil. Leia as outras matérias da série aqui:

A controvérsia sobre o uso seguro de agrotóxicos

O desafio de se comprovar na Justiça a intoxicação por agrotóxicos

Artigo relaciona morte de trabalhadores por agrotóxicos e sua subnotificação

FONTE: http://www.icict.fiocruz.br/content/for%C3%A7a-dos-agrot%C3%B3xicos-legais-e-ilegais-no-brasil

Especial da Reuters: Porque o Brasil é um mercado fértil para agrotóxicos proibidos

LIMOEIRO DO NORTE, Ceará (Reuters) – Os fazendeiros do Brasil se tornaram os maiores exportadores mundiais de açúcar, suco de laranja, café, carnes e soja. Também conseguiram uma distinção nada boa: em 2012, o Brasil superou os Estados Unidos como maior importador de agrotóxicos do globo.

Esse rápido crescimento fez do Brasil um mercado atraente para agrotóxicos proibidos ou que tiveram a produção suspensa em países mais ricos por riscos à saúde e ao meio ambiente.

Pelo menos quatro grandes fabricantes de defensivos agrícolas –a norte-americana FMC Corp, a dinamarquesa Cheminova A/S, a alemã Helm AG e a gigante suíça do agronegócio Syngenta AG– vendem em solo brasileiro produtos banidos em seus mercados domésticos, conforme revelou uma análise de agrotóxicos registrados realizada pela Reuters.

Entre as substâncias amplamente vendidas no Brasil estão a paraquat, que é rotulada como “altamente tóxica” por órgãos reguladores dos EUA. Tanto a Syngenta como a Helm estão autorizadas a vender o produto no mercado brasileiro.

As próprias agências reguladoras do Brasil alertam que o governo não foi capaz de garantir o uso seguro de agrotóxicos, como são conhecidos os herbicidas, inseticidas e fungicidas. Em 2013, um avião pulverizador lançou inseticida sobre uma escola em Goiás. O incidente, que causou vômitos e tontura em alunos e professores e levou mais de 30 pessoas ao hospital, ainda está sendo investigado.

“Não conseguimos acompanhar…”, admite Ana Maria Vekic, chefe de toxicologia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão federal encarregado de avaliar os riscos dos agrotóxicos à saúde. “Não temos o pessoal ou os recursos para o volume e a variedade de produtos que os fazendeiros querem usar.”

FMC, Cheminova e Syngenta afirmaram que os produtos que comercializam são seguros se usados adequadamente. A proibição em um país não significa necessariamente que um agrotóxico deveria ser proibido em toda parte, argumentam, porque cada mercado tem necessidades diferentes para suas várias colheitas, pestes, doenças e climas. A Helm, sediada em Hamburgo, não respondeu aos pedidos de comentário.

“Não dá para comparar um país temperado”, explica Eduardo Daher, diretor-executido da Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef). “Temos mais pragas, mais insetos e mais safras.”

Especialistas em saúde pública rejeitam a justificativa. “Não importa se as safras e os solos no Brasil são diferentes…”, afirma Victor Pelaez, engenheiro de alimentos e economista da Universidade Federal do Paraná. “As pessoas, a saúde do ser humano, são iguais no mundo todo. Veneno em um lugar é veneno em todos, no Brasil também.”

VIOLAÇÃO DISSEMINADA

Avaliações das agências reguladoras mostram que grande parte dos alimentos cultivados e vendidos no Brasil viola as regulamentações nacionais.

No ano passado, a Anvisa finalizou sua análise mais recente de resíduos de agrotóxicos em alimentos de todo o país. De 1.665 amostras coletadas, de arroz a cenoura e maçãs a pimentões, entre outros produtos, 29 por cento apresentavam resíduos que excediam os níveis permitidos ou continham agrotóxicos sem aprovação.

Desde 2007, quando o Ministério da Saúde do Brasil começou a manter uma série de registros mais recentes, o número de casos relatados de intoxicação humana causada por agrotóxicos mais que dobrou – de 2.178 naquele ano passou para 4.537 em 2013. O número anual de mortes ligadas ao envenenamento por esses produtos subiu de 132 para 206.

Especialistas em saúde pública dizem que as cifras reais são maiores, porque o acompanhamento continua sendo incompleto.

As pressões ficam claras em Limoeiro do Norte, município que fica a 197 km de Fortaleza (CE). O Estado era tudo menos um exemplo de fartura, mas a partir dos anos 1990 o Brasil criou um sistema de canais de irrigação na área e o plantio floresceu. E com ele o uso de agrotóxicos.

Em novembro, um tribunal federal manteve um veredicto que força a Fresh Del Monte Produce Inc., gigante global do mercado de frutas, a indenizar a viúva de um trabalhador que sofreu falência dos rins depois de manusear agrotóxicos regularmente. Em Limoeiro do Norte, um tribunal estadual está analisando as acusações contra um latifundiário acusado pela polícia de encomendar a morte de um ativista contrário ao uso de agrotóxicos.

“A região virou um grande laboratório para o pior da agricultura industrializada”, disse Raquel Rigotto, médica e socióloga da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza. Raquel sustenta que sua equipe de pesquisa encontrou indícios de muitos agrotóxicos na água que sai de torneiras da região e uma taxa maior de mortes ali, ocasionadas por câncer, do que em cidades próximas com pouco plantio.

O mundo tem usufruído muito do boom de cultivo de alimentos no Brasil. A população deve crescer quase 30 por cento ao longo das próximas três décadas, o que representa outros 2 bilhões de bocas para alimentar.

O crescente setor agrícola do Brasil será uma fonte crucial na alimentação. Mas em razão de sua luz solar equatorial, do clima e das plantações que vicejam o ano todo, o Brasil também é um terreno fértil para insetos, fungos e ervas daninhas – e os agricultores aplicam cada vez mais agrotóxicos para mantê-los sob controle.

LOBBY PODEROSO

Em 2013, o último ano com números disponíveis, os produtores brasileiros compraram o equivalente a 10 bilhões de dólares, ou 20 por cento do mercado global desses produtos. Desde 2008, a demanda do país aumentou 11 por cento por ano, mais do que o dobro da média mundial.

Um fator que vem impedindo salvaguardas mais rígidas para os agrotóxicos é o lobby cada vez mais poderoso do setor agrícola do Brasil.

Na eleições do ano passado, o agronegócio só ficou atrás das empreiteiras nas doações de campanha para a reeleição da presidente Dilma Rousseff.

O apoio da presidente aos grandes projetos de infraestrutura e às fazendas industrializadas vêm revoltando os ambientalistas. As empresas de agricultura e alimentos do país representaram cerca de um quarto do dinheiro que ela recebeu dos grandes doadores, ou 89,5 milhões de reais, de acordo com registros eleitorais. Esta cifra baseia-se em uma análise das 118 maiores doações para a campanha de Dilma, o equivalente a 1 milhão de reais ou mais de cada doador.

No Congresso, quase metade dos 594 parlamentares tem identificação com a chamada “bancada ruralista”, grupo que aliviou as leis que proíbem plantações geneticamente modificadas e diminuiu os limites de desmate na Floresta Amazônica e em outras áreas florestadas. Propuseram, ainda, leis para deixar a regulamentação dos agrotóxicos a cargo de uma única agência, em vez das leis atuais que dão poder a Anvisa e as pastas de Agricultura e Meio Ambiente.

A assessoria de imprensa da Presidência da República não se pronunciou e sugeriu o Ministério da Agricultura. Por meio de uma nota, o secretário de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Décio Coutinho, afirmou que os agrotóxicos são regidos pelas “leis ambientais mais rígidas do planeta”.

“O uso de agrotóxicos no Brasil obedece a normas e leis rigorosas que são cumpridas por grupos de técnicos, cientistas e funcionários públicos qualificados”, afirma,

Segundo Coutinho, esses grupos contam com total confiança da comunidade científica nacional e internacional e dos consumidores brasileiros e estrangeiros.

O secretário afirmou ainda que a relação entre o agronegócio e o governo, incluindo doações de campanha, é “ética e transparente”. E acrescentou que é um erro tentar insinuar, “sem qualquer indício ou fato”, que a administração pública do país seja submetida a influências. “Ou que o peso desta ou daquela bancada estaria limitando a aplicação das leis e o cumprimento das normas”, afirmou.

“A propósito: as bancadas são definidas pelo voto livre e soberano dos eleitores e sobre isso cumpre respeitar o direito constitucional do povo brasileiro”, acrescentou.

A influência da indústria e os orçamentos apertados das agências reguladoras limitam a capacidade brasileira para aplicar a regulamentação dos defensivos agrícolas.

“FAZENDEIROS ADORAM”

Tome-se como exemplo o tempo que a Anvisa leva para avaliar um defensivo agrícola que um fabricante pretende vender no Brasil. Por lei, a agência deve analisar um novo produto químico em no máximo 120 dias, mas a Anvisa pode levar anos. Com uma equipe de menos de 50 cientistas, comparados com as centenas de agências comparáveis dos EUA e da Europa, atualmente o organismo tem mais de mil agentes químicos aguardando verificação.

Também pode levar anos para a entidade tirar produtos químicos perigosos do mercado.

Um esforço para reavaliar 14 agrotóxicos controversos usados no Brasil, a maior parte deles proibida em outras nações, está em seu sétimo ano, atrasado por ações civis de fabricantes e pela oposição de muitos legisladores. “Todo dia tem uma coisa para responder. Se não tem processo, tem audiência pública”, afirmou Ana Maria Vekic, da Anvisa.

Até agora, a reavaliação levou a proibições de quatro agrotóxicos somente. Em dezembro, a Anvisa declarou que iria proibir a parationa metílica, banida nos EUA e na Europa, mas a agência brasileira ainda não explicou quando ou como irá agir.

Como resultado, a dinamarquesa Cheminova, que vende a substância, “não mudou seus planos em relação aos negócios com este produto”, segundo o porta-voz Lars-Erik Pedersen, que acrescentou que a procura atualmente é alta por causa da peste de bicudo-do-algodoeiro no algodão. “Os fazendeiros o adoram”, afirma.

Agricultores e empresas produtoras de agrotóxicos alegam que os atrasos da Anvisa obrigam os produtores a continuar a usar agentes químicos mais antigos e potencialmente mais nocivos, porque agrotóxicos mais seguros e eficazes estão aguardando aprovação.

“Estamos colocando lá produtos novos, mas há um gargalo para poder chegar no mercado”, disse Antonio Zem, presidente da unidade latino-americana da FMC, a fabricante norte-americana do inseticida Furadan. O produto é baseado no carbofurano, um composto a respeito do qual a Agência de Proteção Ambiental dos EUA concluiu em 2008 que “os perigos para a dieta, para o trabalhador e para o meio ambiente são inaceitáveis para todos os usos”.

A FMC afirma que vem tentando limitar as vendas do poderoso produto químico para grandes fazendas e para setores onde sua aplicação pode ser realizada sobretudo por máquinas, como o de cana-de-açúcar.

MORTE DE TRABALHADOR

O Furadan é um de muitos agrotóxicos usados em fazendas ao longo da Chapada do Apodi, região fértil no leste do Ceará. Ali, graças a 40 quilômetros de canais repletos de água bombeada do rio Jaguaribe, mais de 4.500 pessoas trabalham em campos de 324 propriedades.

As fazendas criaram empregos e levaram alguma prosperidade à região outrora pobre. A cidade de Limoeiro do Norte já foi conhecida como “a terra das bicicletas” porque os moradores não podiam comprar carros. Hoje ela vibra sob o tráfego pesado das caminhonetes e dos utilitários esportivos.

Mas pouco mais foi feito em termos de infraestrutura pública depois dos canais. Como resultado, muitos dos moradores da região obtêm água dos mesmos canais a céu aberto que irrigam as fazendas.

Os problemas no planalto emergiram ainda em 2008. Funcionários e vizinhos das fazendas começaram a se queixar a autoridades da igreja local e a sindicatos de trabalhadores dizendo ter coceira depois de tomar banho, e que seus animais de fazenda estavam ficando doentes.

Em julho daquele ano, Vanderlei Matos da Silva, empregado de 31 anos da Fresh Del Monte, relatou dores de cabeça, febre, inchaço na barriga e olhos amarelados. Nos três anos anteriores ele trabalhou para a empresa armazenando um agrotóxico em um depósito da plantação de abacaxi.

O emprego, de acordo com documentos e depoimentos de colegas apresentados a um Tribunal Federal do Trabalho, incluía misturar produtos químicos e preparar os borrifadores dos trabalhadores que os aplicavam. Vanderlei também limpava o depósito e muitas vezes armazenava produtos químicos sem uso em recipientes abertos, segundo testemunharam seus colegas.

Com frequência os ar deixava ele e seus colegas tontos. “A poeira dos agrotóxicos ficava no ar”, afirmou José Anaildo Silva da Costa, um dos trabalhadores. Outro deles, Francisco Ricardo Nobre, relatou que os administradores da plantação obrigavam os trabalhadores a esconder certos agrotóxico quando ficavam sabendo de uma inspeção iminente.

A Fresh Del Monte, sediada em Coral Gables, na Flórida, não quis comentar o caso.

“ALTAMENTE TÓXICO”

Um dos produtos, de acordo com as testemunhos, era o paraquat. Herbicida que existe há decadas, o paraquat foi proibido na União Europeia e teve seu uso restrito nos Estados Unidos. No Brasil, Syngenta, Helm e outras três companhias têm licença para vendê-lo.

O paraquat é “altamente tóxico”, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês). Entre outros males, segundo o CDC, o paraquat causa insuficiência renal, cardíaca e hepática.

Ao menos parte do paraquat vendido para a Fresh Del Monte durante a época em que Silva esteve empregado veio da Syngenta, segundo uma nota fiscal de venda obtida pelo Ministério Público do Trabalho e vista pela Reuters. A Syngenta não vai comentar o caso.

Em agosto, Silva já não conseguia mais trabalhar. Em outubro, foi atendido em uma clínica de Limoeiro e transferido três semanas depois para um hospital maior em Fortaleza. Ele morreu um mês depois, deixando um filho de 1 ano e uma viúva que começou uma batalha que já dura anos para receber pagamentos atrasados e indenizações da Fresh Del Monte.

A causa oficial da morte foi insuficiência renal e hepática e hemorragia digestiva. A Fresh Del Monte se negou a comentar a morte de Silva. No tribunal, os advogados da companhia alegaram que ele havia sido diagnosticado com uma forma viral de hepatite que não tinha relação com suas funções. O juiz rejeitou o argumento.

Perto dali, José Maria Filho, agricultor familiar da chapada, começou a se queixar às autoridades locais sobre os animais da fazenda e sobre as coceiras. Ele acusou os grandes latifundiários de usar agrotóxicos em excesso, especialmente com os aviões de pulverização, que espalhavam produtos químicos nos canais e em outras áreas adjacentes a terras de cultivo.

“MEXENDO COM GENTE GRANDE”

“Tinha a língua comprida”, lembra Luiz Girão, criador de gado local e ex-parlamentar influente entre os fazendeiros da região.

José Maria Filho conseguiu fazer com que os cientistas liderados por Rigotto pesquisassem a água na região. Um estudo que conduziram no final de 2008 analisou amostras tiradas de 25 pontos ao longo dos canais e das torneiras de algumas casas.

O estudo investigou a presença de 22 agrotóxicos diferentes. Em cada amostra, os pesquisadores encontraram resíduos de pelo menos três dos compostos, e em alguns casos até 12. Os agricultores da área rejeitaram o estudo, argumentando que a pesquisa não determinou a concentração de cada agente químico na água, deixando assim de provar o quão tóxicos seriam.

Ao longo de 2009, Filho continuou a se pronunciar. Ele compareceu a reuniões da Câmara Municipal de Limoeiro do Norte, e em novembro já tinha convencido um número suficiente de membros da Casa, apesar da oposição de grandes latifundiários a aprovarem uma proibição aos voos de pulverização.

“Eles estavam furiosos”, relembra Reginaldo Araújo, professor local e ativista trabalhista.

Alguns fazendeiros continuaram com as pulverizações mesmo assim.

No começo de 2010, Filho passou a tirar fotos e fazer vídeos de um avião decolando de um campo de voo local. Ele disse às pessoas de Limoeiro do Norte que estava coletando indícios sobre violações com agrotóxicos.

Ele também passou a receber ameaças.

De acordo com um inquérito policial detalhado em uma denúncia vista pela Reuters, uma pessoa não identificada ligou para Filho e avisou que ele estava sendo seguido. A pessoa disse que ele era acompanhado enquanto viajava por estradas locais de motocicleta, muitas vezes com seu filho.

“Você é muito covarde, porque não anda só, só anda com uma criancinha na garupa”, afirmou a pessoa.

No campo de voo, segundo uma queixa que Filho fez à polícia, um segurança o alertou: “Você está mexendo com gente grande. Isso é perigoso.”

MORTO A TIROS

No dia 21 de abril, quando ia para casa através de plantações de banana, Filho foi atingido 25 vezes com uma pistola calibre .40.

Um mês depois, o conselho da cidade revogou a proibição às pulverizações.

Após uma investigação de dois anos, a polícia acusou João Teixeira, um latifundiário, fazendeiro e empresário local que coordenava as pulverizações no planalto, de encomendar o assassinato. Usando exames de balística e registros de chamadas de celular, como afirmou na denúncia, a polícia reuniu ligações entre o capataz de Teixeira, dois moradores e um matador de aluguel, que mais tarde foi morto em uma troca de tiros. Teixeira e outros três foram indiciados pela morte de Filho.

Por telefone, Teixeira declarou: “Nós não tivemos nada a ver.” Ele se recusou a discutir o assunto. Um juiz de Limoeiro deve decidir nos próximos meses se o caso irá a julgamento.

Nesse meio tempo, dois tribunais decidiram a favor de Gerlene Santos, a viúva de Vanderlei. Em 2013, uma corte de Limoeiro ordenou que a Fresh Del Monte pagasse indenizações no valor de 350 mil reais, e uma instância superior manteve a decisão.

Na chapada, as tensões permanecem.

Uma placa de concreto do lado de fora da associação de fazendeiros está coberta de pichações de caveiras e frases como “Agrotóxico causa câncer”.

Em uma plantação local, a Tropical Nordeste SA, os executivos procuram dissipar a ideia de que os agricultores são irresponsáveis.

“A gente usa o mínimo de produto possível”, garantiu Edson Brok, dono da fazenda, que exporta bananas para a Europa e recentemente recebeu um prêmio de excelência de uma associação estrangeira de compradores. “Não posso me arriscar com comprador para eles acharem que aqui não está tudo certo.”

Em outubro passado, um trabalhador da Tropical Nordeste publicou no Facebook fotos que tirou de um tanque vazando agrotóxico no depósito. Ele também postou fotos de botas de trabalho rasgadas que ele alega que a empresa se recusou a trocar quando ele pediu botas novas, o que viola leis de segurança no trabalho.

Diego Oliveira da Silva, o “químico” de 25 anos, como são chamados os fumigadores de agrotóxico na área, declarou em uma entrevista que os capatazes da fazenda também pediram a ele e a seus colegas que esgotassem seu estoque de Furadan, o agente químico da FMC, dias antes de uma inspeção. Dois outros trabalhadores, que pediram anonimato, fizeram a mesma alegação.

Diego foi demitido por publicar as fotos.

Hugo Carrillo, administrador da plantação, disse que o tanque com vazamento era um problema temporário causado por uma torneira quebrada, que foi consertada no mesmo dia. As botas, afirmou, estavam em falta em um fornecedor local, mas na verdade já tinham sido encomendadas.

Quanto à alegação de que encobriu o uso de agrotóxicos perigosos, Carrillo respondeu: “Por que eu esconderia o Furadan? Não é proibido no Brasil.”