MPF pede suspensão da venda de agrotóxicos à base de atrazina e que o Ibama determine reavaliação de registros

Procuradoria no MS requer à Justiça a indisponibilidade de R$ 300 milhões do conjunto das 29 empresas que faturam com o herbicida, que envenenou toda a Bacia do Rio Dourados. Objetivo é garantir reparação à coletividade lesada

Por Cida de Oliveira*

Proibida desde 2004 na UE, atrazina está entre os agrotóxicos mais vendidos no Brasil. Foto: Arquivo EBC

O Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul (MPF/MS) protocolou nesta terça (18), na Justiça Federal no Estado, uma Ação Civil Pública pedindo que 29 empresas sejam proibidas de vender produtos à base do ingrediente ativo atrazina. São fabricantes, importadoras e revendedoras, como a Syngenta, gigante do setor, e a Amaggi, empresa do conglomerado de Blairo Maggi, um dos maiores produtores de soja. A lista completa está no final da reportagem.

Segundo a ação, à qual a reportagem teve acesso, outra reivindicação é que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), seja obrigado a iniciar, de imediato, um processo para reavaliação do registro, visando à proibição de produtos no Brasil que contenham o ingrediente ativo.

A petição pede ainda a indisponibilidade de bens das 29 empresas no valor de R$ 300 milhões, no prazo de 30 dias, como garantia do custeio das medidas de compensação do dano causado. Ou seja, o envenenamento de toda a Bacia do Rio Dourados por esse produto perigoso, que motivou a ação do MPF. Segundo o documento, o montante corresponde a 0,3% do faturamento anual do setor de agrotóxicos no Brasil, em torno de R$ 100 bilhões. De acordo com o procurador Marco Antonio Delfino de Almeida, autor da ação, trata-se de uma fração, que não inviabiliza economicamente as empresas. Mas chama a atenção de dirigentes e acionistas para a seriedade do problema.  Uma mensagem “de que envenenar comunidades inteiras não sairá barato e será cobrado conforme a finalidade preventiva do dano moral coletivo ambiental.

Conforme o documento, não se trata de uma indenização material para reembolsar despesas específicas, mas os danos morais coletivos decorrentes, como gastos médicos, perdas econômicas nas aldeias indígenas, descontaminação ambiental. E o valor proposto, defende o procurador, poderia alimentar um fundo gerido pelo Poder Público, revertido em melhorias, como instalação de sistemas de filtragem de água nas aldeias, construção de unidades de saúde ou laboratórios de monitoramento. E até mesmo indenizações individuais complementares em casos de doença comprovadamente ligada à atrazina, por exemplo.

“Considerando que o SUS gasta R$ 4 bilhões/ano no tratamento do câncer, dos quais uma parcela possivelmente ligada à exposição química, uma indenização de R$ 300 milhões corresponde a menos de um mês de gastos oncológicos do país – valor plausível para ser investido preventivamente na região foco, evitando futuros gastos bem maiores (princípio da precaução)”, pondera o autor. Em outras palavras, “o montante estaria em sintonia com a magnitude do problema de saúde pública em jogo e poderia servir para mitigar esse problema, sem configurar enriquecimento sem causa de ninguém, mas sim fortalecimento da coletividade lesada”.

Essas 29 empresas, segundo reivindica o MPF, deverão apresentar, de forma solidária, em até 60 dias, um plano de trabalho detalhado para o diagnóstico completo da contaminação por atrazina e seus principais produtos de degradação no solo, nas águas superficiais e subterrâneas da Bacia Hidrográfica do Rio Dourados. Esse diagnóstico deverá ser executado por entidade técnica independente e de notória especialização, com cronograma de execução não superior a 12 meses, sob pena de multa diária no valor de R$ 1 milhão.

Omissão do Ibama

Na petição são destacados dispositivos legais que sustentam a responsabilidade do Ibama no controle e fiscalização da produção, comercialização, uso e homologação de análise de risco ambiental de todos os agrotóxicos. E a competência para reavaliar os já registrados quando surgirem evidências de danos graves ao meio ambiente e à saúde relacionados. “Portanto, legalmente, o Ibama não pode se eximir de agir em face de contaminações difusas por agrotóxicos de alto risco”, sustenta.

Assim, o órgão federal vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima “é réu em face da sua omissão em promover o adequado monitoramento ambiental dos resíduos de atrazina em flagrante descumprimento dos princípios constitucionais da legalidade e da eficiência”.

“Há informações científicas e regulatórias robustas sobre os riscos ambientais da atrazina, tornando imperativa a atuação vigilante do órgão ambiental. Apesar disso, o Ibama não adotou as medidas proporcionais à gravidade do caso. Diferentemente da União Europeia – que proibiu completamente a atrazina há duas décadas – no Brasil esse agrotóxico segue amplamente comercializado e aplicado”. Dados do próprio instituto mostram que a atrazina aparece com frequência entre os agrotóxicos mais vendidos no país. Em 2017, foi o 6º ingrediente ativo mais comercializado no Brasil, com cerca de 29 mil toneladas vendidas naquele ano. “Mesmo com tamanha difusão e potencial de dano, não consta que o Ibama tenha instaurado tempestivamente um processo de reavaliação ambiental da atrazina ou proposto restrições severas de seu uso”, argumenta.

O princípio ativo e seus produtos usados como herbicidas foram banidos na União Europeia em 2004, após surgirem evidências da contaminação generalizada e persistente de águas superficiais e aquíferos e dos riscos à saúde humana. Estudos associam a substância a distúrbios do sistema endocrinológico, sistema nervoso central, fígado e interferências nos hormônios reprodutivos.

Mais de 2 mil toneladas de atrazina

A Bacia do Rio Dourado, cuja contaminação motivou a Ação Civil Pública, ocupa uma faixa no sentido Oeste-Leste, desde as imediações da Serra de Maracaju até a foz do Rio Dourados no Rio Brilhante. Está situada na sub-bacia do Rio Ivinhema, que, por sua vez, insere-se na Bacia Hidrográfica do Rio Paraná. Trata-se de uma área de intensa atividade agropecuária, como a soja, o milho e a cana ocupando mais da metade do território. Mais de 2.200 toneladas de atrazina foram comercializadas ali somente em 2019, em lavouras ao redor de comunidades indígenas.

Segundo estudos realizados realizados a pedido do MPF na água das aldeias de Panambizinho, Jaguapiru e Bororó, havia resíduos de atrazina e seus metabólitos nas torneiras, poços e em córregos. Um deles, publicado em março de 2021, que monitorou resíduos de 46 agrotóxicos em três pontos do Rio Dourados entre dezembro de 2019 e dezembro de 2020, detectou o herbicida em 87% de todas as amostras coletadas. Além disso, produtos gerados em sua degradação, a deetilatrazina (DEA) e a 2- hidroxiatrazina, foram encontrados em 100% das amostras, evidenciando a contaminação crônica do corpo hídrico. As maiores concentrações de atrazina foram observadas em março de 2020, coincidindo com o período de plantio do milho safrinha e a ocorrência de chuvas, o que confirma a rota de contaminação a partir das lavouras. Um segundo monitoramento ao longo de todo o ano de 2021 mostrou o agravamento do cenário de poluição. A atrazina foi detectada em 100% das 117 amostras coletadas.

Pulverização de agrotóxicos contaminou as águas da Bacia do Rio Dourados, prejudicando comunidades

Ciclo da exposição

Ainda segundo o documento, a responsabilidade do Ibama e das 29 empresas transcende a simples contaminação ambiental, materializando-se em um ciclo contínuo e multifacetado de exposição humana ao perigo químico da atrazina. “Um ciclo que começa com a exposição aguda e severa dos trabalhadores rurais e se expande de forma crônica e silenciosa para toda a sociedade, por meio da contaminação da água e dos alimentos. Na exposição ocupacional, os trabalhadores rurais são as vítimas primárias e mais intensamente expostas aos produtos perigosos das rés”.

E mais: “A absorção ocorre simultaneamente por múltiplas vias ­– dérmica (pele), respiratória (inalação de névoas de pulverização) e oral (ingestão acidental) —, sobrecarregando os mecanismos de defesa do corpo e potencializando os efeitos tóxicos, especialmente em exposições de longo prazo. A intoxicação aguda, com sintomas como espasmos, náuseas e dificuldade respiratória é a face mais visível do dano.” No entanto, prossegue, “o dano mais profundo é a intoxicação crônica, que deteriora a saúde lentamente, atingindo órgãos e funções vitais e culminando em doenças graves que podem levar anos para se manifestar, como câncer e distúrbios reprodutivos”. “Este cenário trágico, que remete ao legado de morte e incapacitação deixado por outros venenos como o DDT no Acre, é o futuro que se desenha para as vítimas da atrazina caso nenhuma medida reparatória e preventiva seja tomada”, alerta Marco Antonio Delfino de Almeida.

O procurador vai além: “O dano causado pelos produtos das rés não se limita à área de aplicação. A atrazina, por sua alta persistência e mobilidade, é transportada pela chuva das lavouras para os rios, contaminando os recursos hídricos que abastecem a população. As análises da Embrapa no Rio Dourados são a prova cabal deste processo: com a atrazina e seus derivados presentes em praticamente 100% das amostras de água, fica evidente que a substância se tornou um componente permanente daquele ecossistema hídrico. Isso transforma um problema ocupacional em um grave problema de saúde pública. A população em geral, incluindo crianças, gestantes e idosos, passa a ser cronicamente exposta à atrazina ao beber água”.

A situação é agravada, segundo ele, pela “frouxidão da legislação brasileira, que permite na água uma concentração de atrazina vinte vezes maior que o limite de segurança estabelecido na União Europeia. Se considerarmos a mistura de todos os agrotóxicos monitorados, a água no Brasil pode conter uma carga química 2.706 vezes superior ao limite europeu, sem que isso acione mecanismos regulatórios ou sanitários específicos, o que evidencia uma discrepância relevante entre os padrões normativos aplicados.”

Ele lembra também que a exposição se completa com a contaminação dos alimentos. Relatórios do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), da Anvisa, demonstram que a atrazina é encontrada em diversas culturas. “Mais grave ainda é a constatação de seu uso ilegal em alimentos para os quais não há autorização, como abobrinha, alface, feijão, mamão, pimentão e uva”.

Riscos criados”

“Isso revela uma falha sistêmica de controle e, para os fins desta ação, demonstra que o risco criado pelas rés ao colocar a atrazina no mercado se dissemina de forma imprevisível e incontrolável por toda a cadeia alimentar, chegando à mesa de consumidores em todo o território nacional. Neste ciclo perverso, o trabalhador e a trabalhadora rural carregam um fardo duplo: são as vítimas da exposição ocupacional aguda no campo e, com suas famílias e toda a sociedade, são vítimas da exposição crônica e ambiental pela contaminação da água e dos alimentos. A exposição no trabalho é, portanto, agravada pela exposição geral, em um ciclo contínuo de envenenamento. Cada etapa deste ciclo — da aplicação na lavoura à presença no copo d’água e no alimento — tem como ponto de partida a decisão das rés de fabricar e comercializar um produto sabidamente perigoso e persistente. A responsabilidade por todas as formas de exposição humana recai, portanto, sobre quem gerou o risco e lucrou com ele”.

Saiba quem as empresas envolvidas na ação:

  1. Ouro Fino Quimica S.A
  2. Nortox S.A.
  3. Zhongshan Química do Brasil Ltda.
  4. Globachem Proteção de Cultivos do Brasil Ltda.
  5. Rainbow Defensivos Agrícolas Ltda.
  6. Jubailireg Brasil Ltda.
  7. Adama Brasil S.A.
  8. Agro Import do Brasil Ltda.
  9. CCAB Agro S.A.
  10. Ameribrás Indústria e Comércio Ltda.
  11. CHDS do Brasil Comércio de Insumos Agrícolas Ltda.
  12. Sharda do Brasil Comércio de Produtos Químicos e Agroquímicos Ltda.
  13. Crotect Crop Science Ltda.
  14. Lemma Agronegócios Importação e Exportação Ltda.
  15. Perterra Insumos Agropecuários S.A.
  16. Solus do Brasil Ltda.
  17. Pilarquim Br Comercial Ltda.
  18. Tudo Rural Agronegócios do Brasil Ltda.
  19. Syngenta Proteção de Cultivos Ltda.
  20. ALTA – America Latina Importação e Exportação Ltda.
  21. Oxon Brasil Defensivos Agrícolas Ltda.
  22. Iharabras S.A. Indústrias Químicas
  23. Amaggi Exportação e Importação Ltda.
  24. Cropchem Ltda.
  25. Nutrien Soluções Agrícolas Ltda.
  26. Ameribrás Indústria e Comércio Ltda.
  27. ISK Biosciences do Brasil Defensivos Agrícolas Ltda.
  28. Albaugh Agro Brasil Ltda.
  29. Willowood Agriscience Representação Comercial Ltda.

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*Cida de Oliveira é jornalista

USP lança novo e-book sobre riscos de desastres no Brasil

Publicação ainda discute consequências dos desastres de uma perspectiva social e traz soluções locais para promoção dos direitos humanos

-Desastres-naturais-1(Imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Por Vitoria Lopes Gomez, editado por Ana Luiza Figueiredo para o “Olhar Digital”

Um e-book recém-publicado por uma pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) aponta diferentes aspectos envolvendo os desastres e os riscos de desastres em diferentes regiões do Brasil. Riscos ao Sul: diversidade de riscos no Brasil ainda aborda a perspectiva social dos desastres e suas consequências aos direitos humanos — e como as cidades podem ajudar a combatê-los. O material está disponível gratuitamente.

E-book sobre desastres

Intitulado Riscos ao Sul: diversidade de riscos no Brasil, o e-book é uma publicação organizada pela pesquisadora Fabiana Barbi Seleguim, do programa USP Susten, Allan Yu Iwama, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFP), e Viviana Aguilar-Muñoz, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden/MCTI).

A iniciativa é coordenada pela Rede de Estudos Sociais em Prevenção de Desastres da América Latina e Caribe (La Red), projeto que visa monitorar o estado atual do conhecimento sobre os desastres e riscos na região.

A obra foca especificamente no Brasil. Com 25 capítulos e participação de mais de 80 autores e coautores, traz um panorama do que se sabe para o entendimento e tratamento dos riscos de desastre no país.

Capa do e-book (Foto: Riesgos al Sur Brasil/Reprodução)

Contribuições do livro

  • Segundo o Jornal da USP, a organizadora do e-book também participa de um capítulo. Nele, Seleguim e a coautora Patrícia Iglesias, supervisora de sua pesquisa de pós-doutorado, discutem as perspectivas sobre governança climática em meio aos riscos de desastres.
  • Também discutem como isso impacta os direitos humanos, como o direito à vida, acesso à água, saúde, moradia e mais aspectos que garantem um bem-estar saudável para a população.
  • O capítulo ainda mostra como políticas locais ajudam a garantir uma efetiva promoção e proteção desses direitos humanos, sem deixar de considerar os riscos climáticos.
  • Para Seleguim, a publicação contribui na construção de comunidade mais resilientes frente a desafios iminentes.

Riscos ao Sul: diversidade de riscos no Brasil pode ser acessado gratuitamente neste link.


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Este texto foi originalmente publicado pelo “Olhar Digital” [Aqui!].