Treze colhedores de café são resgatados de trabalho escravo em Santo Antônio da Alegria (SP)

Operação conjunta do MPT e MTE garantiu o pagamento de direitos trabalhistas e o retorno das vítimas para seu estado de origem

Local onde os trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão em Santo Antônio da Alegria, um deles menor de idade

Ribeirão Preto

Uma operação realizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resultou no resgate de 13 trabalhadores de condições análogas à escravidão em Santo Antônio da Alegria (SP), dentre eles, um adolescente de 15 anos; a força-tarefa contou com o apoio da Polícia Militar (PM).

Em depoimentos, os trabalhadores, que foram contratados para a colheita de café, disseram que não recebiam equipamento de proteção individual para o trabalho e que compravam com recursos próprios as botas que vestiam, assim como as luvas. Eles mesmos levavam a refeição e a água para consumo e, segundo os depoentes, muitas vezes, a comida azedava, pois não tinham onde armazená-la até a hora do almoço. Eles eram expostos ao risco de ataques de animais peçonhentos, como cobras.

O veículo que transportava os trabalhadores não possuía tacógrafo e o motorista não era habilitado para dirigir ônibus de passageiros. O empregador foi multado pela Polícia Militar.

Além disso, não havia instalação sanitária na frente de trabalho, sendo que os trabalhadores faziam suas necessidades no meio do cafezal; todos trabalhavam sem registro em carteira de trabalho. O salário era pago por produção e, eventualmente, por diária. De acordo com os colhedores, o turmeiro pagava abaixo do piso oferecido por outros empregadores.

O turmeiro foi autuado por embaraço à fiscalização, uma vez que não queria levar a equipe fiscal até a propriedade rural, alegando que os trabalhadores não queriam trabalhar naquele dia. Os colhedores disseram que o turmeiro os instruiu a mentir para as autoridades, citando também que ele era um homem raivoso e ameaçador.

Segundo as vítimas, que vieram da região Nordeste do país, o turmeiro as humilhava e se negava a negociar a remuneração por produção, pagando o valor que queria aos trabalhadores, sem sequer informar o preço da unidade de medida referência para o cálculo da produção diária.

O alojamento dos trabalhadores não possuía cama ou armários, com buracos no telhado onde entrava água da chuva, com paredes mofadas, tudo diferente do que foi prometido pelo turmeiro. Não havia geladeira ou fogão.

Um casal de colhedores declarou que a precariedade da edificação os levou a buscar outro imóvel na cidade e que, naquele imóvel, passaram a residir outras pessoas que também prestam serviços em fazendas de café por intermédio do mesmo turmeiro. Eles afirmaram que as condições de trabalho e os custos na cidade não lhes permitiram economizar recursos financeiros para o retorno à sua cidade de origem, não tendo conseguido economizar dinheiro nem para a passagem de ônibus.

Os auditores fiscais resgataram os 13 colhedores, que foram beneficiários de seguro-desemprego. O MPT celebrou termo de ajuste de conduta (TAC) com o empregador, que se comprometeu a pagar as verbas rescisórias e uma indenização individual para cada trabalhador. Além disso, o TAC prevê o custeio da viagem de retorno dos trabalhadores ao seu estado de origem, incluindo passagens e alimentação.

Os trabalhadores já embarcaram de volta para suas casas. O empregador está sendo investigado pelo MPT e pode ser processado na Justiça do Trabalho. Os autos serão remetidos para a Polícia Federal e para o Ministério Público Federal, a fim de verificar a conduta criminal do investigado.

Trabalhadores brasileiros escravizados pelos fornecedores de café da Nestlé

Por Carla Hoinkes e Florian Blumer, Pesquisa: Public Eye em colaboração com Repórter Brasil

Uma investigação exclusiva da Public Eye em colaboração com a Repórter Brasil lança luz sobre diversos casos de escravidão moderna perpetrados por fornecedores de café da Nestlé no Brasil. Isso apesar da empresa suíça prometer tolerância zero a essa prática há anos. Dois trabalhadores afetados por esse flagelo relatam como trabalharam em condições desumanas, foram privados de seus salários e temeram por suas vidas.

“Não consigo encontrar palavras para descrever o que passei”, diz Jurandir dos Santos. “Todas as lembranças me vêm à mente só de pensar em café.”

Mesmo assim, o homem de 50 anos decidiu nos contar o que aconteceu com ele depois de ser contratado como trabalhador sazonal para a colheita de café em abril de 2023, junto com seu amigo José Ademilson de Jesus Lima. Um jornalista da Repórter Brasil encontrou os dois em março de 2025, a pedido da Public Eye, para entrevistá-los em suas casas (uma compilação das entrevistas pode ser encontrada aqui ).

A fazenda Mata Verde, no estado do Espírito Santo, está localizada a 1.200 quilômetros de Aracaju, capital do estado de Sergipe.

Jurandir e José moram em Aracaju, capital do estado de Sergipe, localizado no nordeste do Brasil, região assolada pela pobreza. Todos os anos, dezenas de milhares de trabalhadores sazonais viajam desta região para as regiões produtoras de café no sudeste economicamente mais abastado do país. Há uma enorme demanda por esses trabalhadores, pois a colheita é realizada em grande parte à mão. O Brasil responde por 40% da produção global de café .

“O que dizemos vale aqui”

José Lima, de 36 anos, nos contou que trabalhou como trabalhador rural pela primeira vez em 2022: “Eu estava desempregado e tinha me separado da minha esposa, então fui para lá”. Com o dinheiro que ganhou nesses três meses que durou a colheita, ele conseguiu continuar construindo sua casa. O trabalho também o atraiu, então ele não hesitou quando um agente o contatou, oferecendo-lhe um emprego para a safra de café de 2023. Jurandir Dos Santos disse que essa mulher lhes prometeu emprego regular e um bom salário de pelo menos R$ 120 (reais) por dia. Isso equivalia na época (abril de 2023) a cerca de 22 euros, o que é significativamente mais alto do que o salário mínimo no Brasil, que na época era de apenas 12 euros por dia (240 euros por mês). Eles foram acompanhados por conhecidos a quem haviam mencionado essa oferta atraente.

Após uma viagem de ônibus de dois dias e meio, acompanhados pelo recrutador, eles chegaram no final da noite de 18 de abril de 2023 à fazenda Mata Verde, no estado do Espírito Santo, a cerca de 1.200 quilômetros de distância. Essa fazenda, que produz café Robusta em cerca de 50 hectares, é muito remota; além de uma pequena vila, há apenas plantações de café, florestas e morros.

Brasil: megaprodutor de café

No Brasil, cerca de quatro milhões de toneladas de grãos de café são colhidas anualmente. Isso o torna, de longe, o maior produtor mundial dessa commodity agrícola. Enquanto no interior serrano, especialmente em Minas Gerais, são cultivadas variedades de Arábica – consideradas de maior qualidade –, os cafeicultores do Espírito Santo, no litoral, especializaram-se no café Robusta, usado principalmente para café solúvel e misturas de torra mais baratas. Eles produzem cerca de um sexto do Robusta do mundo, conhecido como “Conilon” no Brasil.


No começo, tudo parecia bem. A acomodação dos trabalhadores era “boa”, segundo Jurandir. Eles foram até a vila e encontraram os moradores em um bar. “Passamos os dois primeiros dias bebendo e comemorando”, disse José.

Em muitas ocasiões, um sobrinho do dono da fazenda também estava lá. Certa noite, ele contou como um amigo seu certa vez colocou uma pistola na mesa do bar. Quando um policial se aproximou e pediu que guardasse a arma, ele se recusou.

José perguntou, espantado, quais seriam as consequências disso. “Nenhuma”, respondeu o homem da família do dono da fazenda.

“Tudo aqui nos pertence. Nesta aldeia, o que dizemos vale.”

Uma sensação de inquietação tomou conta de José. Pela primeira vez, ele se perguntou se algo não estava certo ali.

Sem camas, sem chuveiros, sem água potável

Então, no terceiro dia, o recrutador disse que eles precisavam se mudar. Teriam que carregar seus pertences para o novo local, incluindo colchões, a pé.

Depois de um longo primeiro dia de trabalho, partiram carregados e tiveram que fazer a caminhada de 50 minutos duas vezes até chegarem à nova acomodação, tarde da noite. “Eu já não gostava da fachada da casa”, disse José. Suas primeiras impressões se confirmaram quando olhou para dentro:

“O piso de madeira estava podre e havia manchas de água na parede.”

Eles tiveram que dormir em colchões finos diretamente no chão. Ele perguntou, incrédulo, à recrutadora se aquela era realmente a nova casa deles. “Só temporariamente”, ela os tranquilizou. A dona da fazenda estava preparando outra casa para eles ficarem. Ela também prometeu que eles receberiam camas. José a questionou constantemente sobre isso nos dias seguintes, mas “nenhuma cama chegou”. Eles também nunca mais colocaram os olhos na outra casa.

As condições de alojamento eram desumanas. Como Jurandir descreve:

“Congelávamos à noite, quando ventava muito. O tanque de água potável, cheio de lodo, estava infestado de besouros e outros insetos.”

Não havia portas que proporcionassem um pouco de privacidade, nem pias ou chuveiros, apenas duas mangueiras com água fria. Também não havia mesas nem cadeiras, o que significava que os trabalhadores eram obrigados a comer sentados no chão ou em seus colchões. Havia cortes de energia constantes e os banheiros frequentemente ficavam inutilizáveis. Havia lixo embaixo da casa, que exalava um forte odor e atraía ratos.

Todos esses detalhes foram registrados em um relatório de inspeção do Ministério do Trabalho do Brasil, que seria compilado posteriormente e disponibilizado ao Public Eye.

A conclusão simples de José foi: “Era impossível viver lá, completamente impossível.”

A comida também era “horrível”, disse Jurandir. Consistia principalmente de linguiça, arroz e feijão. Sua esposa ficou chocada quando ele voltou para casa, continuou o trabalhador: “Eu estava magro e completamente exausto. Tive que amarrar minhas calças, que me serviam antes, na cintura para que não caíssem.”

“Todo mundo ficou doente”, disse José, “inclusive eu: resfriados, erupções cutâneas, infecções fúngicas, dor de estômago — tínhamos dor de estômago o tempo todo. Um colega ficou gravemente doente por uma semana. Não nos deram nenhum medicamento — então nos unimos para comprar alguns para ele.”

Trabalhando duro por salários de fome

Os trabalhadores acordavam às 3h30 da manhã. Preparavam o almoço, após um “café da manhã” composto por uma xícara de café e um pedaço de massa feita de farinha de trigo e água, e pegavam um ônibus para a plantação às 4h30. Terminavam o trabalho entre 4h30 e 5h da tarde e, muitas vezes, tinham que caminhar de volta, o que levava mais de 45 minutos.

O trabalho consistia em retirar manualmente as cerejas de café dos galhos dos arbustos. Eles as coletavam em uma peneira semelhante a uma cesta, presa aos quadris por um cinto, enchiam sacos de 60 quilos com elas, que carregavam até a estrada, onde eram recolhidas por caminhão.

“É um trabalho duro, muito duro”, disse Jurandir.

Ele mencionou que durante o dia o sol os queimava, eles eram picados por insetos e essas ferroadas e mordidas lhes causavam dores de cabeça. Além disso, as plantações estavam localizadas em terrenos montanhosos, às vezes com declives acentuados e escorregadios.

Os trabalhadores eram pagos de acordo com a quantidade de grãos de café colhidos. Eles recebiam R$ 16 (2,90 euros) por cada saca de 60 quilos. Como “não recebiam nenhuma ferramenta para retirar os grãos de café dos galhos com mais facilidade”, conseguiam, em média, encher pouco mais de três sacas por dia, segundo o relatório dos fiscais do Ministério do Trabalho. Assim, em vez dos R$ 120 prometidos, eles não recebiam nem R$ 50 (9 euros) por dia de trabalho de cerca de 12 horas, segundo o relatório. Mensalmente, isso equivale a apenas 75% do salário mínimo.

O proprietário da fazenda, então, segundo suas informações, vende o café para a cooperativa atacadista de robusta Cooabriel por R$ 645 a saca de 60 quilos – 40 vezes o preço pago aos trabalhadores. Essa empresa não só é fornecedora direta da Nestlé, líder mundial no mercado de café suíço, como também participa de seu programa de sustentabilidade, o Nescafé Plan (no Brasil, “Cultivado com Respeito”), que, por sua vez, exige a certificação pela norma 4C.

Sustentabilidade de acordo com os padrões da Nestlé

A Nestlé usa o padrão 4C para designar o café da maior marca de café do mundo, Nescafé, como social e ambientalmente sustentável, como parte do “Plano Nescafé”. De acordo com alguns relatos da mídia, o grupo, que compra mais de 80% do café 4C em todo o mundo, “ investiu ” pesadamente em café 4C no Espírito Santo nos últimos anos e, em colaboração com a Cooabriel – a maior associação de fazendas de Robusta no Brasil, com mais de 7.600 produtores – incluiu uma cooperativa no Plano Nescafé pela primeira vez. Para a Nestlé, isso fez da Cooabriel uma “parceira importante” na aquisição de café sustentável. No total, a Nestlé compra quase um quarto de seu café (222 toneladas em 2022) no Brasil – 100% “ certificado e sustentável “, de acordo com sua própria comunicação.

Presos em dívidas

Mesmo o salário mínimo nacional, equivalente a 12 euros por dia, estaria longe de ser suficiente para garantir um padrão de vida decente. Segundo cálculos do Instituto de Pesquisa Anker, os trabalhadores da cafeicultura no sul do Brasil teriam que ganhar quase o dobro para sobreviver.

No caso da Mata Verde, porém, o proprietário da fazenda alegou vários “descontos inadmissíveis”, além de descumprir ilegalmente o salário mínimo, conforme destacado pelos auditores fiscais do trabalho em seu relatório.

“Tudo era deduzido dos nossos salários: botas, roupas de proteção, luvas de trabalho, a cesta da colheita, até mesmo a garrafa de água potável que trazíamos para os campos.”

As deduções eram tão ilegais quanto o fato de os trabalhadores terem que pagar o custo da viagem de ônibus (R$ 350) até a fazenda em parcelas. Eles também pagavam preços exorbitantes pela alimentação inadequada. Eles sempre eram mantidos no escuro sobre o valor das deduções devidas, como disse José:

“Nunca soubemos quanto devíamos. Só sabíamos que tínhamos dívidas a pagar.”

O dono da fazenda fazia compras constantemente, dizendo que lhe “deviam” tudo isso, mas quando os trabalhadores pediam valores e recibos, só recebiam respostas evasivas. O mesmo acontecia quando pediam um contrato de trabalho.

Após os descontos, Lima ficou com apenas 130 reais (22 francos suíços) dos 220 reais (39 francos suíços) que ganhou na primeira semana de trabalho, diz ele.

“Ninguém sai da fazenda”

José também nos contou que, no trabalho, eles eram supervisionados de perto e assediados repetidamente pelo gerente da fazenda e pelos seguranças, que estavam sempre por perto. Quando o gerente repreendeu um amigo de José nos primeiros dias e levantou o braço, José viu uma pistola em sua cintura. Então, percebeu que todos os seguranças estavam armados.

Aos poucos, ele percebeu que precisava sair dali. Começou a planejar sua fuga e, junto com outros trabalhadores, tentou persuadir um motorista de ônibus a buscá-los. Mas o dono da fazenda descobriu os planos. Então, enviou uma mensagem de WhatsApp para todos, dizendo, como Lima explica:

“Ninguém vai sair da fazenda até que suas dívidas sejam pagas. Se alguém tentar, vou fechar a entrada da vila.”

José sentia que estava sendo vigiado. Sempre que falava ao telefone ou trocava ideias com colegas, acompanhantes se aproximavam dele. Ele começou a ficar com medo:

“Eles poderiam fazer alguma coisa comigo a qualquer momento”, pensou. “A plantação era grande e muitas vezes você estava sozinho colhendo café.”

“Ameaças, fraude, engano, coerção”

Em seu relatório, os auditores fiscais do trabalho afirmaram que havia nada menos que 24 pontos relacionados à fazenda, que atendiam aos critérios de “condições de trabalho análogas à de escravo” segundo a legislação penal brasileira. Segundo o relatório, também foram constatadas “condições de trabalho degradantes”, como falta de água potável e alojamento inadequado, bem como servidão por dívida, ou seja, a restrição da liberdade de locomoção devido a dívidas, agravada neste caso por “ameaças, fraude, engano ou coação”.

A servidão por dívida é uma forma de trabalho forçado proibida pela Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Com o objetivo de responder de forma justa às suas próprias realidades, o Brasil vai além, classificando também “condições de trabalho degradantes” e “jornadas de trabalho exaustivas” como “análogas à escravidão” – um termo jurídico frequentemente parafraseado como “escravidão moderna”.

Maurício Krepsky, que até junho de 2023 estava à frente da Inspetoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), disse à Public Eye que as ameaças explícitas de violência no caso Mata Verde foram extraordinárias. No entanto, condições análogas à escravidão são comuns na cafeicultura brasileira. Segundo a organização de direitos humanos Conectas, nenhum outro setor viu tantos trabalhadores resgatados dessas condições nos últimos 10 anos. Só em 2023, foram 316 casos, e especialistas na área presumem um alto número de casos não registrados .

Há inúmeras razões pelas quais a produção de café ocupa o topo desse ranking vergonhoso, como relata Jorge Ferreira. Como trabalhador rural, ele próprio foi vítima da escravidão moderna e agora é um dos principais ativistas da associação dos trabalhadores da Adere. Segundo Jorge, uma das razões é que o cultivo do café era “essencialmente baseado na escravidão”. Durante o período colonial, o Brasil emergiu como o mais importante país produtor de café.

“Até hoje, inúmeros produtores de café em nosso país não respeitam os direitos humanos e exploram trabalhadores socialmente vulneráveis”,

explica a ativista. A maioria dos proprietários rurais ainda é branca, enquanto a maioria dos trabalhadores – e vítimas da escravidão moderna – são homens de ascendência africana. A Oxfam Brasil estima que até dois terços deles trabalham informalmente durante a safra, o que promove ainda mais condições de trabalho abusivas.

Uma faca debaixo do colchão

Após descobrir que os guardas portavam armas e perceber que estava sendo vigiado de perto, José Lima percebeu que precisava sair dali. Como não queria que o fazendeiro ficasse impune, informou previamente as autoridades trabalhistas locais e a Polícia Federal sobre as condições na fazenda. Apesar do perigo a que se expunha, filmou e fotografou secretamente para documentar os abusos.

Poucos dias depois, a polícia lhe disse que interviria. Mas não soube dizer exatamente quando. Essa notícia só acalmou José por um curto período. Ele se sentia cada vez mais ameaçado: “Acabei de dormir com uma faca debaixo do colchão.”

No dia 1º de maio, 14 dias após sua chegada, ele decidiu fugir. No dia seguinte, após insistência, conseguiu que um homem da aldeia concordasse em levar um grupo de trabalhadores em sua van até a estrada principal mais próxima, por onde passava o ônibus para Aracaju. Para pagar a viagem, todos tiveram que pedir dinheiro emprestado a amigos ou parentes.

Pouco antes da meia-noite, José Lima, Jurandir dos Santos e outros 12 trabalhadores saíram sorrateiramente de suas acomodações. No horário combinado, esperaram a van na entrada da vila e partiram à 1h30 da manhã. “Estava muito apertado na van”, contou-nos José, “pois sentávamos uns em cima dos outros e tínhamos muita coisa conosco. Mas finalmente conseguimos sair do local.”

O que os fugitivos não sabiam era que, poucas horas após a partida, os fiscais chegaram à fazenda acompanhados da Polícia Federal. Maurício Krepsky, então chefe de departamento do Ministério do Trabalho, lembrou que os fiscais locais avaliaram a disposição de recorrer à violência na fazenda como tão alta que chamaram sua equipe de Brasília, a 1.400 km de distância, como reforço. Mas a intervenção transcorreu sem problemas. E assim, logo após a fuga de seus colegas, outros 10 trabalhadores que haviam permanecido na fazenda também estavam livres.

Um crime que compensa

Como de costume nesses casos, as autoridades instauraram um processo administrativo. Como parte do resultado, o proprietário da fazenda se comprometeu a melhorar as condições deploráveis, tomar medidas preventivas e pagar aos trabalhadores uma indenização equivalente a três dias de salário, além de indenização por danos morais. No total, receberam o equivalente a cerca de 900 euros por pessoa, além do custo da viagem de volta. Para sua grande decepção, José Lima e Jurandir dos Santos souberam que não tinham direito a essas indenizações, pois elas eram pagas apenas aos trabalhadores que estavam presentes no local no momento da vistoria.

Eles então contataram um advogado, que entrou com uma ação judicial em seu nome no tribunal trabalhista. Ambos os trabalhadores finalmente chegaram a um acordo e cada um recebeu R$ 7.000 (cerca de 1.275 euros) de indenização – quase 10 vezes menos do que o valor reivindicado.

“Isso foi o suficiente para pagar minhas dívidas”,

disse Jurandir. Ele havia contraído essas dívidas para poder escapar, mas também antes da viagem, para comprar comida e roupas, e para que sua esposa pudesse sobreviver durante sua ausência. Como o advogado deles considerou que as chances de vitória na justiça eram baixas, eles concordaram com o acordo.

Essa é uma situação familiar a muitas dessas vítimas, explica Lívia Miraglia, professora associada de direito do trabalho da Universidade de Minas Gerais e especialista em trabalho escravo e tráfico de pessoas, em entrevista à Public Eye. A indenização paga também ficou dentro da faixa usual. Embora a definição abrangente e as leis sobre escravidão moderna no Brasil sejam muito progressistas, sua interpretação não é: “O judiciário branco e masculino denigre sistematicamente a classe trabalhadora”, diz Lívia Miraglia. É comum que pessoas que perdem suas bagagens em um voo recebam indenizações maiores do que aquelas que se tornam vítimas de trabalho escravo.

Além disso, os perpetradores raramente são processados:

“Nenhum proprietário de fazenda tem medo de ter que ir para a prisão por escravidão moderna”,

afirma a advogada trabalhista. Ela é coautora de um estudo que mostra que, de mais de 2.679 empregadores denunciados por esse delito entre 2008 e 2019, apenas 112 foram condenados – geralmente recebendo penas curtas que não precisavam cumprir. Livia Miraglia conclui com sobriedade:

“A escravidão moderna é um crime que compensa.”

Talvez a punição mais grave para empregadores condenados por escravidão moderna seja ver seu nome constar em um registro de acesso público. Qualquer pessoa cujo nome esteja nessa lista não recebe empréstimos de bancos estatais, o que dificulta as relações comerciais. Mas a inscrição expira após apenas dois anos. O proprietário da fazenda Mata Verde também apareceu na lista na primavera de 2024. Quando questionado sobre isso, no entanto, ele negou veementemente que praticasse escravidão ou que seus funcionários estivessem armados.

Controles ineficazes

Operadores mais acima na cadeia de suprimentos têm ainda menos a temer do que os proprietários de fazendas: cooperativas, comerciantes de café e torrefadoras como a Nestlé. Eles não seriam afetados pelo judiciário, explica Livia Miraglia. Outro problema básico é a falta de transparência nas cadeias de suprimentos. Normalmente, não é possível rastrear de quais fazendas os comerciantes e, em última análise, as empresas que processam e vendem o café obtêm sua matéria-prima. Algumas empresas, como a Nestlé, publicam listas de fornecedores com os nomes de intermediários e cooperativas, mas não das fazendas de café. Como resultado, o envolvimento das empresas de café com a escravidão moderna só pode ser revelado em casos individuais e por meio de investigações abrangentes.

A Nestlé reafirmou sua “tolerância zero” a tais incidentes há nove anos, após a publicação de um caso de escravidão moderna em sua cadeia de suprimentos de café no Brasil. Desde então, a multinacional também aumentou para 100% sua proporção de café certificado, ou seja, supostamente em conformidade com a lei e – em suas palavras – de “origem responsável” no Brasil.

Ao mesmo tempo, nem a Nestlé & Co. nem certificadoras como a 4C atenderam ainda à demanda feita por representantes dos trabalhadores e ONGs de direitos humanos há muitos anos: tornar transparentes suas relações comerciais com as fazendas de café.

As empresas, assim como as certificadoras, geralmente só tomam conhecimento de violações de direitos humanos por meio de controles oficiais. De acordo com a ONG Conectas, no entanto, tais inspeções ocorreram até o momento em apenas uma em cada mil fazendas de café brasileiras. No caso Mata Verde, a Cooabriel, fornecedora da Nestlé, rompeu relações comerciais com o produtor falho em maio de 2023, após a intervenção da polícia. Quando questionada, a certificadora 4C afirmou que “assim que a não conformidade se tornou conhecida” – por meio de reportagens na mídia regional imediatamente após – a fazenda foi “imediatamente removida do Sistema 4C”. Até então, as auditorias realizadas pela 4C não revelaram nenhuma irregularidade.

Isso não é nenhuma surpresa para o representante dos trabalhadores, Jorge Ferreira. Ele acredita que as certificações de sustentabilidade geralmente não protegem contra a escravidão moderna – uma avaliação compartilhada pelo auditor fiscal do trabalho Maurício Krepsky. Ele aprendeu com sua experiência em campo que essas certificações muitas vezes desconsideram completamente a situação real nas plantações:

As auditorias costumam ser realizadas vários meses antes da temporada de colheita. E mesmo nas chamadas inspeções ‘sem aviso prévio’, as empresas são notificadas com um ou dois dias de antecedência.

Além disso, de acordo com o inspetor, problemas importantes como o trabalho não declarado generalizado geralmente são simplesmente ignorados pelos certificadores.

Não é um caso isolado na cadeia de suprimentos da Nestlé

Nossas investigações mostram – mesmo com a falta de transparência nas cadeias de suprimentos – que a Mata Verde não é a única fazenda na cadeia de suprimentos da Nestlé onde abusos graves vieram à tona nos últimos três anos. Em 2022, por exemplo, auditores fiscais do trabalho identificaram graves violações da legislação trabalhista brasileira nas fazendas Três Irmãs e Primavera, no estado da Bahia, ao norte do Espírito Santo, que também eram fornecedoras da Cooabriel, parceira do Plano Nescafé, bem como um incidente de escravidão moderna em Três Irmãs.

Em um terceiro caso, em 4 de julho de 2023, três trabalhadores da fazenda Vista Alegre, em Patrocínio, Minas Gerais, tiveram que ser libertados de condições análogas à escravidão. Os recibos de fatura mostraram que a fazenda havia vendido sua colheita para a NKG Stockler, uma subsidiária da maior comercializadora do mundo, a Neumann Kaffee Gruppe, sediada em Hamburgo e com importantes atividades em Zug, Suíça. A fazenda recebeu pela entrega um bônus pela colheita, que foi certificada pelo selo de sustentabilidade AAA da Nespresso. A NKG Stockler aparentemente nem sabia da inspeção oficial, como pode ser visto na reação da empresa às nossas perguntas. A comercializadora afirma que “pausou” seu relacionamento comercial com a fazenda em questão, que atualmente contesta judicialmente a acusação oficial de escravidão, com base apenas em nossas evidências – e 18 longos meses após o incidente. Quando questionada, a Nestlé confirmou que o fornecedor da Nespresso havia sido “suspenso” do programa AAA “assim que tomamos conhecimento dos problemas” (veja a reação da Nestlé abaixo).

Lucro antes dos direitos humanos

Jorge Ferreira afirma que isso não chega nem perto de levar empresas como a Nestlé a simplesmente romperem seus relacionamentos comerciais com fazendas específicas em resposta à escravidão moderna. Ele acredita que elas têm a responsabilidade direta de prevenir essa prática de forma eficaz. Sua organização, a Adere, tem, portanto, apelado repetidamente à Nestlé e discutido o assunto com os representantes do grupo. A conclusão sensata de Jorge:

A Nestlé finge estar interessada nos direitos dos trabalhadores. Mas seu interesse cessa assim que se trata de implementar melhorias específicas – e pagar por elas.

Em vez disso, a empresa transfere a responsabilidade pelo cumprimento dos direitos trabalhistas e humanos – e todos os custos incorridos para isso – para os produtores de café. (Para saber mais sobre a questão dos preços geralmente excessivamente baixos que a Nestlé paga pelo café, consulte o relatório da Public Eye “ High hopes, low prices ” do México, publicado em março de 2024.)

O caso envolvendo José Lima e Jurandir dos Santos destaca que a falta de prevenção pode ter consequências dramáticas para pessoas como eles. Ambos ainda sentem o impacto até hoje. José voltou para a colheita de café no ano seguinte, em outra fazenda no Espírito Santo. Mas o fez com medo: “Achei que o dono da fazenda Mata Verde poderia me encontrar e mandar alguém me matar a qualquer momento.”

Para Jurandir dos Santos, a primeira vez também foi a última. Ele ficou traumatizado e deixou uma mensagem clara:

Gostaria de dizer apenas uma coisa às pessoas nas grandes corporações multinacionais: observem atentamente o que estão fazendo. Comprar café é fácil. A parte difícil do trabalho é colhê-lo. Somos nós, os trabalhadores, que garantimos que vocês recebam seu café em primeiro lugar. E vocês não dão valor a isso.

Reação da Nestlé

Quando questionada, a Nestlé explica que atualmente compra café de “unidades agrícolas certificadas 4C” de 500 fazendas dentro da cooperativa Cooabriel, o que representa um subconjunto do total de fazendas associadas a esta cooperativa. A empresa afirma que atualmente não compra café das fazendas Mata Verde, Três Irmãs e Primavera mencionadas aqui e que elas não fazem parte do Plano Nescafé. No entanto, a Nestlé não comenta sobre relações comerciais anteriores, incluindo com a fazenda Mata Verde, que forneceu café com certificação 4C para a Cooabriel até sua exclusão do sistema 4C em junho de 2023.

A Nestlé continua: “Também mantemos comunicação direta com a Cooabriel para enfatizar a importância de condições de trabalho seguras e justas em todas as fazendas onde compramos nosso café”. Em relação à fazenda Vista Alegre, a Nestlé afirma: “Assim que tomamos conhecimento dos problemas que você mencionou, tomamos medidas decisivas e suspendemos esta fazenda do nosso Programa de Qualidade Sustentável AAA, aguardando comprovação de que a fazenda cumpre nossos rigorosos padrões”. A fornecedora da Nestlé, NKG Stockler, confirmou que só tomou conhecimento do incidente em março de 2025, por meio da Repórter Brasil e da Public Eye.

Diversas outras questões, como se e como a Nestlé pretende garantir salários dignos aos trabalhadores da colheita, permaneceram sem resposta.

A declaração completa está disponível aqui .

Entrevista em vídeo com José Lima e Jurandir dos Santos

Os dois trabalhadores falam em detalhes sobre as condições na fazenda e sua fuga. Explicam quem acreditam ser o responsável e têm uma mensagem clara para as multinacionais e os consumidores de café.

 


Fonte:  Public Eye

Banco de bilionários da Forbes tem elo com empresa envolvida em trabalho escravo

Fundo administrado pelo grupo Daycoval vende a investidores direitos de crédito da Agropecuária Rio Arataú, flagrada utilizando mão de obra escrava em fazenda de gado na Amazônia

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Por Daniela Penha/ Edição de Bruna Borges para a Repórter Brasil 

O Banco Daycoval administra um fundo de investimentos que negocia  ativos oriundos da Agropecuária Rio Arataú, empresa de criação de gado do grupo Queiroz Galvão. O fundo tem valor inicial de R$ 78 milhões. A companhia de atividade pecuária está na Lista Suja do trabalho escravo após o resgate de cinco trabalhadores na Fazenda Arataú, localizada em Novo Repartimento (PA), em 2021. Segundo o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), o grupo trabalhava sem registro na construção de cercas e vivia em um barraco de lona no meio de uma área de mata, sem acesso à água potável e instalações sanitárias.

Essa é a segunda vez que a Agropecuária Arataú entra na Lista Suja. Em 2007, na mesma propriedade onde houve o flagrante de 2021, 11 trabalhadores foram resgatados em situação análoga à de escravo

Desde setembro de 2023 a empresa do grupo Queiroz Galvão está ligada ao  fundo de investimentos administrado pelo banco Daycoval, de acordo com documentos obtidos pela Repórter Brasil. 

Sasson Dayan e sua família, os donos da instituição, estão entre os 69 brasileiros que fazem parte da lista de bilionários da Forbes divulgada em 2024. No segundo trimestre de 2024, o banco alcançou lucro líquido recorrente de R$ 392,4 milhões. 

Em sua “Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática” o banco Daycoval afirma que não financia atividades que utilizam mão de obra análoga à de escravo. Questionada sobre o caso, a instituição bancária não respondeu. Este espaço segue aberto para esclarecimentos futuros. 

“O banco lucra em cima das atividades da empresa, que são atividades ilícitas”, destaca Maria Eduarda Senna Mury, diretora de pesquisa jurídica e litigância da Harvest, instituição que desenvolve pesquisas e projetos focados em soluções globais para a emergência climática. 

A Agropecuária Rio Arataú figura como cedente no Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Recuperados Questões Globais Não Padronizado (FIDC-ND). O cedente é quem cede os direitos creditórios a um fundo de investimento.

Entenda como funciona

Nessa modalidade de fundo de renda fixa, a instituição bancária assume os créditos que uma empresa tem a receber, como duplicatas, cheques e outros. É como se o banco antecipasse para a empresa o pagamento desses valores e transformasse esse montante a receber em “ativos” a  serem comprados e vendidos no mercado financeiro. Então, o banco vende cotas desse fundo para investidores. 

“O fundo atua comprando títulos de crédito por menos do que eles valem. Então, o lucro desse investimento vem da diferença entre o que o fundo pagou e o que ele vai receber no futuro”, explica Mury. 

Nesse caso, o banco Daycoval é o administrador do fundo e a instituição Jive Investments é a gestora da carteira dos valores mobiliários. Questionada, a Jive argumentou que o FIDC-ND da Agropecuária Rio Arataú “possui apenas os recebíveis da venda de uma fazenda vendida pela família QG (Queiroz Galvão), não possuindo qualquer vinculação com a operação da empresa, operação das terras, que resultem ou possam resultar em vínculo de trabalho” e que “esses recebíveis foram dados em pagamento de uma dívida da holding da família”. 

Um funcionário que atuava na Agropecuária Rio Arataú informou à Repórter Brasil que a fazenda onde ocorreu o resgate dos trabalhadores foi vendida em 2022. A reportagem, entretanto, não conseguiu confirmar se os créditos do fundo são advindos dessa mesma propriedade. Questionada sobre essa questão, a Jive não se posicionou. 

Questionado, o grupo Queiroz Galvão informou que não iria se manifestar. A Repórter Brasil também tentou contato com a administração da Agropecuária Rio Arataú, por meio de seus advogados, mas não obteve qualquer retorno. Este espaço segue aberto para futuras manifestações.

O alojamento dos trabalhadores resgatados era um barraco coberto com lona plástica e sem proteção contra animais peçonhentos ou interpéries, de acordo com o relatório de fiscalização (Foto: Reprodução/MTE)

Água de poça e barraco de lona

“Tinha uma poça de água que a gente usava para beber, cozinhar e tomar banho. Era muito ruim. A água muito suja”, relatou João*, um dos trabalhadores resgatados, em entrevista à Repórter Brasil. Ele foi chamado para o trabalho por um “gato” – quem alicia a mão de obra para o trabalho nas fazendas –  e já estava na propriedade há um mês no momento do resgate. “A gente pensou que era um alojamento na fazenda, mas era na mata mesmo, na selva. Não tinha como voltar. Era longe, uns 30 quilômetros da sede”. 

O resgate aconteceu durante ação conjunta da Superintendência Regional do Trabalho no Pará, vinculada ao MTE, e do Ministério Público do Trabalho, em dezembro de 2021. 

Segundo o relatório da fiscalização, os trabalhadores extraíam e lapidavam madeiras para a confecção e reparos da cerca da fazenda Arataú. Um barraco improvisado com lona e caibros de madeira era a moradia dos cinco resgatados. A água que o grupo usava para beber e cozinhar vinha de uma grota, era turva e tinha um cheiro ruim. 

Os trabalhadores não tinham instalações sanitárias ou local adequado para cozinhar, comer e dormir. Não recebiam equipamentos de proteção individual ou de primeiros socorros e estavam submetidos a “condições que aviltam a dignidade”, de acordo com relatório. Segundo as autoridades, um dos trabalhadores chegou a ficar três meses nessas condições até ser resgatado.

O alimento dos trabalhadores era preparado em fogueira feita no chão, segundo relatório de fiscalização (Foto: Reprodução/MTE)

A Agropecuária Rio Arataú recebeu dez autos de infração e foi multada em R$ 238 mil por danos morais coletivos e individuais. A empresa assinou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) se comprometendo a cumprir a legislação trabalhista. Em abril de 2024, a empresa voltou a integrar a Lista Suja, por essa autuação.

Regulamentação e transparência de fundos de investimento

Fundos de investimentos como esse, do banco Daycoval, passam à margem das normatizações sócio-ambientais, alertam especialistas. 

“Somente os estabelecimentos de financiamento público são proibidos formalmente de continuar apoiando empresas flagradas com trabalho escravo. Para os outros estabelecimentos financeiros, eu não sei de uma legislação que proíba. É aconselhado não fazer. Só isso”, avalia o frei Xavier Plassat, da coordenação Nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra) contra o trabalho escravo.  

A regulamentação dos fundos, para Mury, é o caminho para o maior controle das relações entre instituições financeiras e empresas que violam os direitos humanos. O primeiro passo, ela explica, está na transparência dos fundos. “Eles não são transparentes sobre o que compõe essas carteiras”.

*Nome fictício para preservar a identidade do trabalhador


Fonte: Repórter Brasil

Vale e trabalho escravo: como a falta de diligenciamento impacta as cadeias de fornecimento

vale

Recentemente, o Ministério do Trabalho incluiu a mineradora Vale na “lista suja” do trabalho escravo, devido a irregularidades verificadas em uma empresa que prestava serviços para a mineradora em 2015, em Itabirito, na Região Central de Minas Gerais. A Vale foi responsabilizada pela submissão de 309 trabalhadores a condições análogas à escravidão. Apesar de a mineradora ter cumprido um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais (MPT-MG) e rescindido o contrato com a empresa Ouro Verde, a inclusão na lista foi mantida devido a decisões judiciais.

Mas a lista é grande! Vinícolas Aurora, Garibaldi, Salton,Zara, Animale, M.Officer, a OAS, Odebrecht, Cutrale, Citrosuco, Cosan, Nespresso, Starbucks, JBS, Marfrig, Minerva.

Se tantas empresas cometem o mesmo erro, onde está o verdadeiro problema? Na cadeia de fornecimento. Segundo Lucas Madureira, CEO e cofundador da Gedanken, é possível identificar e mitigar ameaças relacionadas à sustentabilidade, advindas da cadeia de fornecimento, garantindo maior segurança e conformidade com as leis e regulamentações. Inclusive, contratar fornecedores de forma mais responsável, o que consiste avaliar seu desempenho ambiental e social. 

“Grande maioria dos casos de contratação de prestadores de serviços com casos de mão de obra análoga à escravidão poderiam ser evitados se as empresas fizessem diligenciamento mínimo de suas cadeias de fornecimento. A falta de processos básicos de gestão de risco de fornecedores se mostra tão evidente, que checks básicos como a verificação do capital social da empresa teriam evitado a contratação de diversos prestadores das vinícolas como da BP Bunge que aconteceram o ano passado, por exemplo. Em todos esses casos os prestadores tinham capital social para ter no máximo 20 colaboradores de acordo com a Lei, mas mesmo assim foram contratados para terem mais de 100 executando o serviço. Facilmente é possível observar a inconformidade”.

Resgates de trabalhadores em MG têm ataques e ameaças

Após resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão em Minas Gerais, deputado criticou fiscalização do trabalho e pediu mudança na norma que orienta fiscalização trabalhista no campo

café escravo

Por Leonardo Sakamoto para a “Repórter Brasil”

Após 24 traballhadores serem resgatados de condições análogas às de escravo em três fazendas de café em Nova Resende, Juruaia e Areado, no Sul de Minas Gerais neste mês, o deputado federal Emidinho Madeira (PL-MG) foi à tribuna da Câmara pedir apoio do seu partido e da bancada ruralista para mudar a norma que orienta a fiscalização trabalhista no campo.

Dados do Ministério do Trabalho e Emprego apontam que, em 2023, a atividade de onde mais trabalhadores foram resgatados foi o cultivo de café, com 300 pessoas.

Em seu pronunciamento, acusou a fiscalização de causar pânico e criticou que os policiais e servidores públicos envolvidos no combate à escravidão portem armas pesadas e fiquem um longo período em cada propriedade. Produtores de café do Sul e Sudoeste de Minas são parte da base eleitoral do deputado, que é coordenador da Frente Parlamentar do Café.

“Senhores auditores, a tinta da caneta, essa multa, é muito pesada e tira muita gente da atividade. Onde vocês passaram nessa semana, a colheita desse ano e do ano que vem dos pequenos produtores já estão comprometidos com a justiça e o nome travado”, afirmou. Propôs que, ao invés das operações de resgate, houvesse “orientação” e “diálogo” com produtores.

A “dupla visita”, quando a fiscalização primeiro orienta e só em outro dia pune no caso de manutenção da irregularidade é antiga demanda de alguns setores econômicos. Ela já é prevista pela legislação em casos de infrações leves, mas segue barrada para o crime de escravidão e trabalho infantil.

No dia seguinte, em uma reunião da Comissão da Agricultura e Pecuária, ele repetiu o discurso diante do ministro da Agricultura Carlos Fávaro, que prometeu visitar a região para isso ser “pacificado”. A questão: pacificar a fiscalização ou o trabalho escravo?

Seu pai, o produtor rural Emídio Alves Madeira, já esteve relacionado no cadastro de empregadores responsabilizados por trabalho escravo, a chamada “lista suja” pelo menos duas vezes: em outubro de 2017, por causa de um resgate de 14 pessoas em Bom Jesus da Penha (MG) ocorrido em 2016; e em março de 2017, por outra operação que envolveu 60 trabalhadores no mesmo município, mas em outra fazenda, em 2015. Madeira faleceu em 2021 por complicações da covid-19.

Em 6 de junho, uma operação da Polícia Federal teve como alvo um homem que disparou áudios com ameaças contra a fiscalização do trabalho que atua na região cafeeira de Minas Gerais. Ele prestou depoimento e teve o celular apreendido.

Carlos Calazans, chefe da Superintendência Regional do Trabalho, afirmou à coluna que a PF está investigando se ele estava agindo a mando de alguém, se estava articulado com outras pessoas e se é “gato”, como são chamados os contratadores de mão de obra a serviço de fazendeiros. Os áudios chegaram aos servidores públicos durante fiscalização em lavouras na região do município de Muzambinho, em maio, e foram encaminhados à PF, que identificou o autor.

“Se juntar todo mundo, os trabalhadores, 30 pessoas pegando café, na hora em que a fiscalização chegar lá, quebra o carro deles, mete o pau neles e desce o cacete neles. Aí, vai parar com essa pouca vergonha aí”, diz um dos áudios.

As operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que resgatam trabalhadores escravizados, são coordenadas pela Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições. Também há equipes ligadas às Superintendências Regionais do Trabalho nos estados, que também contam com o apoio das Polícias Civil, Militar e Ambiental.

Entidades repudiam ataques à fiscalização do café

A equipe de fiscalização disse à coluna que a situação encontrada nas três fiscalizações foi “bem assustadora”.

“Em todos os casos encontramos evidências de tráfico de pessoas, intermediado por gatos [contratadores de mão de obra a serviço do fazendeiro], com promessas enganosas e trabalhadores viajando sem saber o valor a ser pago. Também encontramos inexistência de registros, alojamentos degradantes, falta de água potável, de instalações sanitárias e de equipamentos de proteção, além de casos em que os trabalhadores tinham que comprar as próprias ferramentas”, afirmaram auditores fiscais.

As declarações do deputado no dia 18 de junho levaram a uma série de notas de repúdio, bem como de apoio ao combate à escravidão contemporânea, por parte de organizações da sociedade civil.

O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho afirmou que “a presença de autoridades policiais nas operações é uma medida de segurança, não um ato de intimidação aos produtores”.

“Tal medida é necessária porque os casos de agressões, ameaças, intimidações, e até assassinatos, infelizmente são constantes.” O sindicato lembra que a Chacina de Unaí, em que quatro funcionários do Ministério do Trabalho foram executados a manda de proprietários rurais, ocorreu em Minas.

O Polo Agroecológico do Sul e Sudoeste de Minas também publicou nota criticando as declarações do deputado Emidinho Madeira, no dia 26 de junho, e em defesa das ações de resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão na produção de café.

“Nossa região está em pânico, não pela fiscalização, que ainda é insuficiente, mas pela quantidade de violações de direitos e pela existência de trabalhadoras e trabalhadores em condições análogas à escravidão na cadeia produtiva do café”, diz.

A Articulação dos Empregados e Empregadas Rurais do Estado de Minas Gerais e a Comissão Pastoral da Terra divulgaram nota no mesmo dia: “A tão atacada Norma Regulamentadora (NR-31) é um importante instrumento que garante aos empregados rurais fixos e safristas o mínimo de saúde e segurança no trabalho no ambiente do trabalho rural”.

E completaram: “Atacar a NR-31 como vimos nas nos discursos dos deputados é, no mínimo, estimular a precarização do trabalho, o desprezo à da saúde e da vida dos trabalhadores rurais que são historicamente expostos ao sol, chuva, sereno, poeira e muito agrotóxicos (veneno) aplicado na agricultura, inclusive nos cafezais do Sul de Minas e do Brasil”.

Trabalho escravo contemporâneo no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.


Os tênis mais populares da Adidas estão ligados ao desmatamento e à escravidão moderna no Brasil

A Adidas criou a tendência de tênis do ano. TikTok, Instagram e as ruas estão cheias de Gazelas e Spezials da Adidas. Mas a busca pela origem do couro leva ao Brasil, onde o hype contribui para a exploração dos trabalhadores e a destruição da Amazônia

adidas tenis

Por Yara Van Heugten para a “Follow the Money” 

A mesa está repleta de garrafas de conhaque D’Ussé e champanhe Armand de Brignac a 300 euros a garrafa. É uma noite de sábado no outono de 2022. DJ EFN e rapper NORE, apresentadores do popular podcast de música Drink Champs, estão sentados em um lado da mesa; do outro lado, o convidado: o rapper, produtor e estilista Kanye West, que desde 2013 desenha coleções para a marca esportiva alemã Adidas.

O podcast ainda não completou cinco minutos quando West – que legalmente mudou seu nome para ‘Ye’ – começa um discurso difícil de acompanhar, cheio de teorias de conspiração anti-semitas. Não é a primeira vez que ele faz isso, e a Adidas já o avisou antes.

Desta vez, ele afirmou que “poderia dizer coisas antissemitas e a Adidas não pode me abandonar”.

Dez dias depois, a Adidas terminou a parceria. 

O término dessa parceria representou um sério golpe financeiro para a Adidas – mas com a ajuda de novos modelos de tênis, a empresa conseguiu escapar dos problemas monetários. 

O único problema? Seu couro contribui para o desmatamento e a exploração da floresta amazônica, revela uma investigação conjunta das organizações de pesquisa SOMO e Stand.Earth and Follow the Money. 

Ganhar dinheiro com West – e perdê-lo

As coleções ‘Yeezy’ de West foram muito lucrativas para a marca. Segundo projeções obtidas pelo The New York Times, as vendas líquidas dos tênis Yeezy dispararam de 65 milhões de dólares em 2016 para 1 bilhão de dólares em 2021. Em 2022, as vendas deveriam atingir 1,8 bilhão de dólares.

Isso significa que a separação gerou preocupações financeiras na Adidas. “West é talvez a pessoa mais criativa, eu diria, que já existiu em nosso setor”, disse o CEO Bjørn Gulden aos investidores no final de 2022. “Perder isso é uma coisa muito, muito difícil.”

Pouco depois da separação com West, o preço das ações da Adidas despencou para o nível mais baixo em seis anos. A Adidas informou que, pela primeira vez em décadas, esperava um prejuízo operacional líquido em 2023: 700 milhões de euros de prejuízo operacional líquido num volume de negócios de 21 mil milhões de euros.

Meio ano depois, quando a Adidas apresentou os resultados do segundo trimestre de 2023, as coisas já estavam a melhorar, com a Adidas a conseguir limitar os prejuízos financeiros a uma perda de 450 milhões de euros – e parte ainda graças a West: The a empresa conseguiu isso em parte devido a um estoque de sapatos Yeezy que decidiu vender, afinal; A Adidas já os havia descartado por causa do “risco de reputação”. 

Mas havia algo mais importante: a nova tendência superpopular que a marca conseguiu criar com a sua coleção ‘Terrace’, incluindo ténis como os Adidas Samba, Gazelle e Spezial. São tênis estreitos e planos com três listras nas laterais. O modelo original – inicialmente concebido para futebol de salão – está na linha de produtos da empresa desde a década de 1940.

Em meados de 2022, a Adidas, em conjunto com a marca de luxo Gucci, relançaram os tênis em cores chamativas, do rosa ao verde mar e ao laranja. Preço: 800 euros o par. Influenciadores como Bella Hadid, Hailey Bieber, Kendall Jenner e Harry Styles foram vistosvestindo-os. Para as massas, existem sósias a 120 euros o par. 

Em outubro, a Vogue chamou o Samba de “o tênis favorito das it-girls” e a hashtag #adidassamba no TikTok foi vista mais de 1 bilhão de vezes. 

Graças à enorme popularidade dos tênis, a Adidas conseguiu evitar quase completamente as consequências financeiras do desastre de Kanye West. Segundo os últimos números, a empresa espera um prejuízo de apenas 100 milhões de euros em 2023, em vez dos 700 milhões de euros inicialmente previstos. Enquanto isso, o preço das ações é quase o dobro do que aconteceu logo após o rompimento com West. 

Mas tudo isto tem um custo – e especialmente para a floresta amazónica, apesar das promessas de sustentabilidade da Adidas.

“Promessas vazias” 

No topo da  página de sustentabilidade do site da Adidas, alte3rada no final da semana passada, uma imagem aérea mostrava um campo de futebol numa área florestal, ladeado pelas palavras: “Sem um planeta bonito, não há jogo bonito”. Abaixo disso havia uma imagem de passos em solo árido e seco, com grama crescendo dentro deles. O texto ao lado: “A hora de mudar é agora”.

A marca quis mostrar aos seus clientes que está a levar as suas preocupações a sério: “Entendemos. Você já ouviu tudo isso antes. As grandes reivindicações infundadas. As promessas vazias. A informação opaca. Você merece o melhor. Precisamos de algo melhor.”

A marca desportiva quer fazer isso “focando-se” nos resíduos e nas alterações climáticas. A Adidas promete utilizar materiais diferentes – “a mudança começa com os materiais que utilizamos”, prolongar a vida útil dos produtos – “mudando a nossa mentalidade”, e reduzir as emissões de CO2 – “estamos empenhados em fazer a nossa parte”.

Entre outras coisas, a Adidas promete especificamente uma pegada de carbono 15% menor por produto até 2025 em comparação com 2017 e a eliminação progressiva do poliéster virgem até 2024, substituindo-o por poliéster reciclado. 

No entanto, a Adidas não tem metas de reutilização ou eliminação de outros materiais, como o couro que utiliza em sua coleção de calçados. Ainda assim, promete trabalhar em prol de uma cadeia de abastecimento “livre de desmatamento” até 2030

Poucos dias antes da publicação deste artigo, a Adidas ajustou a sua página de sustentabilidade. Agora a marca diz : “Sim, sabemos que somos parte do problema”. 

E, de fato, as promessas de sustentabilidade parecem estar em desacordo com a ambição de aumentar a produção dos ténis Gazelle e Spezial. 

Baixos salários, alta carga de trabalho 

A fabricante Shyang Shin Bao, de origem taiwanesa, possui duas fábricas no Vietnã, uma na Indonésia e outra em Mianmar. 

Segundo a funcionária Maria Rizkiana, todas essas fábricas produzem os tênis Gazelle e Spezial para a Adidas. Ela trabalha para uma dessas fábricas na Indonésia há três anos e meio, primeiro como planejadora e atualmente como chefe de compras. Sua fábrica está localizada na ilha de Java, a 300 quilômetros da capital Jacarta. 

“Devido à alta demanda pelos tênis Gazelle e Spezial, temos que crescer muito rapidamente”, disse ela à FTM. 

Tanto as horas extras quanto o estresse aumentam na fábrica.

A fabricante de calçados tem cerca de 7.000 trabalhadores. Em janeiro de 2023, a fábrica produziu cerca de 50 mil pares de tênis Gazelle, disse Rizkiana; em junho de 2023, esse número subiu para 600 mil pares por mês, 12 vezes mais. 

Mas há um problema: Rizkiana está tendo dificuldades para encontrar couro suficiente. 

Shyang Shin Bao só pode comprar o material para os tênis de  fornecedores aprovados pela Adidas . O couro de vacas da Índia e da China é proibido, o que a Adidas proíbe devido à falta de bem-estar animal nesses países. Isso complica o fornecimento porque esses países, juntamente com os Estados Unidos e o Brasil, são os principais produtores de couro. 

Rizkiana se recusou a indicar de onde exatamente vem o couro. 

No entanto, os fluxos comerciais internacionais podem ser acompanhados através de declarações aduaneiras de importação e exportação. 

Juntamente com as organizações de investigação SOMO e Stand.Earth, a Follow the Money verificou centenas de declarações de importação do grupo Shyang Shin Bao e dos seus fornecedores, descobrindo a origem duvidosa de alguns dos courosusado para aqueles populares tênis Adidas.

A questão da ligação da indústria da moda ao desmatamento na floresta amazônica não é nova. Em 2021, Stand.Earth publicou um  relatório ligando os principais varejistas à prática.

“Devido à grande procura pelos ténis Gazelle e Spezial, temos de crescer muito rapidamente.”  

Mas esta investigação revela que a Adidas continua a adquirir o seu couro a fornecedores activos em áreas em risco de desflorestação e não está disposta a parar de o fazer, apesar de ter sido informada dos riscos. 

Os registos de importação mostram que o grupo Shyang Shin Bao adquiriu pelo menos 2,5 milhões de quilogramas de couro de três fornecedores vietnamitas em 2023, que por sua vez compraram mais de 20 milhões de quilogramas de couro bovino a fornecedores no Brasil conhecidos por provocarem a desflorestação. 

A investigação mostra que o couro para os proeminentes calçados da Adidas é produzido no Brasil pelos maiores produtores de carne do mundo, como JBS e Minerva, para quem o couro bovino é um negócio paralelo lucrativo, e por produtores de couro bovino como Viposa, Vancouros e Fuga Couros. 

Desmatando as florestas do Brasil 

A fiscalização do trabalho do Ministério do Trabalho invadiu a fazenda de gado de Lenir Maria Pimenta, fornecedora do maior produtor mundial de couro bovino, JBS, em 12 de maio de 2021  mostra relatório do ministério. A fazenda está localizada no Pará, estado da região amazônica brasileira que faz fronteira com o Suriname. 

A floresta amazônica desempenha um papel crucial na regulação do clima da Terra. Mas isso está em risco, com os criadores de gado ateando fogo a grandes partes da floresta tropical todos os anos para que o seu gado possa pastar ali. Desde 2020, um pedaço de floresta tropical maior que a Bélgica desapareceu. 

E embora a floresta tenha sido apelidada de pulmão do planeta, atualmente ela  emite mais CO2 do que absorve. Os cientistas  alertam que o mundo está próximo de um ponto de inflexão: não demorará muito para que todo o ecossistema amazônico entre em colapso, após o qual uma grande parte da floresta se tornará uma savana seca. Em escala global, o desmatamento é responsável por cerca de 10 %de todas as emissões de CO2.

No Brasil, é ilegal destruir florestas em reservas naturais e áreas indígenas. A exploração madeireira também não é permitida nas terras dos agricultores sem autorização. No entanto, sob a presidência de Jair Bolsonaro, o poder das agências ambientais foi severamente restringido. Isso significa que as chances de ser penalizado eram mínimas. Os criadores de gado tiraram o máximo partido desta situação, transformando terras densamente florestadas em pastagens para o seu gado: estima-se que 80% do desmatamento na região Amazônica esteja ligada à pecuária,  mostram estudos .

Desde 2020, um pedaço de floresta tropical maior que a Bélgica desapareceu. 

A JBS contesta as acusações e  afirma que os couros bovinos que vende são “socialmente” e “ambientalmente” sustentáveis. A empresa escreve que possui um “sistema de rastreabilidade muito preciso” que permite aos clientes rastrear as peles compradas até a fazenda de origem. O sistema iria assim “garantir” que todos os animais adquiridos provêm de explorações que “não estão localizadas em áreas onde ocorre desflorestação” e “não utilizam trabalho forçado”. 

Mesmo antes da operação, Pimenta já conhecia as autoridades. Em 2017, o órgão ambiental nacional Ibama flagrou o pecuarista desmatando ilegalmente 186 hectares de terra. Porém, as árvores estavam sendo derrubadas em outra fazenda, possivelmente por isso a JBS não tirou nenhuma conclusão. 

Quatro anos depois, na fazenda de Pimenta, a fiscalização encontrou cinco homens que auxiliavam na criação de gado. Eles não tinham contrato e ganhavam 50 reais por dia (cerca de 7,50 euros na época). Eles moravam na propriedade, em uma cabana de madeira com grandes rachaduras nas paredes; algumas paredes estavam apenas cobertas com lona. 

Do relatório de vistoria: Sala com piso de cimento, apresentando diversos furos e fissuras que impossibilitaram a higienização e paredes de madeira com vãos significativos, tornando-as incapazes de proporcionar vedação e segurança.Do relatório de vistoria: Sala com piso de cimento, apresentando diversos furos e fissuras que impossibilitaram a higienização e paredes de madeira com vãos significativos, tornando-as incapazes de proporcionar vedação e segurança.© MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, BRASIL.

Os inspectores estavam preocupados com a segurança dos homens, argumentando que as suas condições poderiam equivaler à escravatura moderna. A cabana não oferece proteção contra animais venenosos, “especialmente cobras”, escreveram  no relatório de inspeção. Além disso, os homens guardavam a comida no chão. Beberam, cozinharam e lavaram-se com águas subterrâneas contaminadas com mercúrio “com consequências diretas para a saúde”. 

“Humilhante”, concluíram os inspetores. Trêsdos cinco homens foram libertados da fazenda naquele mesmo dia.

Nos meses seguintes à operação, a JBS comprou pelo menos mais 104 vacas da Pimenta, segundo documentos de transporte obtidos pelo Follow the Money, contendo informações sobre origem, destino e quantidade de vacas transportadas. Foram apenas dois anosapós a operação, quando o Ministério do Trabalho colocou oficialmente a fazenda de Pimenta na lista negra de sua “lista suja”, a JBS rompeu os laços com a fazenda. 

A JBS não respondeu aos pedidos de comentários. 

Pele do maior desmatador

O mecanismo de controle das empresas é tudo menos infalível, disse Paulo Barreto, engenheiro florestal e fundador do instituto de pesquisa brasileiro Imazon. 

Em outubro de 2023, o Ministério Público Federal descobriu problemascom transações da JBS em quatro estados brasileiros; dezenas de milhares de animais abatidos pela JBS vieram de áreas onde ocorreu desmatamento ilegal, de terras desapropriadas de indígenas ou de fazendas com trabalho escravo. Além disso, estes eram apenas problemas com fornecedores diretos porque eram os únicos verificados. 

Mais abaixo na cadeia de produção, os problemas só são piores. 

Um dos principais problemas é que produtores de couro como a JBS apenas verificam seus fornecedores diretos – eles não examinam onde os fornecedores obtêm suas vacas. 

Isto permite que os criadores de gado vendam vacas que foram criadas em áreas desmatadas através de uma fazenda sem problemas de desmatamento. Pode ser uma segunda fazenda de sua propriedade, uma fazenda de um membro da família ou um comerciante sem fazenda. Este último vende as vacas para o matadouro, contornando os cheques. Muitas vezes, as vacas nem sequer são movidas fisicamente. Todo o processo existe apenas no papel e é chamado de lavagem de gado, disse Baretto. 

“JBS e Minerva atuam em áreas com risco muito elevado de desmatamento”, disse. “E eles não têm controle total e verificável sobre seus fornecedores indiretos. Dessa forma, você torna muito fácil para os pecuaristas cometerem fraudes. É muito provável que grande parte do gado tenha sido proveniente indiretamente de fazendeiros que estão desmatando.”

Exatamente quanto não está claro, devido à complexidade das cadeias de abastecimento. 

Mas a ligação entre os produtores brasileiros de couro bovino e o desmatamento ilegal já foi demonstrada em numerosos casos.

Por exemplo, em novembro de 2022, a plataforma de pesquisa brasileira Repórter Brasil e o Greenpeace Brasil  descobriram um grande “lavador de gado” no oeste do estado de Rondônia: Chaulus Pozzebon, um homem anteriormente condenado por trabalho escravo e venda ilegal de madeira, que os promotores descreveram como “ um dos maiores desmatadores do Brasil”. A Minerva comprou cerca de 700 cabeças de gado de Pozzebon entre 2018 e 2022; A JBS comprou dele quase 9 mil no mesmo período. Oficialmente, eles compraram esse gado de uma fazenda sem problemas, mas documentos de transporte e imagens de drones mostraram que eles estavam de fato obtendo gado de uma área desmatada ilegalmente. 

Outra  investigação de dezembro de 2022 constatou que a Viposa e a Vancouros – que também fornecem peles para os tênis da Adidas – também compraram gado de áreas desmatadas. A Agência de Investigação Ambiental (EIA), uma ONG que investiga crimes ambientais em todo o mundo, obteve um conjunto de dados de mais de 6.500 documentos de transporte que lhe permitiram rastrear gado de uma área protegida. 

“Dois terços da área já foram destruídos”, disse Rick Jacobsen, investigador da EIA, ao Follow the Money. “É por isso que queríamos saber quem está comprando o gado.” 

Quase 5 por cento dos documentos de transporte iam directamente da área de vida selvagem para matadouros que entregavam as peles a um curtume propriedade da Viposa e da Vancouros. Outra pequena parcela do gado foi diretamente para o frigorífico da JBS. Mas na maioria dos casos, de acordo com os documentos de transporte, o gado foi primeiro para uma ou mais fazendas fora da área protegida antes de ser vendido para frigoríficos de propriedade da JBS, da Minerva ou de outros produtores de couro bovino. 

“Isso dá aos produtores a oportunidade de dizer: nossos fornecedores diretos cumprem nossa política”, disse Jacobsen. “Isso também mostra que a rastreabilidade completa do nascimento até o abate de animais individuais é necessária para garantir que o gado de regiões de alto risco como a Amazônia brasileira esteja livre de desmatamento e crime.” 

Por esse motivo, supermercados europeus como Albert Heijn, Lidl e Sainsbury romperam  relações com fornecedores brasileiros de carne bovina como JBS e Minerva. A marca de fast fashion H&M também  decidiu em 2019 não comprar mais couro brasileiro “até que existam sistemas de garantia confiáveis ​​para verificar se o couro não contribui para danos ambientais na Amazônia”. 

Tais boicotes são cruciais, disse o cientista Barreto. “Essas empresas prometem melhorar seus sistemas de monitoramento há 12 anos, mas ainda não resolveram o problema. É hora do mercado internacional ser duro e dizer: primeiro seja livre do desmatamento, depois eu comprarei de você.” 

Por enquanto, parece que a Adidas não está interessada em apertar os parafusos. Stand.Earth  apontou para a marca os riscos de desmatamento na cadeia de valor da Adidas em novembro de 2021. 

Quando a Follow the Money perguntou à marca o que ela fez com essas informações até agora, a Adidas disse que “está trabalhando com o Leather Working Groupampliar o escopo da auditoria para incluir a rastreabilidade até o matadouro até 2030. Isso aumentaria, disse Adidas, a transparência sobre o impacto que a origem dos materiais teve no meio ambiente, como o desmatamento.

Isto significa que a empresa aceita que, entretanto, os milhões de ténis Gazelle e Spezial continuem a contribuir para a desflorestação. 

No final de 2023, durante conversa com investidores, o CEO da Adidas, Gulden,  voltou a enfatizar que foram o Samba, o Gazelle e o Spezial que colocaram a empresa de volta aos trilhos após o rompimento com Kanye. Renunciar ao couro do Brasil, além da Índia e da China, causaria outro grande revés financeiro. 

No entanto, a Adidas disse à FTM que não cortará os laços comerciais com o Brasil porque com essa abordagem poderá “ter um impacto maior na prevenção do desmatamento. A marca ressalta que o couro representa apenas uma pequena parcela dos materiais que utiliza e que é um “subproduto do fornecimento de carne, que é o principal motor da pecuária”. Em 2020, a consultoria Bain & Company  estimou que o couro responde por um quarto do faturamento dos grandes frigoríficos do Brasil. 

Para o investigador da EIA, Jacobsen, a inação da Adidas demonstrou falta de compromisso.

“Isso mostra que eles não estão levando isso a sério. Até 2030, não terão feito nada significativo para manter o desmatamento fora da cadeia de abastecimento”, afirmou, referindo-se ao acordo feito pelos líderes mundiais na cimeira climática de 2021 para eliminar a desflorestação em todo o mundo até 2030. 

“Não se esqueçam”, disse ele, “deixar o gado pastar em áreas protegidas é um comportamento criminoso. São atos criminosos acontecendo. Toda empresa tem a responsabilidade de não lucrar com o crime.” 

Em colaboração com Poliana Dallabrida Repórter Brasil ), Gregg Higgs (Stand.Earth) e Max Lamb (The Counter at SOMO).


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Este texto escrito originalmente em inglês foi publicado pela “Follow the Money” [Aqui!].

Grande seguradora suíça tem contratos com fazendas responsáveis por desmatamento, violência armada e trabalho escravo no Brasil

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Por Public Eye

O grupo segurador suíço celebrou contratos com fazendas brasileiras que contribuíram para o desmatamento ou estão sob investigação por violência armada e trabalho escravo. É o que mostra uma pesquisa da Repórter Brasil, viabilizada pelo Prêmio Public Eye Investigation. De acordo com o relatório, a Swiss Re venda seguro para fazendas no Brasil cujas terras equivalem aproximadamente à área de Grisões, o maior cantão da Suíça.

Escassez de água na Amazônia, temperaturas recordes nas principais cidades e enchentes com dezenas de mortes no sul do país: o Brasil sofre cada vez mais com fenômenos climáticos extremos . São a principal razão para o aumento acentuado dos seguros agrícolas e pecuários subsidiados pelo Estado . Ao mesmo tempo, porém , a indústria agrícola no Brasil é a que mais contribui para a crise climática global e , portanto , para condições climáticas extremas – devido às suas emissões diretas , mas também através do desmatamento e da assim causada expansão de terras agrícolas. Neste contexto , é escandaloso que a Swiss Re tenha vendido pelo menos 19 apólices entre 2016 e 2022 para grandes explorações agrícolas que as autoridades provaram serem desmatadas ilegalmente . Dado que o cultivo de culturas agrícolas e a pecuária são proibidos nessas áreas restritas , estas apólices de seguro apoiavam de fato atividades ilegais .  

Isso foi revelado pela organização investigativa Repórter Brasil com dados disponíveis publicamente e pesquisas in loco . Esta reportagem foi financiada pelo Prêmio de Investigação apresentado pela Public Eye pela terceira vez . De acordo com estes dados, a Swiss Re, que em muitos países não é apenas uma empresa de resseguros, ficou em quarto lugar no ano passado em contratos agrícolas celebrados no âmbito de um programa de subsídios estatais . A área total segurada pela subsidiária brasileira do grupo sediado em Zurique no âmbito deste programa cobre 659 mil hectares, o que equivale aproximadamente ao cantão dos Grisões. Isto inclui , por exemplo , a fazenda Manto Verde, de 2.400 hectares , para cujo cultivo de soja a Swiss Re contratou impressionantes 17 apólices de seguro desde 2016. Isto independentemente do fato da Manto Verde ter sido declarada uma área restrita pelas autoridades devido a desmatamento ilegal .  

A Repórter Brasil também documentou vários casos em que a Swiss Re celebrou contratos de seguro com fazendas que cultivam ilegalmente áreas indígenas protegidas e às vezes até recorrem à violência armada. Um desses clientes era réu em um caso de  homicídio quando fez três apólices de seguro e outro está sob investigação por trabalho escravo em sua fazenda de café . Quando confrontada com estes factos , a Swiss Re, que opera em 25 países, limita-se a afirmar que “nos esforçamos para identificar riscos de sustentabilidade em todos os nossos negócios”. De acordo com o relatório de sustentabilidade do ano passado , o Grupo pretende neutralizar as suas emissões de gases com efeito de estufa até 2050. Ao mesmo tempo, porém , está a ignorar qualquer responsabilidade política climática nos seus negócios no Brasil, cujas emissões brutas provenientesde desmatamento em 2021 excederam as emissões totais. de um país como o Japão, segundo o Observatório do Clima . 


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Este texto escrito originalmente em inglês foi publicado pela Public Eye [Aqui!]. 

Starbucks: fazendas de café certificadas são flagradas com trabalho escravo e infantil em Minas Gerais

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Investigação exclusiva revela casos de descontos ilegais em salários e falta de banheiro e equipamentos de proteção em propriedades que ostentam o selo de ‘aquisição ética’ da multinacional. Representantes dos trabalhadores apontam falhas em auditorias

Maior e mais famosa rede de cafeterias do mundo, com 35 mil pontos de venda em 83 países, a Starbucks mantinha em seu programa de “aquisição ética” produtores flagrados com trabalho escravo e infantil, além de cafeicultores autuados por descontos ilegais nos salários, falta de fornecimento de água potável e de equipamentos de proteção básicos para a colheita do grão.

Ao menos quatro propriedades foram palco de problemas assim enquanto ainda eram fornecedoras da multinacional americana. Os casos são retratados no relatório “Por trás do café da Starbucks”, publicado pela Repórter Brasil (disponível em português e em inglês).

Fazendas no Brasil são origem de parte do café usado pela rede de cafeterias americana, que afirma comprar 3% do grão produzido no mundo

O documento mostra que fazendas de café em Minas Gerais onde a fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego flagrou violações trabalhistas possuem – ou possuíram até recentemente – o selo C.A.F.E. Practices, sigla para Coffee and Farmer Equity, o programa de certificação que, segundo a Starbucks, avalia fornecedores em mais de 200 indicadores ligados à transparência, qualidade, responsabilidade social e ambiental. É mais uma situação que expõe as limitações do mercado certificador.

“Independente da certificadora, o modelo é frágil, pouco transparente. Todos os anos mostramos casos de fazendas certificadas com trabalhadores sem registro, que não recebem férias, 13º”, observa o coordenador da Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere), Jorge Ferreira dos Santos Filho.

As irregularidades trabalhistas no setor não se resumem à cadeia de fornecimento da Starbucks. A Repórter Brasil já mostrou problemas semelhantes entre fornecedores da Nestlé, McDonald’s e outras grandes empresas compradoras de grãos.

Em 2022, o cultivo de café foi um dos cinco setores com maior volume de denúncias de exploração de trabalhadores no Brasil. Ao todo, 39 propriedades de café foram fiscalizadas e 159 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão.

Safrista resgatado tinha 15 anos

Um dos casos destacados é o da Fazenda Mesas, em Campos Altos, onde 17 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão em agosto de 2022. No grupo havia um adolescente de 15 anos e outros dois jovens de 16 e 17 anos.

O trabalho exposto ao sol ou à chuva e que exige manuseio de cargas pesadas – a saca de café pesa 60 quilos – está enquadrado na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil e é proibido para jovens de 16 a 18 anos. Já o trabalho de menores de 16 é proibido em qualquer circunstância, com exceção da categoria aprendiz, com requisitos como frequência escolar e tutoria.

A Mesas é administrada por Guilherme de Oliveira Lemos, que também comanda a Fazenda Ourizona e a torrefadora Café Ourizona, em Córrego Danta, e a Fazenda Bom Jesus e Pedras, em Santa Rosa da Serra.

O Café Ourizona ostenta o selo C.A.F.E. Practices, da Starbucks. Entrou no programa um mês antes do flagrante de trabalho escravo na Mesas, mostra um post no Instagram de julho de 2022. Além disso, as propriedades são certificadas pela Rainforest Alliance, selo renovado em março deste ano, mesmo após o resgate dos trabalhadores.

Evidências indicam a administração conjunta das propriedades. Trabalhadores da Fazenda Mesas que estavam na informalidade tiveram suas carteiras registradas em nome da Ourizona depois da operação dos auditores fiscais do Trabalho.

Conforme o relatório de fiscalização, o empregador não fornecia nem as ferramentas básicas para a colheita, como rastelo, bolsa e pano para armazenar grãos. Uma trabalhadora contou que precisava comprar luva nova a cada quatro dias para proteger as mãos ao colher os grãos. Os R$ 5 por luva saíam de seu bolso, assim como o valor do chapéu, de botinas, da comida e do alojamento – tudo em desacordo com as leis trabalhistas.

Descontos irregulares para pagamento de equipamentos, como a máquina derriçadeira (acima), são comuns em fazendas de café, dizem representantes de trabalhadores

Na lavoura não havia local montado para o almoço. No chão ou dentro de um ônibus, trabalhadores consumiam uma comida fria ou aquecida numa lata com álcool. Sem banheiro químico, as necessidades eram feitas no mato ou no cafezal.

Por meio de seu advogado, Lemos afirmou que não responderia à reportagem. A Starbucks admitiu que a Mesas é certificada, mas não explicou se será suspensa. “Nossos registros não mostram queixas trabalhistas ativas, litígios ou reclamações abertas contra Guilherme de Oliveira Lemos”, afirmou a empresa. A Rainforest Alliance confirmou a certificação e informou que duas auditorias foram feitas no local. “De acordo com os relatórios da Entidade Certificadora enviados à Rainforest Alliance para a auditoria de maio de 2023, não havia informações sobre essas inspeções em agosto de 2022”, alegou. Leia a íntegra das respostas aqui.

‘Erro do RH’

Outro caso de adolescente trabalhando irregularmente é o da Fazenda Cedro-Chapadão, em Ilicínea, administrada juntamente com a Fazenda Conquista por Sebastião Aluísio de Sales, esposa e filhos.

Em julho de 2022, um jovem de 17 anos foi resgatado de condições análogas à escravidão nos cafezais da família. Ele e outros 25 haviam saído de Irecê (BA), a 1.500 quilômetros de distância, para colher café nas duas fazendas. A fiscalização identificou outras 11 violações trabalhistas.

Selos de certificação e placas de “Atenção” não foram suficientes para prevenir irregularidades trabalhistas em fazendas do grupo Cedro-Chapadão, em Ilicínea (MG)

Segundo Rodrigo Sales, filho de Sebastião, a contratação do jovem de “17 anos e 9 meses” ocorreu por “erro do nosso departamento contábil de RH [Recursos Humanos]”. Documentos acessados pela fiscalização trabalhista apontam que outro adolescente, de 16 anos, havia sido contratado para colher café naquele ano.

O resgate do jovem ocorreu na Fazenda Conquista e não na Cedro, que tem o selo C.A.F.E. Practices. Mas as práticas eram as mesmas nas duas propriedades, e os trabalhadores também haviam sido contratados para atuar na Cedro. “As Fazendas Reunidas Cedro-Chapadão são um grupo, portanto a administração é feita de forma conjunta, os trabalhadores safristas estão cientes do cronograma de trabalho para colheita, que se inicia na Fazenda Conquista e segue para as demais fazendas conforme a maturação do café”, admitiu Rodrigo Sales.

Alojamento de trabalhadores temporários do grupo Cedro-Chapadão; em 2022, um jovem de 17 anos foi resgatado de condições análogas à escravidão na colheita da empresa

A fiscalização diz que o empregador não disponibilizava água potável e equipamentos de proteção, como luvas, chapéus e botas. No alojamento não havia roupas de cama, armários nem local apropriado para refeição. O grupo ainda precisou pagar pelas passagens de ônibus desde Irecê, o que era obrigação do contratante. Em depoimento, o jovem resgatado disse que lhe foram descontados R$ 400 da passagem, além de despesas de alimentação.

Sebastião Sales pagou cerca de R$ 6 mil em rescisões e danos morais. Rodrigo Sales se defende: “As Fazendas Reunidas Cedro-Chapadão jamais submeteram qualquer trabalhador a condições degradantes, trabalho forçado ou condições análogas à escravidão”. Segundo ele, a Cedro foi certificada pela C.A.F.E. Practices em 2021, mas só participou do programa em 2022 e não houve comercialização com a Starbucks no período. Já a multinacional se limitou a dizer que a propriedade não está mais ativa no programa, sem informar quando saiu e o porquê. Leia a íntegra dos esclarecimentos aqui. 

Reincidentes

Também detentora do C.A.F.E. Practices, a empresa familiar Bernardes Estate Coffee, dona de duas fazendas em Patrocínio, é reincidente em violações.

Em 2019 foram nove multas por não oferecer equipamentos de proteção individual (EPIs) nem material para primeiros socorros gratuitos, não fornecer papel higiênico, nem chuveiros em quantidade suficiente, não garantir local adequado para refeições e tampouco uma caixa d’água protegida contra contaminação. Três anos depois, José Eduardo Bernardes foi autuado por 16 infrações, entre elas não possuir os recibos de pagamento de empregados, não oferecer treinamentos exigidos por lei e não garantir banheiros na frente de trabalho.

Repórter Brasil esteve na fazenda neste ano e testemunhou a repetição de problemas. Constatou que nem todos utilizavam EPIs. Trabalhadores relatam que são recrutados em cidades distantes, mas o contrato só é assinado quando chegam, estratégia usada para burlar o pagamento do transporte. Contam também que os patrões cobram aluguel dos que se hospedam num alojamento da família.

Colheita na Bernardes Estate Coffee, em Patrocínio (MG). Trabalhadores colhem o café, jogam os frutos na lona, separam os galhos e enchem sacos de 60 kg

A Bernardes Estate Coffee não respondeu às perguntas enviadas por e-mail. A Starbucks confirmou que a empresa é certificada, disse que passa por investigações, mas se negou a compartilhar detalhes. Leia a íntegra.

Outro caso de reincidência é o do produtor Carlos Augusto Rodrigues de Melo, presidente da Cooxupé, maior cooperativa de cafeicultores do país e principal fornecedora da Starbucks, segundo dados de exportações acessados pela Repórter Brasil. Propriedades da família Melo foram autuadas por descumprimento de regras trabalhistas em 2021 e em 2022.

Em 2021, uma fiscalização constatou descontos ilegais em salários para aquisição de máquinas derriçadeiras e combustível para a colheita na Fazenda Pedreira, em Cabo Verde (MG). No ano seguinte, outra fazenda da família, a Palmital, recebeu 16 autos de infração por não pagar direitos trabalhistas, como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e a multa de 40% em demissão sem justa causa.

Os problemas persistem. Neste ano, a Repórter Brasil encontrou no local trabalhadores provenientes do Vale do Jequitinhonha, norte de Minas, que dizem trabalhar nas lavouras por falta de outras oportunidades. “Gostar, a gente não gosta, mas a necessidade faz o trabalho ficar maravilhoso”, afirmou um rapaz de 24 anos que já tinha perdido dez quilos em um mês.

O aspecto dos pequenos alojamentos (quarto, cozinha e banheiro) denota descuido com a limpeza. A reportagem constatou paredes de banheiro encardidas do chão ao teto. Não há área para refeições, preparadas em um fogão de duas bocas comprado pelos trabalhadores. Os empregados dizem que o gás de cozinha também sai do bolso deles, assim como cobertores e travesseiros, o que contraria a lei. A água de consumo e de banho é armazenada em um antigo tanque de combustível.

Alojamento de trabalhadores da Fazenda Pedreira, ao fundo, e antigo tanque de gasolina utilizado para armazenar a água consumida pelos safristas

Em nota, a Fazenda Pedreira se limitou a dizer que “cumpre a legislação trabalhista” e que segue “as determinações exigidas para obtenção de certificações internacionais”. A propriedade não negou relação com a Starbucks, mas não esclareceu quando foi certificada. A Starbucks afirmou que o selo da Pedreira está “expirado”, sem informar quando isso ocorreu. Já a Cooxupé afirmou que garante a rastreabilidade de seus produtos e que respeita normas ambientais, sociais e legais. Todos os esclarecimentos podem ser lidos, na íntegra, aqui.

Sem surpresa

As violações ocorrem num setor que está em quarto lugar em receita no ranking de receita da balança comercial do Brasil. Em 2022, foram 52,8 milhões de sacas colhidas, o que garante ao país o posto de maior exportador mundial do produto. Na ponta da cadeia, a Starbucks Corporation, que compra cerca de 3% do café produzido no mundo, registrou lucro líquido de US$ 3,2 bilhões em 2022.

Nesse cenário, não há “desculpas” para não garantir a contratação formal de safristas e seus direitos trabalhistas, diz Gustavo Ferroni, da Oxfam Brasil: “Isso não depende de uma articulação de políticas públicas, mas do próprio setor”.

A Starbucks Corporation registrou lucro líquido de US$ 3,2 bilhões em 2022. Fazendas fornecedoras da rede são certificadas por programa próprio de aquisição ética (Foto: Asael Peña/Unsplash)

Em 2020, a organização calculou em 41% a lacuna entre o salário médio nas lavouras em Minas e um salário digno, que é aquele capaz de contemplar gastos com alimentação, moradia, educação, saúde, vestuário e outras necessidades essenciais, conforme parâmetros dGlobal Living Wage Coalition (Coalizão Global de Salário de Bem Estar).

Para Ferroni, a C.A.F.E. Practices seria mais efetiva se inspeções ocorressem durante a safra, se as auditorias fossem verdadeiramente surpresas (as visitas são avisadas com antecedência) e se houvesse diálogo com atores de fora das fazendas, como sindicalistas.

A opinião é compartilhada por Jorge Ferreira dos Santos Filho, coordenador da Adere. “Se os produtores são avisados que a fazenda será auditada, não existe auditoria-surpresa”, conclui o representante dos trabalhadores.


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Este texto foi originalmente publicado pela Repórter Brasil [Aqui!].

2023: resgate de trabalhadores escravizados no campo sobe 44% e atinge pico em 10 anos, diz CPT

Brasil bate recorde e faz o maior resgate de vítimas de trabalho escravo no  campo para um 1º semestre em 10 anos | Agronegócios | G1

Por Ed Wanderley para a Agência Pública

A cada dia do primeiro semestre de 2023, quase oito pessoas foram resgatadas de trabalho escravo (análogo à escravidão) no campo, em contexto de conflitos rurais. No primeiro semestre deste ano, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o total foi de 1.408 pessoas salvas desta condição, a maior marca para os seis primeiros meses do ano na última década (2014-2023) — e um aumento de 44% dos salvamentos em relação ao mesmo período do ano passado.

Das 102 ações de resgate realizadas neste ano, envolvendo autoridades policiais e ministérios públicos, a maioria das violações de condições de trabalho foram flagradas na indústria sucroalcooleira, da cadeia produtiva da cana-de-açúcar. Na sequência, aparecem lavouras permanentes, agronegócio e mineração, desmatamento, produção de carvão vegetal e a pecuária.

“Constatamos recentemente uma queda desses casos na produção de cana, que chegou a praticamente zero (2020) e, por isso, criamos a falácia de que [o trabalho escravo setor] acabou. Mas não é verdade. E vimos esses dados ressurgirem, em 2021, 2022. E a questão é que casos assim não costumam afetar cinco, dez pessoas; o número é muito maior. Neste ano, em poucos casos em Goiás e São Paulo, já chegamos quase no total”, afirma à Agência Pública o coordenador da campanha “De olho aberto para não virar escravo”, frei Xavier Plassat, da CPT do Tocantins.

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Conflitos atingiram mais de meio milhão de pessoas

Apenas em 2023, 973 conflitos no campo foram registrados pela CPT, 714 deles, disputas por terras — maior fatia do total levantado, seguido pelo trabalho análogo à escravidão rural. A estimativa é que 527 mil pessoas, de um total de 101.984 famílias, tenham sido atingidas durante esses episódios, direta ou indiretamente — de despejos a danos de bens materiais, roçados e até residências.

Os abusos no campo passam longe de incomuns e foram base para o desenvolvimento do Mapa dos Conflitos, uma parceria entre a Agência Pública e a CPT, que mostra como se relacionam os conflitos no campo com desmatamento, queimadas, violência, desigualdade, agrotóxicos, água e mineração na Amazônia Legal entre os anos de 2011 e 2020. Desde então, os crimes de ameaças de morte e tentativas de assassinato caíram na área, ainda que outros tipos de violência continuem em ascensão. 

A maior parte dos registros apontam o Pará como principal palco dos conflitos (327), seguido de Roraima (134) e Mato Grosso (45).

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Indígenas e amazônicos são os mais atingidos

As violências sofridas no contexto dos conflitos do campo vão além das agressões e ameaças e passam até mesmo por contaminações dos alimentos — inclusive por agrotóxicos. Nesse cenário, os indígenas (38,2%), seguidos da população sem terra (19,2%), são as maiores vítimas dessa disputa.

Ainda aparecem com destaque posseiros, quilombolas, assentados e ribeirinhos. E do outro lado do conflito, em geral, aparecem os donos de terras, ligados ao agronegócio, e os próprios governos federal e estadual — em geral por permitir que áreas invadidas se mantenham sob domínio distinto de sua finalidade (a exemplo de garimpos ilegais em terras indígenas demarcadas ou não).

“Muitas vezes, as empresas querem impor algumas dessas concessões sem escutar as comunidades, então os povos reforçaram que quem manda nos territórios são eles, que agirão para impedir essas ondas de violência”, explica o agente da CPT no Pará, Francisco Alan Santos.

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Edição: Thiago Domenici


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Este texto foi originalmente publicado pela Agência Pública [Aqui!].

Justiça condena Cargill por trabalho escravo e infantil de fornecedores de cacau

MPT defendeu responsabilidade de multinacional por “fingir que não está vendo” o uso de mão de obra infantil e análoga à de escravo em fornecedores de cacau; empresa pode recorrer

cacauO MPT cobra a responsabilização de toda a cadeia produtiva do cacau, incluindo as indústrias que compram insumos de produtores rurais autuados por irregularidades (Foto: Sidney Oliveira/Agência Pará)

Por Daniel Haidar para a Repórter Brasil

A multinacional Cargill foi condenada pela Justiça do Trabalho, em primeira instância, por práticas de trabalho escravo e infantil em plantações de cacau de seus fornecedores no Brasil. A empresa ainda pode recorrer da decisão.

A condenação é resultado de uma Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). O órgão cobra a responsabilização de toda a cadeia produtiva do cacau, incluindo as indústrias que compram insumos de produtores rurais autuados por irregularidades.

Em sentença proferida no dia 18 de setembro, a 39ª Vara do Trabalho de Salvador determinou que a empresa pague uma indenização de R$ 600 mil por danos morais coletivos, a serem aplicados em projetos de proteção a crianças. Inicialmente, o MPT havia solicitado uma indenização de R$ 119 milhões.

Fundada nos Estados Unidos, a Cargill é responsável pelo processamento de grande parte do cacau produzido no país. Em nota enviada à Repórter Brasil, a empresa afirma que “não tolera tráfico humano, trabalho forçado ou infantil em suas operações ou cadeia de suprimentos”. A multinacional alega ainda que aplica “medidas imediatas” para suspender fornecedores flagrados em violações. Leia aqui a íntegra da nota enviada pela Cargill.

Ação do MPT se baseou em tratados internacionais

De acordo com os procuradores, a Cargill se omitiu “do dever legal de coibir e prevenir” que seus fornecedores utilizem mão de obra infantil ou que submetam trabalhadores a condições típicas da escravidão. O MPT ingressou com a ação após compilar diversos flagrantes dessas violações em fornecedores da multinacional.

Para os procuradores que assinam a ação, mesmo depois dessas infrações, a Cargill não adotou mecanismos para evitar a repetição dos problemas.

“Empresas que lucram e se beneficiam do trabalho escravo e infantil dizem que não têm relação direta ou de emprego [com os fornecedores]. Agora tivemos essa virada de chave, exigindo também a responsabilidade [de monitorar o cumprimento da lei] trabalhista”, afirma a procuradora Margaret Matos de Carvalho, uma das responsáveis pela ação contra a Cargill. Ela diz ainda que a ACP exige que a empresa acompanhe de perto as condições de trabalho nas propriedades dos fornecedores.

A responsabilização das gigantes do setor faz parte de uma estratégia do MPT, inspirada em obrigações assumidas pelo Brasil em tratados internacionais. Os procuradores também tomam como base o decreto federal com as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos. O objetivo é combater violações aos direitos humanos e estimular relações éticas em toda a cadeia produtiva beneficiada por trabalho escravo ou infantil.

Histórico de violações em fornecedores

Ao menos 148 trabalhadores foram resgatados em fazendas de cacau durante fiscalizações realizadas entre 2005 e 2019 pelo governo federal. Flagrantes de violações se concentram na Bahia e no Pará, líderes na produção de cacau no Brasil (Foto: Sidney Oliveira/Agência Pará)

A ação contra a multinacional foi proposta em 2021 por um grupo de procuradores dedicados ao combate ao trabalho infantil e à escravidão. Na ACP, eles listaram algumas fiscalizações que comprovaram casos de trabalho escravo ou trabalho infantil entre fornecedores da Cargill.

Em 2010, foram resgatados 42 trabalhadores em uma fazenda dede cacau que fornecia para a empresa em Medicilândia, no Pará – no local, havia três menores de idade que ajudavam os pais na colheita. Em 2013, nessa mesma cidade, outro fornecedor da Cargill foi autuado por trabalho infantil. Em 2019, autoridades constataram que essa fazenda ainda explorava crianças.

Na sentença, a juíza Naiara Lage Pereira Bohnke argumentou que “não se busca a atribuição de responsabilidade da Demandada [a Cargill] diretamente pelas violações a direitos trabalhistas observadas ao longo da cadeia produtiva do cacau”.

Ainda segundo a sentença, o pedido do MPT pede a condenação da Cargill “a partir da perspectiva de que a empresa, dado o seu poder de controle e influência, não deve se omitir diante da realidade que se impõe (condições de trabalho análogo ao de escravo e trabalho infantil) e que tende a ser perpetuar se ações efetivas não forem devidamente tomadas”.

“A Cargill foi condenada por permitir trabalho escravo e trabalho infantil. A empresa finge que não está vendo. Por isso, está sendo condenada. É a responsabilidade da devida diligência”, argumentou a procuradora Carvalho em entrevista à Repórter Brasil.

Formalização de contratos com fornecedores

No processo, advogados da Cargill alegaram que a empresa não podia ser responsabilizada pelas práticas de seus fornecedores, porque não possui qualquer relação de trabalho com produtores de cacau e também porque não tem “poder de polícia” para inspecionar fazendas.

A multinacional alegou ainda que já exige em contratos que seus fornecedores declarem não utilizar mão de obra infantil ou análoga ao trabalho escravo.

Além da indenização, a Justiça também determinou que a Cargill formalize, em até 30 dias, contratos com produtores e fornecedores de cacau, com a inclusão de cláusulas sociais contra a utilização de trabalho infantil. A multinacional tem 60 dias para criar um mecanismo de controle “no âmbito dos departamentos de compras”.

A sentença determina ainda que a empresa crie, em até três anos, campanha publicitária permanente contra trabalho infantil e escravo.

Produção concentrada no Pará e na Bahia

Um relatório da Repórter Brasil mostrou que pelo menos 148 trabalhadores foram resgatados em fazendas de cacau durante fiscalizações realizadas entre 2005 e 2019 pelo governo federal. Flagrantes de violações se concentram na Bahia e no Pará, líderes na produção de cacau no Brasil.


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Este texto foi originalmente publicado pela Repórter Brasil [Aqui!].