Tarcísio cede a lobby pró-mercúrio e veta projeto que protege saúde e meio ambiente

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Entre proteger a saúde dos paulistas, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, preferiu abraçar os negacionistas e impediu o banimento do uso do mercúrio em tratamentos dentários

Por Cida de Oliveira

Governador ouviu órgão negacionista e vetou agenda para banimento de metal altamente tóxico em obturações dentárias, que protege de imediato gestantes, lactantes e menores de 15 anos. Canetada contraria acordo assinado pelo Brasil  

São Paulo – O governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) aproveitou as atenções voltadas ao primeiro turno das eleições municipais para vetar integralmente uma medida de interesse da população. Trata-se do Projeto de Lei 1.475/2023, de autoria do deputado Maurici (PT), que disciplina no estado o uso do amálgama à base do metal altamente tóxico em restaurações dentárias. E proíbe, de imediato, a aplicação desse tipo de obturação em gestantes, lactantes e menores de 15 anos, grupos mais vulneráveis aos graves efeitos do mercúrio sobre a saúde. Caberá ao Legislativo avaliar se mantém ou derruba o veto.

Para a coordenação da Aliança Mundial para a Odontologia Livre de Mercúrio no Brasil, a canetada de Tarcísio reforça seu alinhamento com setores negacionistas. No caso, de entidades que defendem a continuidade do uso do metal e que desprezam os estudos científicos que comprovam os prejuízos que trazem à saúde e ao meio ambiente. E também o seu distanciamento de agendas internacionais sobre o tema, das quais o Brasil é signatário.

Em artigo publicado neste sábado (12), os coordenadores da aliança, Jeffer Castelo Branco, Mari Polachini e Rafaela Rodrigues da Silva revelam que o governo Tarcísio acolheu pedido de veto encaminhado pelo Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CROSP), que defende a continuação do uso do metal tóxico. “Esse mesmo Conselho informou ao governador que as normas técnicas existentes ainda fundamentam a possibilidade de continuidade da utilização do amálgama de mercúrio”, afirmam os cientistas em trecho da publicação.

Desde que o projeto do deputado petista foi apresentado, em meados de 2023, o CROSP e a Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica intensificaram sua campanha pró-mercúrio nas redes sociais e na mídia tradicional. Com os mesmos argumentos pela continuidade, excluíam aqueles da Organização Mundial de Saúde (OMS), que alertam para os perigos da exposição ao metal, que mesmo em pequenas quantidades pode causar sérios problemas de saúde.

Ao serem inaladas, já que evaporam mesmo sob temperaturas negativas, suas partículas chegam à corrente sanguínea e podem se acumular em diversos órgãos. Em casos de gestantes, atravessam a barreira placentária. E podem causar prejuízos ao sistema nervoso central do feto, além de outras malformações e danos irreversíveis. Não é à toa que o mercúrio é um dos dez principais produtos químicos que causam as maiores preocupações à saúde pública.

A aliança pela odontologia sem mercúrio destaca ainda que, em seu veto, Tarcísio de Freitas endossa também outra tese negacionista do CROSP, a da inexistência de evidências significativas à saúde do paciente ou do profissional. “É uma verdadeira afronta ao princípio da precaução. Sabemos da farta evidência científica dos males causados pelo mercúrio, um metal tóxico não essencial para o corpo humano. Esse é o motivo da existência de uma Convenção Internacional assinada por cerca de 140 países e ratificada pelo Brasil em 2017. O mercúrio lançado pela ação humana já é mais um entre os maiores poluentes que ameaçam a saúde humana e ambiental”, afirmam os coordenadores.

Eles se referem à Convenção de Minamata, criada na ONU para proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos nocivos das liberações de mercúrio e seus compostos. E principalmente para evitar que se repitam tragédias como a da Baía de Minamata, no Japão, causada por vazamentos da antiga indústria química Chisso entre as décadas de 1950 e 1960. Houve contaminação da água, de peixes, de animais e aves marinhas, que passaram a manifestar alterações em seu comportamento. Na sequência começaram a nascer crianças com graves deformidades, cegueira, surdez e danos ao sistema nervoso central.

Após as mortes e a pressão popular vieram os estudos, que confirmaram o mercúrio como agente causador. Ao todo, até hoje, são estimadas em mais de 70 mil as vítimas em Minamata, sendo pelo menos mil mortos.  De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em 2019 cerca de 2 milhões de pessoas em todo o mundo morreram devido à poluição química. Muitas das quais, segundo especialistas, em consequência do mercúrio.

Um relatório do Petit Comité do Parlamento Europeu classifica o mercúrio como um agente desregulador endócrino. E segundo a definição da OMS, “um desregulador endócrino é uma substância que altera a função do sistema endócrino e, consequentemente, causa efeitos adversos à saúde em um organismo sadio, ou em sua descendência”.

A opção de Tarcísio pelo negacionismo das entidades do setor lembra muito seu padrinho político Jair Bolsonaro (PL) durante a pandemia de covid. Na época, o então mandatário defendia o uso da cloroquina, apesar de não ter comprovação científica para essa finalidade. Mesmo assim, o Conselho Federal de Medicina (CFM) chegou a regulamentar o uso do medicamento nesse sentido. E até a defender os médicos que o utilizaram apesar de conhecer os riscos envolvidos.

Desta vez, como assinala o grupo que luta pelo banimento do mercúrio na prática odontológica, o que se constata “é a existência de um Conselho negando a Convenção de Minamata, bem como o seu apoio institucional à proteção da saúde e do meio ambiente, inclusive da população que precisa do serviço público”.

Ainda conforme o artigo deste sábado, há a constatação de um “lobby pró-mercúrio que se espraia pelos governos e repartições públicas”. E que “uma parte influente de profissionais alinhados à ideologia da velha guarda, não está indo ao encontro das pautas populares e protetivas”. O problema, alertam os especialistas, é que como sempre acontece, é que a população mais carente e periférica que vai continuar recebendo o tratamento com mercúrio. “Em resumo, aos menos abastados, mercúrio, enquanto os mais abastados que podem, se utilizam das opções menos invasivas, mais seguras e estéticas das clínicas privadas”.

Assim, ao fechar com um conselho profissional elitista, que conspirou contra uma lei consonante com um tratado internacional, aprovada pelo Legislativo eleito pelo povo, o governador também sinaliza para a injustiça socioambiental em sua gestão. Segundo a Aliança Mundial para a Odontologia Livre de Mercúrio no Brasil, pessoas negras têm menor chance de substituição de amálgama de mercúrio por restaurações de resina composta que as brancas. Do mesmo modo, adultos com alto nível de escolaridade foram mais propensos de terem as suas restaurações posteriores de amálgama substituídas por resinas compostas. Ou seja, é o racismo ambiental, já que se trata de maior possibilidade de exposição química das minorias a um dos maiores poluentes do mundo.