90% das gestantes brasileiras consomem ultraprocessados; obesidade afeta três em cada dez adultas

obesidade em gestantesApesar da esperada alta participação de ultraprocessados, houve queda da participação de bebidas adoçadas na dieta das gestantes 

Agência BORI

Uma pesquisa conduzida pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e Universidade Federal do Ceará (UFC) observou o aumento da obesidade entre gestantes brasileiras de 2008 a 2022. Entre gestantes adultas, a prevalência passou de 13,3% para 29,9%. Entre adolescentes grávidas, evoluiu de 4,5% para 10,4%. O crescimento médio anual da obesidade nesses dois grupos foi de 5,2% e 5,9%, respectivamente.

Publicado na Revista Epidemiologia e Serviços de Saúde na sexta (21), o estudo também mostra o elevado consumo de ultraprocessados – como biscoitos recheados, salgadinhos e bebidas açucaradas: embora a variação anual tenha sido estável, 90% das gestantes relataram ingerir ao menos um desses produtos no dia anterior ao levantamento de dados, prevalência bem acima da média de 18% verificada entre a população brasileira.

Os pesquisadores realizaram uma análise de série temporal utilizando mais de 6,5 milhões de dados de peso e altura e mais de 319 mil registros de consumo alimentar de gestantes adultas e adolescentes cadastradas do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan). Por limitações metodológicas, não é possível relacionar diretamente o alto consumo de ultraprocessados e o aumento da prevalência da obesidade entre as gestantes. Entretanto, os autores consideram que a tendência pode ser um reflexo do consumo contínuo de ultraprocessados, que são alimentos com excesso de calorias e baixa qualidade nutricional.

O Nordeste foi a região brasileira com maior frequência no consumo de ultraprocessados por gestantes, especialmente adultas. Entre 2015 e 2022, o consumo anual de macarrão instantâneo, salgadinho ou biscoito salgado cresceu 1,8%, enquanto o de biscoito recheado, doces ou guloseimas aumentou 1,6% na região. Entre as gestantes adolescentes, o Nordeste também registrou um crescimento significativo no consumo de hambúrgueres e/ou embutidos, com um aumento de 4,6% ao ano.

Embora a alta participação de ultraprocessados na alimentação de gestantes fosse esperada, o grupo de pesquisa identificou que a variação percentual do consumo de bebidas adoçadas por gestantes adolescentes diminuiu 1% no Brasil entre 2015 e 2022, e 1,6% na região Norte. “A redução deste consumo entre gestantes é um achado inédito em nosso estudo. Tendências semelhantes já vinham sendo observadas na população adulta brasileira, especialmente pela diminuição da presença de refrigerantes nos domicílios”, conta a pesquisadora da UFC Sthefani da Costa Penha, uma das autoras do estudo.

Segundo a autora, essa mudança pode refletir os efeitos de políticas públicas e ações de educação alimentar e nutricional implementadas nos últimos anos, como a publicação da segunda edição do Guia Alimentar para a População Brasileira, em 2014, e os seus fascículos complementares.

Para a equipe, a identificação da elevada e estável prevalência de ultraprocessados na dieta e o aumento da obesidade ressaltam a necessidade de ações de vigilância alimentar e nutricional, estratégias de prevenção e programas de educação alimentar e nutricional. “Investir na qualificação e ampliação da cobertura desses registros é essencial para que se possa avançar na promoção da alimentação adequada e no cuidado nutricional das gestantes”, conclui Sthefani Costa.


Fonte: Agência Bori

Brasileiros mais expostos a riscos alimentares: Alimentos ultraprocessados estão substituindo alimentos in natura e minimamente processados

alimentos ultraprocessados, como bolachas tipo cream cracker e salgadinhos

Ultraprocessados estão mais populares e tomando espaço de alimentos in natura. Foto: Vu Nghi Thai / Unsplash

Agência BORI

Os alimentos ultraprocessados – produtos industriais ricos em açúcar, sal, gorduras e aditivos, como aromatizantes e emulsificantes – vêm ganhando espaço nos carrinhos de compras e nos pratos das pessoas ao redor do mundo. A tendência é detalhada em uma coletânea de estudos publicada na última terça-feira (18) na revista The Lancet, uma das mais respeitadas na área da saúde. Os pesquisadores alertam que o avanço desses produtos exige medidas coordenadas para reduzir seu consumo, já que o hábito está ligado ao aumento do risco de doenças crônicas e morte precoce.

A coleção temática foi produzida por um grupo internacional de 43 pesquisadores, com liderança de cientistas do Brasil, Austrália e Chile. Nomes de destaque, como Marion Nestlé, professora emérita da Universidade de Nova York (NYU) e referência mundial em nutrição, e Gyorgy Scrinis, que cunhou o termo “nutricionismo” (a ideia de reduzir os alimentos apenas aos seus nutrientes), estão entre os autores. Cada artigo da série aborda um aspecto distinto do tema. Enquanto o primeiro revisa as evidências científicas acumuladas desde a criação do conceito de ultraprocessados e sua relação com a saúde, o segundo propõe um conjunto de políticas coordenadas para regular e diminuir a produção, a publicidade e o consumo desses produtos. Já o terceiro discute como o avanço dos ultraprocessados é impulsionado por grandes corporações globais, não apenas por escolhas individuais.

A série chama atenção para o avanço expressivo dos ultraprocessados na alimentação global. Em países como Espanha e China, a proporção de energia proveniente desses produtos triplicou nos últimos 30 anos. No México e no Brasil, esse percentual passou de 10% para 23% em quatro décadas. Já nos Estados Unidos e no Reino Unido, o consumo segue alto: acima de metade das calorias ingeridas há pelo menos 20 anos. Ana Clara Duran, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das autoras do estudo, explica que o aumento é resultado de uma combinação de fatores. “A conveniência constitui um determinante estrutural fundamental, uma vez que são itens prontos para consumo ou que exigem preparo mínimo”, declara. “As escolhas também são moldadas por normas sociais, práticas familiares e reforço durante a infância, além da influência do marketing”, complementa.

Segundo os pesquisadores, a mudança global no padrão alimentar traz consequências importantes para a saúde. O alto consumo de ultraprocessados está ligado a maior ingestão calórica, pior qualidade nutricional e exposição contínua a aditivos e compostos químicos potencialmente prejudiciais. As evidências também apontam um risco elevado de diversas doenças crônicas, como obesidade, diabetes tipo 2, problemas cardiovasculares, depressão e até morte precoce. “Esses produtos são formulados para maximizar a recompensa sensorial, combinando açúcar, sal, gorduras e aditivos de maneira a torná-los extremamente palatáveis e incentivar o consumo excessivo”, destaca Duran.

A coletânea também apresenta um conjunto de estratégias para frear o avanço dos ultraprocessados e estimular escolhas mais saudáveis. “É fundamental adotar políticas públicas regulatórias que tornem o consumo desses produtos menos acessível e atrativo, como o aumento de impostos e o incentivo à produção e comercialização de alimentos in natura”, afirma a autora. Duran reforça ainda a necessidade de ampliar a transparência dos rótulos, fortalecer a regulação da publicidade – especialmente a voltada ao público infantil – e implementar políticas que limitem a oferta de ultraprocessados nas escolas. “A exposição precoce a alimentos hipersaborosos, associados à conveniência e à sensação de recompensa, molda padrões alimentares que podem se manter por toda a vida”, completa.

A equipe do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS/USP), responsável por desenvolver a linha utilizada na produção dos trabalhos, pretende aprofundar o conhecimento sobre o tema. “O grupo seguirá trabalhando na geração de evidências que ligam o consumo de ultraprocessados a desfechos de saúde, na geração e avaliação de impacto de políticas públicas que restringem seu consumo e aumentam o consumo de alimentos in natura e minimamente processados”, declara Duran, que também reforça o objetivo de investigar a interferência da indústria de ultraprocessados na regulação de políticas alimentares.


Fonte: Agência Bori

Lobby de ultraprocessados uniu agro, varejo e indústria contra ‘imposto do pecado’

Estudo mostra como lobby atuou no Congresso para não só incluir produtos ultraprocessados na cesta básica, zerada de impostos, mas também para evitar a tributação extra a itens prejudiciais à saúde, prevista na reforma tributária

Por Hélen Freitas | Edição Carlos Juliano Barros para a Repórter Brasil

Representantes da indústria de alimentos, do agronegócio e dos supermercados se uniram para tentar excluir os ultraprocessados do chamado “Imposto do Pecado”, criado pela reforma tributária sancionada em janeiro pelo presidente Lula (PT). É o que mostra um estudo realizado pelo Idec (Instituto de Defesa de Consumidores) e pela ACT Promoção da Saúde, obtido pela Repórter Brasil

De acordo com a publicação, o lobby desses setores atuou no Congresso Nacional para não só inserir alguns ultraprocessados na cesta básica, zerada de impostos, mas também para evitar a tributação extra a esses itens. Este mecanismo é previsto na reforma por meio do Imposto Seletivo (IS), apelidado de “Imposto do Pecado” por ter como alvo cigarros e bebidas alcoólicas, dentre outras mercadorias nocivas à saúde e ao meio ambiente.

A reforma tributária vai criar uma alíquota padrão por volta de 28%, a ser cobrada da maioria das mercadorias. A cesta básica é uma das exceções: os produtos serão totalmente isentos de impostos. Em alguns casos, itens podem ter tributos reduzidos em mais da metade. Já os enquadrados no IS terão taxação superior a 28%.

Evidências científicas associam o consumo de ultraprocessados – como miojo, bolacha recheada e suco de caixinha – a 57 mil mortes precoces ao ano no Brasil  e ao desenvolvimento de 32 doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). Câncer, diabetes e obesidade são alguns exemplos. A classificação de alimentos de acordo com seu grau de processamento é adotada pelo Ministério da Saúde desde 2014.

Publicado na revista acadêmica Social Science & Medicine, dos Estados Unidos, o estudo faz um extenso mapeamento – de posts em redes sociais a audiências públicas em Brasília – para investigar atuação da indústria de alimentos entre janeiro de 2023 e abril de 2024, período em que a reforma estava em discussão no Congresso e no Ministério da Fazenda.

Classificação dos alimentos de acordo com o grau de processamento segundo o Guia Alimentar para a população brasileira
Ilustração: Débora De Maio

Um levantamento da organização Fiquem Sabendo mostra que lobistas do setor se reuniram 69 vezes com o alto escalão do governo Lula, ao longo de 2023, para discutir a reforma tributária. Em 27 delas, foi registrada a presença de um representante da Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos). Organizações do terceiro setor que trabalham com o tema da alimentação, entretanto, foram recebidas apenas 14 vezes e tiveram 16 pedidos de encontros não atendidos.

A OMS (Organização Mundial da Saúde), a Organização Pan-Americana da Saúde e o Banco Mundial reconhecem a adoção de tributação extra como uma das medidas para desestimular o consumo de ultraprocessados. Dados da OMS mostram que mais de 100 países já implementaram impostos especiais de consumo

Pesquisas têm demonstrado um consumo crescente de ultraprocessados, principalmente entre negros, indígenas e habitantes de regiões pobres do Brasil, em virtude de preços mais baratos do que o de alimentos saudáveis.

“A gente sabe que o principal determinante para escolher uma comida é o preço. Ainda mais num país socialmente vulnerável como o nosso”, afirma Ana Maria Maya, especialista em alimentação saudável do Idec e coautora do estudo. Para ela, o lobby articulado entre a indústria de alimentos, o agronegócio e os supermercados conseguiu incluir na cesta básica produtos ultraprocessados, como margarina e fórmulas infantis.

Indústria de alimentos se articulou com supermercados e com a bancada ruralista

Para barrar a taxação extra de ultraprocessados, as associações de proteína animal e das indústrias de refrigerantes, chocolates e pães e bolos se reuniram na Uncab (União Nacional da Cadeia Produtiva de Alimentos e Bebidas). O grupo criou campanhas para convencer a opinião pública de que o Imposto Seletivo sobre os ultraprocessados não reduziria o preço dos alimentos in natura e prejudicaria principalmente os mais pobres.

Campanha das associações de indústrias e da carne lançaram campanhas para influenciar a opinião pública sobre a taxação dos ultraprocessados (Foto: Reprodução)
Peça da campanha da Uncab (União Nacional da Cadeia Produtiva de Alimentos e Bebidas) contra a taxação de ultraprocessados (Foto: Reprodução)

Além disso, o grupo se aliou ao setor supermercadista para difundir a narrativa de defesa do “acesso aos alimentos” e do “direito de escolha” dos consumidores, diz Ana Maria Maya. Segundo a pesquisadora do Idec, seria politicamente custoso para a Abia, por exemplo, argumentar sozinha a favor da isenção fiscal para o miojo, produto amplamente reconhecido como prejudicial à saúde. “Incluir outros atores nessa discussão aumenta tanto o peso político quanto a estratégia de mudar as caras de quem vai falar”, destaca.

No Congresso, a estratégia consistiu em estreitar os laços com a FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária). Com 354 deputados e senadores, a bancada ruralista é a mais poderosa do Legislativo.

O relatório cita como exemplo dessa ampla aliança uma audiência no Senado, realizada em agosto de 2023. Na ocasião, o presidente da Abras (Associação Brasileira de Supermercados), João Galassi, defendeu a revisão do Imposto Seletivo. Ao lado de representantes da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e da CNI (Confederação Nacional da Indústria), ele argumentou que a tributação não deveria atingir qualquer tipo de alimento.

João Carlos Galassi, presidente da Abras, defende a revisão do imposto seletivo privilegiando ultraprocessados, em audiência pública no Senado, ao lado do coordenador do Núcleo Econômico da CNA. (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)
Em audiência pública no Senado, João Carlos Galassi, presidente da Abras, defende a revisão do imposto seletivo para beneficiar ultraprocessados, ao lado do coordenador do Núcleo Econômico da CNA (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Um mês depois, em evento organizado pela Abras, o senador Izalci Lucas (PSDB-DF) saiu em defesa dos ultraprocessados. “Temos mais de 33 milhões de pessoas passando fome no Brasil, não tem sentido um país exportador de alimentos, do agro, e as pessoas passando dificuldade. Então, consumo de alimento não tem que ser taxado”, afirmou.

Maya rebate o argumento da indústria. “A gente não está falando em tirar a comida da mesa das pessoas. A gente está falando em criar condições para que alimentos saudáveis sejam mais acessíveis”, afirma a especialista do Idec.

Em nota, a FPA afirmou que a bancada trabalhou em duas frentes durante a tramitação da reforma tributária: zerar o imposto da cesta básica e incluir a carne na cesta básica. “Ambas as medidas contribuem para garantir o acesso à população a comida de qualidade, com preço acessível para todas as faixas de renda”, diz o texto. A nota informa ainda que “a lista de alimentos que integram a cesta básica foi coordenada pelo relator da matéria, [o deputado federal] Reginaldo Lopes (PT-MG)”. Leia a resposta na íntegra.

Margarina, carnes, açúcar e fórmulas infantis foram beneficiados

O relatório acessado pela Repórter Brasil também revela como a indústria de alimentos atuou para interferir no debate sobre os critérios da cesta básica. De acordo com o texto final da reforma tributária, alguns itens da cesta ficam totalmente isentos de impostos, enquanto outros têm desconto de 60% sobre a tarifa básica cobrada sobre produtos e serviços.

Em março de 2024, o governo publicou um decreto orientando a composição da cesta básica, excluindo os ultraprocessados. “Foi nesse momento que algumas associações se uniram e intensificaram o lobby para incluir mais produtos”, explica Bruna Hassan, pesquisadora em saúde pública da ACT Promoção da Saúde. Um grupo de 30 deputados, liderados pela bancada ruralista, apresentou uma proposta alternativa para ampliar a isenção fiscal a alimentos industrializados.

Em almoço na sede da FPA, coalizão de 24 frentes parlamentares no Congresso apresentou Projeto de Lei que incluia diversos ultraprocessados na cesta básica (Foto Divulgação)
Em almoço na sede da FPA, coalizão de 24 frentes parlamentares no Congresso apresentou Projeto de Lei que incluia diversos ultraprocessados na cesta básica (Foto: Divulgação/FPA)

Enquanto a sociedade civil defendia uma cesta básica focada em alimentos saudáveis, o agro, a indústria e o varejo pressionaram pela ampliação da lista, argumentando que determinados produtos eram amplamente consumidos pelos brasileiros. A principal disputa girou em torno da inclusão de laticínios, carnes, açúcar e ultraprocessados.

A regulamentação aprovada na Câmara atendeu a parte das demandas do setor, garantindo benefícios a itens como margarina, carnes, açúcar e fórmulas infantis. Sobre este último produto, Bruna Hassan faz uma ponderação. “Existem situações em que as fórmulas infantis são necessárias, mas são casos específicos. Como substitutos, elas deveriam ter alíquota reduzida de 60%, e não isenção total”, avalia.

Apesar de lobby, refrigerantes entraram no ‘Imposto do Pecado’

A Abir (Associação Brasileira de Refrigerantes) também atuou para impedir a taxação do setor. O senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) apresentou uma emenda ao relatório do senador Eduardo Braga (MDB-AM), classificando a tributação de refrigerantes e águas saborizadas como “questionável” e “discriminatória”.

No dia seguinte à aprovação do texto na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Braga participou de um evento em uma fábrica da Coca-Cola em Manaus (AM), ao lado de políticos do estado e do vice-presidente Geraldo Alckmin, como mostra o post do Instagram abaixo.

Uma reportagem do site O Joio e o Trigo mostra que Braga tem um histórico de atuação favorável ao setor de bebidas. O senador recebeu R$ 178 mil em doações de campanha da Ambev, em 2010, antes da proibição de financiamento empresarial, e defendeu subsídios para produtores de xarope de refrigerante na Zona Franca de Manaus.

Apesar do lobby da indústria, refrigerantes e águas saborizadas acabaram sendo incluídos no imposto seletivo, na versão final da reforma tributária. Para especialistas, a decisão pode ter sido motivada tanto pela necessidade de arrecadação quanto pelas evidências científicas sobre os impactos dessas bebidas na saúde pública. “Acho que o governo viu como uma oportunidade de que isso fosse emplacado e que seria positivo na perspectiva econômica”, avalia Maya. 

Em nota, o Ministério da Fazenda afirma que a escolha de quais ultraprocessados estariam sujeitos ao imposto seletivo é “decisão de governo”. A pasta afirma que a maior parte desses produtos será tributada pela alíquota padrão, que deve ficar em torno de 28%. Já os itens da cesta básica terão alíquota zerada ou reduzida a 11%. Ainda segundo a nota, a própria diferença de carga tributária “já contribui para estimular o consumo de produtos saudáveis”. Confira a resposta na íntegra.

Segundo Bruna Hassan, a expectativa é de que os alimentos saudáveis fiquem mais acessíveis com as novas regras, e de que o consumo de ultraprocessados seja desestimulado. No entanto, ela reforça que a tributação, por si só, não basta para mudar hábitos alimentares ou reduzir doenças crônicas. “O imposto sozinho não é bala de prata, ele tem que vir com um conjunto de medidas”, finaliza.

Procurada, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos informou que não se manifestaria. A reportagem também enviou questionamentos à Associação Brasileira de Refrigerantes, à Associação Brasileira de Supermercados, ao deputado federal Reginaldo Lopes, e aos senadores Eduardo Braga, Izalci Lucas, Vanderlan Cardoso, mas não obteve respostas até o fechamento desta matéria. O texto será atualizado se os posicionamentos forem enviados.


Fonte: Repórter Brasil

Bancada ruralista ignora ciência para defender ultraprocessados no Congresso

Parlamentares colocam em xeque o conceito de ultraprocessados para travar políticas públicas que limitam o consumo desses produtos, associados a mais de 57 mil mortes precoces anuais no Brasil

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Por Pedro Nakamura/ Edição: Paula Bianchi para a Repórter Brasil

Nuggets, suco em pó, salgadinho de pacote, miojo e bolacha. Os chamados alimentos “ultraprocessados” representam uma ameaça à saúde, como mostram os estudos científicos mais recentes. 

No entanto, a bancada ruralista no Congresso Nacional vem abraçando a tese de que esses produtos não são tão ruins assim. Com assessoria técnica de um instituto financiado pela indústria de alimentos e por associações do agronegócio, eles defendem que os ultraprocessados podem até ser saudáveis e não devem ser restringidos por políticas públicas. 

A Repórter Brasil identificou ao menos seis projetos de lei (PLs) em que a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), braço institucional da bancada ruralista, tentou interferir para beneficiar os fabricantes de ultraprocessados nos últimos cinco anos. 

A FPA reúne 374 deputados e senadores, três quintos do Congresso. O discurso a favor dos ultraprocessados contraria uma série de evidências científicas que associam o consumo de produtos do tipo a 32 problemas de saúde, como câncer, diabetes e obesidade, e a 57 mil mortes precoces ao ano só no Brasil. A classificação de alimentos de acordo com seu grau de processamento é adotada pelo Ministério da Saúde desde 2014.

Quando um projeto de lei menciona o termo “ultraprocessado”, a bancada ruralista usa seus “resumos executivos” – documentos de orientação – para dar pareceres que atacam a própria noção de ultraprocessados, como mostram documentos publicados pela frente parlamentar analisados pela reportagem. 

“A briga é para tirar toda a legitimidade do próprio conceito”, resume o cientista político Pedro Vasconcellos, assessor de advocacy da FIAN Brasil, organização vinculada ao Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ). “Mencionar ultraprocessados em uma legislação vira um problema”, acrescenta. 

A Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por exemplo, limita em até 20% os gastos na compra de alimentos processados e ultraprocessados para merendas. Porém, o termo “ultraprocessados” só aparece no regramento porque foi incluído em uma resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que não precisa passar pela aprovação do Congresso.

Guia Alimentar do Ministério da Saúde define ultraprocessados como  “formulações industriais” que envolvem diversas etapas de processamento e que adicionam ingredientes como sal, gorduras, açúcares, entre outras substâncias de uso exclusivamente industrial para imitar sabores, cores ou aumentar a durabilidade do produto. São refeições instantâneas, iogurtes saborizados ou molhos prontos, por exemplo.

No início do mês, o governo federal anunciou a nova composição da cesta básica, sem ultraprocessados.

Arte: Débora De Maio

O agro é refrigerante, embutido e biscoito

Desde 2011, a FPA recebe “assessoria” técnica do Instituto Pensar Agro, uma organização financiada pelas principais entidades representativas da cadeia do agronegócio – entre elas, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), que reúne gigantes do setor como Nestlé, BRF, Cargill, Ambev e Coca-Cola. 

À Repórter Brasil, a Abia disse preferir não se manifestar sobre eventuais orientações repassadas à bancada do agro. A FPA, por sua vez, ignorou as tentativas de contato da reportagem.

Um exemplo da interferência do lobby do agro ocorreu em junho de 2023, quando o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) inseriu a diretriz “evitar ultraprocessados” no texto da lei que recriaria o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do governo federal. Na ocasião, a FPA orientou a bancada a firmar posição contra o trecho. 

“Restringir a aquisição de determinados tipos de alimentos, definidos de forma contestável pela ciência e tecnologia de alimentos, em nada contribui para a formação de hábitos alimentares saudáveis, que só podem ser obtidos por meio da educação alimentar”, disse a nota da entidade, que também negou a ligação entre o consumo de ultraprocessados e a obesidade.

Na sessão que votou o projeto, em julho de 2023, o próprio presidente da FPA, o deputado Pedro Lupion (PP-PR), propôs uma emenda removendo a inserção de Boulos. “A ideia é reduzir o texto, tirar essa menção, até porque há uma problemática na compreensão do que são os alimentos ultraprocessados. Não há uma definição técnica sobre essa terminologia”, disse em plenário o deputado Tião Medeiros (PP-PR) que substituiu Lupion na hora da votação. No fim, a remoção foi aceita e o PAA acabou aprovado pelo Congresso sem a menção aos ultraprocessados, sendo sancionado por Lula naquele mês.

Veja aqui a lista completa com os 6 PLs em que a FPA defendeu os ultraprocessados.

‘Indústria nega e distorce’

Na avaliação da nutricionista Nadine Marques, pesquisadora-assistente da Cátedra Josué de Castro da Universidade de São Paulo (USP), as orientações da FPA são “todas muito parecidas com o discurso da Abia”, a associação de indústrias de alimentos que está entre os apoiadores da bancada ruralista. “Um ponto marcante é a não aceitação da classificação a partir do grau e extensão de processamento de alimentos, que deu origem ao termo ‘ultraprocessados’”, diz Marques. 

Batizada de “NOVA” e desenvolvida por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), a classificação já é usada em políticas públicas de ao menos seis outros países – como Canadá, Israel e Uruguai. Ela também norteia estudos da Agência Internacional do Câncer (IARC) e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), ambas ligadas à Organização Mundial da Saúde (OMS).

Marques explica que, no início do século 20, a ciência analisava os alimentos pelas moléculas que os compõem, o que criou uma subdivisão entre nutrientes vilões (por exemplo, gorduras saturadas ou açúcar) e mocinhos (vitaminas e minerais) – paradigma que ficou conhecido como “nutricionismo”. 

A partir dos anos 1980, no entanto, os índices de obesidade dispararam,  mesmo com a redução do consumo dos “vilões”. “Se sabíamos quais os nutrientes perigosos e conseguíamos controlá-los, manipulando-os industrialmente, por que os índices de doenças crônicas continuavam aumentando?”, questiona Marques.

A partir dos anos 2010, mais pesquisas passaram a investigar como o grau de processamento de alimentos, e não nutrientes específicos, estava ligado ao surgimento de doenças, o que reforçou a necessidade de se analisar todo um processo de produção que vai do campo à indústria até chegar à mesa do consumidor. “A classificação NOVA é simbólica desse novo paradigma da nutrição, que passa a olhar para os sistemas alimentares como um todo”, diz a nutricionista.

Desinformação no Congresso e nas redes

Para enfrentar esse avanço recente da ciência, a indústria de alimentos mobiliza argumentos “nutricionistas” em seu lobby no Legislativo. Um projeto de lei de 2022 do ex-deputado federal Coronel Armando propunha a criação de advertências em embalagens e restrições à propaganda desses produtos. A proposta era que rótulos e publicidade incluíssem avisos de riscos à saúde. Porém, a FPA orientou a bancada a se opor à ideia.

“Ter uma alimentação saudável significa comer com moderação todos os tipos de alimentos, respeitadas suas características nutricionais”, justificou a nota da FPA divulgada à época. “A proposta tem objetivo de estigmatizar produtos da indústria de alimentos, que são altamente regulados e não possuem, por si próprios, potencial para prejudicar a saúde do consumidor”, concluiu o documento, em frontal oposição aos estudos científicos sobre o tema. O PL está parado sem relatoria em uma comissão da Câmara desde 2022.

A defesa da indústria alimentícia contrasta com o discurso da FPA de reforçar a produção de alimentos saudáveis e de qualidade, no lugar de alimentos prontos e com excesso de ingredientes que fazem mal à saúde. Em janeiro de 2023, por exemplo, um estudo do NetLab, o laboratório de pesquisa em internet e redes sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),  concluiu que a FPA publicava anúncios no Facebook e Instagram – pagos pelo Instituto Pensar Agro – que espalhavam desinformação sobre agrotóxicos, regulação ambiental e movimentos sociais.

“Isso de pensarmos no pequeno produtor quando pensamos em agro é resultado de uma ótima campanha de comunicação”, diz a pesquisadora Débora Salles, coordenadora do NetLab, que realizou o estudo. “Eles tentam reforçar que o agricultor familiar é protagonista, mas existe um movimento simultâneo de esconder os verdadeiros interesses que estão por trás, que são os das grandes corporações”, avalia Salles.


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Este texto foi originalmente publicado pela “Repórter Brasil” [Aqui!].

2º SP Food Film Festival traz cinema, gastronomia, degustações, debates

de 09 a 19/11,na Cinemateca Brasileira e online para todo Brasil

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A 2ª edição do São Paulo Food Film Festival acontece de 09 a 19 de novembro, na Cinemateca Brasileira, com mais de 30 filmes, entre clássicos da ficção e documentários contemporâneos ligados à alimentação e aos sistemas agroalimentares, exposição fotográfica, debates, aulas show e degustações de pratos inesquecíveis do cinema, após algumas das exibições presenciais. Um recorte da programação estará disponível online para todo Brasil, com 16 títulos na plataforma da SpcinePlay. Toda programação é gratuita!

Clássicos como “Morango e Chocolate”, que completou 30 anos, dirigido por Juan Carlos Tabio e Tomás Gutiérrez Alea, virá acompanhado de uma degustação de sorvete de morango com chocolate. “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, de Pedro Almodóvar, que completa 35 anos, com um delicioso gazpacho após a sessão, entre outros.

Para o público infantil, “A Dama e o Vagabundo”, “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, e “A Princesa e o Sapo”, todos com degustação após a sessão! A programação traz também filmes com temas urgentes e necessários, como “Os Catadores e Eu” de Agnès Varda sobre o desperdício e a fome; “O Poço”, de Galder Gazteli-Urrutia, que se passa em uma prisão vertical.

Entre as estreias, o documentário “Blind Ambition”, onde quatro refugiados do Zimbabwe se tornam os melhores sommeliers de vinho da África do Sul (com direito a degustação de vinhos após a sessão); “Solo Comum”, documentário que discute os sistemas alimentares contemporâneos e modelos alternativos de agricultura regenerativa; “Em Busca da Estrela” com degustação de pizza; “Lambic” com degustação de cervejas, “Viciados em Pimenta” com degustação de deliciosas samosas com pimenta e “Volte Sempre”, que conta a história de Masamoto Ueda e seu lendário ramen.

Encontros, aulas show e debates

Cinco encontros com diferentes Chefs de Cozinha e especialistas, que após a exibição de alguns episódios do documentário “História da Alimentação no Brasil”, série dirigida por Eugenio Puppo. As convidadas para ministrar as aulas são: Aline Guedes, Patty Durães, a líder indígena Jerá Guarani, Angelita Gonzaga e Graziela Tavares.

A programação conta ainda com um importante ciclo de debates abordando quatro temas contemporâneos relevantes ligados ao alimento: Cozinhas Solidárias; Consumo de Ultraprocessados; Uso de Agrotóxicos e Educação Alimentar e Nutricional, que partem de uma cuidadosa seleção de filmes e documentários em encontros online com convidados especialistas serão transmitidos ao vivo no canal do Youtube do Festival, com exceção do debate sobre as Cozinhas Solidárias que será presencial, na própria Cinemateca.

Exposição fotográfica

O festival traz uma exposição original do fotógrafo Paulo Vitale. Dentre os Chefs retratados estão Eudes Assis, Helena Rizzo, Iêda de Matos, Telma Shiraishi, Claude Troisgros, entre muitos outros.

Sessão de abertura

A sessão de abertura acontece no dia 08/11, com o filme chinês “Comer Beber Viver”, do premiado diretor Ang Lee, que em 2024, completa 30 anos.

Segue abaixo release com a programação completa e fotos anexadas.

Aqui o link com fotos e trailers:

https://docs.google.com/spreadsheets/d/1e0kOWIvdFYpnCaM4ftX6YLzF2WiGTRrvuh8bnFQL3Vc/edit?usp=sharing

Pesquisa estima que Brasil tem 57 mil mortes por ano devido ao consumo de ultraprocessados

mero é maior do que o total de homicídios no país; se consumo brasileiro desses produtos chegar ao patamar dos Estados Unidos, serão quase 200 mil mortes prematuras anuais

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Por Raquel Torres para o “Joio e o Trigo”

Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Fiocruz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidad de Santiago de Chile calculou, pela primeira vez, o número de mortes prematuras (de 30 a 69 anos) associadas ao consumo de ultraprocessados no Brasil: são aproximadamente 57 mil óbitos por ano, com base em dados de 2019. Só para se ter uma ideia, isso é mais do que o total de homicídios no país no mesmo período – foram 45,5 mil em 2019, segundo o Atlas da Violência. O estudo foi publicado no American Journal of Preventive Medicine.

Os ultraprocessados são formulações industriais feitas com partes de alimentos e que geralmente contém aditivos sintetizados em laboratório, como corantes, conservantes e aromatizantes: são guloseimas industrializadas, salgadinhos de pacote, refrigerantes, pizzas congeladas, salsichas, nuggets etc.

Existe um conjunto crescente de pesquisas robustas apontando que o consumo desses produtos está relacionado ao aumento de peso e ao risco de várias doenças não transmissíveis, como diabetes, doenças cardiovasculares e câncer. Os autores do artigo partiram desse acúmulo de evidências para construir um modelo que leva em conta os riscos do consumo de ultraprocessados e os associa a mortes em geral. 

Embora estudos de modelagem anteriores tenham estimado os impactos na saúde dos chamados “nutrientes críticos” – como sódio, gordura saturada e açúcar –, ainda não havia nenhum que calculasse as mortes prematuras atribuíveis ao consumo de ultraprocessados em geral.

“Isso é importante porque o problema não está apenas nos nutrientes críticos. Há vários mecanismos pelos quais os ultraprocessados podem afetar a saúde: há discussões sobre mudanças na absorção dos nutrientes, além de evidências de que os ultraprocessados têm mecanismos inflamatórios e de que estão relacionados a alterações na microbiota intestinal.  E há também o que chamamos de neocontaminantes, já que tanto o processo de fabricação quanto as embalagens dos ultraprocessados podem gerar ou introduzir contaminantes químicos nos alimentos”, aponta Eduardo Nilson, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens/USP) e um dos autores do trabalho.

Nilson aponta ainda que justamente pelo fato de os ultraprocessados afetarem o organismo de tantas formas, ele e seus colegas optaram por estimar as mortes por todas as causas – e não apenas por doenças determinadas. 

E quando ele diz que o modelo inclui mortes por todas as causas, são todas mesmo, inclusive as não naturais. Isso pode parecer estranho à primeira vista, mas o autor explica: “Essa é uma forma de dimensionar a carga total de determinado fator de risco – nesse caso, o consumo de ultraprocessados – nas mortes totais na população desta faixa etária.” 

“Se não existisse nenhum consumo desses produtos, é claro que ainda haveria muitas mortes, já que pessoas continuariam sofrendo acidentes, sendo vítimas de homicídio, tendo doenças infectocontagiosas e até mesmo desenvolvendo doenças crônicas não transmissíveis, pois há muitos outros fatores de risco para elas. Mas a ideia da pesquisa foi justamente estimar, entre as mortes prematuras por todas as causas possíveis, quantas são associadas ao consumo de ultraprocessados, pois os riscos relativos utilizados nos cálculos incorporam isso”, afirma ele. 

Chegando aos números

Segundo a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE – que englobou os anos de 2017 e 2018 – em média 19,7% das calorias ingeridas pelos brasileiros vêm de ultraprocessados. Se pensarmos em um consumo de duas mil calorias por dia para uma pessoa, seriam cerca de 400 calorias provenientes de ultraprocessados – o que equivale a um pacote de macarrão instantâneo, por exemplo.

Para criar o modelo que calcula as mortes, os pesquisadores utilizaram as informações da POF junto com dados demográficos e de mortalidade para 2019. Acrescentaram a isso os riscos relativos a cada faixa de consumo de ultraprocessados. Esses riscos, por sua vez, foram calculados com base em uma recente metanálise – uma pesquisa extensa que revisou sistematicamente vários estudos sobre a relação entre o consumo de ultraprocessados e o estado de saúde. “As estatísticas sobre o consumo de ultraprocessados e o risco disponível na literatura científica geraram um percentual que multiplicamos pelas mortes totais, para descobrir quantas são atribuíveis ao consumo”, explica Nilson.

Ao todo, 541,1 mil pessoas de 30 a 69 anos morreram no Brasil em 2019. Desse total de mortes, consideradas prematuras, 57 mil, ou 10,5%, foram associadas ao consumo de ultraprocessados, segundo a estimativa do modelo. A maioria das mortes atribuíveis aos ultraprocessados ocorreu entre homens (60%). Em relação à faixa etária, os óbitos foram mais numerosos entre pessoas entre 50 e 69 anos (68%).

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Os pesquisadores estimaram ainda os óbitos que poderiam ser evitados se o consumo total desses produtos por parte dos brasileiros diminuísse. Caso a população como um todo reduzisse a proporção de ultraprocessados na ingestão total de energia em 10%, 20% ou 50%, seriam poupadas 5,9 mil, 12 mil e 29,3 mil vidas por ano, respectivamente.

São três cenários em que o Brasil já esteve: “Reduzir o consumo em 20% seria retornar ao que tínhamos há apenas uma década. Ou seja, se não tivesse havido aumento no consumo, hoje teríamos 12 mil mortes a menos por ano. Já a redução de 50% equivale ao consumo que tínhamos ainda antes, nos anos 1990. Se nós já tivemos consumo menor, então é factível voltar a isso”, compara o autor.

Só que, em vez de diminuir, nosso consumo de ultraprocessados não para de crescer. “A gente vê uma tendência de crescimento dos ultraprocessados substituindo a dieta tradicional. Há vários motivos para isso, mas um fator determinante é, sem dúvidas, o preço: temos estudos mostrando que há uma tendência de redução nos preços dos ultraprocessados, enquanto o de alimentos frescos, in natura e minimamente processados está crescendo. Isso é muito cruel porque afeta principalmente as populações de menor renda, mais vulneráveis”, analisa o pesquisador. Este ano, pela primeira vez, os ultraprocessados estão se tornando, na média, mais baratos do que os alimentos frescos.

O futuro é logo ali

Em alguns países de alta renda, como Estados Unidos e Canadá, os ultraprocessados já representam perto de metade do total de energia dietética consumida. O Brasil, com seus 19,7%, ainda não está lá. Mas o que acontece se o consumo continuar subindo?

Com o mesmo modelo utilizado na pesquisa, Nilson já fez estimativas nesse sentido. Se o Brasil se igualar ao México, onde a participação calórica de ultraprocessados é de 29,8%, as mortes atribuíveis a esse consumo podem praticamente dobrar, chegando a 113 mil. Se chegarmos ao nível dos Estados Unidos (onde os ultraprocessados já representam em média 57% do consumo calórico), podemos ter todos os anos 194 mil mortes por conta desses produtos. As estimativas foram apresentadas recentemente à Rede INFORMAS (uma rede global de organizações e pesquisadores que estudam sistemas alimentares, obesidade e doenças não transmissíveis).

Em relação às projeções, o modelo tem uma limitação importante: “Assim como outros modelos matemáticos, o nosso ainda não leva em conta o fator tempo”, diz Nilson, ressaltando que uma redução ou um aumento no consumo não leva imediatamente a mudanças no número de mortes – esse é um impacto que demora para se manifestar. “A grande conclusão é que precisamos urgentemente adotar políticas públicas que reduzam esse consumo, o que está em consonância com o Guia Alimentar para a População Brasileira”, ele alerta.

O artigo frisa que, muito além de motivações individuais, o freio no consumo exige múltiplas intervenções e medidas de saúde pública. É preciso haver estímulo para o consumo de alimentos mais saudáveis: “Isso implica políticas de subsídios, compras institucionais de alimentos e fortalecimento da agricultura familiar. E o Brasil já teve políticas muito fortes em relação a isso”, lembra Nilson. Ao mesmo tempo, é necessário desencorajar a ingestão de ultraprocessados. Nesse sentido, entre as medidas citadas pelo artigo estão a regulamentação da publicidade e da venda de ultraprocessados em ambientes escolares, a tributação desses produtos e a implantação de uma nova rotulagem frontal para industrializados, que alerte para seus potenciais malefícios.

Nilson nota que tais medidas já têm sido tomadas, com sucesso, em outros países. Há na América Latina boas experiências de taxação de categorias específicas, como bebidas açucaradas;restrições de publicidade de produtos ultraprocessados;mudanças nos rótulos.

Em relação ao último ponto, o Brasil começou no dia 9 de outubro a implantação do novo modelo de rotulagem definido pela Anvisa, que consiste em um sistema de lupas adicionadas às embalagens para indicar o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas. 

Mas, como O Joio e O Trigo já apontou, o sistema escolhido pela Agência não era o mais indicado, segundo as melhores evidências científicas disponíveis. Em vez dele, a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável defendia a adoção de um modelo inspirado no chileno, com figuras de alerta – pois já existem pesquisas mostrando que ele funciona. 

Para Nilson, outro problema da nova rotulagem brasileira é que os critérios para classificação dos alimentos são menos rigorosos do que os recomendados pela Organização Panamericana de Saúde (Opas). Ou seja, menos produtos acabam recebendo a lupa de advertência. Para completar, a implementação será lenta: o novo rótulo só vale para produtos lançados a partir de agora, enquanto os que já estão no mercado terão mais tempo para adaptação.

“PRECISAMOS URGENTEMENTE ADOTAR POLÍTICAS PÚBLICAS QUE REDUZAM ESSE CONSUMO”

Dados que apoiam mudanças

Segundo o autor, o modelo desenvolvido pode vir a ser incrementado para fazer uma série de novas estimativas. Uma das possibilidades é acrescentar o fator tempo, o que vai permitir calcular qual será o impacto real nas mortes daqui a alguns anos caso o consumo comece a ser reduzido hoje ou caso se mantenha a tendência de aumento. 

Também será possível prever os impactos de novas medidas. Os efeitos de uma taxação maior para ultraprocessados, por exemplo, podem ser calculados a partir da relação entre o preço e o consumo. “E dá ainda para quantificar o custo que o consumo de ultraprocessados gera para o Sistema Único de Saúde (SUS), ou mesmo as perdas econômicas para a sociedade em geral, devido à morte ou adoecimento de pessoas em idade economicamente ativa. São inúmeras possibilidades”, antevê o pesquisador.

Tudo isso é importante porque ajuda a embasar a formulação de novas políticas públicas. “Sabemos que o cenário de políticas regulatórias e fiscais é sempre difícil. E muitos dos dados utilizados para provocar mudanças vêm desse tipo de estudo. É interessante pensar no exemplo do tabaco: muito do que se avançou em termos de políticas relacionadas à substância foi por conta da existência de dados robustos, de fatores de risco bem estabelecidos e de cálculos de mortes atribuíveis ao tabaco”, compara Nilson.


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Este texto foi originalmente publicado pelo “Joio e o Trigo” [ Aqui!].

Salsicha, hambúrguer e nugget: pesquisa identifica agrotóxicos em alimentos

Campeão de veneno foi o empanado de frango, com resíduo acima do permitido; pesquisadores acharam agrotóxicos potencialmente cancerígenos nos alimentos

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Hélen Freitas, Agência Pública/Repórter Brasil

Uma pesquisa inédita publicada nesta quarta-feira (27) revela que alimentos de origem animal consumidos todos os dias por milhares de brasileiros, como mortadela, requeijão industrializado e linguiças, contêm resíduos de agrotóxicos. 

O segundo volume do estudo ‘Tem veneno nesse pacote’, realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), analisou 24 alimentos ultraprocessados feitos à base de carne e lácteos e constatou a presença de agrotóxicos na composição de 58% dos produtos. Foram detectados pelo menos um pesticida em todas as marcas de salsicha, hambúrguer de carne bovina e empanados de frango analisados no estudo.

O campeão de venenos foi o empanado de frango Seara. Segundo a pesquisa, foram encontradas cinco substâncias nele, dentre elas glifosato e glufosinato. Já o requeijão Itambé e os nuggets de frango da Sadia e da Perdigão possuíam uma concentração de substâncias maior do que o permitido em seus alimentos base.

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) não estabelece limites máximos de resíduos de agrotóxicos em produtos ultraprocessados, mas indica bases comparativas a partir de alimentos base. No caso do empanado de frango, por exemplo, os pesquisadores puderam identificar a presença acima do permitido do agrotóxico pirimifós metílico, que possui limite máximo de resíduo para o frango ou subproduto que serve de base para a produção dos nuggets. Outros agrotóxicos, como a bifentrina, não possuem limites máximos definidos para o alimento usado como matéria-prima do ultraprocessado, o que impede a análise da presença de pesticidas acima do permitido. 

À reportagem, a Anvisa não respondeu se um produto que exceda o limite estabelecido para seu alimento base pode ser retirado do mercado. A Agência apenas informou que nos casos em que se detectam resíduos de agrotóxicos acima do permitido, é necessário realizar uma avaliação de riscos e identificar o potencial risco à saúde do consumidor. “Primeiramente é importante esclarecer que os resíduos acima do LMR [Limite Máximo de Resíduo] reportam um tipo de inconformidade que não necessariamente representa risco à saúde do consumidor. O LMR é um parâmetro agronômico, derivado de estudos de campo simulando o uso correto do agrotóxico pelo agricultor”, afirmou a Anvisa. (Leia a resposta completa do órgão aqui).

Para o Idec, a Anvisa precisa retirar esses produtos das prateleiras a fim de garantir a segurança dos consumidores.

Procurada pela reportagem, a Seara Alimentos afirmou que “todos os produtos avaliados respeitam os parâmetros para itens alimentares regulamentados pela Anvisa”. Já a BRF Foods, dona das marcas Sadia e Perdigão, ressaltou que “aplica internamente rigorosos padrões de qualidade que atendem à regulamentação da própria Anvisa e do MAPA [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento] e são reconhecidos por diversos organismos de controle”. (Leia as respostas das empresas na íntegra aqui).


Empanado de frango da marca Seara, do grupo JBS, foi o alimento com o maior número de agrotóxicos identificados, entre eles glifosato e glufosinato. Tanajura Filmes/Divulgação JBS

Das lavouras de soja aos ultraprocessados

Há cerca de um ano, o Instituto já havia revelado que 59% dos alimentos consumidos principalmente por crianças, como cereais matinais, bolachas e bebidas lácteas, também tinham algum tipo de agrotóxico em sua composição. Desta vez, os pesquisadores decidiram testar produtos de origem animal para verificar se mesmo depois da metabolização pelo organismo desses animais e do processamento da carne e do leite ainda seria possível identificar resíduos desses venenos, o que foi comprovado.

Os agrotóxicos aparecem nos derivados de leite e de carne de duas maneiras. A primeira é de forma direta, por exemplo, a partir da aplicação de substâncias nos animais para evitar a infestação por parasitas. A segunda é por meio das rações produzidas a partir da soja, do milho e de outros grãos, culturas que utilizam agrotóxicos de forma intensiva. Pesquisas mostram que 63% dos venenos usados no Brasil vão para a cultura da soja e 77% da produção do grão viram ração para animais.

“Os dados são preocupantes porque tecem um panorama de que cada vez mais os alimentos que chegam na mesa da população brasileira, seja para crianças, adultos ou idosos, estão com resíduos de agrotóxicos”, afirma Rafael Rioja, coordenador de consumo sustentável do Idec.

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Análise não encontrou agrotóxicos em bebidas lácteas sabor chocolate e iogurte ultraprocessado, nem nas seguintes marcas: requeijão Nestlé (Nestlé), linguiça suína calabresa Sadia (BRF) e Perdigão (BRF), mortadela Sadia (BRF). Lucas Malfa/Repórter Brasil e Agência Pública

Agrotóxicos perigosos

A pesquisa também traz outro dado preocupante. Em 37% dos produtos foi possível detectar glifosato. O ingrediente ativo é classificado como provavelmente cancerígeno pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) e é o mais utilizado no Brasil. Apesar de ser um dos agrotóxicos que mais matam brasileiros, a Anvisa optou por manter o seu registro após uma reavaliação que durou 12 anos.

O glifosato não é o único que levanta o alerta dos pesquisadores. Dos oito agrotóxicos detectados, seis estão relacionados ao aparecimento de doenças crônicas. O glufosinato, utilizado como alternativa ao glifosato, está relacionado à má formação embrionária e a problemas no sistema nervoso central, segundo testes realizados em ratos.

A bifentrina, fipronil e cipermetrina são classificados como possivelmente cancerígenos pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (Environmental Protection Agency, na sigla em inglês). Já o clorpirifós está associado a problemas de desenvolvimento neurológico, principalmente em crianças. No ano passado a agência americana baniu o uso deste agrotóxico no país. Já no Brasil ele segue na lista dos 10 agrotóxicos mais vendidos.

O coordenador do Idec ainda chama a atenção para as consequências para a saúde que a combinação de vários agrotóxicos podem trazer. “Foram cinco ingredientes diferentes encontrados no nuggets, nove encontrados na bisnaguinha em 2021. O estudo mostra que além de por si só os agrotóxicos serem isoladamente potencialmente carcinogênicos, tem o coquetel que deixa o risco mais elevado”, pontua Rioja.

De acordo com o pesquisador, faltam estudos para analisar a interação dessas substâncias nos organismos e regras que definam limites para essa mistura tanto nos alimentos quanto na água. A União Europeia, por exemplo, possui uma regulação específica que determina os valores máximos dos coquetéis em cada litro de água. Por aqui, a Anvisa define apenas limites individuais.

Sem previsão de novos limites
Apesar de a possibilidade de aparecimento de agrotóxicos nos produtos ultraprocessados já ser de conhecimento dos órgãos governamentais e das empresas, nada foi feito para criar regras que definam limites máximos de resíduos para esses alimentos.

De acordo com o Idec, os resultados da pesquisa foram “bem acolhidos e recebidos pela Anvisa”. A agência já analisa alguns produtos processados – derivados diretamente de alimentos in natura – em seu Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA). É o caso da farinha de trigo e da bebida de soja. 

Em resposta à Repórter Brasil e Agência Pública no ano passado, o órgão disse querer incluir aos poucos novos produtos ao seu monitoramento. Contudo, além de não ampliar o número de alimentos analisados, desde 2019 a Anvisa não publica os novos resultados do PARA.

Procurada pela reportagem novamente, a Anvisa informou que o programa de análise de alimentos está previsto para ser publicado ainda este ano e disse que a inclusão de produtos ultraprocessados” requer um estudo preliminar, a fim de verificar quais produtos melhor representam o consumo do alimento pela população brasileira e ainda a possibilidade de detecção de resíduos nesses produtos, observando fatores de processamento, que retratam a proporção do ingrediente ativo e metabólitos que permanecem no alimento processado”.

A Vigor disse à reportagem que não teve acesso  aos dados técnicos da pesquisa realizada pelo Idec para que pudesse analisar e rastrear o lote do produto. “A companhia reforça que realiza constantemente programas de controle interno em todas as suas unidades fabris e postos de captação de leite, bem como o monitoramento através de laboratórios credenciados na rede brasileira de qualidade do Leite-RBQL, não tendo verificado a presença de inseticidas, acaricidas e agrotóxicos em seus produtos”. O instituto responsável pela pesquisa afirma ter entrado em contato com todas as companhias citadas no estudo.

A Aurora Alimentos afirmou que não iria responder os questionamentos feitos pela Repórter Brasil e pela Agência Pública e que iria solicitar esclarecimentos sobre a metodologia dos testes realizados pelo Idec. (Leia as respostas das empresas na íntegra aqui).

Procurada, a produtora de laticínios Itambé não respondeu os questionamentos até o fechamento desta reportagem.

Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.


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Este texto foi inicialmente publicado pela Agência Pública [Aqui!].

Estudo revela dados inéditos sobre alimentação infantil no Brasil

Resultados mostram que 80% das crianças brasileiras até 5 anos consomem ultraprocessados, inclusive bebês

alimentação infantil

A arquiteta Adriana Romero é mãe de dois filhos pequenos. Gabriel, de 3 anos, e Sofia, de apenas 3 meses.  A menina alimenta-se exclusivamente de leite materno e o cardápio de Gabriel  é rico em legumes, verduras, frutas e cereais, sem alimentos ultraprocessados. A família segue as recomendações do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos, lançado pelo Ministério da Saúde em 2019 – uma realidade que é exceção no país. Dados inéditos do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI-2019) mostram que, em 2019, 80% das crianças brasileiras até 5 anos já consumiam alimentos ultraprocessados, como biscoitos, farinhas instantâneas, refrigerantes e bebidas açucaradas, dentre outros produtos nocivos à saúde. A prática é comum inclusive entre bebês menores de 2 anos, o que pode trazer consequências ao longo de toda a vida, como obesidade, diabetes e problemas cardiovasculares.

Os resultados do ENANI-2019 mostram que, em geral, a alimentação das crianças brasileiras está distante das recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS). As prevalências dos indicadores estudados – consumo de ultraprocessados; de frutas e hortaliças; e de água pura – variam entre as macrorregiões e de acordo com o Indicador Econômico Nacional (IEN), salientando as grandes desigualdades sociais do Brasil. Esperamos que os novos resultados possam ajudar a planejar estratégias de promoção da alimentação saudável, bem como o monitoramento da evolução desses indicadores ao longo do tempo”, afirma o coordenador nacional do ENANI-2019, Gilberto Kac, que é pesquisador do Instituto de Nutrição Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Natural x industrializado

O quadro de alta prevalência de consumo de ultraprocessados é agravado pela baixa ingestão de frutas e hortaliças, que deveriam compor a base da alimentação infantil. “No dia anterior à realização da entrevista com as famílias, 22,2% dos bebês de 6 meses a 2 anos e 27,4% das crianças de 2 a 5 anos não haviam consumido nem frutas nem hortaliças. A situação é mais preocupante na região Norte, onde, na véspera da entrevista, um terço (29,4%) dos bebês de até 2 anos não havia comido nem frutas nem hortaliças e a maioria deles (84,5%) tinha consumido ultraprocessados”, alerta Kac.

Nesse cenário, o coordenador nacional do ENANI-2019 destaca a alta prevalência do consumo de temperos industrializados, como caldos em cubo e molhos prontos. “Um quinto (20,9%) das crianças brasileiras de até 5 anos consome esses produtos em seu dia a dia, o que é preocupante porque são itens ricos em sódio, conservantes e outras substâncias perigosas. Os maiores índices estão nas regiões Nordeste (31,1%) e Sudeste (27,2%) e os menores nas regiões Centro-Oeste (19,7%) e Norte (20,6%). O ideal é preferir temperos naturais, frescos ou secos, como salsinha, coentro, manjericão, orégano, tomilho, dentre tantos outros”, orienta o pesquisador.

Consumo de água pura

O consumo de água pura, que é indicado a partir dos seis meses, no início da introdução alimentar, também chama atenção dos pesquisadores do ENANI-2019. O estudo aponta que a prevalência do consumo de água pura entre crianças de até 5 anos no dia anterior ao do estudo foi de 72,1% no país. “Isso significa que um quarto  (27,9%) das crianças brasileiras nessa faixa etária não consumiu água pura no dia anterior à entrevista”, aponta Kac. As menores prevalências estão nas regiões Sul (47,4%) e Norte (49,1%) e as maiores nas regiões Sudeste (80,4%), Nordeste (79,8%) e Centro-Oeste (77,1%).

Sobre o ENANI-2019

O ENANI-2019 é a primeira pesquisa com representatividade nacional a avaliar, simultaneamente, em crianças menores de 5 anos, práticas de aleitamento materno, alimentação complementar e consumo alimentar individual, estado nutricional antropométrico e deficiências de micronutrientes, incluindo as deficiências de ferro e vitamina A. Foram realizadas visitas domiciliares em 123 municípios brasileiros entre fevereiro de 2019 e março de 2020, totalizando 14.558 crianças menores de 5 anos. O ENANI-2019 foi encomendado pelo Ministério da Saúde e coordenado pelo Instituto de Nutrição Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Federal Fluminense (UFF), com financiamento da Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

SERVIÇO

Webinar ENANI-2019: indicadores de alimentação da criança

7 de dezembro, das 15h às 17h

Assista em www.youtube.com/injcufrj

Tereza Cristina: de “musa do veneno” a “rainha dos ultraprocessados”

Governo tenta incluir ultraprocessados em guia de alimentação saudável

tereza-cristina-600x387Não contente ser apenas a “Musa do Veneno”, a ministra Tereza Cristina (DEM/MS) também quer ser a “Rainha dos Ultraprocessados”

Por Guilherme Mendes para o Congresso em Foco

O Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) publicou uma nota nesta quinta-feira (17) em que acusa os ministérios da Saúde e da Agricultura de promoverem uma pressão pela alteração do Guia Alimentar para a População Brasileira.

O documento de referência, editado pelo Ministério da Saúde em parceria com o Nupens, tem diretrizes para incentivar a alimentação saudável e, segundo a universidade, tem aclamação mundial por parte de organismos internacionais de combate à fome. O guia, em sua edição mais recente, está disponível aqui.

Segundo o Nupens, o ofício encaminhado pela ministra Tereza Cristina veio acompanhado de uma nota técnica, contestando informações presentes no Guia. O documento foca as críticas na definição que os autores do manual fazem aos alimentos ultraprocessados – comidas com alto número de ingredientes e conservantes químicos, e baixíssimo valor nutricional.

Estes produtos, como bolachas, refrigerantes, salgadinhos e macarrão instantâneo, fazem mal à saúde humana e devem ser evitados em dietas saudáveis, segundo o Guia. Agora, o Ministério da Agricultura contesta esta conceituação.

hipermercadoAlimentos ultraprocessados causam vários males à saúde dos consumidores. Mesmo assim, Tereza Cristina quer incluí-los no guia alimentar dos brasileiros

O ofício é assinado pelo Coordenador-Geral do Departamento de Análise Econômica e Políticas Públicas do Ministério da Agricultura, Eduardo Mello Mazzoleni. O representante do ministério argumenta que o guia alimentar induz a população brasileira a uma limitação da autonomia das escolhas alimentares, e que o critério para se apontar uma comida como ultraprocessada  seria cômico.

“As receitas domésticas que utilizam vários ingredientes não podem em hipótese alguma serem rotuladas dessa forma, o que demonstra um evidente ataque sem justificativa a industrialização”, compara a nota. “Pesquisas demonstram que não existem evidências de que o valor nutricional e a saudabilidade de um alimento estejam relacionados aos níveis de processamento, uma vez que existem alimentos processados que contribuem com uma ampla variedade de nutrientes em todos os níveis de processamento.”

Mazzoleni também fez críticas gerais ao documento – definido por ele como um dos “piores” do planeta em sua área. A nota técnica recomenda à ministra que ordene a sua imediata e urgente revisão.

O Nupens alega que a nota técnica omite a vasta literatura científica nacional e internacional acumulada desde 2009, quando a classificação e o conceito de alimentos ultraprocessados foi por ela proposta.

Ainda na nota (disponível aqui), o núcleo de pesquisas alega que as alegações para a alteração apresentadas pelos ministérios são frágeis e inconsistentes, e que o Guia brasileiro é reconhecido internacionalmente por sua qualidade científica por órgãos internacionais. “Confiamos que o Ministério da Saúde e a sociedade brasileira saberão responder à altura o que se configura como um descabido ataque à saúde e à segurança alimentar e nutricional do nosso povo”, afirmou.

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Este texto foi originalmente publicado pelo site Congresso em Foco [Aqui!].