Onde começa a selvageria? Onde acaba a civilização?

civilização

POR LUCIANE SOARES DA SILVA*

Este texto não traz nenhuma grande novidade. Mas o escrevo pensando em todos os alunos que já formei desde 2001 em Porto Alegre, nas cidades do interior do Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro  e como professora , pesquisadora e extensionista na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. O valor deste texto não estará na novidade, mas na experiencia histórica. Era frequente em minhas aulas com policiais gaúchos, uma narrativa sobre as glórias do passado, o respeito à família e a autoridade. Nos idos dos anos 2000, o tema dos direitos humanos era coisa dos vermelhos (ou do Partido dos Trabalhadores já que Olívio Dutra era governador naquele momento). Nós, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, acreditávamos que estávamos caminhando para superação destas representações sobre um passado, que ao final, era o saudosismo ditatorial. Era recusa a qualquer diálogo sobre a ordem democrática, sobre o suicídio e a saúde mental dos policiais, sobre a necessidade de mudança urgente nas ações de Secretaria de Segurança Pública.

Quando iniciei meus estudos no Rio de Janeiro, passei realmente os quatro anos de doutorado andando em favelas para entender a dinâmica daquele enfrentamento entre Estado e tráfico. Sim, como socióloga, eu precisava ver os acordos, precisava ouvir as formas de resolução de conflitos, precisava sentir como era a entrada de um caveirão na Favela da Maré. E tenho plena certeza de que toda injustiça sobre aqueles que não têm o poder de defesa, é um ato de covardia.

Em que momento esta covardia sofreu sua metamorfose ? Em que momento o uso do saquinho na cabeça passou a ser aplaudido e os homens de preto passaram a receber a idolatria da população?

Me espanta saber que chegamos a 2022 sem justiça por Marielle, por dezenas de crianças mortas nas favelas cariocas. Com índices altíssimos de encarceramento.  E tendo eleito um patrono de chacinas para governar o Rio de Janeiro.

Aí está  o ponto no qual minha experiência coletiva recupera um enredo complexo: temos recebido um ódio intenso. De homens e mulheres que defendem o aumento de armas. Não creio que seja uma patologia coletiva. Mas lendo Theodor Adorno penso sobre a profundidade de frustração de uma vida sem utopia, sem perspectiva revolucionária, dentro de um quadro decadente de capitalismo financeirizado.  Olhando as ações recentes do Estado, na ação truculenta de fiscais do TRE em Campos dos Goytacazes, na violência desmedida de policiais militares, na aceitação de mentiras e na confissão do presidente sobre desejos perversos e criminosos, me pergunto: como faremos oposição a intensa desumanização vivida desde 2016? Os bárbaros estão entre a população periférica? Quando o presidente conclui que meninas de 14 anos em uma comunidade, “bonitinhas” só podem estar “indo ganhar a vida” esta declaração explicita sua representação sobre o povo. O mesmo foi dito sobre os quilombolas na Hebraica. Monstruoso ele foi na Câmara ao defender a tortura diante de milhões de brasileiros.  Quando cresceu esta deformação odiosa e hipócrita entre nossos familiares? Que potência de morte os consome para que apoiem a tortura e esqueçam os parentes perdidos durante uma pandemia ?

Nossa ciência, que sempre pensou a cultura, a natureza, a civilização se depara com uma questão desagradável: a barbárie como conexão espiritual de um grupo cujo instrumento de ação é o ódio.

Bem vindos a luta de classes, bem vindos ás formas de racismo e xenofobia mais odiosos, bem vindos ao novo mundo velho.

Quanto a nós, em nosso desejo de vida, seguiremos nos salvando desta tragédia civilizatória. Brasil, quando chegam os bárbaros? Quem já os observa?

Oferto um poema de Kostantínos Kaváfis.

 “A espera dos bárbaros

O que esperamos nós em multidão no Fórum?

Os Bárbaros, que chegam hoje.

Dentro do Senado, porque tanta inação?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?

Porque os Bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.

E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?

Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.

E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?

Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.

Porque, subitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?

Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram”.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.

E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.


*Luciane Soares da Silva é é docente  e pesquisadora da Universidade Estadual do Norte Fluminense  (Uenf), onde atua como chefe Laboratório de Estudos sobre Sociedade Social e do Estado (Lesce)

Um comentário sobre “Onde começa a selvageria? Onde acaba a civilização?

  1. Ai, ai, ai… Este é o sofisma da esquerda: aceitar a narrativa “civilizatória” do capitalismo, como se houvesse a menor chance de distinguir o que seria “barbárie” e “civilização”… Esta mera categorização já traz sua violência semântica implícita, porque ela sempre serviu para reduzir o sentido dos movimentos anticapitalistas. Claro que o sentido do texto é apontar uma possível violação, um ponto fora da curva, ou ascensão de forças políticas autoritárias. Ora, este é o PRÓPRIO FUNCIONAMENTO DO SISTEMA “CIVILIZATÓRIO” CAPITALISTA, que em seus ciclos e re-ciclos utiliza este esgarçamento como forma de imposição de suas soluções de mediação e/ou coerção, dependendo do caso. Nada é civilizado no capitalismo, senhores e senhoras…nada.

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