
Por Douglas Barreto da Mata
É a terceira vez que venho à cidade portenha. Com certeza, virei quantas forem possíveis. Aqui temos a chance de ver como é possível uma cidade funcionar para seus munícipes e visitantes. Em Buenos Aires, cidade é cidadania.
A despeito da Cidade Autônoma de Buenos Aires, que compreende o distrito federal deles, a capital argentina, ser uma unidade administrativa separada da província de Buenos Aires (cuja capital é La Plata), o fato é que é impossível não morrer de inveja. Não se trata de adentrarmos a polêmica entre esquerda ou direita, peronistas ou anti peronistas, até porque Buenos Aires tem sido governada, repetidamente, por governos de direita há alguns anos.
A questão central, pelo que meus dias de Buenos Aires me mostraram, assim como duas experiências em Santiago e uma em Montevidéu, é o processo histórico e seus contingentes, que construíram povos latinoamericanos muito distintos daquele que fala português (os brasileiros).
Há um senso de coletividade entranhado nesses povos, que se não conseguiu remover suas elites e as elites estrangeiras da posição de parasitas dessas populações, ao menos dotaram estas sociedades de capacidade de mobilização tal, que a subtração de direitos seja muito mais dramática e lenta que no Brasil.
Dentro desta perspectiva, é correto afirmar que essa combatividade social permitiu alcançar uma esfera de proteção social muito mais avançada que no Brasil, apesar de ser indiscutível que nosso país seja muito mais rico que o conjunto de países vizinhos do sul. Não é preciso ser um gênio para concluir que riqueza e tamanho do PIB signifiquem, no aspecto humanitário, mais sucesso proteger pessoas. EUA, e Brasil estão entre as principais economias do planeta.Estão dentre os mais desiguais e violentos também.
Voltemos à capital argentina. O regime ultraliberal de Javier Milei jogou Buenos Aires em uma situação que deteriorou a olhos vistos. Muita gente em situação de rua, coisa que não vi nas duas viagens anteriores, ambas na gestão Fernandez.
Aqui um detalhe: não sou um assistente social, mas há nítida diferença entre essa população em situação de rua, que se percebe nas roupas, pertences e nos grupos. Há aqueles que parecem estar há muito nas ruas, com poucos pertences e aparência degradada, e outros com roupas mais novas ou íntegras, com mochilas com itens que parecem indicar que foram recém despejados de duas casas.
Os que parecem que estão nas ruas há mais tempo, geralmente, estão sozinhos, já os últimos e mais recentes, estão com crianças, famílias inteiras. Uma tensão social quase sufocante, e que dá a sensação que vai explodir em breve. Faixas de sindicatos em fachadas em todo canto. Ao contrário de outras épocas, vi poucas manifestações de rua, embora tenha andado a pé, sistematicamente, pelas ruas de vários bairros.

Isso (ausência de manifestações), na Argentina, nem sempre quer dizer paz social, ao contrário, indica uma enorme panela de pressão, pronta para expelir os valores acumulados. Preços mais altos, porém, ao contrário de antes, serviços públicos mais caros, e muito piores, como a coleta de lixo.
A segurança permanece, e isso também por aquilo que mencionamos antes, ou seja, há um legado de direitos e prerrogativas arraigados no portenho (e nos argentinos, nos uruguaios e chilenos), que são donos de suas cidades, usam-nas como donos que são, sem limites ou territórios proibidos, sem impedimentos de classe ou hierarquias sociais, embora saibamos que a desigualdade e as diferenças ali estejam.
Mas nada como o Brasil, como o Rio de Janeiro, Campos dos Goytacazes, ou qualquer outra cidade grande ou de porte médio, por exemplo. Somos um proto capitalismo, e do pior tipo, proto estadunidense. A adesão automática de todas as políticas públicas estadunidenses, todas com receitas liberais, com destaque para o modelo de gestão de segurança e de distribuição de renda, levou esse país a um beco sem saída, ao desastre total e irreversível.
Não, Lula nem o PT conseguiram apontar um caminho, que era o esperado. Atribuir o fracasso aos limites da governabilidade é uma resposta cínica e não dá conta de descrever as escolhas feitas. Quais escolhas de Lula e do PT? Não escolher nada, seguir o modelo pré estabelecido, como se isso garantisse uma estabilidade política. O resultado? Nós assistimos. Os governos do PT são obedientes ao extremo ao “mercado”, mas não foram poupados do assédio dos golpistas, que levaram à ruptura, como em 2016, e que continuou a assombrar até 08 de janeiro de 2023. Ainda que Lula tenha sido sempre gentil e cordato com a mídia comercial, ele foi tratado com desdém e desrespeito tão severos quanto ao dedicado a Jair Bolsonaro.
No quesito mídia fica o registro sobre Buenos Aires: a Argentina está em frangalhos, mas nada se ouve nos noticiários e nas redes sociais da direita. Enfim, sinto muita inveja dos argentinos, ainda que estejam experimentando uma solução ultraliberal, personificada no espantalho Milei, que, como Bolsonaro, é apenas uma distração para a imposição de mais do mesmo, isto é, tentativa de espremer ainda mais o que resta de riqueza nacional pelos abutres internacionais e carniceiros nacionais. Esse sentimento (de inveja) deriva da certeza de que eles não vão aceitar, por muito tempo, o rebaixamento daquilo que foi conquistado.
Se no Brasil, qualquer coisa agrada, como algumas poucas linhas de ônibus ou de metrô em funcionamento, ou um dia sem tiros de fuzil em vias públicas, creio que na Argentina ninguém, nem em seus piores pesadelos sociais, vai imaginar situações parecidas. Definitivamente, brasileiros são uma prova de que há uma involução civilizatória neste canto do planeta.