Guia de leitura para entender esta e as outras pandemias que ainda virão

Let's replace common list and map usage patterns with Vavr

Desde 2003 desenvolvo pesquisas relacionadas ao uso de agrotóxicos no Brasil, e mais especificamente na agricultura familiar. Os dados que eu e outros pesquisadores brasileiros temos levantado mostram que vivemos uma crise sanitária escondida da população. Esta crise envolve a combinação do uso de agrotóxicos, hormônios e sementes geneticamente modificadas (OGMs) pelo latifúndio agro-exportador cujos líderes possuem pouca ou nenhuma preocupação com os efeitos sociais e ambientais de seu sistema de produção industrial.

Lamentavelmente existe no Brasil pouca literatura do tipo “para científica” que possa educar, pelo menos, segmentos da nossa população sobre a inevitabilidade de grandes pandemias se o atual modelo de produção de alimentos não for drasticamente alterado, de forma a se desmantelar as mega fazendas que são hoje grande criadouros de vírus e bacterias cujo potencial de produção de pandemias é obviamente imenso.

Abaixo posto uma imagem com alguns dos títulos que adquiri ao longo dos anos para me tornar minimamente informado para além do que a literatura científica pode nos informar. A leitura de cada um desses livros me ofereceu uma perspectiva de que o que estamos vivendo neste momento com a COVID-19 tenderá a se repetir por diversas vezes nos próximos e décadas se medidas radicais não forem alteradas para transformar, inclusive, a percepção que temos daquilo que aceitamos como comida.

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Um livro que me impressionou muito foi o “Animal Factory (ou Indústria Animal), pois a partir de exemplos dos EUA, David Kirby nos mostra as profundas transformações ambientais, sociais e econômicas causadas por grandes aglomerações de animais voltadas para a produção de carne e produtos lácteos.  Desta forma, pensando em retrospectiva em relação a tudo que Kirby aborda no “Animal Factory“, não tenho como me surpreender com os fatos de que a China foi o ponto de eclosão da COVID-19 e que os EUA tenham se transformado no epicentro da pandemia.  É que ambos os países são exemplos de vitrine da forma industrial de produzir comida no que na linguagem de agricultores de Rondônia pega a vaca “do mamando ao caducando”.

Mas os demais livros que inclui na minha “seleção básica” também contém informações valiosas sobre o papel estratégico dos OGMs e dos agrotóxicos no desenvolvimento de um modelo agrícola que concentra riqueza em níveis inéditos enquanto adoece as pessoas e intensifica o consumo de valiosos recursos naturais, a começar pelos solos e pela água. No final, o que se tem é a aliança entre grandes conglomerados que determinam o que os governos podem ou não fazer para atender as necessidades da maioria da população do planeta que vive às margens dos espólios trazidos por um sistema de produção de alimentos que se vale do excesso do consumo e de manutenção de altos níveis de desperdício para continuar lucrando.

Por isso, há que se repensar até o que vem a ser comida e para que ela realmente serve, como bem demonstram os diferentes autores envolvidos na produção do “Food, Inc.“.  A receita para um futuro sem pandemias terá de passar inevitavelmente pela quebra dos grandes oligopólios que hoje controlam o sistema de produção de comida em todo o planeta. Ou fazemos isso, ou a pandemia da COVID-19 será uma das muitas com que teremos de conviver nos próximos anos e décadas.

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As 10 corporações controlam quase tudo o que se come no mundo. Fonte: OXFAM

E antes que eu me esqueça: não há como culpar os chineses pelo surgimento de um vírus que, como argumentado aqui, pode ter surgido em qualquer uma das milhares de fazendas industriais que existem nos EUA, na Europa e no Brasil. 

 

Furacão Florence gera sopa tóxica que pode causar catástrofe ambiental na Carolina do Norte

Estou aproveitando a minha atual estada em Lisboa para retomar a leitura de algumas obras que as minhas obrigações profissionais cotidianas acabam impedindo. Um desses livros é o “Animal Factory” de David Kirby onde são descritas as consequências ambientais das chamadas “corporate farms” que dominam a agricultura estadunidense [1].

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Curiosamente um dos casos que Kirby descreve em detalhe são as fazendas de suínos na Carolina do Norte que concentram a maior densidade de animais em todos os EUA, já tendo causado inúmeros incidentes ambientais, incluindo a poluição de corpos aquáticos e o extermínio de populações de peixes que habitam os rios e baías que existem naquele estado. 

Ao assistir as notícias que davam conta da chegada do Furacão Florence na costa da Carolina do Norte, pensei logo que havia uma enorme chance de que as descrições de David Kirby para um cenário relativo à década de 1990 iriam ganhar atualidade. Isso se daria a partir da possibilidade de que as centenas lagoas que estocam rejeitos das fazendas de suínos seriam inundadas pela chegada massiva de água que se seguiria à passagem do Florence.

Pois bem, hoje a Vice News publicou um artigo intitulado “HURRICANE FLORENCE IS TURNING NORTH CAROLINA INTO A TOXIC STEW OF PIG POOP, SEWAGE, AND COAL ASH” (ou em bom português “O Furacão Florence está transformando a Carolina do Norte em uma sopa tóxica que mistura fezes de porcos, esgoto e cinzas de carvão“) assinado pela jornalista Sarah Sax que confirma as minhas piores expectativas [2]. Entre outras coisas, o artigo informa que o cerca de 1 metro de chuva que o Florence despejou na Carolina do Norte fez com que esse caldo tóxico chegassem em rios, lagos e áreas residenciais, com consequências dramáticas para o ambiente e os habitantes das áreas afetadas.rn

Vista aérea de fazendas corporativas com suas lagoas de rejeitos tóxicos antes e depois da chegada das águas trazidas pelas chuvas do Furacão Florence.

Como o processo de elevação do nível das águas ainda nem chegou no seu limite mais alto, a consequência da chegada desse caldo químico poderá significar que mais contaminantes (por exemplo: salmonella, giardia, e E-coli) que estavam estocados nas lagoas ainda serão liberados no ambiente, tendo o potencial de causar um catástrofe ambiental.

Nesse sentido, os aspectos mais graves da crise que está se desenvolvendo na costa leste dos EUA podem ainda estar em desenvolvimento, com consequências potencialmente graves que vão além da inundação. De quebra, o que esta situação demonstra é que como não se deu ouvidos aos avisos colocados por David Kirby no seu “Animal Factory” sobre a forma de produzir alimentos, especialmente de natureza animal, é bem possível que seja colocado um espesso véu de silêncio sobre o que está, literalmente, fermentando nas águas contaminadas da Carolina do Norte.


[1] https://www.amazon.com/Animal-Factory-Looming-Industrial-Environment/dp/0312380585

[2] https://news.vice.com/en_us/article/7xjb4d/hurricane-florence-is-turning-north-carolina-into-a-toxic-stew-of-pig-poop-sewage-and-coal-ash