Desmatamento no Matopiba põe em risco o abastecimento de água de mais de 300 cidades

Estudos estimam que vazão dos rios no Cerrado deve cair 34% até 2050 por causa da perda da vegetação nativa

cerrado desmatado

Por Giovana Girardi para a Agência Pública

Na região por onde o agronegócio mais avança no Cerrado, o chamado Matopiba (polígono entre as fronteiras dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), pelo menos 373 municípios correm risco de desabastecimento e de perda da qualidade de água se os níveis atuais de desmatamento se mantiverem nos próximos anos.  

É o que sugere uma análise lançada nesta quarta-feira, 22, Dia Mundial da Água, por pesquisadores do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e do MapBiomas a partir de dados dos níveis de desmatamento observados pelo sistema SAD Cerrado no ano passado.

O levantamento, compartilhado com exclusividade com a Agência Pública, mostra a perda de vegetação pelo ângulo das bacias hidrográficas da região. O trabalho mostra em quais houve mais desmatamento e indica o que isso pode representar em termos de abastecimento tanto para uso humano, quanto para o agropecuário e também para a geração de energia.


Estudos estimam que vazão dos rios no Cerrado deve cair 34% até 2050 por causa do desmatamento. José Cícero/Agência Pública

De acordo com o SAD Cerrado, em 2022, 74,5% de todo o desmatamento no bioma ocorreu nas bacias dos rios Tocantins (210.804 hectares), São Francisco (116.367 ha), Parnaíba (105.419 ha), Itapecuru (88.049 ha) e Araguaia (78.368 ha). Nessas bacias estão 373 municípios, mas os impactos, estimam os pesquisadores, podem ir além. 

Os rios São Francisco e Parnaíba são fundamentais para o abastecimento de todo o Nordeste. Tocantins e Araguaia compõem também a bacia amazônica. São fontes de água para populações urbanas, rurais e também para o agronegócio.

Essas cinco bacias hidrográficas apontadas na análise — que foram as mais desmatadas do bioma no ano passado —, são também as que ainda mantêm os maiores remanescentes de vegetação nativa e estão na fronteira da expansão do agronegócio. 


Expansão do agronegócio na região coloca 373 municípios em risco de perda da qualidade da água. Acervo IPAM

“A gente quis identificar quais são as bacias que estão sendo mais afetadas atualmente no Cerrado. E é justamente nelas onde ainda estão os maiores remanescentes da vegetação. Outras regiões do bioma já foram muito mais desmatadas. Isso serve como um alerta. Ainda temos a oportunidade de manter a água no local se esse processo de desmatamento parar”, afirma Julia Shimbo, pesquisadora no Ipam e coordenadora científica do MapBiomas.

Já é bem entendido pela ciência o papel de caixa d’água que o Cerrado exerce no Brasil. É no bioma onde estão as nascentes de alguns dos principais rios do país e diversos estudos vêm mostrando que são as árvores do Cerrado que garantem o abastecimento dessas bacias. 

Com raízes maiores que as copas, e muito profundas, as árvores do bioma fazem com que o solo fique mais poroso, o que facilita uma maior penetração da água das chuvas, como uma espécie de esponja. E é essa água que fica armazenada no solo que depois volta para os rios nos períodos de seca, garantindo a vazão mesmo quando não há chuva.

Quase metade da vegetação original do bioma, porém, já desapareceu nas últimas décadas, e os impactos do desmatamento nesse ciclo hidrológico já estão ocorrendo e vêm sendo medidos por diversas pesquisas. 

Um trabalho liderado por pesquisadores da UnB (Universidade de Brasília), em colaboração com Ipam, UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Universidade Federal Rural da Amazônia e o Woodwell Climate Research Center, publicado em setembro do ano passado na revista Global Change Biology, calculou que a conversão da vegetação nativa em áreas de pastagens e agricultura já tornou o clima em todo o Cerrado quase 1°C mais quente e 10% mais seco.



Quase metade da vegetação original do bioma já desapareceu nas últimas décadas. José Cícero/Agência Pública

Um outro estudo, publicado no fim de fevereiro no periódico Sustainability, analisou o comportamento de 81 bacias hidrográficas no Cerrado, entre 1985 e 2022, e concluiu que 88% delas já apresentaram diminuição da vazão em decorrência, principalmente, da mudança do uso do solo. Ou seja, desmatamento da cobertura nativa e substituição por práticas agropecuárias.

O trabalho, liderado pelo cientista florestal doutor Yuri Salmona, diretor executivo do Instituto Cerrados, com apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), buscou identificar o tamanho da contribuição tanto da perda de vegetação quanto das mudanças climáticas na redução da água e concluiu que há uma combinação de fatores perigosa.

Pelos cálculos do grupo, composto também por pesquisadores da Universidade Estadual de Michigan (EUA), da UnB, da UFSCar, da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro e da Agência Nacional de Águas (ANA), as mudanças climáticas respondem por cerca de 44% da redução da vazão e as mudanças do uso do solo, por 56%. Mas um retroalimenta o outro.

Por um lado, sem a presença de árvores, o solo profundo não consegue armazenar água. “Com o desmatamento, a presença de grandes plantações de soja, por exemplo, a água da chuva vai correr mais superficialmente para os rios, não penetra no solo. Pode ter aumento de vazão nos períodos chuvosos, causando enchentes, alagamentos”, afirma Salmona. 

Por outro lado, lembra o pesquisador, a agricultura é a maior consumidora de água do país, de acordo com dados da ANA, sobretudo com irrigação. E é no Cerrado onde estão 80% dos pivôs de irrigação do país.

“Aí junta com o fator climático, que está mexendo com a quantidade de chuva. Está chovendo em períodos menores de tempo. O que era pra cair em seis meses, está caindo em três. Isso causa um efeito tipo de funil, um gargalo. O papel de esponja do solo, que já está prejudicado por causa do desmatamento, não consegue absorver tanta água que cai de uma vez. Ela escoa superficialmente, não ficando disponível para quando a reserva no solo profundo é mais necessária. É uma somatória de efeitos que vão aumentar a vulnerabilidade no período de seca”, ressalta Salmona.

O trabalho também avaliou o impacto que essa combinação de fatores pode ter nas vazões no médio prazo. A partir de modelagem matemática, os autores projetaram que até 2050 a redução no fluxo dos rios deve chegar a 34%, na comparação com os valores observados em 1985. “Isso causará severa descontinuidade de fluxo em muitos rios e afetará fortemente a agricultura, a produção de energia elétrica, a biodiversidade e o abastecimento de água, especialmente durante as estações secas naquela região”, escreve o grupo.

Salmona também chama atenção para o impacto no Matopiba. “É uma das áreas mais críticas, principalmente no oeste da Bahia, em municípios como São Desidério, Formosa do Rio Preto, Correntina e Barreiras. Lá os rios estão impactados pelo desmatamento e pela irrigação”, diz. Há também uma série de conflitos por terra e por água com comunidades tradicionais.

“O pessoal do agronegócio tende a ver a expansão da fronteira agrícola por aquela região como um modelo a ser replicado, mas isso não pode. Tem de ser revisto de modo a conter a sobreexploração de água. Ou a tendência é que os conflitos se agravem.”

Um outro dado divulgado em fevereiro reforça esse conflito pelo uso de água. Levantamento feito pela plataforma MapBiomas, que analisa por imagens de satélite as mudanças na cobertura do solo no país, desde 1985, observou uma espécie de “transferência” da água. 

Reservatórios criados para a geração de energia no Cerrado apresentaram no ano passado a maior superfície de água dos últimos 10 anos: 16,2% acima da média histórica. Já dentro de áreas protegidas, a cobertura de água diminuiu em 66% das regiões hidrográficas do bioma. De acordo com o mapeamento do projeto MapBiomas Água, 7 das 10 regiões mais afetadas estão na bacia dos rios Tocantins-Araguaia.


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Este texto foi originalmente publicado pela Agência Pública [Aqui!].

Desmatamento do Cerrado no Matopiba coloca em risco oferta de água

Cinco bacias hidrográficas na região concentram 74,5% do desmatamento no bioma; sem vegetação nativa, perdem capacidade de absorção e distribuição. Tocantins e São Francisco estão entre as mais comprometidas, mostra SAD Cerrado

unnamedPesquisadores alertam para conexão entre desmatamento do bioma e segurança hídrica no Dia Mundial da Água (Foto: Acervo IPAM)

O desmatamento do Cerrado no Matopiba pode reduzir o abastecimento e a qualidade da água em ao menos 373 municípios, se seguir o ritmo atual. Esses municípios estão dentro da área das bacias hidrográficas mais desmatadas do bioma em 2022, na região da fronteira agrícola. Segundo o SAD Cerrado, 74,5% de todo o desmatamento do Cerrado ano passado ocorreu nas bacias dos rios Tocantins (210.804 hectares), São Francisco (116.367 ha), Parnaíba (105.419 ha), Itapecuru (88.049 ha) e Araguaia (78.368 ha).

A análise de pesquisadores expõe, neste Dia Mundial da Água (22), a relação entre desmatamento e segurança hídrica no bioma considerado berço das águas do Brasil. O SAD Cerrado (Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado) é desenvolvido pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em parceria com o MapBiomas e com o LAPIG (Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento) da UFG (Universidade Federal de Goiás).

Com a perda de vegetação nativa, fica comprometida a capacidade natural de absorção e distribuição da água, que chega a “viajar” centenas de quilômetros antes de ser aproveitada para uso humano, seja em consumo próprio, afazeres domésticos, geração de energia, produção industrial ou irrigação, por exemplo. O SAD Cerrado indica que os municípios que mais desmataram dentro da área das bacias foram Balsas (MA), São Desidério (BA), Correntina (BA), Carolina (MA) e Formosa do Rio Preto (BA).

“Garantir a proteção dos remanescentes de vegetação nativa do Cerrado e, ao mesmo tempo, recuperar áreas próximas a nascentes, rios e bacias, é essencial para a manutenção dos recursos hídricos que temos hoje e para o equilíbrio climático. São diversos e complexos os efeitos que a diminuição na oferta de água teria nos municípios, mas uma coisa é certa: se o desmatamento continuar na velocidade e na extensão em que está, a disponibilidade hídrica será cada vez menor”, explica Fernanda Ribeiro, pesquisadora no IPAM responsável pelo SAD Cerrado.

O Cerrado tem 24 bacias hidrográficas, com nascentes de 8 das 12 principais regiões hidrográficas do país. As cinco bacias mais desmatadas em 2022 são também as que têm os maiores contínuos de vegetação nativa.

Segundo o SAD Cerrado, foram 815.532 hectares desmatados no bioma ano passado. Maranhão teve a maior derrubada no período e Balsas (MA) foi o município que mais desmatou: subiu quase 60% em relação a 2021. Já em 2023, Bahia, Goiás e Minas Gerais tiveram recorde, com altas de 227%, 82,5% e 69%, respectivamente.

Além do desmatamento, monoculturas e atividades agrícolas que não levam em conta o equilíbrio com a sociobiodiversidade acabam causando outros prejuízos para a segurança hídrica, não só de quem vive na cidade, mas de povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares no campo, com a seca e o envenenamento de rios. A transformação de áreas de vegetação nativa para pastagem e agricultura já tornou o clima no Cerrado quase 1°C mais quente e 10% mais seco. Nos locais desmatados, a temperatura média anual pode subir até 3,5°C com queda de 44% na evapotranspiração, processo que contribui para a umidade do ar.

“O Cerrado está ficando cada vez mais quente e seco, com menos água disponível. Este cenário acende o alerta para que tipo de planeta queremos habitar no futuro. É como destacou o relatório-síntese do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, das Nações Unidas], precisamos lidar com a emergência do clima tendo como prioridades a justiça climática e a equidade para o bem-estar humano e da biodiversidade”, conclui Julia Shimbo, pesquisadora no IPAM e coordenadora científica do MapBiomas.

Além das florestas: traders enfrentam riscos regulatórios da UE sobre a expansão da soja no Brasil

Os traders de soja estão mais expostos à conversão dos habitats do cerrado e dos pampas do que à conversão das florestas. Conforme a União Europeia (UE) considera incluir outros ecossistemas em sua nova legislação de devida diligência, a análise da Trase revela quais comerciantes enfrentam os maiores riscos regulatórios

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Por Mark Titley e Tiago Reis para a Trase

Com o futuro regulamento da UE sobre produtos livres de desmatamento , os comerciantes de commodities em breve terão que provar que produtos como soja e óleo de palma destinados ao mercado da UE não estão vinculados à conversão das florestas. No futuro, isso poderá ser ampliado para incluir outros ecossistemas.

Isso teria grandes implicações para os comerciantes de soja que compram do Brasil: apenas 17% da recente expansão da soja nos habitats naturais aconteceu nas florestas. Os comerciantes muito provavelmente estavam comprando soja que invadiu o cerrado e os pampas biodiversos do Brasil.

Na primeira revisão do regulamento, prevista para acontecer até setembro de 2024, a UE irá considerar a inclusão de “outras terras arborizadas”, o que iria aumentar a cobertura do cerrado de 26% para 82% . Um ano depois, em setembro de 2025, será considerada a inclusão dos pampas e pântanos.

A nova análise da Trase revela como essa ampliação do escopo não afetaria todos os comerciantes da mesma forma, pois os padrões de compra diferenciados desses comerciantes no Brasil os expõem a diferentes tipos de conversão (ver a figura).

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A inclusão de outras terras arborizadas teria implicações particularmente grandes para empresas como a Bunge, que veria a porção da sua exposição ao desmatamento e conversão coberta pela regulamentação triplicada, de 6.920 hectares (ha) para 24.600 ha, e a Cargill, cuja área de exposição coberta pela regulamentação seria cinco vezes maior, de 4.420 (ha) para 21.000 (ha). Ambas as empresas são grandes exportadoras de soja para a UE e estão mais expostas ao desmatamento e conversão devido a este comércio com o bloco.

Outras empresas com exposição menor à conversão de outras terras arborizadas ainda veriam mudanças dramáticas, como o aumento de dez vezes da CHS, de 732 ha para 7.360 ha. Enquanto isso, a Orlam, que tem seu fornecimento no estado do Rio Grande do Sul, seria particularmente afetada se os pampas fossem incluídos, onde fica 91% da sua exposição ao desmatamento e conversão.

Uma oportunidade para a UE reduzir seus impactos sobre a natureza

Seria uma grande vitória para a biodiversidade se a ampliação do escopo do regulamento da UE levasse a uma redução na expansão da soja nos ecossistemas que não são de floresta no Brasil. O cerrado é o lar de mais de 11.000 espécies de plantas, muitas das quais não são encontradas em nenhum outro lugar, e fornece habitats importantes para os animais, incluindo o tamanduá-bandeira, o tatuaçu e a onça. A necessidade de proteger os pampas dos altíssimos níveis da recente expansão da soja permanece bastante negligenciada, apesar de este ser um ecossistema frágil que está entre as pradarias mais ricas em espécies do planeta.

A experiência anterior da Moratória da Soja da Amazônia – um acordo com cerca dos 20 maiores comerciantes de soja para parar de comprar soja de terra que foi desmatada após julho de 2008 – mostra como o esforço conjunto dos comerciantes, combinado com governança forte e monitoramento do desmatamento, levou a uma redução drástica do desmatamento direto por soja na Amazônia brasileira. No entanto, devido a esta política estar restrita à Amazônia, argumentou-se que cerca da metade do desmatamento evitado foi transferido para outras regiões , tais como o Cerrado.

Estender o regulamento da UE para cobrir outros ecossistemas é essencial para ajudar a evitar que efeitos semelhantes de “vazamento” se repitam. No entanto, é vital que a UE aplique um prazo comum (um tempo a partir do qual a produção seja considerada vinculada ao desmatamento ou conversão) para todos os tipos de conversão, para evitar incentivar uma rápida expansão em outros ecossistemas vulneráveis enquanto a possível inclusão desses ecossistemas é revisada.

Uma chance para os vendedores gerirem o risco de conformidade

Para os comerciantes, aumentar o escopo do regulamento da UE significa que eles provavelmente enfrentariam maior escrutínio sobre uma porção muito maior da sua produção e teriam que fornecer informações no nível das explorações agrícolas sobre sua compra em regiões de maior risco.

Os comerciantes são bem orientados a garantir que sua produção não esteja vinculada à conversão de nenhum ecossistema nativo, principalmente porque muitos desses comerciantes já têm compromissos de desmatamento zero que incluem esses ecossistemas. Apesar de isso parecer complexo, os dados da Trase mostram que a exposição desses comerciantes ao desmatamento e conversão da terra está altamente concentrada em poucos lugares, destacando as regiões prioritárias para engajar os produtores e revelando onde eles podem querer melhorar a rastreabilidade de sua cadeia de suprimento.

Além disso, os comerciantes devem se comprometer a não expandir a infraestrutura de processamento de soja em áreas fronteiriças de desmatamento e conversão. Em vez disso, eles devem focar a expansão de infraestrutura em regiões com grandes áreas de pastagens degradadas e subutilizadas, que totalizaram mais de 33 milhões de hectares em 2021 . Isso seria um sinal para os produtores e motivaria a expansão da soja sem promover mais conversão, ajudando a abrir o caminho para os comerciantes cumprirem o regulamento progressivo do lado da demanda e seus próprios compromissos de desmatamento zero e ajudando a proteger a biodiversidade globalmente importante do Brasil.


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Este texto foi originalmente publicado pela Trase [Aqui!].

Baixa no nível dos rios no Brasil soa alerta para toda a América Latina

rios-Cerrado-996x567 (1)A redução da vazão dos rios do Cerrado pode afetar a produção agrícola, a geração de energia elétrica e o abastecimento de água da população. Crédito da imagem: Pedro Biondi/Flickr , sob licença Creative Commons (CC BY-NC 2.0)

Por Pablo Corso para a SciDev

O desmatamento devido ao avanço da fronteira agrícola e os efeitos das mudanças climáticas estão reduzindo a vazão dos rios do Cerrado brasileiro, a savana com maior biodiversidade do mundo.

Sem medidas para acabar com a extração indiscriminada, um cenário de gravidade inusitada pode ser gerado em três décadas, estendendo-se a outras áreas do país e até à região, sugere pesquisa publicada na revista Sustainability .

Entre 1985 e 2018, a vazão dos rios do Cerrado —no centro do Brasil— diminuiu 8,7% devido ao desmatamento e 6,7% devido às mudanças climáticas, segundo pesquisa que abrangeu 81 bacias.

Se o desmatamento continuar no ritmo atual, até 2050 a água poderá diminuir em nove das dez bacias desse bioma, com “níveis críticos e recorrentes de escassez”, afirma o documento.

A redução total da vazão do rio seria de 34%, o que afetará a produção agrícola, a geração de eletricidade e o abastecimento de água para a população, Eraldo Matricardi, um dos autores do artigo científico, disse à SciDev.Net, 

O Cerrado fornece 44% da produção nacional de carne e 48% das exportações de soja. “É considerado ‘o berço das águas’ do país, pois reúne as principais nascentes de oito bacias hidrográficas, que atendem às regiões mais populosas”, acrescenta o professor da Universidade de Brasília.

A demanda mundial por produtos agrícolas, o aumento dos preços das commodities e a falta de políticas de controle ambiental são alguns dos fatores que permitem a contínua expansão das lavouras, afirma o estudo.

A menor infiltração de água causada pela perda da vegetação nativa “poderia prejudicar a capacidade de recarga dos aquíferos durante as estações chuvosas e de manter um alto consumo de água para irrigação durante as estações secas”. Essas dinâmicas, que não são exclusivas do Cerrado, são especialmente preocupantes no contexto atual.

“Se há um século tínhamos um copo de água per capita, hoje temos apenas menos de um décimo (…) E os padrões de consumo da nossa região, a mais urbanizada do planeta, apresentam pegadas hídricas cada vez maiores”

Miguel Doria, especialista para a América Latina do Programa Hidrológico Intergovernamental da Unesco

“Em 1900 havia cerca de 60 milhões de pessoas na região; hoje somos mais de 660 milhões”, disse Miguel Doria, especialista para a América Latina do Programa Hidrológico Intergovernamental da Unesco , ao SciDev.Net .

“Se há um século tínhamos um copo d’água per capita, hoje temos apenas menos de um décimo”, compara. “E os padrões de consumo da nossa região, a mais urbanizada do planeta, apresentam pegadas hídricas cada vez maiores ”, continua.

A diminuição do fluxo dos rios do Cerrado também aumentou as tensões sobre o acesso à água. “Esses conflitos devem se intensificar”, alerta Matricardi.

A grande irrigação exigida pela exportação de produtos agrícolas “mudou a governação” deste recurso, “passando do controlo de actores locais, regionais e nacionais para os que dominam as cadeias produtivas”, indica o estudo.

Por outro lado, alguns pesquisadores comemoram a crescente conscientização da necessidade de justiça da água com vistas a uma distribuição mais equitativa.

No nível local, qualquer expansão de terras agrícolas poderia ser avaliada generalizando o sistema de comitês de bacias hidrográficas , “uma estratégia importante para empoderar as comunidades e evitar o uso excessivo e desigual da água”, diz Matricardi.

A criação de reservas em propriedades particulares e áreas protegidas também pode contribuir para a preservação dos recursos, resguardando porcentagens de vegetação nativa capazes de manter fluxos hídricos adequados.

Quanto às iniciativas de reflorestamento, Doria destaca o trabalho “vasto e positivo” que está sendo desenvolvido , chamando a atenção para a necessidade de utilizar espécies adequadas e considerar fatores como distribuição e tipo de solo, para otimizar os processos de evaporação, retenção de água e proteção contra exposição a contaminantes.

Estas ações de mitigação e adaptação “devem ser aplicadas sempre que se equacione o desenho e gestão de uma cultura, um aqueduto ou uma albufeira”, antecipa.

Mesmo contextos de seca ou escassez podem levar a uma gestão eficiente dos recursos, através de culturas mais rentáveis ​​ou que necessitem de menos água.

“A importância dos recursos hídricos em um ecossistema está ligada ao econômico, mas também ao cultural”, acrescenta. “Quando a biodiversidade se perde, perde-se também o patrimônio das comunidades e dos países”.


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Este artigo foi produzido e publicado pela edição América Latina e Caribe de  SciDev.Net [Aqui!].

Amazônia concentra 90% da área queimada no Brasil no primeiro bimestre de 2023

Foram 487 mil hectares queimados no bioma; confira os dados do Monitor do Fogo divulgados nesta segunda-feira (13)

Fire Monitoring in the Amazon in July, 2021Monitoramento de Queimadas na Amazônia em Julho de 2021

Queimada feita em uma área de desmatamento recente na Amazônia

A Amazônia foi o bioma mais queimado no Brasil nos dois primeiros meses do ano, com 487 mil hectares atingidos pelo fogo. A área equivale a quatro vezes a capital paraense Belém e representa 90% de tudo o que queimou no país no período. Os dados foram divulgados nesta segunda-feira (13) pelo Monitor do Fogo, iniciativa do MapBiomas em parceria com o IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).

“O principal fator para o fogo na Amazônia nesse período é a ocorrência do fogo em formações campestres, principalmente ao norte do Bioma. Ainda que seja um número alto para a época de chuvas, é 25% menor que os 654 mil hectares que pegaram fogo no bioma em janeiro e fevereiro do ano passado”, comenta Vera Laisa Arruda, pesquisadora no IPAM responsável pelo Monitor do Fogo.

Entre os estados em todos os biomas, Roraima foi o que mais queimou nos meses de janeiro e fevereiro. Foram 259 mil hectares, ou 48% de toda a área queimada no Brasil. Roraima, Mato Grosso e Pará, os últimos com 90 mil e 70 mil hectares queimados, concentram 79% do fogo ocorrido no Brasil no período.

“O padrão de área queimada em Roraima pode estar relacionado a características climáticas e ambientais únicas do estado. Roraima está localizado no hemisfério norte, enquanto a maior parte dos demais estados se localiza no hemisfério sul. Dessa forma, enquanto o período de seca em boa parte do país ocorre entre os meses de maio a setembro, em Roraima os meses de seca ocorrem entre dezembro e abril”, explica Felipe Martenexen, pesquisador no IPAM e responsável pelo mapeamento da Amazônia no Monitor do Fogo.

Campos, como os lavrados roraimenses, foram o tipo de vegetação mais afetado: na Amazônia, os 266 mil hectares que pegaram fogo entre janeiro e fevereiro de 2023 eram de formações campestres, ou 55% da área queimada no bioma; no Brasil, a proporção chega a 84% .

“As vegetações campestres têm um papel fundamental na manutenção dos ciclos naturais essenciais para a vida, como o do carbono e do nitrogênio, além de contribuírem para a absorção e distribuição de água pelo solo. Por essa relação interdependente e complementar, medidas de proteção da biodiversidade devem considerar ecossistemas como um todo para serem efetivas”, acrescenta Vera Arruda.

O Cerrado foi o segundo mais queimado em janeiro e fevereiro, com 24 mil hectares atingidos pelo fogo. A época de chuva em regiões do bioma dificulta o alastramento dos incêndios. No total, o Brasil teve 536 mil hectares queimados nos dois meses, uma área 28% do que a registrada no mesmo período em 2022

Estudo aponta que desmatamento causa diminuição no fluxo dos rios no bioma Cerrado

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Um estudo do qual participei acaba de ser publicado nesta segunda-feira (27/02) pela revista “Sustainability” mostra os impactos do uso da terra e das mudanças climáticas nas vazões de 81 bacias hidrográficas do bioma Cerrado, Brasil, a partir de uma base em uma análise abrangente de dados de campo e secundários adquiridos entre 1985 e 2018.

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O artigo traz estimativas para desmatamento e cenário climático até 2050 que são usadas para prever os impactos sobre as águas superficiais nas área abrangidas pelo estudo. O estudo mostra que os impactos diretos do desmatamento em larga escala voltado para a produção de commodities agrícolas irrigadas afetam mais significativamente as vazões dos rios do bioma Cerrado do que as mudanças climáticas.  Do ponto de vista prático, as estimativas colocadas no estudo mostra que deverá ocorrer uma redução média de 8,7% e 6,7% na vazão devido ao desmatamento e às mudanças climáticas, respectivamente. 

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 Mapa de uso e cobertura da terra mostrando as transições observadas (1985 a 2020) e previstas (2030 a 2050) entre pastagens e terras agrícolas.

Por outro lado, os autores do estudo apontam que a maioria das mudanças observadas (56,7%) deveu-se a mudanças no uso e cobertura da terra que ocorreu nas últimas décadas. As mudanças climáticas e de uso e cobertura da terra combinadas foram responsáveis ​​por uma redução total da água superficial de -19.718 m³/s nas bacias hidrográficas do Cerrado. Assumindo as taxas atuais de desmatamento, os autores do trabalho estimam que haverá uma redução total de água de 23.653 m³/s até 2050, o que seria equivalente a uma redução de 33,9% da vazão dos rios na região de estudo.

Segundo os autores, se o processo de desmatamento continuarem no ritmo atual,  o mais provável é que ocorra uma severa descontinuidade de fluxo de muitos rios ligados ao bioma Cerrado, fato que afetará fortemente a agricultura, a produção de energia elétrica, a biodiversidade e o abastecimento de água, especialmente durante as estações secas .

Desmatamento do Cerrado sobe 88% na Bahia e no Piauí

Municípios do Oeste baiano e Piauí lideram os registros de derrubadas no mês passado. No bioma como um todo houve queda de 16% na comparação entre janeiro de 2022

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O desmatamento do Cerrado nos estados da Bahia e do Piauí aumentou 88% em janeiro de 2023 em relação ao mesmo período em 2022, segundo dados do SAD Cerrado (Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado) divulgados nesta quarta-feira (15). No Piauí, o bioma teve 9,5 mil hectares desmatados, um aumento de 120% em relação ao mesmo período do ano passado, quando 4,3 mil hectares foram derrubados. Já na Bahia, o aumento foi de 64%, totalizando 9,3 mil hectares desmatados contra 5,6 mil hectares no ano anterior. 

O crescimento nos estados vem na contramão da tendência observada no resto do bioma. No total, o Cerrado teve 46,5 mil ha desmatados em janeiro de 2023, uma redução de 16% sobre os 55,3 mil ha desmatados no mesmo mês em 2022. E uma redução de 24% em relação a janeiro de 2021, quando 60,9 mil ha foram derrubados.
 

O SAD Cerrado é uma ferramenta de monitoramento do desmatamento do bioma desenvolvida pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em parceria com a rede MapBiomas e com o LAPIG (Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento), da UFG (Universidade Federal de Goiás).

”A divergência das tendências de desmatamento entre o bioma Cerrado e as regiões da Bahia e Piauí chama muita atenção. Observamos grandes áreas sendo abertas no oeste da Bahia que, por ser uma região de agricultura já consolidada, os fragmentos remanescentes de vegetação nativa são cruciais para segurança hídrica e alimentar da região, além de serem importantes para manutenção da biodiversidade e conectividade entre áreas protegidas”, afirma a pesquisadora do IPAM que atua no SAD Cerrado, Fernanda Ribeiro.

Os números do SAD também mostram que, dos dez municípios que mais desmataram o Cerrado em janeiro, seis estão localizados no oeste baiano, região de agricultura consolidada. Juntos, os municípios de Jaborandi, São Desidério, Cocos, Correntina, Baianópolis e Santa Rita de Cássia desmataram 7,6 mil ha, 82% de todo o desmatamento ocorrido no cerrado baiano e 16% de todo o desmatamento no bioma.

Áreas privadas concentram desmate

Os dados do SAD Cerrado mostram que a maior parte do desmatamento no bioma segue ocorrendo em propriedades privadas. Em janeiro de 2023, 85% de todo o desmatamento do bioma ficou concentrado em áreas privadas. O restante das derrubadas ocorreu em áreas sem definição de categoria fundiária (8%), áreas protegidas (4%) e assentamentos (3%).

Na Bahia, 95% do desmatamento esteve concentrado em áreas privadas, com maior concentração na região do extremo oeste baiano. No Piauí, as propriedades privadas têm 81% da área desmatada.

“O desmatamento no Cerrado põe em risco a segurança hídrica, energética, climática e alimentar brasileira. Hoje, a maior parte da vegetação nativa do Cerrado está em áreas privadas, o que reforça a necessidade de articulação entre o setor privado, e os governos Estaduais e Federal. Além disso, as demandas do mercado internacional por uma agricultura sustentável, juntamente com a implementação de novas políticas públicas voltadas para conservação dos remanescentes de vegetação nativa em áreas privadas são essenciais para o sucesso do combate ao desmatamento no bioma”, afirma a pesquisadora do IPAM e coordenadora científica do MapBiomas, Julia Shimbo

Vegetação savânica perdida

De todo o desmatamento observado no Cerrado, 68% atingiu as formações savânicas, um dos tipos de vegetação mais biodiversos do bioma. O restante do desmatamento ficou concentrado em áreas de florestas (20%) e formações campestres (12%). No Piauí, a derrubada das savanas chegou a corresponder a 86% de todo o desmatamento no estado em janeiro.

As savanas ocupam 30% da extensão do Cerrado, mas concentram 78% da área desmatada no bioma diretamente para o pasto e o plantio de soja entre 2010 e 2021, segundo dados do MapBiomas. Esse tipo de vegetação também sofre com a falta de políticas nacionais e internacionais para sua proteção.

“O reconhecimento e a integração das savanas em políticas nacionais e internacionais de redução do desmatamento, e de incentivo à restauração e conservação é um passo fundamental para a proteção do Cerrado. Na realidade brasileira, isso pode ser alcançado a partir do fortalecimento do Código Florestal e da implementação de políticas públicas, em parceria com o setor privado, voltadas para a conservação de savanas”, diz Tarsila Andrade, pesquisadora do IPAM que atua no SAD Cerrado.

Sobre o SAD Cerrado

O Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado foi lançado em setembro pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em parceria com a rede MapBiomas e com o LAPIG (Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento), da UFG (Universidade Federal de Goiás). Relatórios de alertas para janeiro de 2023 e para o ano de 2022, estão disponíveis neste link. No painel interativo, é possível selecionar estado, município, categoria fundiária e intervalo temporal para análise.

O objetivo é que o sistema forneça alertas de desmatamentos maiores de 1 hectare, atualizados mês a mês. Pesquisadores entendem que o SAD Cerrado pode se constituir como uma ferramenta complementar a outros sistemas de alerta de desmatamento no bioma, como o DETER Cerrado, do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), otimizando o processo de detecção em contextos visualmente complexos.

Acesse os dados georreferenciados clicando aqui.

Desmatamento no Cerrado quase dobrou em dezembro de 2022

Desenvolvido pelo IPAM, SAD Cerrado revela avanço na derrubada de vegetação nativa, sobretudo no Tocantins, que devastou cerca de oito vezes mais no mesmo período do ano passado

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O desmatamento no Cerrado quase dobrou em dezembro de 2022 em comparação com o mesmo período em 2021. Foram 83.998 hectares derrubados, alta de 89% sobre os 44.486 ha desmatados no mesmo mês em 2021.

 Os números são do SAD Cerrado (Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado), ferramenta de monitoramento do bioma desenvolvida pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em parceria com a rede MapBiomas e com o LAPIG (Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento), da UFG (Universidade Federal de Goiás).

O SAD revela que, em 2022, o desmatamento do Cerrado foi quase 20% maior do que em 2021 (com 691.296 ha derrubados), totalizando 815.532 hectares desmatados – uma área maior que a do Distrito Federal.

Durante os dois últimos anos, o Maranhão segue liderando como o estado que mais desmata, com destaque para o município de Balsas (MA), que em 2021 desmatou 14.527 ha e, em 2022, subiu para 24.581 ha, crescimento de quase 60% do desmatamento. O mês de dezembro foi o que mais acumulou área desmatada em 2022 neste município, totalizando 3.948 ha.

Estados e municípios

A devastação da vegetação nativa em Tocantins se sobressai quando comparada aos meses de dezembro dos dois últimos anos. Foram 2.650 ha, em 2021, e 20.257 ha em 2022 – um crescimento quase oito vezes maior.

Os municípios que aparecem no topo da lista do acumulado anual de 2022 são Balsas (MA), com 24.581 ha derrubados, São Desidério (BA) com 17.187 ha, e Alto Parnaíba (TO) com 11.112 ha – todos localizados na região do Matopiba. Em dezembro de 2022, foram 52.263 ha desmatados nesta região, representando 62% do total desmatado neste mês.

“Matopiba é a região com os últimos grandes remanescentes de Cerrado, mas também é a principal fronteira agrícola no bioma nos últimos anos, principalmente para soja“, afirma a pesquisadora do IPAM que atua no SAD Cerrado, Tarsila Cutrim Andrade. “Essa é a região onde se deveriam focar esforços para combater e reduzir o desmatamento no bioma”.

Tipos de vegetação

As formações savânicas, entre os diferentes tipos de vegetação do Cerrado, foram as mais afetadas pelo desmatamento em 2022: nessa vegetação se concentra 65% da área desmatada. Um fato alarmante é que, apesar de representar 10,6% da área de vegetação natural remanescente no bioma, as formações campestres já somam 23,8% do total do desmatamento em 2022.

Caso as propostas de legislações internacionais anti desmatamento considerem como áreas a serem protegidas apenas aquelas caracterizadas como florestas, de acordo com a definição da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), os biomas brasileiros que possuem prioritariamente outros tipos de vegetação nativa não florestal estarão descobertos, permitindo que as commodities ocupem essas áreas sem nenhuma repreensão do mercado, conforme aponta a diretora de Ciência do IPAM e coordenadora do MapBiomas Fogo e da equipe do Cerrado no MapBiomas, Ane Alencar.

“Grande parte da soja brasileira é produzida no Cerrado, por exemplo. Ao utilizar a caracterização de floresta da FAO, mais de 74% da área de vegetação nativa do bioma estaria desprotegida pela legislação europeia, justamente onde ocorre grande parte do desmatamento: mais de 85% do total”, destaca Alencar.

Categorias fundiárias

Os dados do SAD Cerrado revelam que a maior parte do desmatamento no bioma ocorre em propriedades privadas. Em 2022, cerca de 80% da área desmatada está nesta categoria. O restante está em vazio fundiário (13,5%), assentamentos (4,5%) e áreas protegidas (3,6%).

“Para combater o desmatamento no Cerrado, é necessário que exista uma ação conjunta entre setores privado, financeiro, e governos Estadual e Federal. Além de intensificar a fiscalização, é crucial que planos importantes sejam retomados, como o PPCerrado [Plano de ação para prevenção e controle do desmatamento e das queimadas no Cerrado]. O governo atual sinalizou que irá retomar essas ações, o que pode significar uma oportunidade”, afirma a pesquisadora no IPAM e coordenadora científica do MapBiomas, Julia Shimbo.

Serviço

O relatório de alertas do SAD Cerrado para dezembro e de todo o ano passado, bem como para outras séries temporais, está disponível neste link. No painel interativo, é possível selecionar estado, município, categoria fundiária e intervalo para análise.

Os dados georreferenciados podem ser baixados neste link.

Sobre o SAD Cerrado

O Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado foi lançado em 12 de setembro pelo IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em parceria com a rede MapBiomas e com o LAPIG (Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento), da UFG (Universidade Federal de Goiás), e está disponível para acesso aberto em plataforma virtual. O SAD Cerrado funciona por meio de inteligência artificial e utiliza imagens do satélite Sentinel-2, da Agência Espacial Europeia, com resolução de 10 metros.

O objetivo é que o sistema forneça alertas de desmatamentos maiores de 1 hectare, atualizados mês a mês. Pesquisadores entendem que o SAD Cerrado pode se constituir como uma ferramenta complementar a outros sistemas de alerta de desmatamento no bioma, como o DETER Cerrado, do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), otimizando o processo de detecção em contextos visualmente complexos.

Brasil em chamas: queimadas em novembro quase dobram em relação a 2021

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Dados do Monitor do Fogo do MapBiomas confirmam a escalada da destruição ambiental nos últimos meses do governo Bolsonaro. A área queimada em novembro em todo o território nacional — 775 mil hectares — foi 89% superior ao registrado no mesmo mês de 2021. Desse total, 81% (627 mil hectares) foram queimados na Amazônia.

A maior parte da área queimada (58%) no mês passado foi em vegetação nativa, sendo que mais de um terço (35%) atingiu formações florestais. Dentro os tipos de uso agropecuário do solo atingidos, as pastagens se destacaram, representando 38% da área queimada em novembro. Os estados líderes em extensão destruída pelo fogo foram Pará, Mato Grosso, Rondônia e Amazonas. Os municípios de Querência (MT), Lábrea (AM), Pacajá (PA) e Porto Velho (RO) foram os que tiveram maior área queimada.

“Os dados do monitor do Fogo de área queimada em novembro só vêm confirmar o que já tinhamos visto com os focos de calor. Logo após o segundo turno das eleições houve um aumento da área queimada em um mês que normalmente não teríamos muito fogo por conta das chuvas. Trata-se claramente de uma reação à expectativa de políticas mais efetivas de combate ao desmatamento e queimadas por parte do novo governo”, analisa Ane Alencar, Coordenadora do Mapbiomas Fogo e Diretora de Ciência do IPAM.

Uma nova funcionalidade do Monitor do Fogo são as áreas queimadas por Unidades de Conservação e Terras Indígenas. Ela mostra que em novembro as UCs que mais queimaram foram RESEX Chico Mendes, RESEX do Rio Cajari e RESEX Verde para Sempre. No caso das Tis, o ranking é liderado pela Parque Indígena do Xingu, TI Paresi e TI Capoto/Jarina.

Com os números de novembro, o acumulado desde janeiro alcançou 15,9 milhões de hectares, uma área maior que a soma dos territórios da Escócia e da República Tcheca. Esse número é 13% maior do que o registrado no mesmo período em 2021 — uma diferença de 1,8 milhão de hectares a mais. A grande maioria (70%) da área queimada foi em vegetação nativa, principalmente em formações savânicas e campestres. Porém foram as florestas que tiveram maior aumento em relação ao ano passado: 86%, ou cerca de 2,7 milhões de hectares. Desse total, 85% ocorreram na Amazônia. Entre janeiro e novembro, as florestas da Amazônia queimaram quase o dobro do que foi queimado em florestas na região no ano inteiro de 2021. Um terço (30%, ou 2,3 milhões de hectares) do que foi queimado na Amazônia afetou florestas, sendo incêndios ou desmatamento seguido de fogo.

Quase metade do fogo registrado no período (48%, equivalentes a 7,7 milhões de hectares) ocorreu no bioma Amazônia. Em segundo lugar vem o Cerrado (46%, equivalentes a 7,3 milhões de hectares). “Vale destacar que nos últimos dois anos o Cerrado havia queimado mais que a Amazônia, porém nesse ano a Amazônia ultrapassou o Cerrado”, ressalta Ane. O Pantanal apresentou a menor área queimada nos últimos quatro anos, com 86% de redução de 2022 para 2021 em relação à área queimada de janeiro a novembro.

As Unidades de Conservação que lideram o ranking de área queimada de janeiro a novembro de 2022 são Parque Nacional do Araguaia, Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins e Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba. No caso das Terras Indígenas, as que mais queimaram no período são Parque Indígena do Araguaia, TI Raposa Serra do Sol e Parque Indígena do Xingu.

Dentro os tipos de uso agropecuário queimados em 2022, as pastagens se destacaram, representando 25% da área queimada nos onze primeiros meses de 2022.

O estado que mais queimou entre janeiro e novembro deste ano foi Mato Grosso: 3,6 milhões de hectares, extensão equivalente a países como Taiwan ou Guiné Bissau. O estado foi responsável por quase um quarto do que foi queimado no Brasil nesse período. Pará e Tocantins ocupam o segundo e o terceiro da posição no ranking, com 2,7 milhões de hectares (equivalente ao território do Haiti) e 2,2 milhões de hectares (mais que todo o País de Gales), respectivamente. Juntos, esses três estados representaram 57% da área queimada total no período.

Destaques Amazônia

  • A área queimada entre janeiro e novembro de 2022 na Amazônia já é superior em 49% ao que foi queimado em 2021.
  • Os três municípios que mais queimaram no Brasil em novembro de 2022 estão na Amazônia: Querência (MT), Lábrea (AM) e Pacajá (PA).
  • Os três municípios que mais queimaram no Brasil de janeiro a novembro de 2022 estão na Amazônia: São Felix do Xingu (PA), Altamira (PA) e Porto Velho (RO).
  • A formação florestal foi o tipo de vegetação nativa que mais queimou na Amazônia, 30% da área queimada entre janeiro e novembro de 2022.
  • 627 mil ha queimaram na Amazônia em novembro de 2022, com um aumento de 106% em relação ao mesmo mês do ano anterior.
  • A pastagem foi a classe de uso da terra que mais queimou, com 46% da área total queimada na Amazônia em novembro de 2022.

Destaques Cerrado

  • 7,3 Mha foram queimados no Cerrado entre janeiro e novembro de 2022, com aumento de 18% em relação ao mesmo período do ano anterior.
  • Os estados que mais queimaram no Cerrado foram Mato Grosso, Tocantins e Maranhão, entre janeiro e novembro de 2022.
  • Quase metade da área queimada no Cerrado entre janeiro e novembro de 2022 ocorreu em formação savânica (3,5 Mha, 48%).
  • Apesar da área queimada em Novembro ter diminuído em relação aos meses anteriores, ainda assim foi 249% maior comparado a Novembro de 2021 (ou 83 mil ha a mais)

Destaques demais Biomas

  • No Bioma Mata Atlântica apesar da área queimada nos 11 primeiros meses de 2022 ter sido a menor nos últimos 4 anos, a área queimada em novembro foi de 6.695 hectares, 55% a mais que novembro de 2021 (ou 2.379 ha a mais)
  • No verão de 2022 no Pampa foi registrada uma área recorde de queimadas no Pampa, com 28.039 ha. Por outro lado, no período entre março e novembro a área queimada total foi de 1.260 ha, bem abaixo do que foi registrado para esse mesmo período nos três anos anteriores.
  • Toda a área queimada no Pantanal em 2022 vem sendo a menor nos últimos 4 anos, com 6.632 hectares queimados em novembro de 2022.
  • A Caatinga vem seguindo o mesmo padrão do Pantanal, com áreas queimadas inferiores aos anos anteriores e com 18.589 hectares queimados em novembro de 2022.

Sobre o Monitor do Fogo

O Monitor do Fogo é o mapeamento mensal de cicatrizes de fogo para o Brasil, abrangendo o período a partir de 2019, e atualizados mensalmente. Baseado em mosaicos mensais de imagens multiespectrais do Sentinel 2 com resolução espacial de 10 metros e temporal de 5 dias. O Monitor de Fogo revela em tempo quase real a localização e extensão das áreas queimadas, facilitando assim a contabilidade da destruição decorrente do fogo. Acesse o Monitor do Fogo e o Boletim Mensal de novembro.

Sobre o MapBiomas

O MapBiomas é uma iniciativa multi-institucional, que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia, focada em monitorar as transformações na cobertura e no uso da terra no Brasil, para buscar a conservação e o manejo sustentável dos recursos naturais, como forma de combate às mudanças climáticas. Esta plataforma é hoje a mais completa, atualizada e detalhada base de dados espaciais de uso da terra em um país disponível no mundo. Todos os dados, mapas, métodos e códigos do MapBiomas são disponibilizados de forma pública e gratuita no site da iniciativa.

Cultivo de soja no Brasil avança em áreas de desmatamento recente

Estudo elaborado pela plataforma de transparência Trase em parceria com o Imaflora aponta expansão da cultura nos biomas Cerrado, Pampas e Amazônia
desmatamento soja

O cultivo de soja em áreas de desmatamento recente continua avançando em níveis alarmantes no Brasil, afetando de forma crítica três biomas e o combate às mudanças climáticas no país. Em 2020, 562 mil hectares de soja foram colhidos em áreas desmatadas ou convertidas nos cinco anos anteriores, sendo o Cerrado a região mais impactada. Os dados fazem parte de um estudo realizado pela Trase, plataforma que monitora a exposição de cadeias de commodities agropecuárias ao desmatamento, em parceria com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).

Segundo o estudo, em 2020 os campos de soja ocuparam, no Cerrado, mais de 264 mil hectares de terras recentemente desmatadas e convertidas – uma área equivalente ao dobro da extensão da cidade de São Paulo. Já nos Pampas, o cultivo do grão em áreas de desmatamento foi de 196 mil hectares, no mesmo período. Três dos cinco municípios com maior conversão de vegetação nativa em cultura de soja se localizam na região Sul. “Os Pampas vinham sendo uma área pouco estudada até agora. No entanto, os dados mais recentes do Mapbiomas mostram que o bioma se tornou um dos mais ameaçados no Brasil, com conversão ativa e acelerada de campos naturais, e é preciso agir com rapidez para reverter esse quadro”, alerta Vivian Ribeiro, coordenadora de inteligência espacial da Trase.

Os dados também apontam que a Amazônia segue sob forte ameaça da expansão do cultivo da commodity, apesar da proteção fornecida pela Moratória da Soja – acordo firmado entre empresas, organizações da sociedade civil e do governo que prevê o compromisso de não adquirir grãos ou financiar safras cultivadas em áreas desmatadas da Amazônia após julho de 2008. Em 2020, 133 mil hectares de soja foram colhidas de áreas desmatadas após 2008 na Amazônia, em contradição com a Moratória da Soja .

Esta ação afeta diretamente o combate à crise climática: a produção de soja do Brasil em terras recentemente desmatadas e convertidas liberou 103 milhões de toneladas de CO₂ — 11% do total anual de emissões de mudanças no uso da terra do país. Ou seja, o desmatamento da vegetação natural rica em carbono contribui significativamente para as emissões de gases de efeito estufa.

Recomendações

Os dados levantados pela Trase com o Imaflora revelam que a expansão da commodity é concentrada: apenas 13% dos 2.388 municípios produtores de soja representavam, em 2020, 95% da produção do Brasil em terras recentemente desmatadas ou convertidas. “Nossas análises apontam com clareza quais regiões concentram a maior parte da soja com desmatamento e conversão. Essas informações são de grande importância para a implementação de medidas direcionadas para a produção de commodities livres de desmatamento. Produtores rurais, empresas, governos municipais, estaduais e federal precisam se unir para fornecer transparência ampla aos compradores e reguladores de mercados consumidores”, afirma Tiago Reis, coordenador da Trase na América do Sul.

Para Lisandro Inakake de Souza, coordenador de cadeias agropecuárias no Imaflora, a redução da conversão de terras para cultivo de soja é do interesse de toda a cadeia. “Temos a Moratória da Soja como um exemplo de compromisso que pode nortear políticas para todo o país e deveria ser ampliado além do bioma amazônico. Além disso, ainda é preciso avançar em tecnologias e processos, aumentar investimentos em monitoramento e fiscalização, em atuações conjuntas dos setores privado, público e organizações da sociedade civil.”

Como resposta a esse problema, o estudo defende que é preciso criar políticas públicas mais duras. Uma das recomendações é o desenvolvimento de um sistema de rastreabilidade público, universal e totalmente transparente, abrangendo todas as commodities agrícolas produzidas no país.

Ações como essa podem ser fundamentais para que o Brasil continue ocupando uma posição de destaque no mundo em exportações de grãos de forma sustentável. A União Europeia está finalizando um regulamento que exige que as empresas fiscalizem suas cadeias de suprimentos e comprovem que seus produtos não são provenientes de áreas desmatadas, mas a regra, como vem sendo elaborada até agora, não prevê cobertura de todos os biomas brasileiros. “Excluir o Cerrado e os Pampas dessa regulamentação deixaria algumas das áreas naturais mais biodiversas do Brasil vulneráveis. Pior ainda, pode aumentar a pressão sobre essas áreas, já que a regulamentação as declararia ‘liberadas’ para derrubada de vegetação natural”, alerta Helen Bellfield, diretora da Trase na Global Canopy.

Além da União Europeia, a China tem papel importante: o país é o maior destino da soja brasileira e importou em 2020 229 mil hectares de soja com desmatamento, seguido pelo próprio consumo do Brasil (102 mil ha). A exposição ao desmatamento da soja na União Europeia é menor, esteve em 29,8 mil ha, em 2020.

Sobre a Trase

A Trase é uma iniciativa de transparência, baseada em dados, que mapeia o comércio e financiamento internacional de commodities que promovem o desmatamento e a conversão nos trópicos. 

Sobre o Imaflora

O Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola — Imaflora — é uma associação civil sem fins lucrativos, criada em 1995, que nasceu sob a premissa de que a melhor forma de conservar as florestas tropicais é dar a elas uma destinação econômica, associada a boas práticas de manejo e a uma gestão responsável dos recursos naturais. O Imaflora acredita que a certificação socioambiental é uma das ferramentas que respondem a parte desse desafio, com forte poder indutor do desenvolvimento local, sustentável, nos setores florestal e agrícola. Dessa maneira, o Instituto busca influenciar as cadeias produtivas dos produtos de origem florestal e agrícola; colaborar para a elaboração e implementação de políticas de interesse público e, finalmente, fazer, de fato, a diferença nas regiões em que atua, criando ali modelos de uso da terra e de desenvolvimento sustentável que possam ser reproduzidos em outros municípios, regiões ou biomas do País. Mais informações: Link