“Quanto mais subimos na carreira científica menos mulheres cientistas encontramos” | Camila Silveira da Silva

Pesquisadora fala da violência e discriminação que as mulheres ainda enfrentam nos meios científicos e sobre as ações de projeto que busca dar maior visibilidade às mulheres cientistas e estimular meninas a seguir carreira acadêmica

Premio-Estrategia-ODS9O projeto Meninas e Mulheres nas Ciências foi finalista do prêmio Estratégia ODS que destaca projetos que contribuem para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Foto: Divulgação Estratégia ODS

Por Ciência UFPR

A Ciência UFPR conversou com a professora do Departamento de Química da UFPR, Camila Silveira da Silva. A pesquisadora falou sobre os obstáculos que as mulheres ainda encontram no ambiente da produção científica e sobre o trabalho do projeto Meninas e Mulheres nas Ciências (MMC), que coordena.

A professora, que é licenciada em Química pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) onde também cursou mestrado e doutorado em Educação para Ciência, vem estudando as trajetórias das mulheres cientistas, especialmente nas ciências exatas, buscando destacar suas contribuições e estudando as dificuldades que a discriminação de gênero impõe para mulheres nas carreiras científicas, tendo trabalhos também com a temática de museus de ciência e desenvolvimento de materiais didáticos.

Os materiais e atividades desenvolvidas no projeto de extensão já foram adotados em escolas por todo o Brasil. A iniciativa dá visibilidade às trajetórias de mulheres que marcaram a história da ciência, oferecendo formação para professores e atuando na criação de material didático com foco em pesquisadoras de destaque, além de atividades aplicadas diretamente a estudantes tanto de forma presencial quanto online.

A ideia é oferecer uma perspectiva que rompa com o viés masculino que normalmente é dado para o ambiente científico nesse tipo de material, oferecendo uma alternativa que estimule meninas a se interessar pelo campo científico, rompendo com o estereótipo machista prevalecente. A iniciativa também apoia a pesquisa em torno do tema orientando trabalhos de pesquisa na graduação e pós-graduação

Trechos

“O que mais me chamava a atenção, era o apagamento das mulheres nos materiais didáticos, a dificuldade de elaborar práticas educativas pela falta de referências pedagógicas nas Ciências Exatas, os obstáculos para localizar dados biográficos das cientistas”

“O que eu passei a notar foi a naturalização que elas tinham incorporado em suas práticas profissionais dos processos de exclusão de mulheres, da violência e discriminação de gênero ao partilharem suas trajetórias de vida e acadêmica”

“Os trabalhos liderados por mulheres, em diversas ocasiões, são menos valorizados que aqueles que contam com liderança masculina. São em menor número: as citações de mulheres em artigos, teses, dissertações; as aprovações de projetos com financiamento; as conferências principais nos congressos; a composição nas bancas de concursos; as bolsas de produtividade em pesquisa; a presidência de sociedades científicas; etc. Há, ainda, laboratórios, grupos de pesquisa, orientadoras(es) que não aceitam trabalhar com mulheres, ou se aceitam, as discriminam por seu gênero”

“Outra experiência que gosto de compartilhar é de várias alunas negras, de uma escola pública periférica do Distrito Federal, querendo tirar fotografias com os desenhos de cientistas negras que elas estavam colorindo e dizendo o quanto elas se pareciam com elas, com suas mães e irmãs”

“É fundamental que as meninas sejam motivadas com exemplos positivos de mulheres cientistas, encorajadas em seus sonhos pela escola e familiares, e tenham as condições para que possam seguir seus estudos”

“Como inspirar jovens para as Ciências se o campo científico continuar sendo sexista, racista, elitista, excludente? Como despertar o interesse de crianças e jovens se não temos boas condições de trabalho nas escolas? Essas reflexões precisam gerar ações e políticas públicas que tornem a carreira científica atrativa para as(os) jovens”

Veja a entrevista no site da revista Ciência UFPRhttps://ciencia.ufpr.br/portal/?p=23008

O levante da ciência

cientistas engajados

Por Herton Escobar, jornalista especializado em Ciência e Meio Ambiente e repórter especial do “Jornal da USP”

“Sempre que a ciência for atacada, temos que nos levantar.” Palavras do professor Ricardo Galvão, proferidas em 16 de agosto de 2019, no auditório do Conselho Universitário da USP, poucos dias após ter sido removido pelo ministro Marcos Pontes da cadeira de diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que ele ocupava legitimamente desde 2016. Motivo da exoneração: Galvão se levantou. Fez o que o próprio ministro não teve coragem (ou talvez interesse) de fazer: defendeu a ciência brasileira do negacionismo e das mentiras lançadas contra ela pelo então presidente da República, Jair Bolsonaro.

O caso é bem conhecido. Logo nos primeiros meses do governo, aconteceu o que todo mundo previa que iria acontecer: o desmatamento da Amazônia começou a crescer. Pressionado, o presidente colocou em prática a sua especialidade: negar a realidade. Em vez de demonstrar preocupação e anunciar providências, disse que os dados do Inpe eram “mentirosos” e acusou o diretor do Inpe (Galvão) de estar a serviço de ONGs internacionais, conspirando contra o seu governo. Galvão poderia ter ficado calado para se preservar no cargo, mas não. Rebateu publicamente o presidente, defendeu os dados do Inpe e desafiou Bolsonaro a comprovar suas acusações (o que nunca aconteceu). Depois, ainda enfrentou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que em diversas ocasiões tentou, também, desacreditar publicamente o trabalho do Inpe.

Galvão perdeu o cargo, mas caiu de pé. Se o objetivo era desmoralizá-lo, aconteceu o contrário. Galvão virou um símbolo de inconformismo e resistência ao negacionismo científico e ao obscurantismo intelectual que permearam os quatro anos do governo Bolsonaro. Um governo que negou a realidade do desmatamento, negou o perigo das mudanças climáticas, negou a gravidade da pandemia (até o final), negou a segurança das vacinas, negou a necessidade das máscaras, promoveu falsos tratamentos e vendeu falsas soluções para todo tipo de problema, na área ambiental, na área social, na saúde, na educação, na segurança pública, e por aí vai. Gastamos quatro anos lutando contra inimigos imaginários — ameaça comunista, ideologia de gênero, banheiro unissex, satanismo — enquanto o vírus, a pobreza, a fome e outros problemas do mundo real eram simplesmente negados ou ignorados.

Quantas vidas humanas foram perdidas sem necessidade na pandemia em função disso? Quantos quilômetros quadrados de floresta foram desmatados impunemente? Quantos indígenas morreram de fome, sitiados pelo garimpo? Quantas armas foram parar nas mãos de pessoas violentas? Quantos jovens tiveram seus sonhos jogados na lata de lixo? Quantas universidades foram sucateadas? Quantos cérebros deixaram de ser formados ou foram embora para nunca mais voltar? Quantas pesquisas importantes deixaram de ser feitas? Quantas crianças deixaram, e ainda deixarão, de ser vacinadas por conta das mentiras e do medo que o governo semeou na mente de seus pais? Quantas decisões erradas foram tomadas, apesar do conhecimento disponível para evitá-las?

O negacionismo científico não é apenas uma questão acadêmica, de caráter teórico; é um problema real, com consequências práticas e nefastas para toda a sociedade, que precisa ser combatido com urgência e com inteligência.

O saldo desses últimos quatro anos foi desastroso para a ciência brasileira: orçamento esmagado, cientistas perseguidos, universidades e institutos de pesquisa abandonados, cérebros em fuga. Mas poderia ter sido muito pior, se Galvão e tantos outras lideranças e organizações não tivessem se levantado contra o desmonte. Entre elas, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciência (ABC), a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e várias outras entidades que, individualmente ou coletivamente, atuaram para reverter, amenizar, ou ao menos retardar, os impactos dos muitos ataques à ciência e às universidades públicas proferidos nesse período.

Em 17 de janeiro deste ano, Galvão foi apresentado como o novo presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), um dos cargos mais importantes e prestigiados da ciência brasileira. Vai trabalhar de mãos dadas com a nova presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília, que também atuou fortemente em defesa da ciência e da educação nos últimos quatro anos. Duas indicações qualificadas, do ponto de vista técnico, e carregadas de simbologia.

“Hoje é o dia que se faz justiça à ciência brasileira, o dia em que viramos a página do negacionismo, que não pode ser esquecido, para que não volte a acontecer”, disse a ministra de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Luciana Santos.

Galvão, que é professor aposentado do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, se emocionou várias vezes durante a cerimônia, especialmente ao lembrar do seu discurso de 2019 na USP. “Prezada ministra, de fato o povo brasileiro não se calou”, disse. “Essa cerimônia, e a indicação da professora Mercedes Bustamante para a Capes, são a comprovação de que nossa ciência sobreviveu ao cataclisma político promovido por um governo negacionista, que empreendeu um verdadeiro desmonte das políticas públicas em diversas áreas.” E concluiu: “No dia de hoje viramos essa página triste de nossa história, com a convicção de que a ciência voltará a promover grandes avanços para a nossa sociedade”.

Se essa página foi virada, de fato, só o tempo dirá. O negacionismo perdeu a eleição, mas não desapareceu. Assim como o vírus da covid, é um inimigo que chegou para ficar, altamente infeccioso e resiliente, especialmente quando transmitido via WhatsApp, acoplado ao vírus da desinformação.

Desenvolver uma vacina eficaz contra essa doença é um desafio imenso, prioritário e de caráter multidisciplinar, que exige a participação de toda a sociedade — cientistas, professores, médicos, jornalistas, comunicadores, advogados, empresários, poder público. É impossível erradicar o vírus — sempre haverá pessoas dispostas a inventar e disseminar mentiras —, mas, com boa informação, boa educação e um mínimo de bom senso, é possível conter a sua disseminação. Diante desse quadro, só há uma opção daqui para frente: permanecer de pé.

(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


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Este texto foi inicialmente publicado pelo “Jornal da USP” [Aqui!].

Rede de Pesquisadores em Geografia (Socio)Ambiental emite nota sobre cortes de bolsas de pós-graduação

Confisco dos recursos para a educação e a ciência: como uma geração de jovens pesquisadores poderá fazer a diferença?!

ciencia bolsas

A Rede de Pesquisadores em Geografia (Socio)Ambiental/RPG(S)A é animada por quase três dezenas de pesquisadores vinculados a mais de vinte instituições de ensino e pesquisa pelo Brasil afora, com a participação ativa, também, de numerosos alunos de pós-graduação. Tem sido nossa preocupação constante, desde o surgimento da rede em abril de 2017, contribuir para o desenvolvimento de uma ciência socialmente engajada, comprometida com a emancipação social e a justiça ambiental. Uma tal ciência pressupõe, evidentemente, que os jovens sejam estimulados a se dedicarem à ciência e que talentos não sejam estupidamente desperdiçados.

Pois bem: estamos, no apagar das luzes do atual Governo federal, assistindo a um triste e chocante espetáculo de desestímulo e desperdício. O confisco dos recursos para a educação está sendo realizado pelo próprio Ministério da Educação, através de um instrumento de desvio e captura de dinheiro público, chamado de reserva de contingência.1 Não é fato novo que isso ocorra pela falta de interesse do governo em incentivar uma pesquisa científica e uma educação livres de suas amarras ideológicas conservadoras; entretanto, o desvio destinado de uma enorme quantia de dinheiro devido a práticas o “orçamento secreto” (com previsão, para 2023, no Projeto de Lei Orçamentária, de um montante em torno de R$19 bilhões).2

Infelizmente, não existem garantias de que este cenário poderá mudar tão rapidamente, sobretudo pela confirmação que o orçamento secreto terá continuidade nos próximos anos. Enquanto isso, neste hiato de possível mudança (oxalá mude!), em que condições os jovens pesquisadores que dependem diretamente de suas bolsas, poderão continuar a empreender suas pesquisas?

Para além de fenômenos que já se tornaram crônicos, como a pouco alvissareira perspectiva de trabalho futuro, as cobranças e os assédios produtivistas e a desvalorização gradual das bolsas – entre outros problemas –, agora o golpe desferido foi especialmente brutal e pérfido: com a interrupção do pagamento de bolsas e outros recursos, o que se compromete é a pura e simples sobrevivência dos pós-graduandos (seus gastos com alimentação, transporte, moradia, compra de livros…) e a continuidade adequada de cursos e trabalhos de pesquisa. É fácil ver como, nesse cenário, se inviabilizam não apenas pesquisas específicas, mas sim carreiras e vidas. Quantos desistirão da ciência? Quantos terão a sua formação seriamente prejudicada, por conta do agravamento adicional de dificuldades que se acumularam durante a pandemia? A Geografia, ainda por cima, é, provavelmente, uma das áreas mais afetadas, pois os cortes que têm atingido as universidades têm ocasionado o adiamento ou cancelamento de atividades de campo, cuja importância pedagógica tem um valor inestimável.

Precisamos, todos nós, e em particular os pesquisadores mais jovens e os graduandos e pós-graduandos – que herdarão dias muito difíceis –, debater não só sobre como chegamos nesta situação, mas também sobre o que podemos fazer para ajudar a superá-la. A resignação não é uma opção. Acima de tudo, não é sensato renunciar à autonomia intelectual e política em razão de promessas e esperanças vagas. Mesmo com a mudança de conjuntura política, os anos vindouros só serão muito diferentes se a sociedade se mantiver vigilante e organizar para exigir seus direitos.

Nós, da RPG(S)A, nos solidarizamos com todos os pós-graduandos e com os pesquisadores prejudicados em geral, afirmando que o pagamento imediato das bolsas e a liberação dos recursos para a educação superior pública é uma exigência que os geógrafos têm de fazer em alto e bom som. Façamos a luta, façamos a diferença.

8 de dezembro de 2022.

 


1 Dotação global não especificamente destinada a determinado órgão, unidade orçamentária, programa ou categoria econômica, cujos recursos serão utilizados para abertura de créditos adicionais, atendimento de emendas parlamentares, de passivos contingentes e de outros riscos e eventos fiscais imprevistos (CONGRESSO NACIONAL, 2022). Para ver mais: https://www.congressonacional.leg.br/legislacao-e-publicacoes/glossario- orcamentario/-/orcamentario/termo/reserva_de_contingencia.

2 Brasil de Fato (2023). Para ver mais: https://www.brasildefato.com.br/2022/10/23/de-onde-vem-os-bilhoes- do-orcamento-secreto.

Lula promete priorizar clima e ciência em meio à crise

Lula_Brazil_MAINLula da Silva prometeu apoio à ação climática, à ciência. Copyright: Fórum Econômico Mundial , (CC BY-NC-SA 2.0).

Mas reviver a ciência, a tecnologia e a inovação e enfrentar as crises ambientais não será uma tarefa fácil, após vários anos de cortes orçamentários recorrentes em educação e ciência sob o presidente Jair Bolsonaro.

O manifesto de Lula promete acabar com o desmatamento na Amazônia, conter as emissões de gases de efeito estufa, apoiar a agricultura de baixo carbono e a agricultura familiar, reconstruir os órgãos de fiscalização e controle do desmatamento e acabar com a mineração ilegal em terras indígenas.

“Será importante uma estratégia econômica que inclua a promoção da ciência e a exploração sustentável dos recursos naturais.”

Luiz Antônio Elias, ex-secretário executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Brasil

“O Brasil está pronto para retomar sua liderança na luta contra a crise climática”, disse Lula a apoiadores em São Paulo após sua vitória nas eleições. “O Brasil e o planeta precisam de uma Amazônia viva.”

A política ambiental foi uma grande vítima do governo Bolsonaro, instaurado em janeiro de 2019.

De 2019 a 2022, o desmatamento na Amazônia brasileira cresceu 56% em comparação com o período de 2016 a 2018, segundo artigo de Paulo Artaxo , professor de física ambiental da Universidade de São Paulo.

Houve também um aumento de 80% no desmatamento em áreas protegidas, como terras indígenas e áreas de conservação. Além disso, houve uma escalada recorde de incêndios.

A ciência de forma mais ampla também sofreu um grande golpe sob Bolsonaro. Em 2014, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico teve um orçamento de cerca de 4,6 bilhões de reais (US$ 900 milhões), enquanto em 2022 esses recursos cairão para US$ 480 milhões no orçamento de seu governo. E mais da metade desse valor foi destinado ao pagamento da dívida pública porque, segundo o governo Bolsonaro, os recursos para a ciência não estavam sendo utilizados.

Além disso, uma medida provisória emitida por Bolsonaro em agosto impõe limites ao uso de parte dos recursos do Fundo, medida que antes era proibida por lei.

“Foram anos de intensa deterioração dos investimentos em ciência e tecnologia, e a vitória de Lula traz a perspectiva de recuperação”, diz Renato Janine, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ao SciDev.Net .

“No entanto, como [Bolsonaro] promulgou vários mecanismos legais usando o veto presidencial (ou seja, sem possibilidade de alteração pelo legislativo), será necessário revogar essas leis e medidas provisórias.”

O financiamento e o investimento em universidades federais e institutos de pesquisa também caíram por cento desde o fim da presidência de Dilma Rousseff, de R$ 10,3 bilhões (cerca de US$ 2 bilhões) para cerca de US$ 900 milhões, mostram números oficiais.

Os orçamentos das principais agências de fomento à pesquisa do Brasil — o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — também caíram por cento nesse período, impactando a oferta de bolsas para mestrandos e doutorandos.

A biomédica Helena Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciências, diz que as vagas de pesquisa apoiadas são cruciais para o avanço da ciência.

“Mais de 90 por cento da ciência brasileira é feita em universidades e institutos públicos de pesquisa”, disse ela ao SciDev.Net . “Sem educação não há ciência, e o novo governo terá que levar isso em conta.”

Janine diz que o governo Lula terá que tomar decisões difíceis, pois ele herda uma crise econômica. O presidente eleito, que tomará posse em 1º de janeiro de 2023, já disse que sua prioridade será acabar com a fome que assola 33 milhões de pessoas, o equivalente a mais de 15% da população.

“Existe uma expectativa de soluções rápidas, mas infelizmente não podemos esperar que sejam tão rápidas”, disse o presidente da SBPC.

Nader concorda: “O dano é muito grande. Vamos precisar de pelo menos um ou dois anos para nos organizarmos.”

O economista Luiz Antônio Elias, ex-secretário-executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação nos governos Lula e Dilma Rousseff, acredita que será fundamental reconstruir o sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação “com uma visão integrada da política científica”.

O “ programa de reconstrução e transformação do Brasil ” de Lula reconhece que a reconstrução do sistema será “pela inovação tecnológica e social, bem como pelo uso sustentável das riquezas do país, pela geração de empregos qualificados e pelo combate às mudanças climáticas e ameaças à saúde pública”.

“Será importante uma estratégia econômica que inclua a promoção da ciência e a exploração sustentável dos recursos naturais”, acrescenta Elias.

Para Janine, aproximar a ciência da sociedade será fundamental. “Precisamos mostrar às pessoas o quanto a ciência é importante para o desenvolvimento do país, e como ela está presente em seus alimentos, roupas e celulares”, disse.

Em seu primeiro discurso como presidente eleito, Lula prometeu a retomada das conferências nacionais, incluindo uma de ciência e tecnologia, para facilitar a participação social no planejamento de políticas científicas.

Este artigo foi produzido pelo escritório da América Latina e Caribe da SciDev.Net e editado para ser conciso e claro [ Aqui!].

Pesquisadores e profissionais da área de Ciência e Tecnologia lançam manifesto em favor da candidatura de Lula

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Nós, cientistas, professores, pesquisadores, técnicos, empresários, trabalhadores, servidores, pós-graduandos e gestores, que atuam em ciência, tecnologia e inovação (CT&I), nos manifestamos pela eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República Federativa do Brasil. Fazemos isto por termos certeza de que Lula fará um governo democrático, com avanços sociais e a recuperação econômica do País. Temos clareza que a eventual continuidade do péssimo governo do presidente Bolsonaro nos levará a um desastre maior do que o atual.

Ao longo dos 4 anos de governo, Bolsonaro se destacou pelo negacionismo em relação à ciência, atuando contra as vacinas e a proteção individual, além de incentivar remédios ineficazes. Tais ações foram corresponsáveis por uma parcela significativa das centenas de milhares de mortes na pandemia. Bolsonaro promoveu um processo de desmonte da CT&I no Brasil, reduzindo drasticamente os recursos para esta área, bem como para a educação, e desviando fundos legalmente destinados a ela para interesses eleitoreiros e orçamentos secretos. Presenciamos nos últimos anos, a evasão de muitos de nossos jovens que abandonaram o país em busca de melhores condições de estudo e trabalho. Seu governo atuou contra a liberdade de pesquisa e a transparência da gestão pública ao promover demissões e perseguições a pesquisadores que divulgavam dados importantes sobre o meio-ambiente, a saúde e a economia do país. A sua política deliberada de destruição do meio ambiente levou a um crescimento enorme no desmatamento, a ameaças às terras indígenas e conduziu o país a um triste recorde internacional. Em consequência das ações do governo, a imagem do Brasil no exterior foi profundamente afetada, prejudicando o comércio e as cooperações internacionais. As ameaças constantes à democracia e aos direitos individuais, o grande aumento do desemprego, o crescimento da fome, que atinge agora 33 milhões de pessoas, e a deterioração acentuada das condições de vida da população brasileira são o legado trágico de uma política de governo que o país deve, agora, derrotar democraticamente.

Como Presidente da República, Lula agiu sempre de forma democrática e o bom desempenho de seu governo foi reconhecido pela população: no final do seu mandato, tinha 87% de aprovação. O Brasil atingiu a posição de sexta economia do mundo (hoje caiu para o 12o lugar) e o PIB por pessoa foi o maior da nossa história. A dívida externa foi toda paga e o país acumulou reservas de centenas de bilhões de dólares. Havia pleno emprego e o Brasil foi retirado do Mapa da Fome. A CT&I teve um grande impulso, assim como a educação, com aumento substancial de recursos e planejamento adequado, alcançando patamares bem mais altos que os atuais. Houve a criação e expansão de muitas universidades e institutos federais e ampliou-se o acesso de milhões de jovens ao emprego e às escolas e universidades. As ações de inclusão social beneficiaram milhões de pessoas.

As propostas de Lula para o próximo governo recuperam e ampliam em muito o que seu governo anterior realizou. Pontos essenciais serão a recuperação econômica do país, a melhoria do sistema educacional e da saúde pública, a extinção da fome e a preocupação com o meio ambiente e com uma agricultura sustentável. Em seu programa, Lula planeja o aumento e a continuidade de recursos para CT&I e educação – vistos não como gastos, mas como investimentos – e o estímulo à pesquisa básica e à inovação tecnológica e social. Será dado destaque à valorização das bolsas de estudo e à criação de oportunidades de trabalho para os jovens que querem se dedicar à CT&I no País, oferecendo futuro a eles e à Nação.  

Por essas razões apoiamos a eleição de Lula para a Presidência do Brasil. Votar nele significa também se juntar a uma ampla aliança de democratas para salvar o País do autoritarismo. Como profissionais da CT&I, setor crucial para a inserção do Brasil no mundo contemporâneo, declaramos a nossa firme disposição de colaborar para a recuperação econômica e para um desenvolvimento sustentável e socialmente mais justo do país. Por um Brasil mais rico e menos desigual, no qual a educação, a ciência e a saúde sejam instrumentos essenciais para o desenvolvimento econômico do país e para a melhoria das condições de vida de todos os brasileiros e brasileiras, votamos Lula!

Já assinaram este manifesto:

Sergio Machado Rezende – Departamento de Física – UFPE
Soraya Smaili – UNIFESP
Ildeu de Castro Moreira – Instituto de Física – UFRJ
Luiz Antonio Elias – Pesquisador INPI
Helena Nader – UNFESP
Luiz Davidovich – Instituto de Física – UFRJ
Marco Lucchesi – UFRJ
Rubens Belfort Jr. – UNIFESP
Paulo Artaxo – USP
João Ramos Torres de Mello Neto – IF/UFRJ
Marilene Corrêa da Silva Freitas – UFAM
Celso Pansera – ICTIM
Luis Manuel Rebelo Fernandes – IRI/PUC-Rio e UFRJ
Ennio Candotti – Museu da Amazônia – MUSA
Renato Cordeiro – FIOCRUZ
Denise de Carvalho – UFRJ
Fernando Peregrino – UFRJ
Anderson S. L. Gomes – Departamento de Física – UFPE
Sidarta Ribeiro – UFRN
Manuela Carneiro da Cunha – USP
Reinaldo Guimarães – UFRJ
Para assinar também, basta clicar [Aqui!].

As razões do atual ataque ideológico e financeiro às universidades públicas

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No último debate presidencial transmitido pela Rede Globo coube ao senhor Kelmon Luis da Silva Souza (a.k.a., “Padre Kelmon”) realizar um forte ataque ideológico às universidades públicas brasileiras. Dentre os muitos absurdos assacados por um cidadão cuja ligação a algum tipo de clero é, no mínimo, questionável sobressaiu-se a repetição da cantilena de que as universidades públicas, muitas deles reconhecidas internacionalmente como centros de divulgação de pesquisas inovadoras e de formação de recursos humanos qualificados, de que não passamos de núcleos esquerdistas que nada dão de volta para o país.

O problema aqui é que o “Padre Kelmon”  (que em sua vida terrena é o feliz proprietário de uma loja de artigos religiosos e bijuterias em um prédio comercial em Brasília) serviu-se do local onde estava para ser o porta-voz dos esgoto in natura que prolifera nas redes de comunicação da extrema-direita brasileira.  Quem tem um mínimo de conhecimento sobre o cotidiano das universidades sabe que nem somos um centro avançado do pensamento de esquerda (aliás, o inverso é que realmente ocorre), nem nossos estudantes vivem em orgias diárias, pois a maioria tem mesmo é que se virar para sobreviver ao rigor de uma vida universitária que muitas vezes não dá as devidas oportunidades para quem nela entra.

Como professor de uma universidade pública desde 1998, mas principalmente como filho de um trabalhador metalúrgico, sei que as universidades públicas são a principal oportunidade para que muitos jovens saiam de situações de grande dificuldade social para se tornarem os primeiros de famílias inteiras a terem o grau universitário. Foi assim comigo, e assim como muitos dos jovens com quem tive a oportunidade de interagir desde que cheguei na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf). Ao contrário do que se propala, a maioria deles se origina de famílias da classe trabalhadora que chegam até nós com imensas lacunas de formação, já que a degradação da rede pública de educação vem avançando de forma impiedosa. Entretanto, com as oportunidades oferecidas pela Uenf, tenho o orgulho de dizer que a imensa maioria dos meus alunos aproveitou a oportunidade para se elevar intelectualmente, tendo muitos deles alcançado níveis de formação que provavalmente ninguém em suas próprias famílias esperava.

Mas há que se olhar as reais razões dos ataques contra as universidades públicas para melhor desenhar formas de defendê-las do projeto de destruição que paira sobre elas neste momento.  Uma das primeiras razões é que a produção científica nacional sai majoritariamente das universidades públicas, já que a maioria das instituições privadas não só oferece ensino de baixíssima qualidade, mas como também nelas não se gera qualquer tipo de conhecimento científico.  Como vivemos em uma conjuntura onde conhecimento científico é equiparado como ameaça ao projeto político que é expresso por Jair Bolsonaro e seus filhos, temos essa campanha de difamação.

Por outro lado, há uma razão econômica para que se tenta desacreditar o potencial transformador que está depositado dentro das universidades públicas. É que desde que entrei na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1980 se sabe que há um projeto para privatiza-las para quem sejam transformadas em novas fábricas de diplomas que gerariam fortunas para seus proprietários.  Não é à toa que o governo Bolsonaro está seguindo a receita usual para quando se quer privatizar uma empresa pública: primeiro se desacredita, depois se privatiza.

Finalmente há a questão do acesso dos pobres às universidades públicas, pois mesmo com as oportunidades limitadas oferecidas pelas políticas afirmativas, hoje há uma maioria afluência de jovens pobres. Como a maioria desses jovens são afro-descendentes, aparece o incomodo que uma sociedade fraturada por diferenças raciais não tolera. Por isso, os ataques de natureza racista que volta e meia aparecem até dentro das próprias universidades.

Mas se sabemos as causas desse ataque visceral às universidades públicas, por que então tanto silêncio das comunidades universitárias que assistem caladas a todos essas alegações caluniosas? Salvo engano não houve qualquer manifestação pública contra o auto denominado “Padre Kelmon” por parte de reitorias ou sindicatos universitários e, tampouco, de associações representativas da ciência brasileira como a Academia Brasileira de Ciências e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). 

Aliás, desde o golpe de 2016 contra a presidente Dilma que me pergunto o porquê de tamanha covardia por parte da comunidade acadêmica e científica brasileira contra essa campanha de difamação. Provavelmente é porque não devido valor ao risco que estamos sofrendo, ou porque se preferem a atitude escapista de que se o risco for ignorado, ele vai desaparecer por um passe de mágica.

Na minha opinião, é passada a hora de uma ampla campanha de defesa das universidades públicas que deveria começar justamente por quem está dentro dela. Não vai ser com a atual atitude de avestruz com a cabeça enterrada na areia que vamos responder ao ataque incessante que nos é promovido pela extrema-direita, muitas vezes com ajuda interna.  A hora de reagir é agora, pois se esperarmos mais tempo, o que acontecerá já está escrito nas estrelas e não é preciso ser astrônomo para saber do que se trata.

A degradação da educação, da ciência e do meio ambiente no Brasil

ciencia brasil

(crédito: Caio Gomez)

Por Mercedes Bustamante- Professor titular do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília, membro da Academia Brasileira de Ciências

“Cupinização silenciosa e invisível.” Assim descreveu a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, o processo de degradação sistemática dos órgãos de fiscalização e controle do meio ambiente. A destruição por dentro, conduzida nos meandros das instituições, está claramente expressa nas taxas crescentes de desmatamento e conversão agrícola em vários biomas, na violação da legislação ambiental e de direitos territoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais e comprometimento de recursos naturais e da estabilidade climática.

A cupinização também é aparente no Ministério da Educação e seus órgãos associados, como Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Capes, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), afetando um componente crucial para a redução das desigualdades sociais e econômicas ainda tão agudas no Brasil e que foi extremamente prejudicado durante a pandemia de covid-19. Escolas e universidades públicas atravessaram dois anos sem uma condução efetiva do Ministério da Educação (MEC) para lidar com os desafios impostos por esse choque global. Tal realidade, aparentemente, passou desapercebida no balcão (ou púlpito) de negócios que se instalou nas entranhas no ministério.

Igualmente crucial, a área de ciência e tecnologia é vítima de outra estratégia — a destruição por inanição. A redução drástica de recursos de custeio, bolsas e investimentos mina décadas de políticas que determinaram avanços científicos importantes e a formação de recursos com competências para abrir os caminhos do país diante dos significativos desafios que nos aguardam.

Tais desafios estão, precisamente, na convergência das políticas de educação, ciência e meio ambiente. Em 4 abril, foi lançada a terceira parte do 6o ciclo de avaliação do Painel Intergovernamental para Mudança do Clima (IPCC). Para nos recolocar na rota de atingir a meta de manter o aquecimento global em 1,5oC, estabelecida globalmente pelo Acordo de Paris, precisaremos reduzir pela metade as emissões de gases de efeito estufa até 2030.

Enquanto o mundo como um todo reduziu as emissões em 2020 em função da pandemia de covid-19, o Brasil aumentava suas emissões impulsionadas pelo desmatamento que seguiu impunemente mesmo diante de grave crise sanitária. Em 2021, o Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe) registrou a maior taxa de desmatamento da Amazônia desde 2006. A conservação de ecossistemas naturais e sua restauração ecológica são precisamente alternativas com grande potencial de mitigação das emissões, custos acessíveis de implementação e inúmeros benefícios como conservação da biodiversidade, segurança hídrica e alimentar.

Igualmente, a mensagem clara sobre a necessidade de abandonar combustíveis fósseis, em especial o carvão, não encontrou eco no governo federal. Recentemente, foi sancionada uma lei que obriga a compra de eletricidade gerada por termelétricas a carvão mineral, localizadas em Santa Catarina. A lei determina a contratação da energia produzida a partir de fonte extremamente poluente até 2040, uma década após o prazo em que deveríamos estar contribuindo para o esforço global de redução das emissões.

O relatório destaca como ciência e tecnologia foram fundamentais para reduzir o custo de energias renováveis como solar e eólica e de baterias, e traz ainda um novo capítulo sobre inovação, desenvolvimento e transferência de tecnologia. Um sistema de inovação bem estabelecido, orientado por políticas bem projetadas, pode contribuir para a mitigação, adaptação e alcance das metas de desenvolvimento sustentável e, ao mesmo tempo, evitar consequências indesejadas. No entanto, mais uma vez, caminhamos na direção contrária. Vamos a um futuro incerto, menos preparados e mais dependentes de alternativas desenvolvidas por outros países em função do estrangulamento de nossa ciência.

A transição para economias de baixo carbono implica em profundas mudanças na estrutura econômica e consequências distributivas dentro e entre países. A equidade e justiça social continuam sendo elementos centrais para a solução da crise climática. Transições justas devem abrir oportunidades de empregos adequados a essa nova realidade, mas demandam novas habilidades e a capacitação de recursos humanos e instituições. A educação em um mundo sob aquecimento global deve contribuir para o debate da sustentabilidade e a justiça ambiental. A antecipação de novas necessidades demanda a identificação das questões certas, bons dados e estatísticas e uma visão de política pública educacional que preconize a construção desse futuro e não as cartilhas do passado.

Entre as lições da pandemia que o IPCC elencou para a mudança climática estão: o valor do gerenciamento de risco prospectivo, o papel da avaliação científica, ações preparatórias e a importância de instituições. Exatamente o oposto que os três últimos anos trouxeram para a educação, ciência e meio ambiente no Brasil.

(Artigo endossado pela Coalizão Ciência e Sociedade que reúne pesquisadores de todas as regiões brasileira)


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Este artigo foi inicialmente publicado pelo Correio Braziliense [Aqui!].

Estudos mostram lado nefasto do produtivismo acadêmico

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Por Evanildo da Silveira para a “Questão de Ciência”

Ninguém do mundo acadêmico desconhece a expressão – ou princípio, ou mandamento – “publish or perish”, em português “publique ou pereça”. Significa que um cientista que não publica artigos em periódicos especializados, relatando suas descobertas, não é produtivo, é irrelevante ou, no limite, não existe para a comunidade acadêmica. Ele terá dificuldades para progredir na carreira, conseguir financiamento para suas pesquisas e formar novos pesquisadores, pois não terá bolsas de mestrado ou doutorado a oferecer.

Aos poucos, no entanto, esse mantra draconiano começa a ser questionado. Ou pelo menos estudado. “O número de artigos científicos com o tópico ‘publish or perish’ tem aumentado nos últimos anos, publicados em revistas de diferentes áreas do conhecimento e não apenas em revistas dedicadas à cientometria, por exemplo”, diz o físico Peter Alexander Bleinroth Schulz, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em Limeira. “A percepção é de que a cultura associada ao mandamento precisa ser mudada”.

De acordo com ele, é o que se constata ao buscar a expressão em base bibliográfica internacional (Web of Science): poucas vezes mencionado no século passado, o número de artigos, cartas e editoriais em periódicos científicos, em diferentes áreas, sobre este tema vem crescendo notavelmente nos últimos anos. Schulz cita um estudo realizado na área de Economia em universidades holandesas pelo pesquisador Henrik van Dalen.

O autor do trabalho explica que escolheu estudar as faculdades de Economia da Holanda porque elas alcançaram uma posição de destaque na Europa e vêm se internacionalizando rapidamente. Quarenta e três por cento dos estudantes delas são estrangeiros e a maioria das aulas nos departamentos de economia é ministrada em inglês.

Van Dalen detectou uma clara divisão entre os economistas. Aproximadamente dois terços dizem que a pressão para publicar tem mais pontos negativos do que positivos, e um terço vê apenas pontos positivos e não negativos. Essa divisão não ocorre por causa da pressão em si, pois todos a sofrem igualmente. De acordo com o autor, o posicionamento em relação ao princípio de publicar ou perecer está mais ligado ao lugar que se ocupa na hierarquia. Professores titulares têm uma atitude muito mais positiva quanto ao princípio.

Para o médico Guilherme Werneck, doutor em saúde pública e epidemiologia pela Universidade de Harvard e professor das universidades Federal (UFRJ) e do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o impacto do “publique ou pereça” é perceptível em várias áreas do conhecimento e gera preocupações sobre suas consequências na formação de pesquisadores e, ao final, na própria credibilidade da ciência. “Por isso, muitos grupos de pesquisa têm se dedicado a estudar este processo em diferentes áreas e contextos, enfatizando os seus efeitos em vários aspectos da vida acadêmica”, diz.

Entre esses aspectos, estão ética na pesquisa; credibilidade da ciência; redução do interesse pela carreira acadêmica; qualidade de vida e saúde mental de pesquisadores; desperdício de recursos com pesquisas e artigos pouco relevantes ou não inovadores; custos crescentes do uso de recursos de pesquisa para publicação; explosão de editoras e revistas científicas de má qualidade (popularmente conhecidas como revistas e editoras “predatórias”).

Segundo Werneck, existem muitos dados na literatura sobre esses temas. Como exemplo, cita um estudo feito na França que mostrou que os critérios de autoria do International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) muitas vezes não foram seguidos, e que a “autoria concedida”, quando o nome de um pesquisador que não colaborou de modo significativo com o trabalho aparece na lista de autores,  era uma prática frequente. “O sistema ‘publicar ou perecer’ foi apontado como a principal causa desses abusos”, diz.

Outra pesquisa, realizada na Holanda, identificou que uma atitude negativa em relação ao sistema de publicação está presente em todos os níveis acadêmicos e campos disciplinares. Nesse estudo, pós-doutorandos e professores assistentes perceberam o maior estresse em relação à publicação, e os doutorandos notaram falta de recursos para enfrentar situações de estresse relacionado à demanda por publicação.

Werneck cita um terceiro exemplo. Um inquérito nacional entre pesquisadores biomédicos na Bélgica mostrou que 15% dos entrevistados admitiram ter fabricado, falsificado, plagiado ou manipulado dados nos últimos três anos. “A pressão da publicação foi frequentemente relatada (72%) e significativamente associada com maior gravidade de má conduta científica”, diz.

Os pesquisadores brasileiros não estão alheios ao assunto. “Existe uma iniciativa em andamento no país para replicar experimentos biomédicos realizados ao longo dos últimos 20 anos”, conta Werneck. “O trabalho poderá jogar luz sobre a confiabilidade da pesquisa publicada nessa área”.

Para o biólogo Demétrio Luís Guadagnin, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), essas iniciativas e estudos que vêm sendo realizados mostram que a ciência é capaz de ser cética consigo mesma. “É uma autocrítica que está sendo feita”, diz. “Isso é bom, é o caminho para melhorar”. Mas enquanto a melhora não vem, as consequências do “publique ou pereça” vão continuar existindo.

Guadagnin vê dois lados na questão. “Há consequências boas e ruins (lembrando que o que é bom ou ruim depende de quem julga)”, explica. “Pelo lado bom, conforme o julgamento ortodoxo, a seleção dos melhores e os consequentes ganhos de eficiência e produtividade na academia. Pelo lado ruim, a deturpação dos valores superiores da ciência em favor de caminhos que facilitem a permanência e ascensão no sistema”.

Schulz é mais incisivo. Para ele, a principal consequência do princípio do “publique ou pereça” é que a publicação deixa de ser uma consequência natural da pesquisa para ser um fim em si mesmo. Em outras palavras, deixa-se de avaliar a ciência em si para, simplesmente, considerar o número de artigos e seus indicadores associados. “Em uma analogia econômica, deixa-se de lado a economia real para só olhar o mercado financeiro”, compara.

A química Teresa Dib Zambon Atvars, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acrescenta outras consequências, entre elas o surgimento de revistas com pouca qualificação e que publicam artigos com pouco ou nenhum critério de qualidade. “Na sequência, surge um comércio com as chamadas revistas predatórias, nas quais se paga para publicar”, diz. “Todos os dias os pesquisadores recebem convites para publicar ou para organizar números especiais, convidando colegas. Algumas dessas são sérias, têm impacto, são lidas, outras são apenas depósitos de papers impublicáveis em revistas mais sérias”.

Por isso, considera, o sistema precisa mudar. Caso contrário, a ciência corre risco de estagnação. No Brasil, ela diz que a alternativa é medir o potencial de inovação da pesquisa, não no sentido de gerar tecnologia, mas no de avaliar corretamente o que o trabalho traz de novidade em relação ao que vem sendo feito, no mesmo campo, pelos melhores grupos do mundo. “Isto significa mudar a cultura de avaliar resultado (o número de papers) para medir impacto (no que o trabalho feito muda a ciência)”, defende. “Não é fácil, mas é necessário. Exige uma mudança de paradigmas, uma cultura de avaliação e preparo para fazê-la”.

Segundo o biólogo Victor Jose Mendes Cardoso, professor aposentado do Instituto de Biociências do campus de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista (Unesp), para que ocorram mudanças deve ficar claro que publicar faz parte da vida de todo cientista. Quem não publica não divulga suas ideias e sua contribuição às ciências e à sociedade em geral. “A questão é que ‘publicar’ deve ser entendido num conceito amplo, não necessariamente a produção de papers, mas também outros meios de divulgação e de interação com o público alvo das pesquisas”, explica. “Atualmente, a produção de artigos científicos assume uma importância desmesurada. Isso precisa mudar”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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Este texto foi originalmente publicado pela revista “Questão de Ciência” [Aqui!].

Revelado: Elsevier, a principal editora de pesquisa climática, ajuda a perfuração de petróleo e gás

O trabalho da Elsevier com empresas de combustíveis fósseis ‘nos arrasta para o desastre’, diz pesquisador climático

elsevierA Elsevier é uma das poucas empresas que publicam pesquisas climáticas revisadas por pares, mas também consulta a indústria para encontrar reservas de petróleo e gás. Fotografia: Kristoffer Tripplaar/Alamy

Por Amy Westervelt para  o “The Guardian”

Cientistas que trabalham com uma das maiores editoras de pesquisa climática do mundo dizem que estão cada vez mais alarmados com o fato de a empresa trabalhar com a indústria de combustíveis fósseis para ajudar a aumentar a perfuração de petróleo e gás, pode revelar o Guardian.

A Elsevier, uma empresa holandesa por trás de muitas revistas científicas de renome, revisadas por pares, incluindo Lancet e Global Environmental Change, também é uma das principais editoras de livros destinados a expandir a produção de combustíveis fósseis.

Por mais de uma década, a empresa apoiou os esforços do setor de energia para otimizar a extração de petróleo e gás. Ele contrata autores, editores e membros do conselho consultivo de periódicos que são funcionários das principais empresas petrolíferas. A Elsevier também comercializa alguns de seus portais de pesquisa e serviços de dados diretamente para a indústria de petróleo e gás para ajudar a “aumentar as chances de sucesso na exploração” .

Vários ex-funcionários e atuais funcionários dizem que, no ano passado, dezenas de trabalhadores se manifestaram internamente e nas prefeituras de toda a empresa para instar a Elsevier a reconsiderar seu relacionamento com a indústria de combustíveis fósseis .

“Quando comecei, ouvi muito sobre os compromissos climáticos da empresa”, disse um ex-editor da revista Elsevier que concordou em falar sob condição de anonimato. “Eventualmente, percebi que era tudo marketing, o que é realmente perturbador porque a Elsevier publicou todas as pesquisas necessárias para saber exatamente o que fazer se quiser fazer uma diferença significativa.”

O que torna os laços da Elsevier com a indústria de combustíveis fósseis particularmente alarmantes para seus críticos é que ela é uma das poucas empresas que publicam pesquisas climáticas revisadas por pares. Cientistas e acadêmicos dizem estar preocupados que os interesses comerciais conflitantes da Elsevier arrisquem prejudicar seu trabalho.

Julia Steinberger, ecologista social e economista ecológica da Université de Lausanne, que publicou estudos em várias revistas da Elsevier, disse que ficou chocada ao saber que a empresa teve um papel ativo na expansão da extração de combustíveis fósseis.

“A Elsevier é a editora de alguns dos periódicos mais importantes na área ambiental”, disse ela. “Eles não podem alegar ignorância dos fatos da mudança climática e da necessidade urgente de se afastar dos combustíveis fósseis.”

Ela acrescentou: “O modelo de negócios deles parece lucrar com a publicação de ciência climática e energética, ignorando o fato mais básico da ação climática: a necessidade urgente de se afastar dos combustíveis fósseis”.

A Elsevier e sua controladora, RELX, dizem que estão comprometidas em apoiar a indústria de combustíveis fósseis à medida que ela transita para a energia limpa. E embora a Elsevier tenha emergido como líder do setor com suas próprias promessas climáticas, um porta-voz da empresa disse que eles não estão preparados para traçar uma linha entre a transição dos combustíveis fósseis e a expansão da extração de petróleo e gás. Ela expressou preocupação com editores boicotando ou “cancelando” empresas de petróleo e gás.

“Reconhecemos que somos imperfeitos e temos que fazer mais, mas isso não deve negar todo o trabalho incrível que fizemos nos últimos 15 anos”, disse Márcia Balisciano, chefe global de responsabilidade corporativa da RELX, ao Guardian. .

Das mais de 2.000 revistas acadêmicas que a Elsevier publica, apenas sete são específicas para extração de combustíveis fósseis (14 se você contar publicações especiais e subsidiárias). Esses periódicos incluem Upstream Oil and Gas Technology, cujo editor-chefe trabalha para a Shell, e Unconventional Resources, que é editado por um pesquisador da Chevron. Também administra uma editora de livros subsidiária, a Gulf Publishing, que inclui títulos como The Shale Oil and Gas Handbook e Strategies for Optimizing Petroleum Exploration .

Duas imagens de capa de livro são mostradas lado a lado.  O da esquerda mostra uma ilustração de uma plataforma de petróleo em um campo com o título “Shale Oil and Gas Handbook: Theory, Technologies and Challenges”.  O da direita tem o texto do título “Estratégias para Otimização da Exploração de Petróleo” em uma caixa marrom em um fundo verde sálvia.
Dois livros publicados pela subsidiária da Elsevier, Gulf Publishing, totalmente focada na indústria de combustíveis fósseis. Composto: Elsevier

A Elsevier também presta serviços de consultoria para clientes corporativos. Nos últimos 12 anos, tem comercializado uma ferramenta chamada Geofacets para empresas de combustíveis fósseis. O Geofacets combina milhares de mapas e estudos para facilitar a localização e o acesso às reservas de petróleo e gás, além de locais para parques eólicos ou instalações de armazenamento de carbono.

A empresa afirma que a ferramenta reduz o tempo de pesquisa em 50% e ajuda a identificar “áreas mais arriscadas e remotas que antes eram inacessíveis”.

Os principais cientistas climáticos, incluindo aqueles publicados nos próprios periódicos da Elsevier, no entanto, dizem que exatamente o oposto deve acontecer para evitar uma catástrofe climática. Limitar o aquecimento a 1,5°C ou menos requer uma diminuição mundial na produção de combustíveis fósseis com mais de 80% de todas as reservas comprovadas deixadas no solo.

“Não comentaremos as práticas de empresas individuais, mas quaisquer ações que apoiem ativamente a expansão do desenvolvimento de combustíveis fósseis são de fato inconsistentes” com as metas de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas, disse Sherri Aldis, vice-diretora interina do departamento de comunicações globais da ONU. .

A RELX é uma empresa surpreendentemente lucrativa , com receitas anuais de US$ 9,8 bilhões, cerca de um terço dos quais são trazidos pela Elsevier. Balisciano enfatiza que o conteúdo de combustível fóssil representa menos de 1% da receita editorial da Elsevier e menos da metade da receita da Geofacets, que por si só representa apenas cerca de 2% dos ganhos da Elsevier.

A RELX e a Elsevier dizem que a maior parte de seu trabalho apoia e permite uma transição energética por meio de publicações centradas em energia limpa. “Não queremos desenhar um binário e não achamos que você possa simplesmente apertar um botão, mas estamos reduzindo nosso envolvimento com atividades de combustíveis fósseis enquanto aumentamos a quantidade de pesquisas que publicamos sobre clima e energia limpa”, disse Esra Erkal, vice-presidente executiva de comunicações da Elsevier.


A Elsevier não está sozinha no relacionamento com pesquisadores climáticos e executivos de combustíveis fósseis. Vários outros editores de pesquisas climáticas revisadas por pares assinaram o Pacto de Editores de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, ao mesmo tempo em que fazem parceria com a indústria de petróleo e gás de várias maneiras.

Uma imagem mostra a capa de uma edição do The Lancet, com o título “The 2020 report of the Lancet Countdown on health and Climate Change”.  A imagem da capa é uma silhueta de uma criança parada em um caminho escuro em uma área arborizada.
The Lancet, um dos principais periódicos da Elsevier, publica um relatório anual sobre como o aquecimento climático afeta a saúde humana. Fotografia: The Lancet

A editora com sede no Reino Unido Taylor & Francis, por exemplo, assinou o compromisso da ONU e divulgou seus próprios compromissos de zero líquido, ao mesmo tempo em que divulga sua parceria de publicação com a “líder da indústria” ExxonMobil, a empresa petrolífera mais ligada ao obstrucionismo climático na consciência pública. . Outra importante editora climática, a Wiley, também assinou o pacto de sustentabilidade ao publicar vários livros e periódicos destinados a ajudar a indústria a encontrar e perfurar mais petróleo e gás.

“É problemático”, disse Kimberly Nicholas, professora associada de ciência da sustentabilidade na Universidade de Lund, na Suécia, observando que, embora a lavagem verde corporativa seja desenfreada em vários setores, os editores de pesquisas climáticas revisadas por pares têm uma responsabilidade única.

“Se a mesma editora que publica os artigos que mostram definitivamente que não podemos queimar mais combustíveis fósseis e permanecer dentro desse orçamento de carbono também está ajudando a indústria de combustíveis fósseis a fazer exatamente isso, o que isso faz com toda a premissa de validade em torno do pesquisa de clima? Isso é o que é profundamente preocupante nesses conflitos”, disse ela.

Ben Franta, pesquisador da Universidade de Stanford que também publicou estudos em periódicos da Elsevier, observa que o relacionamento da editora com as empresas petrolíferas é indicativo de quão entrelaçada essa indústria está com tantos outros aspectos da sociedade.

“Tudo isso acontece sem que o público em geral saiba e opera para consolidar a indústria”, disse ele. “Para efetuar uma rápida substituição dos combustíveis fósseis, acredito que esses emaranhados precisarão ser expostos e reformados”.

A Elsevier, por sua vez, enfatiza o papel da independência editorial. “Nós não gostaríamos de dizer aos editores de periódicos o que eles podem e não podem publicar”, disse Balisciano. No entanto, esses conflitos geralmente colocam os pesquisadores em uma posição difícil de navegar.

James Dyke, diretor assistente do Global Systems Institute da Universidade de Exeter, ficou surpreso com o fato de a Elsevier estar trabalhando para contradizer os pesquisadores climáticos dessa maneira.

“É difícil acreditar que uma empresa que publica pesquisas sobre os perigos das crises climáticas e ecológicas seja a mesma empresa que trabalha ativamente com empresas de petróleo e gás para extrair mais combustíveis fósseis, o que nos arrasta para o desastre”, disse ele.

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Este texto foi escrito inicialmente em inglês e publicado pelo jornal “The Guardian” [Aqui!]

Ciência: um crescente mal-estar e a necessidade das mudanças, por Peter Schulz

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Por Peter Schulz para o “Jornal da Unicamp”

O mal-estar, para deixar claro de início, é em relação ao desmesurado universo da produção científica, bem como às práticas medir esta produção por meio do número de artigos publicados e de citações – que, ao serem adotadas, desmesuram ainda mais esse universo. Já escrevi vários textos neste espaço relacionados, direta ou indiretamente, a este tema. Mesmo instigado por novas fontes e acontecimentos, também sinto um mal-estar em retomar o assunto, afinal, já não falei sobre isso? Porém, pensando melhor e com essa advertência de possível autoplágio, a partir do que eu tenho observado, considero necessário retomar dois textos anteriores: o primeiro que também traz a palavra mal-estar no título[I] e o segundo sobre algumas reações a esse mal-estar e a percepção de que mudanças são necessárias[II]. O que mudou nos poucos anos entre esses textos e o que escrevo agora é que há tanto sinais de mudanças como de preservação da situação (ou seja, reações contra as mudanças). Então, no balanço, talvez valha mesmo a pena retomar a questão.

O adágio “publique ou pereça”, vulgo “publish or perish” é amplamente conhecido no mundo acadêmico e, aos poucos, fora dele. A expressão é antiga: já em 1951, Marshall MacLuhan teria escrito a Ezra Pound que “publicar ou perecer é o lema da espelunca”, sendo que o poeta chamara anteriormente as universidades de espeluncas. Ou seja, o lema é longevo, sobrevivendo e ganhando importância com o passar do tempo no mundo da pesquisa científica. Como exemplo, recolho das buscas um artigo de 1986, de uma médica, Marcia Angel: “Publish or perish: a proposal”[III]. O resumo do artigo, sintetiza a percepção da autora há 35 anos:

“Devido ao fato de que promoções e financiamento de médicos na medicina acadêmica estão estreitamente ligados ao número de publicações, pesquisadores sentem-se impelidos a publicar tão frequentemente quanto possível. Essa pressão leva a um número de práticas desafortunadas na publicação médica, incluindo realizar estudos triviais porque estes rendem resultados rápidos, o desnecessário relato do mesmo estudo em diferentes apresentações, relatar o estudo mais de uma vez e listar como autores pessoas com envolvimento marginal no trabalho. E pode ser também motivação para fraude. Uma maneira efetiva de reduzir essas ofensas e afirmar a supremacia do essencial sobre o volume […] é colocar um teto no número de publicações a serem consideras para fins de promoção ou financiamento. Cada publicação [considerada mais relevante] receberia assim mais atenção…”.

É exatamente a mesma discussão de hoje, passadas essas três décadas e meia! No meio tempo surgiram os rankings globais de universidades (começo do século XXI) que, como um vírus e suas variantes, infectaram o mundo acadêmico. Não é preciso dizer que os rankings são fortemente ligados aos indicadores. Assim, apesar dos diagnósticos bem anteriores à propagação desses novos vírus, até agora poucas medidas de distanciamento à ilusão e ao delírio foram tomadas. Essa frase remete a um artigo recente do jornalista Carlos Orsi: “Medo e delírio na comunicação da ciência”[IV]. O jornalista é atento e arguto observador do mundo da ciência e, 35 anos depois da médica norte-americana, dispara algo similar sobre uma plausível grande parcela dos trabalhos e o cenário em que se inserem:

“São trabalhos que existem porque é preciso cumprir alguma meta burocrática de publicações para conquistar este ou aquele índice neste ou naquele ranking, não porque havia uma questão legítima a ser respondida, um aspecto relevante da natureza a ser explorado, uma hipótese viável a ser testada; e que são conduzidos no limite inferior da qualidade metodológica, às vezes representando pouco mais do que pobres arremedos”.

E causticamente, sem o compromisso da médica com alguma solução, afinal, cabe à academia mesmo cuidar disso, finaliza: “esperamos que os cientistas se resolvam com suas ilusões (aparecer nas listas de mais influentes, por exemplo) e as universidades despertem de seus delírios de grandeza (querer subir nos rankings para emparelhar com Oxford, outro exemplo).

Mas isso tudo pode parecer apenas ressentimento de alguns muitos, afinal o tal “publique ou pereça” tem lá seus méritos e, de fato, em um estudo de caso (economia nas universidades holandesas), Henrik van Dalen aponta para uma comunidade acadêmica dividida[V]: “professores titulares enxergam, mais do que outros membros do corpo docente, lados positivos do princípio “publish or perish” e virtualmente nenhuma desvantagem”. Esse artigo acadêmico de 2021 mostra que nos últimos anos, publicar ou perecer, deixou os espaços de ensaio e opinião para virar objeto de pesquisa científica. É que se constata ao buscar a expressão em base bibliográfica internacional (Web of Science): poucas vezes mencionada em artigos no século passado, o número de artigos, cartas e editoriais em periódicos científicos em diferentes áreas sobre este tema vêm crescendo notavelmente nos últimos anos. Voltando à percepção dos professores titulares na Holanda, o recado dado aos pesquisadores mais jovens neste ano (2021) é claro no sítio de assessoria à publicação voltada e esse público (Proof-Reading-Service.com): “Como publicar 50 papers por ano”[VI]. Ao ler o texto, notei que as dicas já são seguidas como um mantra por alguns colegas, segundo confissões ou profissões de fé. A isso somam-se as fábricas de artigos, por meio das quais seu nome pode ser incluído como autor em um artigo pronto, frente a uma “módica” contribuição. Sobre isso, também há um texto na revista Questão de Ciência[VII].

Novamente, a minha história de pesquisador, que sempre valorizou a publicação de artigos em periódicos de seletiva política editorial, etc., etc., (sempre obedecendo ao princípio atribuído a César Lattes: “é muito bom publicar um artigo, desde que se tenha algo a dizer primeiro”), pede que vieses (no caso contra o produtivismo burro para atender às métricas, ainda que muitos dos seus praticantes acreditem que tudo isso é pelo bem da ciência) sejam considerados com cuidado. Assim, nada melhor do que um estudo quantitativo cuidadoso para guiar um pouco a discussão. Um extenso levantamento bibliográfico de artigos e citações de várias décadas e uma acurada análise, realizados por Johan Chu e James Evans[VIII], publicado em outubro de 2021, sugere uma crescente desigualdade nas citações de artigos: cada vez mais são sempre os mesmos citados ao passo que possíveis contribuições importantes passam despercebidas no “dilúvio de artigos” (o corolário é que cresce diluvianamente o número de artigos sem relevância, cumpridores de metas e que também não são citados). Apresento pequenos excertos do texto sobre o cenário delineado (os aspectos metodológicos, dados e resultados podem ser apreciados no link logo acima):

“O dilúvio de novos artigos pode privar revisores e leitores da abertura cognitiva necessária para reconhecer e entender novas ideias […] A atual natureza do empreendimento científico, calcada na métrica de ‘mais é melhor’ pode retardar, ironicamente, o progresso nos campos científicos maiores”.

E atenção para uma das conclusões!

“Sistemas de promoção e reconhecimento que evitem medidas quantitativas e valorizem um número menor de contribuições, mais robustas e inovadoras, poderiam reduzir o dilúvio de artigos competindo por atenção em seu campo”. Chegamos em 2021 a uma proposta já enunciada em 1986, caso alguém se lembre da citação no começo desse texto.

Se “publicar ou perecer” está virando um campo quantitativo de pesquisa, as reações às maneiras automatizadas de avaliação começam a ser qualitativamente revistas mundo afora. Três cientometristas conhecidos e influentes escreveram uma carta, também publicada agora em 2021: “Um apelo por uma mudança radical na avaliação de pesquisa na Espanha”[IX]. O cenário espanhol descrito é muito parecido com o brasileiro: o fetiche em relação ao uso das métricas e suas consequências negativas, enumerando movimentos iniciados na década passada, cujos princípios deveriam ser considerados nas mudanças radicais pedidas. E novos movimentos e mudanças, ainda que não tão radicais, são implementadas. Enumero apenas três delas. A iniciativa é mais antiga, mas segue: é o movimento pela “des-execelência”, iniciado por um grupo de pesquisadores da Universidade Livre de Bruxelas[X]. O site todo é em francês, mas o slogan é autoexplicativo, ainda que misturando francês e inglês: “esqueça seu fator de impacto (que é uma dessas métricas, a mais fajuta delas, na verdade, ainda que amplamente utilizada), aqui temos a des-excelência”.

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De novo aquele muro entre um possível ressentimento(?) e um diagnóstico preciso? Pois a carta do movimento é um diagnóstico acurado. E, como anunciei, mudanças acontecem. Em meados de 2021, saiu o anúncio de que a Universidade de Utrecht na Holanda deixará de lado, pelo menos parcialmente, as métricas[XI]. O autor do projeto da mudança de avaliação declarou para a revista Nature: “fatores de impacto – bem como métricas relacionadas, como o índice H – contribuem para a ‘produtificação’ da ciência, que valoriza volume em vez de boa pesquisa […] Isso se tornou um modelo muito doentio, que vai além do que é realmente relevante na ciência”.

Nas últimas semanas, uma pequena nota no jornal francês, Le Monde[XII], trouxe comentários sobre estas mudanças em vários países, inclusive na França, com avaliações se distanciando das métricas: ‘se não é uma revolução, é uma mudança cultural, de paradigma’. Por que a mudança? Segundo comentário de Chérifa Boukacem, professora da Universidade Claude Bernard-I em Lyon, “passamos a pensar em ‘publicação’ e não mais em ‘pesquisa’. Não tentamos mais produzir conhecimento, mas nos perguntamos que tipo de artigo seria interessante fazer”. Fica no ar a pergunta: interessante para que ou para quem? Resposta possível: um fim em si mesmo.

É hora de discutirmos mais detidamente intramuros acadêmicos o que estamos fazendo por aqui, com os medos, ilusões e delírios. As ideias e ações surgem em vários lugares! Precisamos de novas cenouras e novos rumos.

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Observação: Os artigos publicados não traduzem a opinião do Jornal da Unicamp. Sua publicação tem como objetivo estimular o debate de ideias no âmbito científico, cultural e social.


[I]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/malaises-da-ciencia

[II]https://www.unicamp.br/unicamp/index.php/ju/artigos/peter-schulz/um-manifesto-pela-universidade-publica

[III]https://www.acpjournals.org/doi/pdf/10.7326/0003-4819-104-2-261

[IV]https://revistaquestaodeciencia.com.br/apocalipse-now/2021/11/21/medo-e-delirio-na-comunicacao-da-ciencia

[V]https://www.researchgate.net/publication/344025747_How_the_Publish-or-Perish_Principle_Divides_a_Science_The_Case_of_Academic_Economists

[VI]https://www.proof-reading-service.com/en/blog/publish-50-papers-year/

[VII]https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2021/11/23/fabricas-de-artigos-falsos-expoem-fragilidade-da-publicacao-academica

[VIII]https://www.pnas.org/content/118/41/e2021636118

[IX]https://revista.profesionaldelainformacion.com/index.php/EPI/article/view/86526/62971

[X]https://lac.ulb.ac.be/LAC/home.html

[XI]https://www.nature.com/articles/d41586-021-01759-5

[XII]https://www.lemonde.fr/sciences/article/2021/11/23/chambardements-dans-l-evaluation-des-scientifiques_6103279_1650684.html

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

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Este texto foi originalmente publicado pelo “Jornal da Unicamp” [Aqui! ].