Observatório dos Agrotóxicos: tsunami de venenos avança no governo Lula com a liberação de 43 registros adicionais

O leitor deste blog poderá até achar que é notícia velha, mas não é.  Vinte e quatro horas depois de liberar 42 registros de agrotóxicos do tipo Produto Técnico (a forma concentrada dos produtos), eis que o Diário Oficial da União desta 3a. feira (09/09) trouxe a liberação de mais 43 agrotóxicos, agora na modalidade formulada que é aquela pronta para uso.

O Ato nº 43, de 5 de setembro de 2025 traz um museu de velhas novidades, já que a maioria dos registros liberados serão usados nas culturas de soja e cana de açúcar, que já concentram o uso de agrotóxicos na agricultura brasileira. 

Além disso, outro padrão mantida é a hegemonia das fabricantes chinesas que respondem pela maior da produção dos produtos que tiveram seus registros liberados.  Com isso, temos um aprofundamento da processo de trocas desiguais, já que o preço das commodities agrícolas, a soja por exemplo, tende a ser menor do que a dos agrotóxicos. Como a China é o principal comprador da soja brasileira, e o principal fornecedor de venenos agrícolas usados nessa cultura no Brasil, temos aí um padrão de perdas contínuas para a economia brasileira.

Quanto ao presidente Lula, a manutenção dessa enxurrada de agrotóxicos representa uma quebra do compromisso de que seu governo começaria um giro em prol de um modelo agroecológico e de eliminação da dependência de agrotóxicos para a produção agrícola.

Lula e Bolsonaro: no tratamento das pandemias da COVID-19 e das queimadas existe alguma diferença entre eles?

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Por Douglas Barreto da Mata

Em conversas mantidas com o amigo George Gomes Coutinho, e em tantas outras com o editor deste blog, que generosamente permite que eu veicule minhas inquietações neste espaço eletrônico, o Professor Marcos Pedlowski, sempre questionamos o sentido da palavra democracia no modelo capitalista.

Por certo, de forma mais ou menos intensa, concluímos que falar em democracia no capitalismo é um erro conceitual grave.  Coutinho, inclusive, cunhou o termo “mercado democrático”, para dar sentido a um sistema de concorrências políticas, em ambientes específicos, onde as forças em conflito tratam suas diferenças, dando uma gradação mais ou menos “democrática” para cada sistema, de cada país, atendendo a critérios de mais ou menos liberdade de expressão, estabilidade jurídica e normativa, etc. Eu chamaria de mercado representativo.

Continuo a achar que nada há de democrático no capitalismo, nem mesmo um “mercado democrático”, ainda que eu entenda cada nuance da expressão imaginada por Coutinho.  Pois bem, olhando o movimento recente da economia, no atual governo, e as guinadas e recuos do Presidente Lula, juntando com o desastre ambiental e a inação da administração federal, onde o próprio Lula disse, ontem, senão me engano, que ninguém está preparado para tais circunstâncias, em todas as esferas de governança, eu fiquei imaginando: tem diferença entre Lula e Jair Bolsonaro?

Se a pandemia da COVID-19 foi o pior ponto do governo Bolsonaro, onde os analistas entendem que ali se exauriu boa parte de seu capital político, e se concordamos com o magistrado do STF, o insuspeito e ex Ministro da Justiça Flávio Dino, que estamos diante de uma pandemia ambiental, então também podemos concluir que esse será o ponto fatal para Lula, dentre tantos outros já acumulados.

Como assim não estamos preparados, Lula?  Esse atual cenário de desastre ambiental foi projetado desde 1992.  Já se passaram dois mandatos seus, e um e meio de Dilma, como assim não sabiam o que ia acontecer?

COP dois mil e X paineis climáticos internacionais, e se Lula não souber ou puder ler ttodo o material gerado nesses encontros, pode ir de “O Dia Depois de Amanhã” mesmo, com Dennis Quaid.  Ali, de forma exagerada e resumida dá para ter uma noção do que o aquecimento vai trazer ao clima.  Se Lula não sabe, não quer saber, manda alguém ler e traduzir para ele. Tudo certo, não se pode saber tudo.

O que não pode é dizer que um tema de 40 anos não gerou no presidente uma demanda de planejamento e preparação, e neste caso, de enfrentamento da causa: o modelo econômico agroexportador!

Quer dizer que o governo Lula, que alimentou-se dos superávits da balança comercial, pelas exportações do latifúndio (chamado, carinhosamente, também por Lula de agronegócio), não sabia que o custo sócio ambiental seria esse?

Lula passou todos os seus anos de governo sem mexer em nada na estrutura da nossa carteira de exportações, somos quase que meros exportadores de “pau-brasil”, ganhando em troca, não espelhos e miçangas, como os índios da época, mas isqueiros e gasolina, para transformar tudo em pastagens e áreas de soja e milho.

Quando exportamos carne, milho, soja, etc, na verdade, enchemos os bolsos de ricos fazendeiros, que não recolhem impostos sobre a venda exterior desses produtos (Lei Kandir), e damos, de graça, trilhões de litros d’água, usadas nesses cultivo e criações, enquanto os compradores poupam seus biomas quando adquirem essas commodities a preços generosos.

Você fica sem água, no calor, na fumaça, para alguém enriquecer, e sequer pagar o imposto para ajudar a conter os estragos.  Vejam bem a que ponto chega a cretinice desse governo, ao justificar que poderia haver um incremento da inflação por causa das queimadas, ao mesmo tempo que criou a narrativa dos “piromaníacos lobos solitários”, ou dos “incêndios terroristas”.

Ora, claro que podem haver grupos organizados para criar tensão, bem como a ação de incendiários malucos, agindo por imitação.  Sim, é possível.  Mas creditar a esses atos a responsabilidade por tudo que está acontecendo desde sempre nos biomas que servem como repositores de chuva e umidade no resto país, leia-se Amazônia, Pantanal, Mata Atlântica é de um cinismo tão cruel quanto Bolsonaro dizer que não se importava com as vítimas da pandemia, porque não era coveiro.

Ao lado disso tudo, Lula, que passou anos atacando o Presidente do Banco Central, agora deu uma guinada, e na iminência de colocar o seu indicado na presidência, resolveu aderir à tese da autonomia, e sequer deu um pio sobre a subida recente (ontem) da SELIC em 0.25%.  Alguns dirão que faz sentido o cálculo de Lula, para afastar os questionamentos sobre as ações de seu indicado, quando ele tomar as medidas que Lula deseja.

Será Lula um ingênuo, e será que ele acredita que o seu indicado fará mesmo o que ele mandar, e não o mercado?  Mesmo diante da canalhice dos porta-vozes da banca, os mercenários do teleprompter, dizendo em alto e bom som que a subida se justificava para “acalmar” o mercado de trabalho.  Em outras palavras, aumentar o desemprego, para evitar que os patrões tenham que pagar mais pela mão-de-obra.

Assim, como sempre, toda vez que há alguma merreca em ganho de renda, a banca, com a cumplicidade do governo, aumenta os juros para subtrair esse excesso das mãos dos trabalhadores.  O governo não cria impostos, nem torna a estrutura tributária mais justa (rico paga mais, pobre paga menos) mas permite o “tributo dos juros” sobre os que têm menos renda.  Assim temos o pior dos mundos.

Um país massacrado pela inépcia e covardia de um governo, que cede aos magnatas dos juros e do latifúndio, e que agora resolveu voltar a lamber as botas dos EUA nas questões geopolíticas regionais, antigo fetiche de Lula pelos Democratas, logo eles que nos entubaram o golpe de 2016, em Dilma, via juízes treinados pelo departamentos de Estado e de Justiça dos EUA.

Talvez estas conjunturas tenham reflexo aqui, na planície, onde o PT parece desgovernado, cambaleando, trocando as pernas. Faz sentido.

Há diferença entre Lula e Bolsonaro?  Bem, respondendo a esta pergunta,  talvez a diferença entre Lula e Bolsonaro é que o primeiro não gravou, ou pelo menos ainda não divulgou, imagens e áudios de reuniões ministeriais com a Marina Silva falando em passa boi, passa boiada.

Na prática, porém, o boi e a boiada passaram, e foram direto para o brejo.  Alguém disse que é mais fácil imaginar o fim do mundo, a pensar no fim do capitalismo.  Pode ser. Lula e o PT, com certeza, são herdeiros dessa tese.

Países da União Europeia no centro das atenções pela exposição ao desmatamento por importação de commodities agrícolas

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Por Marcos Titley para a Trase

As importações de produtos agrícolas da UE continuam a impulsionar substancialmente o desmatamento em nível global, sendo o cacau e o óleo de palma os principais culpados, mostra uma nova investigação da Trase. A análise da Trase revela diferenças marcantes entre os países na exposição à desflorestação e os produtos responsáveis, à medida que se preparam para implementar a regulamentação sobre produtos livres de desmatamento (EUDR). 

A partir de 30 de dezembro de 2024, os estados membros da UE implementarão o regulamento sobre os EUDR, que exigirá que as empresas forneçam provas de que as importações de vários produtos com risco florestal não foram produzidas em terras recentemente desmatadas. A Trase foi contratada pelo grupo da sociedade civil Fern para avaliar a exposição ao desmatamento de cada estado membro da UE e criar uma ficha informativa resumida para cada um que destaque sua exposição ao desmatamento proveniente de importações de produtos incluídos no EUDR. 

Entre 2019 e 2021, a UE esteve exposta, em média, a 190.500 hectares (ha) de desmatamento todos os anos devido às suas importações diretas – uma área mais de dez vezes o tamanho de Bruxelas. Durante este período, as importações da UE estiveram associadas a 15,0% da desmatamento mundial ligada ao comércio direto. Os principais países de origem para a exposição na UE foram a Costa do Marfim (19,9%), o Brasil (16,0%), a Indonésia (11,6%), o Gana (8,7%) e a Malásia (4,7%), que juntos representam 61% da Exposição total à desflorestação da UE.

As principais commodities para exposição da UE foram cacau (33,7%), produtos de óleo de palma (19,3%), café (13,0%), soja (9,2%) e produtos de gado (8,9%), que juntos respondem por 84% do total da UE. Para algumas commodities, particularmente óleo de palma, borracha e madeira, os números provavelmente estão subestimados, pois não foi possível vincular importações de formas mais processadas dessas commodities ao desmatamento.

O cacau da Costa do Marfim é a principal fonte de desflorestação na UE. Países produtores com os mais elevados níveis de exposição à desflorestação para a UE através de importações diretas. As mercadorias EUDR são mostradas individualmente e outras mercadorias agrupadas. Os valores são médias anuais para 2019–2021, os três anos mais recentes com dados disponíveis.

Globalmente, registrou-se uma diminuição substancial na exposição da UE ao desmatamento causado por produtos de base EUDR nos últimos anos, ascendendo a uma queda de 35% entre 2018 e 2021, apesar da quantidade de produtos de base importados permanecer elevada. No entanto, as tendências variam ao longo do tempo e por produto, realçando a necessidade de manter as regiões e produtos de alto risco sob constante revisão.

A exposição da UE à desflorestação causada pela soja e pelo óleo de palma diminuiu. Tendências na exposição à desflorestação e quantidades importadas em 2012–2021 para importações diretas para a UE. Os resultados são mostrados para todas as sete commodities EUDR combinadas, seguidas pelas cinco principais em ordem decrescente de exposição ao desmatamento em 2019–2021.

A maior parte da redução geral na exposição se deve a uma queda no desmatamento ligado à produção de óleo de palma na Indonésia. No entanto, os dados mais recentes sugerem que as taxas de desmatamento estão aumentando novamente, o que ainda não está refletido nas fichas informativas. Também houve uma queda substancial na exposição ao desmatamento das importações brasileiras de soja; no entanto, deve-se notar que a perda do Cerrado do Brasil devido à expansão da produção de soja e gado está aumentando, e esta região é amplamente excluída da EUDR e da definição de desmatamento usada para as fichas informativas.

Em contraste, esse declínio na exposição não foi visto para cacau, café ou produtos de gado. A exposição do cacau continua particularmente alta e tem geralmente apresentado tendência de alta. Os dados mais recentes da Trase sobre a Costa do Marfim , a maior fonte de exposição ao desmatamento de cacau da UE, sugerem que as taxas de desmatamento para a produção de cacau lá continuam particularmente altas. Grande parte desse fornecimento é de fontes indiretas, tornando a rastreabilidade para cumprir com a EUDR desafiadora.

Diferenças marcantes entre os países da UE

Ao comparar as fichas informativas, as diferenças na exposição entre os países da UE tornam-se claras, especialmente se considerarmos apenas o comércio direto para o primeiro ponto de importação. Por exemplo, as importações diretas dos Países Baixos foram associadas a 69.500 ha de desmatamento (em média entre 2019 e 2021) – quase o triplo do próximo maior, Espanha (24.200 ha). As importações diretas de países sem litoral como a República Tcheca (226 ha) e a Áustria (457 ha) tiveram uma exposição ao desmatamento muito menor. Isso ocorre porque o Porto de Roterdã, nos Países Baixos, é um importante ponto de entrada para importações para a UE. Ele destaca o papel crucial que as autoridades holandesas terão para fazer cumprir os requisitos da EUDR em verificações de importação. Considerando a reexportação de produtos, a exposição dos Países Baixos é significativamente reduzida para 23.300 ha, enquanto a exposição da Áustria sobe para 1.680 ha, por exemplo.

As commodities responsáveis ​​por essa exposição ao desmatamento também variam muito de país para país. Por exemplo, após o ajuste para reexportações, os produtos de óleo de palma foram os mais importantes para a Holanda e a Espanha; enquanto para a Dinamarca, Eslovênia e Romênia, a soja foi a mais importante. O cacau foi a maior fonte de exposição ao desmatamento para a Bélgica, França, Alemanha e Itália, enquanto o café foi o mais importante para Portugal. Muitos países da UE não têm exposição comercial direta de algumas commodities, como o cacau, mas estão mais expostos ao desmatamento indiretamente por meio de outros países da UE.

Essas pegadas contrastantes de desmatamento sugerem que as demandas que a EUDR imporá às autoridades em diferentes estados-membros da UE variarão muito, destacando a importância do compartilhamento de lições entre os países.

A exposição à desflorestação varia muito entre os países da UE. Exposição ao desmatamento para países selecionados da UE por produto em 2019–2021. Os resultados são apresentados tanto para o comércio direto como para o comércio ajustado para reexportação. Observe as diferentes escalas de eixo usadas entre A (seis principais países por exposição ao desmatamento) e B (outros países selecionados).

Algumas mercadorias fora da EUDR representam um risco substancial

A análise usada nas fichas técnicas incluiu um conjunto muito mais amplo de commodities agrícolas importadas para a UE, além das sete atualmente cobertas pela EUDR. Isso mostrou que 17,5% da exposição ao desmatamento da UE era de commodities não regulamentadas pela EUDR. Nos dados ajustados de reexportação, o mais importante deles era a castanha de caju, principalmente da África Ocidental, que teve a sexta maior contribuição (2,6%) para a exposição total ao desmatamento da UE. O milho também não é coberto pela regulamentação, mas traz a oitava maior exposição ao desmatamento para a UE (1,9%). O Brasil é o país de origem mais importante para a exposição ao desmatamento do milho.

As fichas informativas revelam um enorme potencial para a EUDR reduzir a exposição da UE ao desmatamento e destacam as commodities e os países onde essa oportunidade é maior para cada estado-membro. Além disso, elas mostram como qualquer atraso na implementação do regulamento levará a mais desmatamento impulsionado pelos consumidores da UE. No entanto, a devida diligência não é uma solução mágica e, para maximizar o impacto do regulamento nas taxas de desmatamento, é vital que a UE forneça suporte financeiro e técnico aos produtores, especialmente para garantir que os pequenos agricultores mantenham o acesso ao mercado da UE. Essas fichas informativas podem ajudar a direcionar esse suporte.

As fichas técnicas individuais de cada país, pode ser acessadas [Aqui!].


Fonte: Trase

Mais veneno nos alimentos e na água dos brasileiros: uso de agrotóxicos cresceu 3,7% em 2023

Durante o segundo semestre de 2023 (H2), um total de 811 mil toneladas de agrotóxicos foi utilizado no controle de pragas

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Uma pesquisa recente encomendada pelo Sindiveg – Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Defesa Vegetal revelou que a área tratada com agrotóxicos no Brasil teve um aumento significativo de 3,7% em comparação com a safra anterior. Os resultados da pesquisa, realizada pela Kynetec Brasil, destacam a influência da expansão da área cultivada de soja e das condições climáticas favoráveis no Sul do país durante a safra 23/24.

De acordo com os dados levantados, durante o segundo semestre de 2023 (H2), um total de 811 mil toneladas de agrotóxicos foi utilizado no controle de pragas, doenças e plantas daninhas, considerando o número de aplicações necessárias por situação. Deste montante, 49% correspondem a herbicidas, 24% a fungicidas, 18% a inseticidas, 1% a tratamento de sementes e 8% a outros produtos. Esses números representam o tratamento de aproximadamente 1.25 bilhão de hectares, impulsionado pela expansão da área cultivada.

De acordo com a projeção, o aumento da área controlada com nematoides na cultura da soja deve ser 26,1% e de percevejos, 8,8%. A cultura de soja representa 55% do total da área e deverá refletir um aumento, com crescimento de 6,5% na safra 23/24. Neste caso, o uso de fungicidas premium apresentou aumento de 7,9%, enquanto o de fungicidas protetores 32%, ambos em uma área cultivada de 45 milhões de hectares, refletindo uma expansão de 4% em relação à safra passada (22/23)

A projeção desenvolvida pelo Sindiveg considera a metodologia PAT (produto por área tratada), que leva em conta o volume efetivamente utilizado pelo produtor rural e o número de aplicações de defensivos na área cultivada.


Fonte: Sindiveg

O agro é tudo? Pacto do agronegócio e reprimarização da economia

Este artigo, dividido em duas partes, aborda a economia agrária contemporânea do Brasil tendo em vista o processo mais geral de condicionamento do sistema econômico como um todo pelas tendências de reprimarização da economia, fortemente observáveis em seu comércio exterior. Esse processo afeta também a indústria, que tende a declinar de peso econômico ou a se limitar a funções coadjuvantes da chamada “economia do agronegócio”

pulverizacao-de-um-plantio-de-algodao-da-Fazenda-Planeste_Balsas_MA_artigo-CWPG_TBauer-1-de-1-1024x683Pulverização de agrotóxicos em plantação de algodão, em Balsas (MA). (Foto: Thomas Bauer)

Por Guilherme C. Delgado e Sergio Pereira Leite para o LeMonde Diplomatique Brasil 

O tema da reprimarização da economia requer esclarecimentos, principalmente sobre suas implicações ocultas, visto que no tratamento midiático e ideológico do sistema agrário hegemônico todo esse processo é vendido como uma espécie de sucesso incontroverso de uma entidade mágica – o “agronegócio”[1].

A abordagem do texto está dividida em dois tópicos principais, que ao final se encontram numa seção de síntese a título de conclusão. A seção inicial trata de fazer certa dissecação temporal dessa economia reprimarizada, tomando por referência o início dos anos 2000, quando se (re)articulam os mecanismos de política econômica e social tendentes a converter as exportações de commodities agrícolas e minerais em espécie de carro chefe do comércio exterior brasileiro. Essa situação se configura não apenas como política econômica convencional de governo, mas adquire status de política de Estado por duas décadas até o presente, com consequências socioeconômicas e ambientais graves, mas de certa forma interditadas ao debate público. O diagnóstico macroeconômico e ambiental desse período revela indicadores empíricos críticos que convém ressaltar até para melhor caracterizar qualitativamente o processo em curso, bem como a rápida financeirização da agricultura, convertendo ativos reais, como commodities e terra em alvo de investimentos especulativos que conferem novos significados à dinâmica dessa economia agrária nacional.

Na seção seguinte destacamos o sentido da expressão “especialização primária” no comércio externo. Ao contrário do que sugere o senso comum, essa especialização não melhora a autonomia em nossas relações econômicas externas. Antes, acentua a dependência do conjunto do sistema econômico relativamente ao setor especializado em exportações, expelindo paulatinamente todos os demais, principalmente as exportações de manufaturados.

Afora o significado da dependência econômica, que pode ser medida pelo forte crescimento do déficit em “serviços e rendas pagos ao exterior” e pela virtual expulsão das manufaturas da Balança Comercial, tais processos aumentam ainda mais o peso de meia dúzia ou pouco mais de commodities agrícolas e minerais na economia brasileira; commodities que, para gerar os valores que delas requer o ambíguo conceito de “equilíbrio externo”, combinam mecanismos de dilapidação ambiental com outros de concentração fundiária de renda e riqueza.

Esse processo de especialização primário-exportadora afeta negativamente as estratégias alternativas de desenvolvimento rural baseadas na sustentabilidade agroecológica e no combate às desigualdades socioeconômicas. Nas Considerações Finais, reservamos algumas reflexões sobre a necessidade de mudança de rumos desse sistema de especialização primário exportador antiecológico, predatório, produtor de desigualdades e gerador de dependência econômica externa.

Commodities, Comércio Exterior, Financeirização: uma revisão crítica

Nas duas últimas décadas, as transformações econômicas, sociais e políticas na paisagem agrária nacional foram particularmente marcantes, especialmente quando vistas a partir de uma perspectiva mais ampla. Ao lado de conquistas importantes, em particular durante a década de 2000 – como a criação de um conjunto inovador de políticas agrárias e alimentares diferenciadas e a redução das desigualdades sociais e da fome (indicadores que seriam rapidamente revertidos a partir de 2016) -, também assistimos a um conjunto de processos que aprofundaram as contradições estruturais da sociedade brasileira e caracterizaram um forte viés regressivo no meio rural, ainda pautado pela alta desigualdade do acesso à terra. Com efeito, os dados do Censo Agropecuário de 2017 mostram que os estabelecimentos agropecuários menores do que 10 hectares, apesar de representarem metade do total de unidades, respondiam por apenas 2,28% da área total, enquanto os estabelecimentos com 1.000 ou mais hectares eram somente 1% do número total, mas detinham 47,52% da área (IBGE, 2019)[2].

Nesta seção, revisitaremos rapidamente esse quadro privilegiando dois aspectos: a expansão da produção de commodities e suas implicações no comércio exterior, bem como a intensidade do processo de financeirização do campo.

Especialização Primário-Exportadora e o Modelo de Expansão da Produção Agrícola

Como destacam Flexor, Kato e Leite (2022: 11)[3], “a dinâmica econômica global caracterizada pelo vigoroso crescimento econômico dos países em desenvolvimento, a expansão do comércio e a baixa inflação global tiveram um efeito significativo sobre o padrão de comércio brasileiro. Em particular, a ascensão da China à condição de potência econômica global impactou as relações comerciais brasileiras. […] em duas décadas o país passou a ser o principal mercado para as exportações brasileiras que, entre 2000 e 2020, teve seu valor aumentado em 6.048%, passando de um pouco mais de US$ 1,08 bilhões para mais de US$ 67,68 bilhões. A China, que representava o destino de somente 1,97% do valor total das exportações brasileiras em 2000, correspondia a quase um terço (32,40%) deste em 2020. As importações de produtos chineses seguiram trajetória semelhante. Em 2020, chegaram a US$ 34,77 bilhões, isto é 21,9% do valor total importado, representando um aumento de 2.752% em 20 anos”.

FIGURA 1 – PRINCIPAIS SETORES EXPORTADORES E OS RESPECTIVOS VALORES DAS EXPORTAÇÕES BRASILEIRAS EM 2020 – EM US$ BILHÕES FOB

Fonte: ComexStat (2020). Apud Flexor et al. (2022: 13)
Fonte: ComexStat (2020). Apud Flexor et al. (2022: 13)

Essa concentração no mercado chinês foi ainda acompanhada por uma mudança radical na estrutura das exportações brasileiras, visto que até 2000 ainda era relativamente diversificada a pauta de comércio exterior, que vai dando lugar ao predomínio dos produtos básicos ao longo de 20 anos. Como exemplifica a Figura 1, a soja, o minério de ferro e o petróleo integram esse maior peso das exportações de bens primários intensivos em recursos naturais e o concomitante crescimento relativo das importações de produtos manufaturados. Como informado pela Secretaria de Comércio Exterior (SECEX), a partir de 2018 o Brasil volta a contar com mais de 50% das suas exportações baseadas em produtos básicos, após décadas e décadas de diversificação da corrente de comércio externo.

O caso da soja merece destaque. Em 2000, o valor das exportações da cadeia oleaginosa representava 5% do valor total exportado pelo Brasil, passando para 16,8% em 2020, explicado pelo aumento expressivo das importações chinesas, que representavam mais de 70% do valor total de soja exportada pelo Brasil neste último ano. O mesmo aconteceria com o minério de ferro. É importante sublinhar que o setor rural (incorporando os setores industriais adjacentes) tem mantido uma performance superavitária na sua corrente de comércio ao longo do período aqui analisado, como atesta a Figura 2. Enquanto a balança comercial geral alternou momentos deficitários e momentos timidamente superavitários, a balança do “macro setor agrícola” abriu importante diferença entre exportações e importações, corroborando o processo de reprimarização da pauta de exportações[4].

FIGURA 2 – BALANÇA COMERCIAL DO “MACRO SETOR AGRÍCOLA” (EXPORTAÇÕES, IMPORTAÇÕES E SALDO) – 2000/2020 (EM US$ FOB)

Fonte: SECEX (vários anos). Apud Flexor et al. (2022: 15)
Fonte: SECEX (vários anos). Apud Flexor et al. (2022: 15)

O aumento dos preços das commodities e sua capacidade de geração de divisas levaram Maristela Svampa a caracterizar o período como o “Consenso das Commodities”[5], em contraste com o “Consenso de Washington”, cunhado para retratar o ajustamento estrutural das economias latino-americanas. Esse ciclo impactou diretamente o uso de recursos naturais, em particular a terra, pressionando seus custos, assim como áreas destinadas à preservação do meio ambiente e aquelas objeto da posse de populações originárias, em particular nos biomas da Amazônia e do cerrado, abrindo espaço para novas disputas territoriais fartamente noticiadas pela imprensa. Outro efeito do mesmo movimento é a diminuição da área destinada ao plantio das culturas alimentares, em particular aquelas que integram a cesta básica e são comercializadas em âmbito local e/ou regional. Como demonstram Flexor et al. (2022), arroz e feijão perderam terreno consideravelmente nesses vinte anos, o que foi relativamente compensado pelo aumento da produtividade em determinados anos. Resultado dessa equação é o encarecimento dos preços dos bens que integram a alimentação de boa parte da população e o retorno impressionante da fome no país, associado ao desmonte de políticas agroalimentares nos últimos cinco anos. Dados produzidos pela Rede PENSSAN informam que praticamente 60% da população brasileira encontra-se atualmente no grupo de insegurança alimentar, sendo 33 milhões de pessoas na categoria de insegurança alimentar grave[6].

 

Guilherme C. Delgado é pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e membro da Direção Colegiada da Associação Brasileira de Reforma Agrária.

Sergio Pereira Leite é professor Titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

[1] Sobre uma discussão mais aprofundada a respeito do emprego e do significado do termo “agronegócio”, ver DELGADO, G. 2012. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Ed. UFRGS, 142 p.; e HEREDIA, B.; PALMEIRA, M.; LEITE, S.P. 2010. Sociedade e economia do agronegócio no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 25 (74): 159-196.

[2] Ver INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019. Censo Agropecuário 2017. Rio de Janeiro: IBGE.

[3] FLEXOR, G.; KATO, K.; LEITE, S.P. 2022. Transformações na agricultura brasileira e os desafios para a segurança alimentar e nutricional no século XXI. Textos para Discussão, 82. Rio de Janeiro: Fiocruz. (Projeto Saúde Amanhã).

[4] Cf. FLEXOR, G. et al., 2022. Op. cit.

[5] SVAMPA, M. 2013. Consenso de los commodities y lenguajes de valoración en America Latina. Nueva Sociedad, no. 244 (30:46), mar/abr.

[6] REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (Rede PENSSAN). 2022. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid 19 no Brasil – II VIGISAN: Relatório Final. São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert, Rede PENSSAN.


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Este texto foi originalmente publicado pelo LeMonde Diplomatique Brasil [Aqui!].

Mais do que esperado: bancada ruralista tenta impedir o banimento do Carbendazim

bancada ruralista

Apesar da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ter adotado um processo faseado de banimento do fungicida Carbendazim, a bancada ruralista do congresso nacional que representa os interesses dos grandes fabricantes de agrotóxicos e do latifúndio agro-exportador resolveu agir para impedir que este perigoso produto, banido na União Europeia em funções dos seus danos à saúde humana, seja removido do mercado nacional de venenos agrícolas.

É que, segundo informa hoje o portal especializado Agrolink a bancada ruralista a proposta deum Decreto Legislativo (PDL 312/22) para impedir o banimento do Carbendazim até que haja um produto similar no mercado, alegando que “o perigo existente na utilização do agrotóxico“está na dosagem e na forma de manuseio”.

É preciso dizer que sta posição em relação ao Carbendazim é a mesma que foi adotada quando o herbicida Paraquat também foi banido pela Anvisa em função de sua alta periculosidade à saúde humana. Isso mostra que entre preservar a saúde de trabalhadores e consumidores dos produtos agrícolas produzidos no Brasil, a bancada ruralista pensa mesma apenas no lucro dos fabricantes de venenos e dos grandes barões do latifúndio agro-exportador brasileiro.

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Ainda segundo o Agrolink, o deputado José Mário Schreiner, membro da FPA e vice-presidente da CNA, que é o autor desse vergonhoso Projeto de Decreto Legislativo (PDL 312/22),  sustenta que a “não utilização do carbendazim afeta, de forma providencial o valor” dos itens básicos de alimentação, o que vai provocar mais inflação”. Há que se dizer que essa é apenas uma grosseira falsificação da realidade, pois já está demonstrado que a grande maioria dos agrotóxicos usados no Brasil (o Carbendazim incluso) não se destina à produção de alimentos, mas principalmente na produção de commodities agrícolas que são usadas, entre outras coisas, na produção de ração animal e biocombustíveis.

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Assim, há que se ficar atento à mais essa tentativa de impedir que um produto altamente perigoso para a saúde humana como o Carbendazim seja retirado do mercado de venenos agrícolas. E, mais uma vez, é por isso que eu sempre digo: o Agro não é pop, o Agro é tóxico.

Brasil campeão mundial do agronegócio: com a fome batendo na porta ou dentro de casa

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Quem não vive de olhos fechados para a realidade já tem a perfeita noção de que a fome transbordou para fora dos seus redutos tradicionais das áreas rurais mais pobres da região Nordeste para alcançar todo o território nacional. Agora, o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) veio confirmar isso com números dramáticos.

Como pode ser verificado pela figura abaixo, o Brasil possui hoje algo em torno de 33 milhões de pessoas passando fome, e o pior é que o ritmo de pessoas que estão entrando nessa condição é muito alto, o que significa dizer que ao final de 2022 o número de famélicos será ainda maior, já que inexistem políticas públicas que sequer tentem minimizar as causas estruturais do problema.  Além disso, os números mostram que 125,2 milhões de pessoas vivem com algum grau de insegurança alimentar, o que representa simplesmente a metade da população brasileira.

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Se olharmos as tendências regionais das diferentes categorias que expressam existência ou ausência de segurança alimentar veremos que embora os níveis mais altos de fome estejam nas regiões Norte e Nordeste, o problema continua avançando nas demais regiões, inclusive na mais rica que é a Sudeste.

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Como chegamos a esse quadro é relativamente simples de detectar, na medida em que a piora coincide com o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff e a aprovação da chamada PEC do Teto de Gastos que exterminou a maioria das políticas sociais que precariamente mantinham a comida na mesa dos brasileiros pobres. 

Os dados mostram ainda que a fome é mais grave entre pessoas negras e é pior ainda para mulheres negras. Esse dado não é um dado acidental, pois o Brasil continua sendo um país que nega direitos elementares a negros e mulheres, mas deixa ainda mais clara a relação entre uma sociedade hierarquicamente voltada para atender os interesses da minoria rica (e majoritariamente branca) da população.

A fome de metade da população deveria deixar os que ainda comem dentro dos níveis considerados seguros com um forte nível de indignação e preocupação. Mas não é o que verifico na maioria dos casos, pois a fome de tantos continua sendo tratada como elemento secundário nos debates políticos e no princípio de campanha eleitoral que já está ocorrendo.  Não debater uma questão tão fundamental em troca de generalidades como a necessidade de defender uma democracia que inexiste na prática para mim é o melhor caminho de garantir que nada vai mudar, independente de quem for eventualmente eleito.

Alguém mais atento poderá se perguntar após ler este texto sobre como é possível que o mesmo país que é um dos campeões mundiais na exportação mundial de commodities agrícolas seja também um que tenha tanta gente passando fome. O problema, meus caros, é que o latifúndio agro-exportador não produz alimentos, mas ração para alimentar rebanhos animais em outras partes do mundo, principalmente na China. Quem produz comida para ser colocada na mesa dos brasileiros é a agricultura familiar.  O problema é que enquanto o latifúndio tem sido generosamente financiado com subsídios públicos, a agricultura familiar foi fortemente sabotada a partir de 2016 quando se deu a ascensão via golpe parlamentar do presidente “de facto” Michel Temer.

Quem desejar ler o documento completo com os resultados da pesquisa feita pela Rede Penssar, basta clicar [Aqui!].

 

Agro é pop? Devastação ambiental, fome e inflação: entenda porque o modelo é insustentável

Brasil troca cada vez mais áreas de plantio de alimentos pela produção de commodities para exportação

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As exportações do agronegócio brasileiro tiveram um saldo positivo de US$ 43,7 bilhões no acumulado do ano – SILVIO AVILA / AFP

Por Gabriela Moncau para o jornal “Brasil de Fato”

 trabalhador rural alegre, operando um trator no meio da plantação. Uma família sorridente passando manteiga no pão ao sol da manhã. A cana de açúcar e uma narração dizendo como ela possibilita que os carros andem pelas ruas. A criação de ovelhas e depois vistosas roupas na vitrine do shopping.  

“Agro é pop, agro é tech, agro é tudo”: o slogan das propagandas transmitidas desde 2016 pela rede Globo trazem a ideia de que o modelo do agronegócio fornece, basicamente, todas as coisas boas e necessárias da vida.  

A “indústria” que, segundo o bordão da peça publicitária, é a “riqueza do Brasil” e que tem como base a produção e exportação de commodities  (produtos em estado bruto, de origem agropecuária ou de extração mineral, usados como matéria prima para a fabricação de outros produtos), em especial a soja transgênica, só cresce em um país que vê sua população empobrecer. 

Com um saldo de US$ 43,7 bilhões (cerca de R$ 210 bi) no acumulado do ano, as exportações do agronegócio brasileiro em abril de 2022, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), foram 81,6% maiores que o mesmo mês de 2019, 52,3% maiores que em 2020 e 14,9% que 2021. 

Contraditoriamente, nesse mesmo período, entre 2019 e o fim de 2021, a população vivendo abaixo da linha da pobreza no Brasil saltou, segundo a FGV Social, de 23 para 28 milhões de pessoas.  

Pior: enquanto o agronegócio infla em lucro e em área ocupada, sobem também os números da inflação, da fome, e da devastação ambiental no país. Segundo pesquisadores e ativistas ouvidos pelo Brasil de Fato, não é coincidência que tudo isso cresça junto. 

Commodity não enche barriga 

“O agronegócio não produz comida. Produz commodities”, sintetiza Kelli Maffort, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).  

Citando o último Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), feito em 2017, Maffort ressalta que quem produz alimentos é a agricultura familiar e camponesa. No Brasil, no entanto, a área de plantio de alimentos vem perdendo significativo espaço para as commodities.  

“Na região sudoeste do estado de São Paulo houve um avanço significativo da soja sobre áreas que antigamente se dedicavam à produção de feijão. Então obviamente que isso vai representar uma diminuição de oferta de alimentos”, ilustra Kelli. 

Tendo como base os dados do IBGE, o artigo Expropriação, violência e R-existência: uma geografia dos conflitos por terra no Brasil (2021) mostra que em 1988 o país dedicava 24,7% da sua área cultivada para arroz, feijão e mandioca. Em 2018, essa proporção despenca para 7,7%.  

Em contrapartida, salientam os autores Carlos Walter Porto-Gonçalves, Luiz Jardim Wanderley, Amanda Guarniere, Pedro Catanzaro da Rocha e Vinícius Martins, nesse período de 30 anos, as culturas voltadas para a exportação, que representavam 49,8% da área de cultivo do país, passaram a ocupar 78,3% dela. 


Arte: Brasil de Fato / Arte: Brasil de Fato

“Mais de 3/4 do total da área das lavouras temporárias e permanentes são de apenas três produtos: soja, cana e milho”, expõe o artigo, ao explicar que esses cultivos são voltados, primordialmente, para alimentar gado e produzir combustíveis fora do Brasil. “Se a função primeira da agricultura é a alimentação”, avaliam os autores, “o padrão da agricultura brasileira vem ignorando sua própria população”. 

Para Sílvio Isoppo Porto, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), “é incontestável a redução de área na produção de alimentos para o mercado interno”.  

“Em decorrência da desestruturação de políticas e de sistemas de produção vinculados à agricultura familiar e camponesa, de cultivos diversificados, há uma transferência de área, principalmente para a soja”, aponta Isoppo, que é também diretor de Sistemas Alimentares e Agroecologia do Instituto Fome Zero.  

A venda e o arrendamento de terras para o agronegócio se explicam, reflete Sílvio, pela falta de políticas que estimulem a produção de alimentos básicos e possivelmente também pelo envelhecimento da população rural. “Isso afeta diretamente a disponibilidade, o que por consequência agrava a situação de abastecimento do país”, salienta.  

Escolha política 

E a rota, pelo visto, segue nesse sentido. Até 2030 o Ministério da Agricultura prevê, por um lado, a redução de dois milhões de hectares para arroz, feijão e mandioca e, por outro, o avanço em 27% da área voltada para soja e milho, com a projeção de que até lá esses cultivos ocupem 70,8 milhões de hectares.  

Mas nem é preciso consultar as projeções do Ministério da Agricultura para confirmar que esse processo faz parte de uma política estatal. “A produção de alimentos no Brasil está completamente abandonada”, avalia Maffort.   

“Não tem programa melhor para enfrentar a fome do que o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], porque o governo compra a preço justo o alimento do agricultor e o direciona para quem está ligado a entidades sociais, nas periferias, quem está precisando de comida. No governo Bolsonaro o seu orçamento foi reduzido”, explica a dirigente do MST. 

“Também o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], a lei obriga os municípios a destinarem 30% do investimento em alimentos da agricultura familiar, camponesa, indígena”, diz Kelli, “mas o governo federal faz de tudo para desidratar essa política e a obrigatoriedade. Há verdadeiras máfias por trás das merendas”. 

Sílvio Isoppo argumenta que a redução das áreas de plantio de banana, batata, cebola e tomate na última década não se explica só pelo avanço da soja, mas por uma falta de estímulo estatal – como um consistente seguro agrícola em caso de perdas – que, em sua visão, vem desde 2005. 

“De lá para cá, o crédito para o agronegócio cresce sistematicamente, assim como o volume de recursos aplicados pelo tesouro para fazer a equalização de juros”, diz Isoppo, ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). 

Na lista de exemplos da opção política do governo em fomentar o modelo do agronegócio em detrimento da produção de alimentos saudáveis, Sílvio cita a alíquota zero para exportação; o desmantelamento das normas e fiscalizações ambientais que tem feito avançar o fogo, o desmatamento e a grilagem de terras; e a liberação de 1.529 novos agrotóxicos durante o governo Bolsonaro.  

O professor também menciona a Lei Assis Carvalho (14.274/2021), que prevê um auxílio financeiro para agricultores familiares prejudicados pela pandemia de covid-19. “Até agora o governo não aportou nem um centavo”, critica.  

O que isso tem a ver com a inflação 


Um dos resultados imediatos da alta inflação é o aumento no custo médio da cesta básica / Foto: Annelize Tozetto

alta no preço dos alimentos, que vem esvaziando o carrinho de supermercado de boa parte da população brasileira, se explica por uma combinação de fatores – que não são apenas, como vem bradando Jair Bolsonaro (PL), decorrentes da guerra na Ucrânia e da pandemia. A hegemonia do agronegócio é um deles.  

Engenheiro agrônomo especializado em economia rural e engenharia de produção, Leonardo Melgarejo estabelece conexões entre o destino do que é produzido no Brasil, a desvalorização da moeda, a escassez de alimentos, a fome e a alta de preços no mercado interno.  

“A terra é escassa. Se vier a ser utilizada com um tipo de lavoura, as outras opções serão descartadas. A redução na oferta de produtos como feijão, arroz e mandioca faz com que seus preços aumentem”, apresenta Melgarejo.  

“O real se desvalorizando em relação ao dólar faz com que as exportações de soja e minérios sejam mais rentáveis e atraentes. Isso aumenta a busca por novas áreas de plantio e de mineração. Resulta no que estamos vendo”, constata Leonardo, que faz parte da coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.  

“Questão agrária e ambiental estão intrinsecamente ligadas”   

Enquanto isso, no primeiro semestre de 2022, as queimadas no Pantanal, na Amazônia e no Cerrado não só continuaram, como já superam as de 2021. Conforme dados do Instituo Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), só no Pantanal os focos de incêndio cresceram 18,2% em relação ao ano passado. No Cerrado, subiram 20%.   

dossiê Agro é Fogo, lançado no fim do ano passado por uma rede de cerca de 30 movimentos e pastorais sociais, traz evidências de que boa parte dos grandes incêndios recentes no Brasil foram provocados por ações humanas e beneficiaram o agronegócio.  

Imagens de satélite e cruzamento de dados como focos de calor e mapeamento de áreas atingidas mostram que, em 2020, o fogo no Mato Grosso começou em cinco fazendas de gado e, no Mato Grosso do Sul, em outros quatro latifúndios. 

Para Diana Aguiar, pesquisadora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o desmatamento e a grilagem de terras tem conexão intrínseca.  

“Como sabemos, grilagem é um tipo de roubo de terras que do ponto de vista jurídico são públicas, as chamadas terras devolutas. Essas terras, em sua imensa maioria, ainda não foram regularmente destinadas para os regimes fundiários prioritários, que seriam, a titulação de territórios tradicionais, os assentamentos de reforma agrária e a regularização de pequenos agricultores posseiros ou a proteção ambiental”, explica Aguiar. 

“Grileiros se aproveitam da leniência e inação do Estado, invadem terras públicas, desmatam e fraudam os registros de propriedade”, expõe Diana.  

“É nessas terras – com frequência ocupadas por povos tradicionais, com a vegetação nativa e ricas em biodiversidade – onde se dá a maior parte dos conflitos no campo, em razão da pressão da expansão da fronteira agrícola para a produção de commodities”, resume. 

“Titular os territórios e fazer a reforma agrária é, ao mesmo tempo, uma questão de direitos dos povos do campo e também é o melhor caminho para conter o desmatamento”, defende Diana Aguiar.  

Em sua opinião, esse “problema estrutural mostra que a questão agrária e a questão ambiental estão intrinsecamente conectadas no Brasil”.


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Este texto foi originalmente publicado pelo jornal “Brasil de Fato”  [Aqui! ].

Na antessala dos mega incêndios amazônicos de 2021

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O latifúndio agro-exportador (que se apresenta sob a fachada aparentemente menos maligna do “agronegócio”) já lançou todas as condições para que 2021 seja um ano em que mega incêndios ocorram em toda a Amazônia brasileira. As imagens de rolos de fumaça subindo aos céus deverão novamente percorrer o mundo, causando choque nos desavisados e atitudes de complacência dos governos que fingem se importar com o aquecimento da Terra e com todas as suas consequências desastrosas, especialmente para os segmentos mais pobres da população humana.

Mas os grandes incêndios que já começam a ocorrer precocemente na Pan Amazônia (sim, toda a bacia Amazônica está sob ataque neste momento) são apenas um sintoma de um processo azeitado de destruição dos ricos biomas amazônicos com o objetivo claro de abrir novas áreas para abastecer os mercados globais, a começar pelo voraz mercado chinês, passando pela União Europeia, e alcançando países que podem até consumir menos, mas consomem, os produtos que a devastação amazônica gera.

O problema é que junto com o desmatamento e os grandes incêndios há o problema da degradação florestal causada por estes dois outros processos. Como já demonstrado no artigo publicado na Science em setembro de 2020 por Eraldo Matricardi e colaboradores, a sinergia entre desmatamento, fogo e degradação está produzindo uma aceleração exponencial da perda de serviços ambientais estratégicos, a começar pelo fornecimento de água e também de chuvas. Com isso, os piores cenários gerados para o agravamento das mudanças climáticas com base na destruição da Amazônia serão provavelmente ultrapassados, e entraremos em um processo de piora significativa das condições ambientais não apenas na Amazônia, mas também em outros partes do Brasil, e de todo o planeta. 

E é importante que se diga que esse avanço da franja de destruição na Amazônia, apesar da fingida preocupação por parte de governos e grandes fundos de investimento de atuação global, são parte intrínseca de um modelo econômico que despreza o conhecimento científico existente sobre a centralidade de se preservar as florestas tropicais.  Na prática o que conta para os “players” que decidem os rumos da economia global é garantir seus lucros fabulosos, ainda que isso signifique que se está rifando a estabilidade ambiental da Terra.

Por essas e outras é que a proteção das florestas amazônicas não se dará sem que haja uma importante mobilização global, que mesmo sendo iniciada desde dentro, vai ter que ocorrer principalmente nos países que consomem as commodities agrícolas que substituem a biodiversidade ali existente.

Nesse sentido, que os grandes incêndios de 2021 possam servir pelo menos para gerar o processo politico que impedirá, por exemplo, que o acordo comercial da União Europeia com o Mercosul seja viabilizado.  É que os players da economia mundial só preocupam mesmo quando começam a perder dinheiro ou, pelo menos, a ganhar menos.

 Para os habitantes do centro sul do Brasil, uma quase certeza é que terão menos chuvas e mais fumaça em sua linha do horizonte nos próximos meses. Esse será o preço da devastação amazônica e da inação política em relação ao que está sendo feito por lá pelo latifúndio agro-exportador em troca de um punhado de dólares.

Pacote de estímulos brasileiro vai na contramão da recuperação verde, diz relatório

Afrouxamento de regras ambientais e estímulos à energia fóssil são destaques negativos do país

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Um relatório da consultoria Vivid Economics divulgado hoje (12/02) sobre os estímulos econômicos dos países em 2020 concluiu que o pacote brasileiro, embora robusto, vai na contramão da retomada verde pós-COVID-19. A boiada também não passou despercebida – o estudo destaca que o país piorou a regulação e a fiscalização ambientais em meio à pandemia, sobretudo no que diz respeito à proteção das florestas. O levantamento também aponta que houve estímulos financeiros e outros favorecimentos à energia fóssil.

O Brasil aparece na posição 17 entre 30 grandes economias no ranking de “estímulos verdes” do relatório. Segundo o documento, as contribuições negativas ao clima do pacote de resgate brasileiro representam mais que o dobro do impacto positivo para a natureza.

“A Indonésia e o Brasil são grandes produtores de commodities agrícolas com um histórico de políticas ambientais frouxas que causam degradação florestal significativa e impactos negativos na biodiversidade e nos ecossistemas”, diz o relatório. “Seus setores agrícolas permanecem em uma trajetória de alta intensidade de emissões e destruição significativa do habitat e da biodiversidade.”

A maioria dos governos até agora não conseguiu aproveitar a oportunidade de combinar recuperação econômica com crescimento sustentável, conclui o estudo. Dos US$14,9 trilhões em estímulos econômicos nos 30 países pesquisados, US$4,6 trilhões foram destinados a setores ambientalmente relevantes como agricultura, indústria, resíduos, energia e transporte, mas apenas uma parte – US$1,8 trilhões – resultou em medidas “verdes”.

A boa notícia é que o impulso para uma recuperação verde parece estar aumentando. O relatório destaca o efeito potencialmente transformador da presidência dos EUA sob Joe Biden. O bom desempenho de Canadá, China, Índia e Reino Unido também aponta, segundo o estudo, para uma mudança fiscal e política que pode influenciar vários países.

“Muito mais ação é necessária antes que possamos ver uma recuperação verdadeiramente verde pós-COVID”, disse o economista Jeffrey Beyer, coautor do relatório. “Mas somos encorajados pelos avanços em alguns países, mais notadamente nos EUA e Canadá”. Para ele, as recentes Ordens Executivas dos EUA são um modelo de como a mudança regulatória pode criar empregos, reduzir emissões e proteger a natureza.

Passando a Boiada

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Segundo o documento, desde o início da pandemia, o Brasil tomou medidas significativas para desregulamentar o uso da terra, em especial na Amazônia. O relatório cita a instrução normativa n. 9 da Funai como explicitamente desenhada para favorecer a grilagem de terras e prejudicar populações indígenas e a biodiversidade. A medida, criada em abril de 2020, autorizou o registro e a venda de imóveis em terras indígenas não homologadas ou registradas no Brasil – são 237 reservas em 24 estados do país. Somadas, possuem pelo menos 9,8 milhões de hectares, concentrados principalmente na Amazônia.

O documento também chama a atenção para a explícita redução da fiscalização ambiental no país por meio de demissões e cortes em órgãos federais com essa atribuição.

No setor de energia, o país apresentou pontos altos e baixos. Por um lado, aprovou medidas de apoio às atividades intensivas em carbono, como a instituição de um comitê para a revitalização da produção de petróleo, gás natural e outros recursos fósseis, além da extensão potencial do período de concessão para os campos de petróleo offshore. Os leilões de eletricidade que eram esperados para o final de 2020 foram postergados, o que, segundo o relatório, serviu para dar aos produtores de gás mais tempo para melhorar sua participação e atrair investimentos, prejudicando as energias renováveis.

Na outra ponta, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) emitiu US$203 milhões em bônus verdes em outubro de 2020 que podem atrair até US$34 bilhões até 2029. O BNDES também tem apoiado fortemente o financiamento da infraestrutura de energia eólica