FIFA
O pior dos racismos é o da cor da alma
O mundo seguirá sendo violento e despedaçado enquanto pensarmos que nossa alma de privilegiados é mais nobre do que a dos despossuídos

Existe um racismo da cor da pele e outro da cor da alma: o que admite que nem todos os seres humanos têm o mesmo direito à felicidade. Qual deles é o mais perigoso e atroz?
No fundo, ambos afetam o mesmo sujeito: os que dispõem de menos recursos, sempre os mais pisoteados. Talvez porque, no fim das contas, consideramos que se tratam de humanos inferiores, dos quais o poder tem menos medo, até que um dia se cansam de ser humilhados, despertam e põem tudo de pernas para cima.
Digo isto porque me tocaram algumas declarações de Joseph Blatter, presidente da FIFA, em relação às manifestações de protesto com os esbanjamentos da Copa do Mundo que será disputada no Brasil. “É impossível deixar todos felizes”, disse, e adicionou: “O mundo mudou e sempre existe alguém que não está feliz”.
O que Blatter quis dizer? Que existem os que têm direito de ser felizes e os que não têm? E quais são esses que segundo ele “é impossível fazer felizes”?
Certamente não se referia aos privilegiados que poderão desfrutar ao vivo das partidas com direito a um palco de luxo, como no Rio de Janeiro, que custou mais de cem milhões de reais e que somente eles poderão usar.
Os que, de acordo com o dirigente da FIFA, deveriam abandonar a ideia de fazer manifestações durante a Copa para pedir melhorias de vida, são, claro, os mais despossuídos, os que necessitam lutar para que aumentem seus salários porque a inflação os come. Os que querem ter serviços públicos dignos de seres humanos.
Os senhores da Fifa deveriam ter mais memória histórica quando atacam os protestos
Os senhores da FIFA – alguns dos quais com descaramento chegaram a pedir que a Copa seja uma grande festa pois o que “foi roubado, já está roubado” – deveriam ter mais memória histórica quando atacam as manifestações de protesto e de reivindicações dos cidadãos.
Talvez tenham esquecido que, sem está pressão das ruas, muitas ditaduras e muitos tiranos nunca teriam caído de seu pedestal. Nem teria sido derrotada a escravidão ou o apartheid e ainda teríamos ônibus e banheiros diferentes para negros e brancos.
Sem as manifestações de protesto, as mulheres não teriam conseguido nunca o direito ao trabalho, ao voto e ao estudo. Nem teriam direitos os sexualmente diferentes.
Sem a pressão dos trabalhadores, o mundo do trabalho seguiria sem férias, trabalhando 20 horas e sem amparo legal.
Todas as grandes conquistas das minorias e dos despossuídos foram feitas historicamente com a rebelião contra quem se empenhava em considerá-los seres humanos de segunda classe.
Alguém poderia dizer que tudo isto já foi conquistado e que, como pensa o dirigente da FIFA, ainda assim nem todos podem ser felizes. Ou seja, que devemos aceitar que existem os que devem ser sempre menos dos que os outros.
Li também que o Governo do Brasil se empenhou em taxar alguns produtos para arrecadar mais. Tentem imaginar de quais produtos se tratam: Talvez o luxo dos que têm mais? As grandes fortunas? Bebidas e alimentos importados? Joias preciosas?
Não, decidiram taxar o “luxo dos pobres”, como a cerveja e os refrigerantes, umas das poucas satisfações que ainda podem permitir-se os que ganham por volta de mil reais.
Os milhões de pobres saídos da miséria, aos que agora a FIFA pede para que fiquem tranquilos em casa vendo as partidas, sem fazer ruído nas ruas, tinham até começado a sonhar com alguns produtos geralmente consumidos pelos que estão bem, como o iogurte, filé e até um shampoo. Ou uma garrafa de vinho de 20 reais.
Hoje o furacão da inflação os trouxe de volta à realidade e estão voltando o arroz e feijão, a farinha de mandioca com ovo cozido, e alguma carne de terceira ou embutidos baratos para o típico churrasco entre amigos aonde não podem faltar a cerveja e o refrigerante. E agora?
Se lhes taxam a lata de cerveja e a garrafa de refrigerante, o que vão deixar para eles? A água? Nem isto porque também está na mira dos próximos aumentos.
Os pobres que antes bebiam qualquer água que encontravam para não ter pagar por ela, o que supunha um crescimento de doenças intestinais por muitas vezes estar contaminada, tinham começado a comprar, como um luxo, sobretudo para seus filhos, garrafões de água de 20 litros a quatro reais. Hoje já estão pagando oito reais no mercado e ainda pensam em aumentar o preço o que os faria voltar a beber a que encontram de graça no primeiro poço artesiano que virem, contaminada ou não. Falta água em um país que conta com 20% da água potável do planeta.
É incrível que para os pobres tudo parece muito. Para a FIFA até a felicidade deles é demasiada.
“Para que querem comprar iogurte se nem gostam disso?”, escutei uma madame falar em um mercado ao ver uma faxineira examinando os preços dos iogurtes.
Poderiam dizer a mesma coisa da água: “Não beberam a vida inteira a água do poço?” E até justificam o aumento do luxo da cerveja: “assim ficam menos bêbados”. O porre de uísque escocês é mais nobre
Se taxam a lata de cerveja e a garrafa de refrigerante dos torcedores, o que vão lhes deixar? A água?
As vezes nos parece um luxo para os pobres o que para nós é visto como normal.
Li que outra senhora se escandalizou porque uma de suas empregadas comprou um perfume que ela considerava exagerado para sua categoria. Devia pensar: “para que os pobres se perfumam?”. Talvez seja por isto que entre os produtos a ser taxados estejam também os cosméticos em geral. Assim, os pobres voltam para sua “água com sabão” que é o que pensamos que os pertence. Para que eles querem usar shampoo?
Hoje os governos fazem esforços para oferecer receitas contra a desigualdade para que os pobres possam também entrar na ciranda mágica do consumo. É justo, mas não basta.
O que devemos mudar é o chip de nosso cérebro, porque não existem seres humanos considerados de primeira e de segunda classe; não é certo que os que estudaram menos, por exemplo, apresentem maior inclinação para a violência ou sejam menos sensíveis à beleza ou ao luxo. Ou que tenham menor senso de honra e de dignidade. As piores violências e desonestidades se escondem nos palácios do poder.
Enquanto mantivermos aberta esta brecha de desigualdade vista como algo quase genético entre os da classe de cima e os da de baixo, entre os que têm direito de saborear certos manjares e de apreciar certos luxos e os que “não entendem destas coisas”, seguiremos alimentando o pior dos racismos, que já não é somente o da cor da pele, e sim o da cor da alma. São Tomás chegou a duvidar que as mulheres tivessem alma. Do mesmo modo há quem gostaria de pensar desta forma dos pobres, que na prática, acabam sendo considerados seres humanos inferiores que não podem querer desfrutar e sentir como os que tiveram o privilégio de nascer em berço mais abastado.
E entretanto, como dizia o carnavalesco da Beija Flor, das favelas do Rio, Joãosinho Trinta: “Pobre gosta de luxo. Quem gosta de miséria (alheia) é intelectual”. E provava sua afirmação recordando que as novelas brasileiras mostram sempre um cenário de luxo e riqueza e são seguidas com fervor pelo pobres. E as fantasias de carnaval são uma exibição de dourados e luxo artístico.
Sempre me pareceu doentia esta paixão de alguns europeus ou norte-americanos para visitar, quando chegam no Brasil, uma favela, que, além de tudo, deve ser o mais pobre e violenta possível. É como se fossem visitar feras em um zoológico.
Levamos uma vez alguns espanhóis para visitar uma favela pacificada do Rio, mas lhes pareceu pouco excitante e foram conhecer uma com emoções mais fortes.
Nosso mundo seguirá sendo violento e despedaçado enquanto pensarmos que nossa alma de privilegiados é mais nobre e refinada que a dos despossuídos. Nos dói inclusive quando vemos que são capazes de desfrutar de uma dose maior de felicidade que nós e com menos recursos.
Nunca me esquecerei de uma cena que observei, da rua, por acaso, em um restaurante de luxo de um dos cafés da mítica e fascinante praça de San Marcos, em Veneza. Um casal já de idade, e com todas as características visíveis de quem tem dinheiro de sobra, estavam, do lado da janela, jantando com ar aborrecido e em silêncio, em um dos lugares mais especiais, mais românticos e mais caros do mundo.
Saíram em seguida do restaurante e o garçom retirou os pratos quase intactos de lagosta e caviar e os copos de cristal de Murano ainda cheios de champanhe, enquanto a senhora se embrulhava em um abrigo de pele de visão. Era inverno.
Naquele momento me veio à memória os churrascos barulhentos de meus amigos brasileiros pobres onde no final da festa, com direito a dança, só sobram os ossos de frango. E com os ossos, um clima de festa e amizade.
Parece, entretanto, que até a alegria e a camaradagem, que é o maior luxo dos pobres, acaba por nos irritar. “Do que riam tanto?”, escutei algumas pessoas dizerem comentando uma festa alegre de gente simples, mas feliz, na pequena cidade de pescadores próxima do Rio onde moro.
Talvez ignoremos que riem e se divertem muitas vezes, com o pouco que têm, também para não chorar. Ou também consideramos um luxo as lágrimas dos pobres derramadas no silêncio anônimos de suas vidas?
FONTE: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/06/09/opinion/1402336433_239878.html
Do blog do Juca Kfouri: A Copa já era!
POR JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*

O presente texto tem o propósito de apresentar onze argumentos, do goleiro ao ponta-esquerda, para demonstrar que a Copa já era!
Ou seja, que já não terá nenhum valor para a sociedade brasileira e, em especial para a classe trabalhadora, restando-nos ser diligentes para que os danos gerados não se arrastem para o período posterior à Copa.
1. A perda do sentido humano
O debate entre os que defendem a causa “não vai ter copa” e os que afirmam “vai ter copa” está superado. Afinal, haja o que houver, o evento não vai acontecer, ao menos no sentido originariamente imaginado, como instrumento apto a gerar lucros e dividendos políticos “limpinhos”, como se costuma dizer, pois não é mais possível apagar os efeitos deletérios que a Copa já produziu para a classe trabalhadora brasileira. É certo, por exemplo, que para José Afonso de Oliveira Rodrigues, Raimundo Nonato Lima Costa, Fábio Luiz Pereira, Ronaldo Oliveira dos Santos, Marcleudo de Melo Ferreira, José Antônio do Nascimento, Antônio José Pitta Martins e Fabio Hamilton da Cruz, mortos nas obras dos estádios, já não vai ter Copa!
Aliás, a Copa já não tem o menor valor para mais de 8.350 famílias que foram removidas de suas casas no Rio de Janeiro, em procedimento que, como adverte o jornalista Juca Kfouri, no documentário, A Caminho da Copa, de Carolina Caffé e Florence Rodrigues, “lembram práticas nazistas de casas que são marcadas num dia para serem demolidas no dia seguinte, gente passando com tratores por cima das casas”. Essas práticas, segundo relatos dos moradores, expressos no mesmo documentário, incluíram invasões nas residências, para medir, pichar e tirar fotos, estabelecendo uma lógica de pressão a fim de que moradores assinassem laudos que atestavam que a casa estava em área de risco, sob o argumento de que na ausência de assinatura nada receberiam de indenização, o que foi completado com o uso da Polícia para reprimir, com extrema violência, os atos de resistência legítima organizados pelos moradores, colimando com demolições que se realizaram, inclusive, com pessoas ainda dentro das casas. As imagens do documentário mencionado são de fazer chorar e de causar indignação, revolta e repúdio, como o são também as imagens da violência utilizada para a desocupação de imóvel da VIVO na zona norte do Rio de Janeiro, ocorrida no dia 11 de abril de 2014, onde se encontravam 5.000 pessoas. Lembre-se que as remoções para a Copa ocorreram também em Cuiabá, Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Manaus, São Paulo e Fortaleza, atingindo, segundo os Comitês Populares da Copa, cerca de 170 mil famílias em todo o Brasil.
A Copa já não tem sentido para o Brasil, como nação, visto que embora sejam gastos cerca de R$ 30 bilhões para o montante total das obras, sendo 85% vindos dos cofres públicos, a forma como se organizou – ou não se organizou – a Copa acabou abalando a própria imagem do Brasil. Ou seja, mesmo se pensarmos o evento do ponto de vista econômico e ainda que, imediatamente, se possa chegar a algum resultado financeiro positivo, considerando o que se gastou e o dinheiro que venha a ser atraído para o mercado nacional, é fácil projetar um balanço negativo em razão da quebra de confiabilidade.
Se o Brasil queria se mostrar, como de fato não é, para mais de 2 bilhões de telespectadores, pode estar certo de que a estratégia já não deu certo.
A propósito, a própria FIFA, a quem se concederam benefícios inéditos na história das Copas, tem difundido pelo mundo uma imagem extremamente negativa do Brasil, que até sequer corresponde à nossa realidade, pois faz parecer que o Brasil é uma terra de gente preguiçosa e descomprometida, quando se sabe que o Brasil, de fato, é um país composto por uma classe trabalhadora extremamente sofrida e dedicada e onde se produz uma inteligência extremamente relevante em todos os campos do conhecimento, mas que, enfim, serve para demonstrar que maquiar os nossos problemas sociais e econômicos não terá sido uma boa estratégia.
2. Ausência de beneficio econômico
Mesmo que entre perdas e ganhos o saldo econômico seja positivo, há de se indagar qual o preço pago pela população brasileira, vez que restará a esta conviver por muitos anos com o verdadeiro legado da Copa: alguns estádios fantasmas e obras inacabadas, nos próprios estádios e em aeroportos e avenidas, além da indignação de saber que os grandes estádios e as obras em aeroportos custaram milhões aos cofres públicos, mas que, de fato, pouca serventia terão para a maior parte da classe operária, que raramente viaja de avião e que tem sido afastada das partidas de futebol, em razão do processo notório de elitização incrementado neste esporte.
Oportuno frisar que o dinheiro público utilizado origina-se da riqueza produzida pela classe trabalhadora, vez que toda riqueza provém do trabalho e ainda que se diga que não houve uma transferência do dinheiro público para o implemento de uma atividade privada, vez que tudo está na base de empréstimos, não se pode deixar de reconhecer que foram empréstimos com prazos e juros bastante generosos, baseados na previsibilidade de ganhos paralelos com o evento, ganhos que, no entanto, já se demonstram bastante questionáveis.
No caso do estádio Mané Garrincha, em Brasília, por exemplo, com custo final estimado em R$1,9 bilhões, levando-se em consideração o resultado operacional com jogos e eventos obtidos em um ano após a conclusão da obra, qual seja, R$1.137 milhões, serão precisos 1.167 anos para recuperar o que se gastou, o que é um absurdo do tamanho do estádio, ainda que o Ministro do Esporte, Aldo Rebelo, e o secretário executivo da pasta, Luis Fernandes, tenham considerado o resultado, respectivamente, “um êxito” e “um exemplo contra o derrotismo”.
O problema aumenta, gerando indignação, quando se lembra que não se tem visto historicamente no Brasil – desde sempre – a mesma disposição de investir dinheiro público em valores ligados aos direitos sociais, tais como educação pública, saúde pública, moradias, creches e transporte.
O que se sabe com certeza é que a FIFA, que não precisa se preocupar com nenhum efeito social e econômico correlato da Copa, obterá um enorme lucro com o evento. “Uma projeção feita pela BDO, empresa de auditoria e consultoria especializada em análises econômicas, financeiras e mercadológicas, aponta que a Copa do Mundo de 2014 no Brasil vai render para a Fifa a maior arrecadação de sua história: nada menos do que US$ 5 bilhões entrarão nos cofres da entidade (cerca de R$ 10 bilhões).”
3. O prejuízo para o governo
O governo brasileiro, que tenta administrar todos os prejuízos do evento, vê-se obrigado, pelo compromisso assumido por ocasião da candidatura, a conferir para a FIFA garantias, que ferem a Constituição Federal e que, por consequência, estabelecem um autêntico Estado de exceção, para que o lucro almejado pela FIFA não corra risco de diminuição, entregando-lhe, além dos estádios, que a FIFA utilizará gratuitamente:
a) a criação de um “local oficial de competição”, que abrange o perímetro de 2 km em volta do estádio, no qual será reservada à FIFA e seus parceiros, a comercialização exclusiva, com proibição do livre comércio, inclusive de estabelecimentos já existentes no tal, caso seu comércio se relacione de alguma forma ao evento;
b) a institucionalização do trabalho voluntário, para serviços ligados a atividade econômica (estima-se que cerca de 33 mil pessoas terão seu trabalho explorado gratuitamente, sem as condições determinadas por lei, durante o período da Copa no Brasil);
c) o permissivo, conferido pela Recomendação n. 3/2013, do CNJ, da exploração do trabalho infantil, em atividades ligadas aos jogos, incluindo a de gandula, o que foi proibido, ainda que com bastante atraso, em torneios organizados pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol), desde 2004, seguindo a previsão constitucional e o Estatuto da Criança e da Juventude (ECA);
d) a liberdade de atuar no mercado, sem qualquer intervenção do Estado, podendo a FIFA fixar o preço dos ingressos como bem lhe aprouver (art. 25, Lei Geral da Copa);
e) a eliminação do direito à meia-entrada, pois a Lei Geral da Copa permitiu à FIFA escalonar preços em 4 categorias, que serão diferenciadas, por certo, em razão do local no estádio, sendo fixada a obrigatoriedade de que se tenha na categoria 4, a mais barata (não necessariamente com preço 50% menor que a mais cara), apenas 300 mil ingressos, sem quórum mínimo para cada jogo, e apenas dentre estes é que se garantiu a meia entrada para estudantes, pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos; e participantes de programa federal de transferência de renda, que, assim, foram colocados em concorrência pelos referidos ingressos;
f) o afastamento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, deixando-se os critérios para cancelamento, devolução e reembolso de ingressos, assim como para alocação, realocação, marcação, remarcação e cancelamento de assentos nos locais dos Eventos à definição exclusiva da FIFA, a qual poderá inclusive dispor sobre a possibilidade: de modificar datas, horários ou locais dos eventos, desde que seja concedido o direito ao reembolso do valor do ingresso ou o direito de comparecer ao evento remarcado; da venda de ingresso de forma avulsa, da venda em conjunto com pacotes turísticos ou de hospitalidade; e de estabelecimento de cláusula penal no caso de desistência da aquisição do ingresso após a confirmação de que o pedido de ingresso foi aceito ou após o pagamento do valor do ingresso, independentemente da forma ou do local da submissão do pedido ou da aquisição do Ingresso (art. 27).
4. O prejuízo para a cidadania
Para garantir mesmo que o lucro da FIFA não seja abalado, o Estado já anunciou que o evento terá o maior efetivo de policiais da história das Copas, com gasto estimado de 2 bilhões de reais, mobilizando, inclusive, as Forças Armadas, tudo isso não precisamente para proteger o cidadão contra atos de violência urbana, mas para impedir que o cidadão, vítima da violência da Copa, possa se insurgir, democraticamente, contra a sua realização.
A respeito das manifestações, vale frisar, é completamente impróprio o argumento de que como nada se falou antes, agora é tarde para os cidadãos se insurgirem. Primeiro, porque quando o compromisso foi firmado ninguém foi consultado quanto ao seu conteúdo. E, segundo, porque nenhum silêncio do povo pode ser utilizado como fundamento para justificar o abalo das instituições do Estado de Direito, vez que assim toda tirania, baseada na força e no medo, estaria legitimada. O argumento, portanto, é insustentável e muito grave, sobretudo no ano em que a sociedade brasileira se vê diante do desafio de saber toda a verdade sobre o golpe de 1964 e os 21 anos da ditatura civil-militar.
Deve-se acrescentar, com bastante relevo, que o evento festivo, composto por alguns jogos de futebol, está sendo organizado de modo a abranger toda a sociedade brasileira, impondo-lhe os mais variados sacrifícios, pois impõe uma intensa alteração da própria rotina social, atingindo a pessoas que nenhuma relação possuem com o evento ou mesmo que tenham aversão a ele.
O próprio calendário escolar foi alterado, para que não houvesse mais aulas durante a Copa, buscando, de fato, melhorar artificialmente o trânsito e facilitar o acesso aos locais dos jogos. A educação, que é preceito fundamental, que se arranje, pois, afinal, é ano da Copa! Algumas cidades, para melhor atingir esse objetivo da facilitar a circulação, mascarando os problemas do transporte, pensam, seriamente, em decretar feriados nos dias de jogo da seleção brasileira, interferindo, também, na lógica produtiva nacional.
Nos serviços públicos já se anunciaram alterações nos horários de funcionamento, de modo a não permitir coincidência com os dias de jogos do Brasil, sendo que em alguns Tribunais do Trabalho (Mato Grosso – em Cuiabá e nas cidades do interior; Rio Grande do Sul e São Paulo, com diferenças de intensidade e de datas); o funcionamento foi suspenso, gerando adiamento das audiências… Ou seja, o trabalhador, que esperou meses para ser atendido pela Justiça, verá sua audiência adiada para daqui a alguns novos meses, pois, afinal, era dia de jogo da Copa!
Somados todos esses fatores, é fácil entender que a Copa já perdeu todo o sentido para a nação brasileira. Não por outra razão, aliás, é que a aprovação para a realização da Copa no Brasil, em novembro de 2008, que era de 79% caiu, em abril de 2014, para 48%, e os que eram contrários subiram, no mesmo período, de 10% para 41%, sendo que mais da metade dos brasileiros considera que os prejuízos serão maiores que os ganhos.
5. O prejuízo para a razão
Numa leitura otimista, o diretor-geral do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo Fifa 2014, que se chama, por coincidência reveladora, Ricardo Trade (comércio, em inglês), prefere dar destaque ao fato de que 48% são a favor e apenas 41% são contra, avaliando, então, que o copo está meio cheio. Só não consegue ver que o copo está esvaziando e que, de fato, nos trens e ônibus, que transportam os trabalhadores, só se fala da Copa para expressar indignação com relação às condições do transporte, da saúde, das escolas, e da falta de creches. Sintomático, aliás, o fato de que as periferias das grandes cidades não estão pintadas para a “festa” do futebol, como estavam nas Copas anteriores e isso porque, com a Copa sendo realizada aqui, é possível ver as disparidades e perceber com maior facilidade como a retórica do legado não atinge, concretamente, a vida da classe trabalhadora.
Os tais empregos gerados são precários e inseridos, sobretudo nas obras de estádios, aeroportos e vias públicas, na lógica perversa da terceirização, sendo que muitos trabalhadores ainda serão explorados sem qualquer remuneração no mal denominado trabalho “voluntário”, referido com orgulho pelo “Senhor Comércio”.
Fato é que não será mais possível assistir a um jogo da Copa, no estádio, pela TV ou nos circos armados do “Fan Fest” e se emocionar com uma jogada ou um gol, sem lembrar do preço pago: assalto à soberania; Estado de exceção; gastos públicos; abalo da confiabilidade em razão da desorganização; violências dos despejos, dos acidentes de trabalho e da repressão policial…
Sobre o Fan Fest, ademais, é oportuno esclarecer que se trata de um “evento oficial” da Copa da FIFA, que deve ser organizado e custeado pelas cidades sedes de jogos, para que os excluídos dos estádios possam assistir aos jogos por um telão, com o acompanhamento de shows. Esse evento, organizado e pago pelo Estado (que se fará em São Paulo mediante pareceria com o setor privado, conforme Comunicado de Chamamento Público n. 01/2014/SMSP, que estabeleceu o prazo de uma semana para o oferecimento de ofertas), realizado em espaço público, atende aos interesses privados da FIFA e suas parceiras. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, o Decreto n. 55.010, de 9 de abril de 2014, assinado pela vice-prefeita em exercício, Nádia Campeão (em nova coincidência reveladora), que regulou o evento, transforma a área pública do Fan Fest em uma área privada, reservada, como dito no Decreto, aos fãs da Copa. Nos termos expressos no Decreto: “FAN FEST: área do Vale do Anhangabaú indicada pela cidade-sede e reconhecida pela FIFA como área de lazer exclusiva aos fãs da Copa do Mundo FIFA 2014” (inciso VIII, do art. 2º.) – grifou-se
O mesmo Decreto fixa esse local, o do Fan Fest, como área de “restrição comercial”, que são “áreas definidas pelo Poder Público Municipal com perímetros restritos no entorno de locais oficiais específicos de competição, nas quais, respeitadas as normas legais existentes, fica assegurada a exclusividade prevista no artigo 11 da Lei Federal nº 12.663, de 2012, à FIFA ou a quem ela autorizar” (inciso XIII, do art. 2º.), valendo reparar que o Decreto, artificialmente, amplia, em muito, a extensão geográfica do Vale do Anhangabaú: “FAN FEST: a partir do Largo da Memória, Rua Formosa, Viaduto do Chá, Praça Ramos de Azevedo, Rua Conselheiro Crispiniano, Rua Capitão Salomão, Praça Pedro Lessa, Largo São Bento, Rua Florêncio de Abreu, Rua Boa Vista, Rua Líbero Badaró, Praça do Patriarca, alça de retorno da Av. 23 de Maio do sentido Bairro/Centro para o sentido Centro/Bairro, Av. 23 de Maio, entre o Largo da Memória e o Viaduto do Chá, conforme Anexo II deste decreto” (inciso II, do art. 3º.), atingindo até mesmo o espaço aéreo: “Os espaços aéreos correspondentes aos perímetros descritos nos incisos I e II do “caput” deste artigo também se constituem em áreas de restrição comercial” (parágrafo único do art. 3º.).
É importante saber que ao se impedir a comercialização na área reservada a Prefeitura de São Paulo acabou interrompendo um processo de negociação, iniciado em maio de 2012, com os ambulantes que atuavam na cidade e, em especial, na região central, onde se situa o Vale do Anhangabaú, e cuja licença havia sido cassada no contexto de uma política de endurecimento muito forte quanto à fiscalização de sua atuação, que fora intensificada, exatamente, a partir de 2011, quando houve a assinatura do termo de compromisso, anunciando São Paulo como uma das cidades sedes da Copa. Em 2012, acabaram sendo canceladas todas as 5.137 licenças dos ambulantes e até hoje, mesmo após instaurado, desde 2012, um grupo de trabalho tripartite – trabalhadores, sociedade civil e prefeitura (Fórum dos Ambulantes), para a discussão do problema, nada se resolveu e, em concreto, ao editar o Chamamento Público acima citado, a Prefeitura acabou dificultando sobremaneira a pretensão dos ambulantes de terem alguma atuação comercial durante a Copa. É a Copa, na verdade, fechando postos de trabalho!
6. De novo o dinheiro
Há de se considerar que todos esses efeitos já foram produzidos e continuarão repercutindo na vida real para além da Copa, ainda que o saldo econômico desta venha a ser positivo.
E se o tema é dinheiro, há de se indagar: dinheiro para quem, cara pálida? É evidente que o benefício econômico não ficará para a classe trabalhadora e sim para quem explora o trabalho ou se vale da lógica de reprodução do capital. Para o trabalhador, o dinheiro que se direciona é o fruto do trabalho realizado, que, de fato, na lógica do modelo de sociedade capitalista, não representa, jamais, o equivalente necessário para restituir à classe trabalhadora como um todo o valor do trabalho empregado no serviço ou na obra. A lógica econômica da Copa não é outra coisa senão a intensificação do processo de acumulação de riqueza por meio da exploração do trabalho alheio, sendo que se considerarmos a utilização do denominado “trabalho voluntário”, que se realizará sem qualquer custo remuneratório, a acumulação que se autoriza é ainda maior.
O tal efeito benefício econômico, a que tanto se alude, portanto, não será, obviamente, revertido à classe trabalhadora. Esta, inclusive, será enormemente prejudicada, na medida em que o dinheiro público utilizado para financiar a atividade lucrativa de índole privada foi extraído da tributação realizada sobre a riqueza produzida pelo trabalho e que, assim, deveria ser, prioritariamente, revertida ao conjunto da classe trabalhadora para a satisfação das necessidades essenciais garantidas por preceitos constitucionais: escolas, hospitais, previdência e assistência social, creches e transporte, por exemplo. É completamente ilógico dizer, como disse o diretor-geral do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo Fifa 2014, no texto mencionado, que se está usando o dinheiro público para incentivar uma produção privada com o objetivo de, ao final, tributar essa produção e devolver o dinheiro aos cofres públicos.
O argumento seria apenas ilógico não fosse, também, digamos assim, carregado de alguns equívocos, o que o torna, portanto, muito mais grave. Ora, como adverte Maurício Alvarez da Silva, pelos termos da Lei Geral da Copa, Lei n. 12.350/10, “foi concedida à Fifa e sua subsidiária no Brasil, em relação aos fatos geradores decorrentes das atividades próprias e diretamente vinculadas à organização ou realização dos Eventos, isenção de praticamente todos os tributos federais” .
Além disso, em 17 de maio de 2013, o governo federal publicou no “Diário Oficial da União decreto que concede isenção de tributos federais nas importações destinadas à Copa das Confederações neste ano e à Copa do Mundo de 2014. Entre os produtos incluídos na isenção estão alimentos, suprimentos médicos, combustível, materiais de escritório, troféus. O benefício abrange Imposto sobre Produtos Industrializados incidente na importação, Imposto de Importação, PIS/Pasep-Importação, Cofins-Importação, Taxa de utilização do Siscomex, Taxa de utilização do Mercante, Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante e Cide-combustíveis”.
Em concreto, continuarão sendo tributados apenas as empresas nacionais, que não estejam integradas ao rol das apaziguadas da FIFA, sofrendo, ainda, com a isenção concedida às importadoras, os trabalhadores e os consumidores, sendo que o valor circulado nesta seara é ínfimo se considerarmos aquele, sem tributação, destinado à FIFA e suas parceiras e às importadoras.
7. De novo os ataques aos trabalhadores
Quando os trabalhadores, saindo da invisibilidade, se apresentam no cenário político e econômico e se expressam no sentido de que planejam uma organização coletiva para tentarem diminuir o prejuízo, buscando, por meio de reivindicações grevistas, atrair para si uma parte maior do capital posto em circulação em função da Copa, logo algum economista de plantão vem a público com a ameaça de que tais ganhos podem resultar em demissões futuras.
Mas, essa possibilidade aventada pelos trabalhadores de se fazerem ouvir na Copa, que pode, em concreto, minimizar o prejuízo dos trabalhadores, no processo de acumulação, e do país, na evasão de riquezas, acabou provocando uma reação institucional imediata, afinal o compromisso assumido pelo Estado brasileiro foi o de permitir que a FIFA obtivesse o seu maior lucro da história. Então, a Justiça do Trabalho se adiantou e divulgou que vai estabelecer um sistema de plantão para julgar, com a máxima celeridade (de um dia para o outro), as greves que ocorram durante a Copa, com o pressuposto já anunciado de que “as greves têm custo para os trabalhadores, empregadores e população”, sendo certo que a Copa não pode ser usada para “expor o país a uma humilhação internacional, como no Carnaval, quando houve greve de garis”.
Pouco importa o quanto a Justiça do Trabalho, historicamente, demora para dar respostas aos direitos dos trabalhadores, no que se refere às diversas formas de violências de que são vítimas em razão das práticas de algumas empresas no que tange à falta de registro, ao não pagamento de verbas rescisórias, ao não pagamento de horas extras, ao não pagamento de indenizações por acidentes do trabalho etc. Mesmo que já tendo melhorado sobremaneira na defesa dos interesses dos trabalhadores, transmite ainda a ideia central de que o que importa é ser célere quando isso interessa ao modelo econômico, que se vale da exploração do trabalho para reproduzir o capital.
A iniciativa repressiva da Justiça, ademais, foi aplaudia, rapidamente, por editorial do jornal Folha de S. Paulo, o qual, inclusive, em declaração, no mínimo, infeliz, chamou os trabalhadores de oportunistas:
É uma iniciativa elogiável para evitar o excesso de oportunismo sindical, que não hesita em prejudicar o público e ameaçar o principal evento do ano no país.
Ou seja, todo mundo pode ganhar, menos os trabalhadores. Parodiando a máxima penal, é como se lhes fosse dito: “tudo que vocês ganharem pode ser utilizado contra vocês mesmos…”
Como foram as condições de trabalho nas obras? Quantos trabalhadores não receberam ainda os seus direitos por serviços que prestaram para a realização da Copa? Segundo preconizado pelo viés dessa preocupação, nada disso vem ao caso… Na visão dos que só veem imperativo obrigacional de realizar a Copa, como questão de honra, custe o que custar, o que importa é que o “público” receba o proveito dos serviços dos trabalhadores e se estes não ganham salário digno ou se trabalham em condições indignas não há como trazer à tona, para não impedir a realização do evento e para não abalar a imagem no Brasil lá fora.
Mas, concretamente, que situação pode constranger mais a figura do Brasil no exterior? O Brasil que faz greves? Ou o Brasil em que os trabalhadores são submetidos a condições subumanas de trabalho e que não permite que esses mesmos trabalhadores, em geral invisíveis aos olhos das instituições brasileiras, se insurjam contra essa situação, tendo que aproveitar o momento de um grande evento para, enfim, ganhar visibilidade, inclusive, internacional?
Na verdade, a humilhação internacional, a qual não se quer submeter o Brasil, é a de que o mundo saiba como o capitalismo aqui se desenvolve, ainda marcado pelos resquícios culturais de quase 400 anos de escravidão e sem sequer os limites concretos da eficácia dos Direitos Humanos e dos direitos sociais, promovendo, em concreto, uma das sociedades mais injustas da terra.
8. O perverso legado das condições de trabalho na Copa
Do ponto de vista da realidade, é preciso consignar que a pressa na execução das obras ainda tem aumentado a espoliação da classe trabalhadora com elevação das jornadas de trabalho, cuja retribuição, ainda que paga, nunca é suficiente para atingir o nível da equivalência, ainda mais quando são implementadas fórmulas jurídicas fugidias do efetivo pagamento (banco de horas, compensações etc.). O trabalho em jornadas extraordinárias, ademais, gera um desgaste físico e mental do trabalhador que não é computado e não se compensa por pagamento.
Além dos acidentes do trabalho citados inicialmente, portanto, é importante adicionar ao legado da Copa para a classe trabalhadora as más condições de trabalho, caracterizadas pela elevação das jornadas de trabalho, pelo aumento do ritmo do trabalho e da pressão pela celeridade
O relato de alguns fatos, extraídos do noticiário jornalístico, auxilia na visualização desse contexto de supressão de direitos dos trabalhadores no período de preparação para a Copa.
Em setembro de 2013, 111 migrantes, vindos do Maranhão, Sergipe, Bahia e Pernambuco foram encontrados em condições análogas à de escravos na obra de ampliação do aeroporto de Guarulhos/SP, o mais movimentado da América Latina, sob a responsabilidade da empresa OAS, que além de ser uma das maiores construtoras do Brasil, é também a terceira empresa que mais faz doações a candidatos de cargos políticos, segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo, sendo uma das quatro empresas que formam o consórcio Invepar que, junto com a Airports Company South Africa, detêm 51% da sociedade com a Infraero para a administração do Aeroporto Internacional de Guarulhos através da GRU Airport e que para as obras de ampliação do aeroporto, onde foi flagrado trabalho escravo, obteve do BNDES um empréstimo-ponte de R$1,2 bilhões.
E a OAS, evidentemente, declarou que “vem apurando e tomando todas as providências necessárias para atender às solicitações” do Ministério do Trabalho e Emprego, negando que as vítimas fossem suas empregadas ou que tivesse tido qualquer “participação no incidente relatado” .
Até abril de 2012, conforme reportagem de Vinícius Segalla, oito dos doze estádios da Copa já haviam enfrentado greves, atingindo 92 dias de paralisação, sendo o recorde do Maracanã, no Rio de Janeiro, com 24 dias. As reivindicações foram variadas, indo desde questões ligadas à remuneração até o desrespeito de direitos como pagamento de horas extras e fornecimento de planos de saúde. Segundo a reportagem, “Em uma das quatro paralisações já ocorridas em Pernambuco, no início de novembro do ano passado, o motivo foi a forma como a Odebrecht lidou com as reivindicações dos trabalhadores. É que a empreiteira demitiu dois funcionários da arena que eram membros da Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) porque eles teriam incitado os trabalhadores a fazer greve. A demissão dos operários, junto com denúncias de assédio moral supostamente praticados pelo responsável pela segurança do canteiro, levou os funcionários a decretar greve.”
Também nos termos da reportagem, “a empresa explicou ao UOL Esporte que ‘Os dois empregados membros da Cipa foram demitidos por justa causa, por cometimento de flagrante ato de indisciplina, quando, no último dia 31 de outubro, instigaram os colegas a paralisarem a obra da Arena da Copa, sem nenhuma razão plausível’.” Embora, depois, por meio de nota tenha dito que as dispensas se deram sem justa causa.
A situação, revela a mesma reportagem, foi também bastante séria na greve do Maracanã, em setembro de 2011, cuja motivação, segundo Nilson Duarte, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada (Sitraicp), teria sido o fato de que “foram servidos aos cerca de 2.000 trabalhadores da obra macarrão e feijão estragados, salada com bichos e leite fora da validade”, o que fora negado pelo Consórcio Maracanã (Odebrecht, Delta e Andrade Gutierrez), por meio de nota. O local já havia sido alvo de uma greve, um mês antes, agosto de 2011, por causa de uma explosão no canteiro que feriu um trabalhador.
Relata-se, ainda, que em Manaus (AM), na Arena Amazônia, houve paralisação de um dia, em 22 de março de 2012, porque conta do valor da cesta básica que estava sendo paga aos operários, R$ 37, enquanto que “de acordo com pesquisa do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos ), o valor da cesta básica, composta por 12 produtos, fechou o mês de março a um custo R$ 251,38 na capital amazonense”, tendo a greve se encerrado com o aumento da cesta para R$ 60, acompanhado da promessa da empresa de que iria “voltar a pagar hora extra aos sábados, o que parara de fazer três meses antes”.
Na arena de Pernambuco, no início de 2012, foi promovida a dispensa coletiva de 560 empregados, conforme destacado em reportagem de Paulo Henrique Tavares, que vale a pena reproduzir:
A sexta-feira marcou a volta aos trabalhos dos operários responsáveis pela construção da Arena Pernambuco, na cidade de São Lourenço da Mata. E como “boas-vindas”, 560 trabalhadores acabaram recebendo o comunicado de demissão. A expectativa da comissão organizadora da recente greve, que paralisou as obras do estádio por oito dias, é de que outros mil funcionários peçam a carta de dispensa até o fim da tarde.
Por considerar “abusiva e ilegal”, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-PE) exigiu, na quinta-feira, a volta aos trabalhos dos grevistas, com penalidade de R$ 5 mil, por dia, ao sindicato da categoria, o Sintepav, em caso de descumprimento. Apesar da obrigatoriedade, a ideia dos remanescentes nas obras da Arena Pernambuco é praticar – como os próprios denominam – uma “operação tartaruga”.
“Eu vim preparado para ser demitido. Como não fui, a maneira que encontrei para ajudar meus companheiros é trabalhar de maneira lenta. Cada prego desta Arena irá demorar pelo menos um dia, para ser colocado”, disse um trabalhador, que preferiu não ser identificado. “Eu não tenho prazo para terminar a obra. Quem tem prazo é o governo.”
Antes das demissões, as obras para a Arena da Copa contavam com 2.437 trabalhadores. Já contando com as saídas desta sexta-feira, cerca de 250 novos operários se apresentaram para o trabalho, em São Lourenço da Mata. “Pelo número de polícias que estão aqui na obra hoje, acredito que eles e o governador Eduardo Campo devem colocar a mão na massa para levantar o estádio até a Copa do Mundo”, falou, em tom irônico, um dos novos desempregados.
Entre as reivindicações, os trabalhadores exigiam aumento de benefícios, como cesta básica de R$ 80 para R$ 120, maior participação nos lucros e resultados (PLR), Plano de Saúde para os profissionais e ajudantes, além de abono dos dias parados e estabilidade de um ano para a comissão dos trabalhadores.
A questão pertinente às condições de trabalho chegou a tal extrema que, na Arena do Grêmio (que não está integrada aos jogos da Copa, mas se alimenta da mesma lógica), em outubro de 2011, os próprios trabalhadores pediram sua demissão, como “forma de protesto pelas condições de trabalho impostas pela empreiteira. A maioria dos trabalhadores é do Maranhão e retornará ainda hoje para seu estado natal.”
No estádio do Itaquerão, os operários disseram, em janeiro de 2014, à reportagem do UOL que estavam recebem salário “por fora” (que impede a tributação e não se integra aos demais direitos dos trabalhadores), “para trabalhar mais do que o previsto pelo acordo e evitar que a inauguração do palco de abertura da Copa do Mundo atrase ainda mais”. Segundo consta da reportagem, “Um soldador que trabalha na obra contou à reportagem que espera receber um salário quatro vezes maior do que o normal neste mês devido às horas extras irregulares que está fazendo”.
Segundo a reportagem, o acordo em questão, firmado com o aval do Ministério do Trabalho e Emprego, em 19 de dezembro de 2013, foi o de que estaria autorizado o trabalho em até duas horas extras diariamente, sendo que, anteriormente, dizem os trabalhadores, havia jornadas de até 16 horas. E, presentemente, as horas além das duas extras permitidas, que já é, por si, grave afronta à Constituição, eram trabalhadas sem marcação em cartão de ponto. “Eles [os chefes] falam para a gente: ‘Não pode atrasar’. Ainda tem muita coisa pra fazer e às vezes é melhor mesmo você trabalhar umas horinhas a mais num dia para terminar uma tarefa e já começa num ponto mais a frente no dia seguinte”, disse à reportagem um ajudante de pedreiro, de 23 anos, que, assim como os outros trabalhadores que conversaram com o UOL Esporte, pediu para não ser identificado.
Nos termos da reportagem, “Além do medo de perder o salário adicional, os funcionários da construtora disseram que foram orientados a não dar entrevistas. ‘Teve uma palestra no fim do ano para falar pra gente tomar cuidado com a imprensa, pra não ficar falando qualquer coisa porque isso só atrapalha a gente’, declara o ajudante de pedreiro.”
Como revela notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo, edição de 23/03/14 (p. D-4), foram flagrados pelos jornalistas trabalhadores executando suas tarefas sem as mínimas condições de segurança e de uma subsistência digna em obra do centro de treinamento da seleção da Alemanha no sul da Bahia (Santa Cruz Cabrália).
9. O atentado histórico à classe trabalhadora
A maior parte dos problemas vivenciados pelos trabalhadores nas obras da Copa está ligada à sua submissão ao processo de terceirização e de precarização das condições de trabalho, que acabaram sendo acatados, sem resistência institucional contundente, durante o período de preparação para a Copa, interrompendo o curso histórico que era, até então, de intensa luta pela melhoria das condições de trabalho no setor da construção civil, que é o recordista, vale destacar, em acidentes do trabalho. Essa luta, implementada pelo Ministério Público do Trabalho, tendo como ponto essencial o combate à terceirização, entendida como fator principal da precariedade que gera acidentes, já havia sido, inclusive, encampada pelo Governo Federal, em 2012, ao se integrar, em 27 de abril, ao Plano Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho.
O fato é que o evento Copa, diante da necessidade de se acelerarem as obras, acabou por jogar por terra quase toda, senão toda, a racionalidade que já havia sido produzida a respeito do assunto pertinente ao combate à terceirização no setor da construção civil, chegando-se mesmo ao cúmulo do próprio Superintendente Regional do Trabalho e emprego de São Paulo, vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, Luiz Antônio Medeiros, um ex-sindicalista, declarar, sobre as condições de trabalho no Itaquerão, que: “Se esse estádio não fosse da Copa, os auditores teriam feito um auto de infração por trabalho precário e paralisado a obra. Estamos fazendo de conta que não vemos algumas irregularidades” (entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 03/04/14).
O período da preparação para a Copa, portanto, pode ser apontado como um atentado histórico à classe trabalhadora, que jamais será compensado pelo aludido “aumento de empregos”, até porque, como dito, tais empregos, no geral, se deram por formas precárias. Nas obras o que se viu e se vê – embora não seja visto pelo Ministério do Trabalho e Emprego – são processos de terceirização e quarteirização, sem uma oposição institucional, que, por conseqüência, produz o legado de grave retrocesso sobre o tema, que tende a se estender, perigosamente, para o período posterior à Copa.
Não se pode esquecer que quase todos os acidentes fatais acima mencionados, não por coincidência, atingiram trabalhadores terceirizados, e o Estado de exceção, acoplado ao silêncio institucional sobre as formas de exploração do trabalho (exceção feita a algumas iniciativas individualizadas de membros do Ministério Público do Trabalho) e acatado para garantir a Copa, acabaram servindo como uma luva a certas frações do setor econômico, que serão as únicas, repita-se, que verdadeiramente, se beneficiarão do evento, para desferir novo ataque aos trabalhadores, representado pela tentativa de fuga de responsabilidade da empresa responsável pela obra, transferindo-a à empresa contratada (terceirizada), que possui, como se sabe, quase sempre, irrisório suporte financeiro para arcar com os riscos econômicos envolvidos.
Sobre a morte de José Afonso de Oliveira Rodrigues, a construtora Andrade Gutierrez, responsável pela construção da arena em Manaus, defendeu-se, publicamente, dizendo que Martins trabalhava para a Martifer, empresa contratada para fazer as estruturas metálicas da fachada e da cobertura.
Quando da morte de Marcleudo de Melo Ferreira, também na obra da arena de Manaus, a Andrade Gutierrez repetiu a estratégia, expressando-se em nota:
É com pesar que a Construtora Andrade Gutierrez informa que por volta das 4h da manhã de hoje, 14/12/2013, o operário Marcleudo de Melo Ferreira, 22 anos, natural de Limoeiro do Norte – CE, funcionário de empresa subcontratada que presta serviços na montagem da cobertura da Arena da Amazônia, sofreu uma queda de uma altura de cerca de 35 metros, sendo socorrido e levado ao Pronto Socorro 28 de Agosto ainda com vida, onde não resistiu aos ferimentos e veio a falecer nesta manhã.
Reiteramos o compromisso assumido com a segurança de todos os funcionários e que uma investigação interna está sendo feita para apurar as causas do acidente. As medidas legais estão sendo tomadas em conjunto com os órgãos competentes.
Lamentamos profundamente o acidente ocorrido e estamos prestando total assistência à família do operário. Em respeito à memória do mesmo, os trabalhos deste sábado foram interrompidos. – grifou-se
Igual postura foi adotada pela Odebrecht Infraestrutura, responsável pela obra do Itaquerão, no que tange às mortes de Fábio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos. Eis a nota publicada:
A Odebrecht Infraestrutura e o Sport Club Corinthians Paulista lamentam informar que no início da tarde de hoje um acidente na obra da Arena Corinthians provocou o falecimento de dois trabalhadores – Fábio Luiz Pereira, 42, motorista/operador de Munck da empresa BHM, e Ronaldo Oliveira dos Santos, 44 anos, montador da empresa Conecta. Pouco antes das 13 horas, o guindaste, que içava o último módulo da estrutura da cobertura metálica do estádio, tombou provocando a queda da peça sobre parte da área de circulação do prédio leste – atingindo parcialmente a fachada em LED. A estrutura da arquibancada não foi comprometida. Era a 38ª vez que esse tipo de procedimento realizava-se na obra e uma peça de igual proporção foi instalada há pouco mais de uma semana no setor Sul do estádio. Equipes do corpo de bombeiros estão no local. No momento, todos os esforços estão concentrados para oferecer assistência total às famílias das vítimas.
E para demonstrar que a terceirização, com a utilização da estratégia de se eximir de responsabilidade, não é privilegio da iniciativa privada, quando houve a morte de José Antônio do Nascimento na obra do Centro de Convenções do Amazonas, desenvolvida pelo Centro de Gestão Metropolitana do Município de Manaus ao lado da Arena da Amazônia, a entidade em questão expediu a seguinte nota:
O funcionário da Conserge, empresa que presta serviço para a Unidade de Gestão Metropolitana, José Antônio da Silva Nascimento, de 49 anos, morreu de infarto por volta das 9h da manhã deste sábado (14 de dezembro), quando trabalhava nos serviços de limpeza e terraplanagem para o asfaltamento do Centro de Convenções da Amazônia, localizado na Avenida Pedro Teixeira.
José Antônio se sentiu mal quando subiu em uma caçamba. Uma ambulância do Samu foi acionada imediatamente para realizar o atendimento, mas o trabalhador não resistiu. A Conserge está dando toda a assistência necessária à família da vítima.
Segundo a família de José Antônio, este trabalhava sob pressão devido ao atraso na obra. “Ele trabalhava de domingo a domingo”, afirmou sua cunhada, Priscila Soares.
Por ocasião da morte de Antônio José Pitta Martins, técnico especializado em operações de guindastes de grande porte, que veio de Portugal para trabalhar na obra da Arena da Amazônia, tendo sido atingido na cabeça por uma peça de ferro que se soltou de um guindaste, novamente a fala se repete. Em nota oficial, a empresa responsável técnica pela obra, Andrade Gutierrez, destaca que o trabalhador não era seu empregado, ao mesmo tempo em que deixa claro que “o acidente não interferiu no seguimento das obras”
Eis o teor da nota:
NOTA DE ESCLARECIMENTO
A Construtora Andrade Gutierrez informa que, por volta das 8h da manhã de hoje, 07/02/2014, um técnico de guindaste de grande porte, funcionário da empresa Martifer, sofreu um acidente nas dependências do sambódromo enquanto desmontava a máquina utilizada nas obras da Arena da Amazônia. O guindaste, que auxiliava os trabalhos da Arena, já estava com as operações encerradas desde 11/01/2014 e desmobilizado em uma área externa. O operador foi socorrido pela equipe de Segurança do Trabalho e levado pelo SAMU até o hospital 28 de Agosto, onde teve seu quadro de saúde estabilizado e foi transferido para o hospital João Lúcio. O acidente não interferiu no seguimento das obras da Arena da Amazônia. – grifou-se
A empresa Martifer Construções Metalomecânica S/A, por sua vez, emitiu nota de pesar, noticiando que iria “apurar as causas do acidente”.
A última morte foi a de Fabio Hamilton da Cruz, que se deu em acidente ocorrido no Itaquerão, após uma queda de oito metros de altura. Fabio, conforme foi várias vezes frisado pelos envolvidos, com difusão na imprensa, era empregado da WDS, uma subcontratada da Fast Engenharia, que fora contratada pela AmBev, que aceitou bancar os 38 milhões de reais para colocação de arquibancadas provisórias, exigidas pela FIFA para que o estádio tivesse a capacidade de público necessária para receber a abertura da Copa do Mundo.
10. A culpabilização das vítimas
A respeito do acidente de Fábio Hamilton da Cruz, o Delegado designado para verificação do ocorrido, após ouvir alguns relatos, um dia depois do ocorrido, sem a realização de qualquer laudo técnico, já concluiu que teria havido um “excesso de confiança” da vítima.
Essa foi, ademais, outra forma de agressão aos direitos dos trabalhadores que a pressa para a realização da Copa acabou reforçando, a da culpabilização da vítima nos acidentes do trabalho.
Ora, como o próprio nome diz, o acidente do trabalho é um sinistro que se dá em função da realização de trabalho em benefício alheio, ao qual, independente da postura da vítima, fica obrigado a reparar o dano, já que o risco da atividade econômica lhe pertence (art. 2º. da CLT) e, consequentemente, é de sua responsabilidade o cuidado com o meio ambiente de trabalho.
É extremamente agressivo à inteligência humana, servindo, inclusive para fazer prolongar no tempo o sofrimento da vítima ou de seus familiares, o argumento, daquele que explora com proveito econômico o trabalho alheio, de que “vai apurar” o ocorrido, deixando transparecer no ar uma acusação, que nem sempre é velada, de que a culpa pelo acidente foi do trabalhador
Veja-se, por exemplo, o que se passou no caso do Raimundo Nonato Lima Costa, que morreu após uma queda de 35 metros na Arena da Amazônia. Em nota de pesar pela sua morte, a responsável técnica pela obra não teve o menor receio, inclusive, de fazer uma acusação generalizada aos trabalhadores, apontando-os como responsáveis por sua própria segurança. Diz a nota.
NOTA DE PESAR
A Andrade Gutierrez lamenta a morte do operário Raimundo Nonato Lima Costa, ocorrida na noite desta quinta-feira, durante o turno noturno da obra da Arena da Amazônia. A empresa providenciou apoio imediato à família do funcionário e aguarda o resultado dos trabalhos da perícia técnica que foi iniciada pela Polícia Civil com o objetivo de apurar as causas do ocorrido.
A Andrade Gutierrez reitera o compromisso assumido com a segurança de todos os seus funcionários e informa que intensificará o trabalho de conscientização dos operários com foco na prevenção de acidentes.
Por ocasião da morte de Marcleudo de Melo Ferreira, na mesma Arena, já mencionada acima, o secretário da Copa em Manaus, Miguel Capobiango, foi além na agressão aos trabalhadores e desferiu o ataque de que as duas quedas fatais até então havidas na Arena tinham sido fruto do “relaxo” dos operários na utilização dos equipamentos de segurança. “Usar o equipamento de segurança às vezes é chato e nem todos gostam de estar usando. O operário às vezes abre mão por preguiça, então ele relaxa, e é isso que agora nós não podemos deixar”. “Infelizmente, os dois acidentes aconteceram por uma questão básica de não cuidado do trabalhador no uso correto do equipamento.”
E, sobre a morte de Fabio Hamilton da Cruz no estádio no Itaquerão, disse Andrés Sanches: “Na vida, cometemos erros e excessos. Já dirigi carro a 150 km/h. Eu não bebo. Vocês já devem ter dirigido “mamados”. Infelizmente, cometemos erros que acabam em fatalidade. Realmente, é padrão na construção civil.”
11. O retrocesso social e humano da Copa
Bem se vê que o legado maléfico para os trabalhadores brasileiros com a Copa não está apenas nas más condições de trabalho e nos conseqüentes oito acidentes fatais (não se contando aqui os vários outros acidentes do trabalho que não resultaram em óbito), o que, por si, já constitui um grande prejuízo, ainda mais se lembrarmos que as obras para a Copa da África em 2010 deixaram 02 mortes por acidente do trabalho, está também na tentativa explícita de culpar as vítimas, buscando atingir a uma impunidade que reforça a lógica de uma exploração do trabalho alheio pautada pela desconsideração da dignidade humana.
A Copa já trouxe grandes prejuízos à classe trabalhadora e é preciso impedir que se consagrem e se prolonguem, mansa e silenciosamente, para o período pós-Copa. Não tendo sido possível obstar que o Estado de exceção se instaurasse na Copa é essencial, ao menos, não permitir que ele continue produzindo efeitos.
O passo fundamental é o de recuperar a consciência, pois a porta aberta às concessões morais e éticas para atender aos interesses econômicos na realização da Copa tem deixado passar a própria dignidade, o que resta demonstrado nas manifestações que tentam justificar o injustificável apenas para não permitir qualquer abalo na “organização” do evento. Foi assim, por exemplo, que o maior atleta do século XX e melhor jogador de futebol de todos os tempos, o eterno Pelé, chegou a sugerir, mesmo que não tenha tido uma intenção malévola, que mortes em obras são fatos que acontecem, “são coisas da vida” e que se preocupava mesmo era com o atraso nas obras dos aeroportos; que o competente e carismático técnico da seleção brasileira, Luiz Felipe Scolari, ainda que sem querer ofender, afirmou que a solução para o problema do racismo no futebol é ignorar os “babacas” que cometem tais ofensas, pois puni-los não resolve nada; e que o Ministro de Minas e Energia, Edson Lobão, cogitou pedir para que os cidadãos brasileiros economizassem energia a fim de que não faltasse luz na Copa.
A postura subserviente, para satisfazer os interesses da FIFA, chegou ao ponto extremo de algumas cidades, como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Cuiabá, Natal e Fortaleza, terem atendido pedido feito, com a maior cara de pau do mundo, pelo secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, para que as cidades sedes de jogos da Copa concedessem transporte gratuito – algo que o Movimento Passe Livre está lutando, e sofrendo, para conseguir há anos –, sendo que a concessão, diversamente do que tem buscado o MPL, não se destina às pessoas necessitadas, mas aos torcedores dos jogos da Copa, que possuem condições financeiras para pagar os altos preços dos ingressos, que chegaram a ser vendidos, no paralelo, por até R$91 mil…
É de suma importância deixar claro, para a nossa compreensão e para a nossa imagem no mundo, que temos a percepção de todos esses problemas, que não o aprovamos e que estamos dispostos a enfrentá-los e superá-los.
O autêntico efeito positivo da Copa – realizada, ou não – será a constatação de que a classe trabalhadora se encontra em um estágio de consciência que lhe permite compreender que a Copa reforça e intensifica a lógica da exploração do trabalho como fonte reprodutora do capital, favorecendo ao processo de acumulação da riqueza, ao mesmo tempo em que permite a institucionalização de uma evasão oficial de divisas. A partir dessa compreensão, a classe trabalhadora não se deixará levar pela retórica de que o dinheiro dos turistas vai estimular o crescimento e gerar empregos, até porque ao se inserir na mesma lógica capitalista o dinheiro não é revertido à classe trabalhadora, à qual apenas é remunerada, sem o necessário equivalente, pelo trabalho prestado, direcionando-se, pois, a maior parcela do dinheiro em circulação em função da Copa às multinacionais aqui instaladas, especialmente no setor hoteleiro e nas companhias aéreas.
Cada trabalhador, pensando em sua atividade e em seu cotidiano de ganho e de trabalho durante a Copa, ou antes, que responda: teve ou terá algum ganho na Copa que não provenha do trabalho? Este trabalho é prestado em que condições? O eventual acréscimo de ganho está ligado ao aumento da quantidade de trabalho prestado? Que o digam, sobretudo, os jornalistas!!!
Claro que uma ou outra experiência comercial exitosa, desvinculada da dos protegidos da FIFA, pode ocorrer, mas isso por exceção. E, cumpre repetir: mesmo que no geral a Copa produza resultados econômicos satisfatórios, não se terão, com isso, justificadas as supressões da ordem jurídica constitucional, já havidas no período de preparação para o evento, e as violências sofridas por diversas pessoas, e, em especial, a classe trabalhadora, no que tange aos seus direitos sociais e humanos.
Este é o ponto fundamental: o de não permitir que a Copa e a violência institucional posta a seu serviço furtem a nossa consciência, que está sendo duramente construída, vale lembrar, após 21 anos de ditadura, seguida de 15 anos de propaganda neoliberal. A produção dessa consciência é extremamente relevante para que o drama das diversas pessoas, vitimadas pela Copa, não se arraste por muito mais tempo, sofrimento que, ademais, só aumenta quando, buscando não abalar eventual euforia da Copa, se tenta desconsiderar a sua dor, ou quando, partindo de uma perversão da realidade, argumenta-se que as pessoas que são contra a Copa (mesmo se apoiadas nos motivos acima mencionados) fazem parte de uma conspiração para “contaminar” a Copa, apontadas como adeptas da “violência”, sendo que para a ação dessas pessoas (que, de fato, carregam um dado de consciência), o que se reserva é o contra-argumento da “segurança pesada”.
O desafio está lançado. O que vai acontecer nos jogos da Copa, se a “seleção canarinho” vai se sagrar hexa campeã, ou não, não é decisivo para a história brasileira. Já o tipo de racionalidade e de reação que produzirmos diante dos fatos sociais e jurídicos extremamente graves relacionados ao evento vai, certamente, determinar qual o tipo de sociedade teremos na sequência. Boa ou ruim, a Copa acaba e a vida concreta continua e será boa ou ruim na medida da nossa capacidade de compreendê-la e de interagir com ela, pois como já disse Drummond:
Foi-se a Copa? Não faz mal.
Adeus chutes e sistemas.
A gente pode, afinal,
cuidar de nossos problemas.
Faltou inflação de pontos?
Perdura a inflação de fato.
Deixaremos de ser tontos
se chutarmos no alvo exato.
O povo, noutro torneio,
havendo tenacidade,
ganhará, rijo, e de cheio,
A Copa da Liberdade.
São Paulo, 21 de abril de 2014.
*Jorge Luiz Souto Maior é professor livre docente de direito do trabalho brasileiro na USP, Brasil desde 2001. É juiz titular na 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí desde 1998, palestrante e conferencista.
FONTE: http://blogdojuca.uol.com.br/2014/04/a-copa-ja-era/
No país da Copa 2014, o que há para os pobres? Repressão, tiros, bombas
O texto e fotos abaixo são do repórter Vladimir Platonow da “Empresa Brasil de Comunicação” e mostram como foi feita a desocupação de centenas de pessoas de um prédio abandonado da empresa telefônica OI.
E depois ainda vem a CUT anunciar que vai sair às ruas para defender a realização da Copa do Mundo da FIFA…..
Desocupação prédio da Oi
Por Vladimir Platonow
Quando a política de habitação de um governo é traduzida em tiro, porrada e bomba, algo vai muito mal. Tem muita diferença cobrir uma desocupação do lado da polícia ou da comunidade. Nesta sexta-feira, fiquei junto com os moradores do Rato Molhado, que me deram abrigo. Tive que fugir da PM para não ser preso por “desacato”, conforme gritava comigo um sargento e outros tantos, só porque eu estava fotografando a prisão de uma liderança e do colega Bruno, de O Globo. Sinceramente, a forma como a polícia trata os moradores das favelas é muito desumana e violenta. Isso é racismo social, sim.
Estado de exceção permanente
Em cidades como o Rio, Cabul e Porto-Príncipe, a democracia é um embaraço
Por Mario Sergio Conti

O governador bem que se esforçou em dar credibilidade à alquebrada coreografia da pacificação. Com a fisionomia contrita, ele disse no domingo passado que a entrada da polícia no Complexo da Maré era “um dia histórico”. Oficiais contraíram a pança e hastearam o auriverde pendão em cima de barracos. Soldados com sorriso fotogênico posaram com crianças idem no colo. Meganhas empunharam metrancas com a cara de mau de canastrões de “Alemão”, o filme. Do cinema à reencenação da ocupação original, a empulhação se repetiu como farsa.
O mundinho oficial fingiu acreditar. Rápida no gatilho, uma artilharia de aspones da Secretaria municipal da Educação disparou propaganda no dia seguinte. O comunicado melhora se lido de peito estufado e ao som de uma salva de pontos de exclamação. Vem aí o Campus Educacional da Maré! Serão treze escolas novinhas! Sete creches com nome empombado (Espaço de Desenvolvimento Infantil) e sigla facinha, EDI! Oito colégios serão reformados. Dez mil crianças estudarão em turno único! A Prefeitura, sempre magnânima no amparo aos desvalidos, tem bala na agulha: R$ 325 milhões para torrar na nobre iniciativa!
Numa segunda leitura se percebe o contrabando que veio de cambulhada no tiroteio da Secretaria da Educação. A “previsão inicial” para começar a obra do tal Campus Educacional é para daqui a 90 dias — ou seja, em plena Copa. Ele será edificado num “terreno vizinho à Vila Olímpica”. Mas já agora, no próximo domingo, o exército entrará na Maré. As galhardas forças verde-oliva se aboletarão no Complexo também até a Copa. Aí o sentido da operação se aclara.
O seu objetivo não foi a Maré. Nem o Rio. Ou a galera de cariocas de carne e osso. A superprodução foi montada para turbinar a cidade-espetáculo dos megaeventos, o Rio da Copa e das Olimpíadas. O público-alvo é diminuto: as corporações que, aparelhadas na Fifa e no Comitê Olímpico Internacional, escolhem o território liberado pós-nacional em que será alocado o capital transnacional — a zona do agrião na qual uma marca de cerveja obtém o monopólio da venda nos estádios, apesar de a lei proibi-la expressamente.
Não foi por pirraça, pois, que os Napoleões da ocupação primeiro ergueram tapumes na Linha Vermelha. A pretexto de proteger a Maré do barulho dos carros, buscaram ocultar favelas das vistas de potentados do esporte desembarcados no Galeão. Nem foi à toa que UPPs tenham sido plantadas preferencialmente na Zona Sul, adjacentes a pontos turísticos, nas imediações do Maracanã e no caminho para a Barra, onde ficarão os atletas olímpicos.
Também faz parte do script brandir o espectro das facções, bichos-papões sempre a pique de sabe-se lá o quê. Por certo que elas existem. Tanto que controlam presídios e chefiam milícias. Mas imputar poderes semidivinos a mulambos que calçam sandália de dedo visa justificar barbaridades, além de servir de desculpa para agir sem a devida consulta popular. As facções gerenciam as vendas no varejo da indústria das drogas e a de armamentos. Não é para elas o naco do leão dos dois negócios, cujos maiores mercados, aliás, ficam bem longe do Rio. Quando aparecem na televisão, os executivos das facções mostram o que realmente são — rebotalhos que vicejam porque há miséria demais, emprego de menos e perspectiva de vida nula.
Nem tudo é embuste e marketing na política de segurança. As UPPs, mesmo se eternizando em contêineres, levam jeito de que vieram para ficar. Elas são os alicerces da retomada de territórios — não bem para o Estado, e sim para o capital. Continua a faltar Estado nas zonas “pacificadas”, mas a autoconstrução, que nelas dava a tônica, vem sendo substituída paulatinamente (e a pauladas) pelo mercado legal, que gera dividendos, impostos e caixa dois. No Vidigal, imóveis e aluguéis subiram de preço — processo que pode provocar a saída de quem mora no morro há décadas. É o que se chama de progresso.
A militarização também está com tudo. O pessoal que fazia passeata vestido de branco deu lugar a tropas permanentes, armadas até os dentes com o que há de bom e do melhor para matar. É a força-padrão do cenário internacional, de Bagdá a Cabul, e passando por Porto-Príncipe, onde o exército se exercita antes de ocupar favelas cariocas. Em cidades assim a democracia é um embaraço. É o que pensa o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke. Ele disse na semana passada que com menos democracia se organiza melhor a Copa. Ato contínuo, enalteceu Vladimir Putin, o czar do Mundial seguinte ao do Rio. O de 2022 será no Catar, emirado absolutista aonde os direitos humanos não chegaram. Cidades de megaeventos precisam de paz e ordem, não de democracia. O estado de exceção deve ser permanente.
Mario Sergio Conti é jornalista e escritor. Foi editor da revista Veja e do Jornal do Brasil, entre outros veículos. É repórter da revista Piauí.
FONTE: http://oglobo.globo.com/cultura/estado-de-excecao-permanente-12070276#ixzz2xpLx7W3y
CUT vestiu o terno e saiu por ai defendendo a Copa FIFA

A relação umbilical entre a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o governo de Dilma Rousseff é mais do que conhecido. Agora, essa relação ficou ainda mais clara com o engajamento da defesa que a CUT está pronta para fazer da Copa da FIFA, como anuncia o site Brasil 247 (Aqui!).
Segundo o que informa o Brasil 247, o presidente da CUT, Vagner Freitas, teria dito que o evento (a Copa FiFA) vai beneficiar os trabalhadores e os protestos contra o Mundial são “eleitoreiros”, “manipulados pela oposição e pela direita elitista que não se conforma com o fato de o governo Lula ter conseguido trazer os eventos para o Brasil”.
Esse tipo de declaração mostra que, lamentavelmente, a CUT que nasceu como um símbolo da luta por um sindicalismo autônomo e democrático, não passa de um apêndice do aparelho de Estado. Afinal, o Sr. Vagner Freitas sabe que os únicos beneficiados com este megaevento são a FIFA e todas as corporações que a entidade carrega junto para saquear recursos e auferir lucros bilionários dos países que aceitam hospedar o evento.
Felizmente, a edição deste ano no Brasil está afastando candidatos a pais-sede, o que deverá implicar em dificuldades para que a FIFA mantenha sua tática de terra arrasada no futuro. Quanto à CUT, a luta dos trabalhadores ainda passará por cima de seus dirigentes de terno e gravata.
Manifestações estão obrigando prefeitos a se distanciar da farra da FIFA na Copa 2014
Muito se tem falado das manifestações que vem ocorrendo no Brasil contra os gastos exorbitantes para bancar o mega-evento da FIFA, a chamada Copa do Mundo 2014. Mas num sinal que a classe política já entendeu a mensagem, o Jornal Valor Econômico noticia hoje que muitos prefeitos das cidades-sede, seguindo o exemplo do prefeito de Recife, estão tirando o time de campo para se desobrigar do financiamento da chamada “Fan Fest” da FIFA (Aqui!). Essa atividade é, na prática, mais um daqueles eventos paralelos onde tudo acontece para aumentar os lucros da FIFA, sem essa tenha que meter a mão nos seus cofres já recheados com recursos públicos dos diferentes países onde o seu mega-evento vem sendo instalado ao longo dos anos.
Ai é que eu digo: benditas manifestações! Afinal de contas, num país onde a miséria campeia e serviços públicos essenciais estão operando no seu limite crítico, bancar evento para a FIFA ganhar ainda mais dinheiro não tem justificativa alguma!
Senadores provocam pânico generalizado
Por Deisy Ventura*
Não há maior infâmia. Chamar alguém de terrorista é descartá-lo de imediato como, mais do que fora da lei, fora do humano, fazedor do hediondo. E como não há a mínima possibilidade de negociação, resta apenas a violência, aliás a linguagem dele.
É fácil explicar a naturalidade desta repulsa. Bem antes das imagens do 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque, num bate-boca em Estocolmo, em 1957, Albert Camus disse ao estudante argelino que cobrava seu apoio à Frente de Libertação Nacional algo como: “enquanto estamos falando, bombas são jogadas nos bondes da Argélia. Minha mãe pode estar em um deles. Se isto é justiça, eu prefiro minha mãe”*.
A ideia de que a morte de inocentes desonra qualquer causa já o havia levado a escrever Os Justos, em 1949, genial peça em que a presença inesperada de duas crianças compromete a realização de um atentado, por hesitação de um militante, Kaliayev (naquele momento, duplamente desgraçado, pelo Estado como “terrorista” e por seu próprio grupo como “traidor”). Isto não impediu Camus de reconhecer, em suas Reflexões sobre o terrorismo que, na Argélia, “cada repressão, ponderada ou demente, cada tortura policial e cada julgamento ilegal acentuaram o desespero e a violência nos militantes”, e que “a responsabilidade coletiva erigiu-se em princípio de repressão”.
Mesmo antes do falecimento de Camus, em 1960, a expressão terrorismo foi ganhando novos contornos. Surpreende a atual ascensão do “terrorista” Nelson Mandela – preso entre 1962 e 1990, entre outras razões por associação criminosa e recurso à violência – ao extremo oposto da infâmia, à quase santidade. Na mesma linha, entre tantos, há o recente fato da Irmandade Muçulmana passar a ser oficialmente designada pelo Egito, em 25/12/2013, como organização “terrorista”, apesar do partido Liberdade e Justiça, que é considerado sua vitrine política, ter recebido mais de 13 milhões de votos (51,73% do total) nas eleições presidenciais de 2012. Ou talvez justamente por isto, eis que o Presidente eleito, Morsi, foi deposto pelo exército, em 03/07/2013.
Então afinal, para além de lançar a infâmia sobre os opositores políticos com grande respaldo popular, juridicamente, o que seria o terrorismo? É a criminalização da intenção, diz a imensa jurista Mireille Delmas-Marty, alertando para o risco de jogar fora a democracia sob o pretexto de defendê-la: ”reduzindo as liberdades, o Estado se injeta, numa verdadeira estratégia de auto-imunização, uma parte do mal, assumindo o risco de uma violência que se alimenta de outras e termina por contaminar todo o sistema” (Liberdades e segurança num mundo perigoso, 2010).
Esta avaliação se aplica perfeitamente ao Projeto de Lei do Senado Federal n.499, de 2013, cuja tramitação seria acelerada esta semana, supostamente em razão da lamentável morte de um cinegrafista. O curioso é que todas as condutas previstas no projeto que causam lesões objetivas à vida e ao patrimônio já são consideradas crimes pela ordem jurídica brasileira, aliás puníveis com onerosas sanções. Tudo indica, por conseguinte, que o melhor seria investir no cumprimento das leis vigentes, tão escasso no Brasil.
Ocorre que a novidade é de outra cepa. Quem está preocupado em cumprir as leis, coisa que daria um trabalho danado, inclusive a destituição de altos cargos e a reorganização de pesadas instituições? Agora o problema do legislador é punir a intenção de “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado” (art.2) por meio destes crimes. A lei não define o que é terror ou pânico generalizado, mas estipula a pena de reclusão de 15 a 30 anos para a “ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa” praticada com esta intenção (ou talvez simplesmente com este efeito, não se sabe).
Os demais artigos são, porém, bastante esclarecedores. Três pessoas já conformam um “grupo terrorista”, e a mera formação de um trio para fins de incutir terror ou pânico já é punível com 5 a 15 anos de reclusão (art.7). O financiamento (“contribuir de qualquer modo para a obtenção de ativo, bem ou recurso financeiro”, art.3) é punível com reclusão de 15 a 30 anos. Dar abrigo a pessoa que “se saiba tenha praticado ou esteja por praticar” a grotesca empreitada custaria a reclusão de 3 a 8 anos, da qual só escapa a família do acusado.
O mais grave, porém, é o artigo 5: “Incitar o terrorismo: Pena – reclusão, de 3 a 8 anos”. O suporte fático tem 21 caracteres com espaços. Nada mais é dito. É uma tipificação para twitter. Miúda, mas de extrema coerência: já que o substantivo pode ser qualquer coisa, o verbo também.
Todos estes novos crimes são inafiançáveis e insuscetíveis de graça, anistia ou indulto (art.10). A jurisprudência é quem dirá para que lado vamos. Mas antes do processo há a prisão, o fichamento, a execração pública, a desonra, ainda que daqui a alguns anos nossos juízes decidam, quem sabe, que terroristas são só aqueles que estão nas listas elaboradas pelos Estados Unidos ou pela União Europeia, ou quiçá o Egito – ou que tal a nossa ABIN?
Aparentemente, a razão desta lei é incutir o terror entre cidadãos brasileiros, a fim de evitar manifestações de massa durante a Copa do Mundo. Diga-se de passagem, tal paz maquilada, se obtida, seria um bem público barato a um preço caríssimo. Em tempo e espaço remotos, imagino que por gozação, alguém disse que aos juristas não caberia questionar as razões que engendram as leis, e sim aplicá-las. Nem mesmo o tal piadista poderia imaginar que isto se transformaria em pretensão científica, e mais adiante em senso comum no Poder Judiciário. Cada um aplica a parte que lhe toca, e o fato de que grande parte da lei jamais toca a alguém parece irrelevante.
Contudo, seria preciso ao menos avaliar os efeitos deste projeto. Duríssimas leis anti-terrorismo jamais evitaram a violência extrema e bem conhecida, por exemplo, de organizações como o Exército Republicano Irlandês (IRA) ou do País Basco e Liberdade (ETA). Ao contrário, o “terrorista” de hoje só se torna o possível interlocutor político de amanhã quando ele é reintegrado à esfera da lei, ao campo da negociação possível. Como ensinam Delmas-Marty e Henry Laurens, esta foi a regra nas lutas pela libertação nacional que hoje são, quase consensualmente, reconhecidas como legítimas.
Não é por outra razão que o direito internacional padece para definir o terrorismo, sob intensa pressão dos Estados Unidos, que preconizam uma ordem internacional à serviço de sua própria segurança. Na imensa gama de situações de violência (melhor dito, os estados de violência que sucederam a guerra tradicional, na expressão de Frédéric Gros) em que os governos nacionais lançam seus oponentes à ilegalidade e em que os Estados, democratas ou não, praticam a violência para incutir terror em sua própria população ou alhures, como o direito internacional poderia identificar um critério universal para definir o “combatente ilegal“? Já definimos o crime contra a humanidade e o crime de guerra. Por que seria necessário tipificar um novo crime?
Historicamente, as leis anti-terrorismo servem à eliminação dos inimigos (independentistas, separatistas, resistentes, etc.), deixando os inocentes de Camus, inclusive os cinegrafistas, à mercê da violência de todos, poderosos e opositores, numa espiral de violência que só poderia ser interrompida pelo diálogo.
No Brasil de hoje, há uma geração a ser eliminada, menos por divergências políticas irreconciliáveis, e mais porque ela é inoportuna. Calhou de ser a Copa, e num evento de tal magnitude econômica para algumas empresas, inclusive de comunicação, uma acusação de homicídio não basta. É preciso a desonra e um tanto de exceção. De todos os erros dos que caíram de amores pelo poder, que observo com grande pesar, esta lei anti-terrorismo é que revela com maior profundidade a inanição política em que se encontra o nosso país.
Os gastos perdulários da Copa FIFA exacerbam a luta de classes e mostram o lado mais sombrio da sociedade brasileira
Para atender a sanha por lucros da FIFA, governos aprofundam a segregação social e acirram propositalmente os ânimos

Não é de hoje que a Copa do Mundo da FIFA vem implicando na submissão de Estados nacionais a uma empresa privada, com requintes de remoções forçadas, greves de trabalhadores e forte repressão policial. Isto já acontecia antes, mas sem a cobertura da mídia virtual como acontece este ano no Brasil. Se tivéssemos tido um mínimo de acesso ao que aconteceu na África do Sul, é possível que já tivéssemos nos tocado que o que estamos vendo nas ruas das cidades-sede não é nada de novo, e apenas reflete o inconformismo das populações pobres com o tipo de gasto perdulário e socialmente segregador que este e outros megaeventos esportivos representam.
No Brasil, contudo, estamos tendo pitadas de puro cinismo que estão dando vazão a várias manifestações violentas não apenas contra os que protestam contra a Copa. A verdade é que essa violência também está sendo dirigida contra os que supostamente não se ajustam a essa visão de mundo endinheirado que os governos querem empurrar goela abaixo dos que não irão desfrutar do festival de gastos bilionários que a FIFA está impondo para tirar o máximo de lucro possível.
O que está emergindo disso tudo é o lado mais sombrio da sociedade brasileira, onde negros e pobres são estigmatizados como representante o mau mais perverso. Para isso prosperar a FIFA conta o beneplácito do (des)governo Dilma Rousseff, de (des) governos estaduais como o de Sérgio Cabral e com a imensa maioria da imprensa corporativa. Essa imprensa que absolve justiceiros e policiais violentas se ocupa à exaustão de rotular todos os que resistem como membros de uma organização que não existe (o tal dos Black Bloc) como se agir violentamente fosse apenas monopólio de justiceiros e policiais.
O objetivo das diversas partes é clara: a FIFA quer o máximo de lucro possível, os (des) governantes querem continuar no leme das políticas neoliberais que privatizam o Estado brasileiro, e a imprensa corporativa quer continuar podendo cobrar muito dinheiro para fazer propaganda do mesmo modelo de sociedade que gera uma das maiores desigualdades sociais do planeta (só na América Latina somos o quarto país socialmente mais desigual!).
E ai me desculpem os que se horrorizam com os que ousam reagir: isto pode só ser o primeiro capítulo de uma longa revolta. Afinal, só nos sonhos do neopetismo foi abolida a luta de classes no Brasil. É que graças ao neoliberalismo social-liberal do neoPT, esta está bem viva e cada vez mais acirrada.
A arapuca da Copa
Por Mauro Santayana

(Hoje em Dia) – Pudesse voltar atrás, e talvez o Presidente Lula não tivesse apresentado a candidatura do país à Copa do Mundo de 2014.
Os problemas que o Brasil tem enfrentado são tantos – e a resistência a tudo que cheire a Panem et Circenses tão grande, nos dias de hoje, que até a capital da Suécia, uma das nações mais ricas do mundo, acaba de recusar – com certeza alertada pelo que está ocorrendo em nosso país – o polêmico privilégio de sediar as Olimpíadas de Inverno de 2022, com a justificativa de economizar recursos públicos.
Com sua ingenuidade, lassidão e, as vezes, “salto alto” – pura arrogância e soberba, segundo seus inimigos – o PT não percebeu, em 2007, que, em política, toda vitória aparente pode ser usada contra o vitorioso, até prova em contrário. Que o mel que se oferece hoje ao povo, pode se transmutar rapidamente em fel quando não se presta atenção aos detalhes. E que – como no caminho da Chapeuzinho para a casa de sua avó – existem mais percalços que se possa imaginar entre o sonho e a realidade.
Considerando-se os recursos que envolvia, e sua importância estratégica para o governo e a Nação, a Copa deveria ter sido tratada – sem licitação ou terceirização – do planejamento à execução, como uma operação de Estado.
Se o governo tivesse constituído uma estatal binacional com a China, aproveitando a experiência de Pequim na organização das Olimpíadas, os estádios, por exemplo, estariam prontos em poucos meses e seu custo não seria de um centavo a mais que o previsto.
Na comunicação, a Copa continua sendo tratada como festa e não como um projeto nacional com investimento, retorno, criação de empregos e renda definida, e os altos e baixos na relação com a FIFA beiram o improviso.
Enquanto isso, cidadãos voltam às ruas, e com eles, episódios absurdos e constrangedores, como o protagonizado por soldados da PM contra um manifestante em São Paulo.
Os soldados envolvidos poderiam alegar que estavam sendo ameaçados, se estivessem correndo do rapaz – como foi o caso do coronel agredido por manifestantes em junho – e não o contrário.
Cercado por homens fardados, armados e perigosos, que o perseguiam, com a evidente intenção de agredi-lo, e – como se viu pelo vídeo – provavelmente, matá-lo, era o rapaz – mesmo que estivesse portando um estilete – que estava em situação de legítima defesa, e não os soldados.
Nunca é demais repetir, enganam-se aqueles que pensam que os protestos contra a Copa irão beneficiar, de alguma forma, a oposição.
Primeiro, porque nos estados que comanda e que sediarão jogos, a oposição – a exemplo do próprio governo – virou vidraça para as pedras – que não possuem rumo certo ou filiação partidária – da ala mais radical dos manifestantes,
E, também, porque a oposição não pode fingir apoiar os “anti-copa”, enquanto sua polícia persegue e acua, agride, ataca e atira em quem protesta contra o evento, como vimos em São Paulo.
FONTE: http://www.maurosantayana.com/2014/02/a-arapuca-da-copa.html






