Apesar de não ter a estatura intelectual, nem ambicionar ter, do filósofo italiano Umberto Eco (1932-2016), eu sou um seguidor ferreno de algo que ele praticava. Diz-se que Umberto Eco possuía uma biblioteca pessoal que supostamente continha mais de 50.000 livros. Mas o próprio Eco teria reconhecido que não iria ler todos os livros que possuía. A coisa é que Eco comparava a aquisição de livros a ter uma “farmácia” ou “caixa de ferramentas” em casa: a escolha é o que importa, não a leitura de tudo.
Pois bem, ao longo da presente semana eclodiram na mídia alternativa regional, matérias aludidno ao fato de que o Porto do Açu realizou negócios com um fundo denominado Trustee Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda (Trustee DTVM), com sede na famosa Faria Lima, citado no âmbito da operação Carbono Oculto.
Um fato que pode intrigar aos leigos é de como o Porto do Açu, alegadamente o maior porto privado da América do Sul, e que se localiza no Norte Fluminense, foi acabar fazendo negócios na Avenida Faria Lima (na cidade de São Paulo) com um fundo que agora está emaranhado em uma rumorosa investigação envolvendo fundos e fintechs com a lavagem de dinheiro oriundo das atividades ilegais do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Para começar a desenrolar este novelo, há que se lembrar o emaranhado financeiro que envolve a gestão do Porto do Açu, envolvendo um fundo de private equity, o EIG Global Partners; um fundo soberano, o Mubadala dos Emirados Árabes Unidos, e uma empresa pública belga, Port of Antwerp-Bruges. Com essa combinação, o que se tem é que o Porto do Açu é apenas uma peça dentro de uma intricada rede de investimentos e mobilização de capital transnacional.
Aí é que entra a minha biblioteca pessoal. Em 2020, comprei um livro que permaneceu guardado em uma das prateleiras da minha biblioteca e que agora me está sendo útil para entender esse imbróglio. Falo aqui do livro escrito pelo professor do IFF, Roberto Moraes Pessanha, o “A Indústria dos fundos financeiros: potência e mobilidade no capitalismo contemporâneo“, que foi publicado pela editora Consequência em 2019. Neste livro, Roberto Moraes destrincha a evolução dos chamados fundos de investimentos e explica a centralidade que eles têm atualmente na mobilidade de capitais, sempre mirando no aumento da lucratividade dos capitais. Consideor que, em particular, Moraes fez um trabalho excelente para estabelecer uma tipologia para caracterizar e hierarquizar os diferentes tipos de fundos que estão cada vez mais dominando a circulação de capitais. Quem ler o livro, vai entender, inclusive, como se dá a mistura entre os diversos tipos de fundos, incluindo os de “private equity” e os “soberanos”.
Mas mais importante do que um mero exercício acadêmico, já que o livro derivou da tese de doutoramento de Roberto Moraes, o que se pode depreender desta leitura é que a dinâmica capitalista ancorada no rentismo tornou praticamente impossível que se possa mapear com precisão a origem dos capitais que estão sendo empregados já que a fluidez é imensa, dificultando o mapeamento e identificação de quem está participando da ciranda.
Uma coisa é certa. Em uma conjuntura em que sistema financeiro age meticulosa e decididamente para evadir quaisquer formas de contole sobre a origem dos capitais envolvidos no rentismo, ninguém pode se pretender surpreso quando se descobre que na Avenida Faria Lima há uma combinação de investidores para lá de heterodoxa. Tão heterodoxa que cabe até o Primeiro Comando da Capital.
Alguns poderão dizer que para fazer um omelete (no caso um porto), há que se quebrar os ovos. Esse é um argumento que atinge várias coisas no Porto do Açu, incluindo a tomada de terras de agricultores pobres que depois são dadas como garantias fiduciárias em operações financeiras na Faria Lima. A questão é se avaliar se o custo local vale a pena.
Finalmente, buscando mais informações sobre o Porto de Antuérpia e seus controladores, dei de cara com uma matéria publicada em 2023 pela BBC que tinha o título de “O porto na Europa que virou ‘paraíso‘ dos narcotraficantes da América Latina. Na matéria é informado que o Porto do Antuérpia havia se transformado no maior ponto de entrada de drogas vindas da América Latina, representando 40% de todas as dogras ilegais apreendidas entrando na Europa. Uma curiosidade a mais é que no Porto de Antuérpia se concentraria a chamada “Rota das Frutas”, já que por sua capacidade de estocagem e refrigeração, haveria a chegada massiva de frutas vindas da América Latina, muitas delas contendo drogas. Eis que agora temos o Porto de Antuérpia envolvido, via o Porto do Açu, no imbróglio envolvendo os negócios do PCC na Faria Lima. Apenas uma mera coincidência ou momento de extremo azar? Claro que pode.



