Reinações kafkanianas: entre “O Processo” e “Metamorfose” balança a Uenf

Por Douglas Barreto da Mata

Faz uns dias, eu escrevi aqui nesse prestigioso espaço, um singelo texto sobre um estranho processo que se desenrola na Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf). Aliás, mais um. O texto, para quem se interessar, está aqui.  Eu não vou repetir a história, que em resumo trata de notícias de assédio no ambiente acadêmico, da instauração de procedimentos administrativos disciplinares, inquéritos policiais, da denúncia oferecida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), e a correspondente repercussão midiática do tema.

Porém, tudo isso não aconteceu para elucidar se houve ou não o assédio, mas para apurar a conduta da suposta noticiante, que sabemos agora nunca esteve sozinha, como se tentou fazer crer. Sobre o trabalho policial, como já disse, não me cabe comentário, por uma questão ética. Acerca da denúncia do MPRJ, muito menos, pois caberá ao devido processo legal a resolução da questão, pelo menos é o que esperamos, apesar desses tempos judiciais estranhos. 

Também vou me poupar de falar sobre o papel da imprensa, neste caso, de um veículo local específico, onde o pessoal da atual administração da Uenf, teve voz e acolhida. Empresas privadas de mídia fazem suas escolhas editoriais, e hoje em dia, isso importa cada vez menos.  Tem muita gente que jura que a internet piorou muito a comunicação social.  Não concordo. A internet só deu escala a um contexto que já existia.  A mídia empresarial, salvo raras exceções, já disseminava mentiras e assimetrias nas suas narrativas, vocalizando sempre o verbo comprado pelas verbas. As redes sociais só ampliaram, de forma exponencial, essa possibilidade. A mentira era analógica, hoje é algorítmica digital.  Porém, todas são empresas e têm esse direito, repito.

O problema é a instituição pública, a Universidade, o lugar da ciência.  Aqui a porca torce o rabo.  Eu nunca acreditei que o saber acadêmico, ou o ambiente científico conferissem uma imunidade “de caráter” às universidades ou a qualquer outra instituição.  Congresso, tribunais, polícias, governos, universidades, enfim, todos os ajuntamentos sociais e corporações possuem disputas políticas entre grupos, interesses mais ou menos legítimos, gestos altruístas, e outros nem tanto. Sendo fiel ao Velho, são instituições de classes em uma sociedade de classes.  No entanto, é impossível não olhar para uma universidade e imaginar um tipo de autoridade moral, um apego a certos protocolos, ou seja, um tipo de postura exemplar, mesmo diante de crises. 

Novamente, eu não vou dizer aqui que a professora  Luciane Soares está certa, ou seus antagonistas estão certos, no todo ou em parte. Nada disso. O que preocupa são os sinais estranhos de que há um “consenso perfeito demais” em um dos lados, e do outro, “muitos defeitos”, e isso é mais grave em um lugar onde se cultiva a dúvida e o pensamento anti hegemônico.  Mais estranho é perceber que esse é um sintoma muito comum em casos dessa natureza, e não digo que seja esse o caso, mas a minha curta experiência me ensinou isso: 

Nos casos contra a dignidade sexual, a primeira linha de defesa é atacar as vítimas.  Vejam bem, o princípio constitucional ensina que ao acusado ou suspeito é facultado o silêncio ou até mesmo mentir em sua defesa.  Eu raramente vi um assediador confessar, e como já foi dito, esse é um direito daquele que é acusado de algo.  Não é esse o tema principal.

O que me assombra são o tamanho do barulho feito na defesa, a “munição” empregada, o  “aparelhamento” de canais institucionais, que funcionam como equipamentos de acusação severa contra a noticiante do assédio, enquanto ao acusado pouco ou nada se fez.  Ainda que ao acusado seja permitida a ampla defesa, ela, no seu exercício, não pode ferir a esfera jurídica da defesa do outro. Um exemplo? O caso da Vaza Jato, onde as violações de sigilos por um hacker permitiram ao presidente Lula alterar o rumo de suas teses defensivas. Correto, tudo certo, mas havia um limite.  Os integrantes da Lava Jato que foram flagrados em sua intimidade tramando contra o réu, de forma criminosa, não poderiam ser acusados por tais crimes. 

Então, mesmo que ao investigado, suspeito ou acusado seja dado o amplo direito de defesa, deve haver limites, e o limite é, em última instância, a Lei.  Nesse diapasão, foi “interessante” a divulgação dos procedimentos administrativos disciplinares durante seu andamento, o que é vedado. Mesmo depois do resultado, quando há possibilidade de publicidade, poderá o poder judiciário manter o sigilo, dada a circunstância ou natureza da infração ou dos envolvidos.  Também é excepcional que tenha sido aberto novo procedimento disciplinar contra a suposta noticiante do assédio, professora Luciane Soares, quando o primeiro carrega um desfecho pelo arquivamento sem punição.  Tudo isso com um procedimento criminal em curso, que manda a boa prudência, deve provocar um sobrestamento na esfera administrativa. 

Imaginamos uma (improvável) reviravolta, e se confirma que houve o assédio, e não houve calúnia, injúria ou difamação, e aí o que fazer?  Como reverter a punição administrativa e seus efeitos “morais”?  Olhando isso tudo, não tenho como não lembrar de Gregor Samsa. Longe de mim posar de intelectual ou um especialista neste ou naquele autor.  Mas Franz Kafka é intrigante.  Gosto dele, desse tipo de realismo fantástico, essa coisa da naturalização do absurdo. No primeiro texto, fiz alusão a “O Processo”, pela loucura institucional instalada, essa coisa meio absurda de tratar partes em conflito de acordo com uma visão previamente estabelecida, e não com o compromisso (mesmo que formal) de encontrar uma verdade. Franz Kafka não ignorava que essa distorção fosse um tipo realidade possível, tão possível quanto indesejável. 

Mas eu ouso dizer que a escrita dele se destina ao não conformismo com essa banalização, com essa metamorfose quase que inevitável das pessoas e das instituições.  Assim, “O Processo” e “Metamorfose”, embora pareçam tratar de instituições, e indivíduos, separadamente, tratam do mesmo tema:  o nosso processo de desumanização e a desumanização do processo.

Kafka, é você?

O Processo: crimes sem castigo, castigos sem crime

Por Douglas Barreto da Mata

Interessante a solidariedade corporativa de alguns segmentos da comunidade universitária da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), que há muito tempo reverbera um péssimo ambiente interno, reflexo direto de representações subjugadas ao poder estadual, no que antes chamávamos de “aparelhamento”. A desculpa (esfarrapada) é a de sempre: quem dá o pão, dá o castigo, ou seja, a universidade se agacha e dobra sua coluna institucional, perdendo o rumo e a autoestima.

A relevância acadêmica vem logo em seguida, salvo heróicas exceções, em desabalada carreira e ladeira abaixo.  Não conheço a Professora Luciane Soares, e ideologicamente tenho muitas reservas aos seus textos, e já expus essas oposições aqui mesmo, no Blog do Pedlowski. É importante fazer essa ressalva, para que também não seja acusado de “cumplicidade” com a professora. Não que isso me tire o sono, mas é bom colocar as coisas em seus lugares. 

Ao mesmo tempo, por força de ofício, não comento, nem questiono o trabalho de colegas policiais.  Porém, é preciso colocar os pingos não só nos “is”, mas também nos “jotas”.  Intelectuais e acadêmicos não precisam entender tudo de leis ou processo penal, concordo.  No entanto, para um texto tão bem temperado em ódio e ressentimento, assado em fogo da crueldade, lento e prolongado, cabem alguns reparos:  ação processual penal em curso não é sentença, portanto, o cuidado indica não se falar em crime, sob pena de incorrer na mesma conduta que procura imputar à professora.

Ainda que aceita a denúncia feita pelo Ministério Público, ou foi um erro de afobamento, ou já sabem qual será a sentença, e eu não acredito nessa última hipótese, porque ainda confio, nem sei bem o motivo, na Justiça.  Levando como certa a hipótese do afobamento, que levou junto o veículo que divulgou o artigo, que mais parece um Auto de Fé, o fato é que me chamou a atenção a cronologia perfeita, a narrativa escorreita, o encaixe dos fatos, as motivações presumidas com coerência, enfim, tudo muito certo, muito exato, e como minha experiência policial ensina, talvez, tudo muito causa e efeito demais.  Ninguém pode afirmar, até o fim do processo, se tudo se deu do jeito que foi contado.  É de conhecimento geral a personalidade da  professora envolvida, e talvez até alguns dos predicados ruins atribuídos a ela estejam certos. 

Seria então o “crime perfeito”? Explico.  Na literatura policial, não é incomum que pessoas controversas sejam desacreditadas, não porque é inexistente aquilo que dizem ter acontecido, mas porque são eventos de difícil comprovação (daí porque os juízes, leia-se  Superior  Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) firmaram entendimento de que a palavra da vítima vale muito nesses casos e, geralmente, as noticiantes, por serem consideradas confusas ou instáveis, não são levadas a sério.

Não sei se esse seria o caso, ou O Processo (Kafka, é você?).  Uma coisa é certa, se houve alguns dos episódios cuja denúncia em parede é atribuída à professora Luciane, duvido muito que qualquer das pessoas que ela supostamente teria tentado ajudar tenha coragem de se apresentar agora, dada a reação (inteligente, por sinal) dos envolvidos e seus advogados.  Assim, usando a dica para a piada (trágica), talvez tenhamos crimes sem castigos de um lado, e castigos demais para crime algum, de outro.

PS: Normalmente, as sanções administrativas em processos disciplinares aguardam o resultado dos processos criminais, no que chamamos de sobrestamento. Parabéns à reitoria da Uenf pela rapidez em resolver algo que a Justiça ainda não deu conta (talvez um ensaio de Corregedoria, padrão SNI, Mossad, Stasi, quem sabe?).

Livraria Leonardo da Vinci manda livro de Kafka para Weintraub cortado em 25%

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O ainda ministro da Educação e Cultura, Abraham Weintraub, recentemente confundiu o escritor tcheco Franz Kafka com o prato árabe Kafta.  Eis que após as manifestações de ontem contra os cortes promovidos por ele no orçamento da educação pública, Weintraub acaba de ganhar um presente muito simpático dos livreiros da Livraria da Vinci: uma cópia da obra “A Metamorfose”. 

Um singelo detalhe nesse presente entrega a verdadeira intenção do pessoal da livraria da Vinci: a cópia em questão foi cortada em 25%. 

Veja abaixo a carta encaminhada a cópia serrada e a carta que a encaminhou a Abraham Weintraub.

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Os ministros de Bolsonaro e o (auto) elogio à ignorância

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Abraham Weintraub: entre Franz Kafka e a Kafta, o elogio à própria ignorância do ministro da Educação do governo Bolsonaro

As trapalhadas de diversos ministros do governo Bolsonaro não escondem ou, tampouco, mudam o perfil autoritário dos mesmos, apenas o reforça. Entretanto, mesmo para os padrões brasileiros que não são assim tão altos quando se trata de definir quem pode ser ministro, convenhamos que a atual safra é de uma qualidade intelectual sofrível.

Entre a apologia aos venenos agrícolas de Tereza Cristina ao Jesus na goiabeira de Damares Alves, já tivemos que ouvir Vélez-Rodriguez dizendo que todos os brasileiros são canibais, sem falar no “conge” de Sérgio Moro.

Mas, convenhamos, que dentre tantas provas de incapacidade de relacionar sua própria capacidade à realidade, destacam-se Abraham Weintraub e Ricardo Salles. O primeiro, com um currículo acadêmico que não o habilitaria em condições normais a ser docente de uma universidade federal, e o segundo com sua capacidade explícita de entender qual ministério dirige (apesar de estar no Meio Ambiente, acha que está na Agricultura).

Ainda que Weintraub e Salles nos rendam momentos hilários como a confusão feita ontem em audiência no Senado por Weintraub entre o escritor theco Franz Kafka e o prato árabe Kafta, a verdade é que esses dois ministros (ministros?) são personagens que possuem em comum a dificuldade de se autoavaliar, sempre se apresentando como muito mais importantes do que jamais conseguirão ser.

autoelogio

O problema é que estando à frente de pastas estratégicas como a da Educação e do Meio Ambiente, Weintraub e Salles possuem a capacidade ímpar de causar danos que requisitarão décadas para ser corrigidos em um momento no qual há muito pouco espaço para o erro.  Por isso, mesmo que esses dois personagens sejam matéria prima de primeira qualidade para a sátira política, o fato é que precisam ser levados muito a sério, particularmente por aqueles que entendem a gravidade das consequências que o desmanche que estão realizando seja levado a cabo em sua plenitude.

E que ninguém se engane: o auto elogio à ignorância é apenas reflexo de problemas bem mais graves no tocante à capacidade de conviver com o diferente e entender do que se realmente trata experimentar a vida em sua sociedade democrática. Bom, pelo menos essa lição podemos tirar da passagem, ao mesmo tempo, de tantas figuras nada pitorescas por postos de comando no Brasil.

Por fim, há que se refletir sobre a razão da escolha de personagens tão explicitamente ignorantes para a direção de pastas fundamentais para a formulação de políticas que ajudem a tirar o Brasil do buraco em que está. Para mim a razão é bem simples: quem de fato dirige esse governo (e não falo aqui do  presidente Jair Bolsonaro) não quer tirar o Brasil das profundezas em que está. Aliás, muito pelo contrário, quando mais fundo estivermos, melhor será para eles. E, por isso, essa hegemonia de ignorantes em postos chaves. Simples mas, mesmo assim, trágico.