Com 48 assassinatos em menos de 20 anos, povo Guajajara resiste às invasões aos territórios tradicionais

Entre 2006 e 2019, 44 casos de invasão foram registrados em terras indígenas onde ocorreram assassinatos de indígenas do povo Guajajara
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O Guardião da Floresta Paulino Guajajara, assassinato por madeireiros em novembro na Terra Indígena Arariboia. Crédito da foto: Patrick Raynaud/Mídia índia

Por Renato Santana e Tiago Miotto da Assessoria de Comunicação do CIMI

Edward Said escreveu sobre o destino dos palestinos como, de algum modo, o de não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e remoto. Se o Oriente Médio parece uma fronteira distante, a realidade a aproxima das terras tradicionais no Brasil em busca de infligir ao destino dos povos indígenas a mesma sina dos palestinos. Não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e remoto.

Como em um pesadelo saído de um conto de Julio Cortázar, onde a casa vai sendo invadida cômodo a cômodo, confinando seus moradores ao diminuto espaço da despensa escura e apagada, os palestinos veem o governo de Israel se apossando de seus territórios, descumprindo acordos internacionais. Os Guajajara, autodenominados Tenetehar, ano após ano, veem os incêndios de origem criminosa, os madeireiros e os grileiros ocupando as terras demarcadas com o incentivo e a autorização do presidente da República, aliado do governo de Israel.

Se dezenas de palestinos entregam as vidas em defesa de seu chão, os Guajajara seguem também marcados por tal sina. O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), registrou, nos anos 2000, pelo menos 48 casos de assassinatos de indígenas do povo Guajajara – 47 deles no Maranhão e um no Pará. O ano de 2019 já é o quarto a registrar mais assassinatos de Guajajara no período, com seis casos identificados até o dia 19 de dezembro, entre eles o de Erisvan Guajajara, de 15 anos, morto na cidade de Amarante. Nos últimos vinte anos, os maiores números de assassinatos Guajajara foram registrados nos anos de 2007 e 2016, com dez casos cada, e de 2012, com sete casos.

Segundo os dados, o território mais afetado pela violência contra os indígenas é a Terra Indígena (TI) Arariboia, que registrou 18 assassinatos de indígenas do povo Guajajara – mais de um terço do total. A terra é compartilhada pelos Guajajara com os Awá-Guajá livres, em situação de isolamento voluntário. Além destes casos, foram também registrados outros seis homicídios ocorridos nos municípios de Grajaú e Arame, aos quais esta terra indígena se sobrepõe – o que significa que o número de casos na TI Arariboia e seu entorno chega a 24, ou metade do total.

Mais detalhes sobre os assassinatos de indígenas do povo Guajajara podem ser acessados na plataforma Caci – Cartografia de Ataques Contra Indígenas, atualizada com os casos já registrados em 2019.

O ano de 2019 já é o quarto a registrar mais assassinatos de Guajajara, com seis casos identificados até o dia 19 de dezembro, entre eles o de Erisvan Guajajara, de 15 anos, morto na cidade de Amarante

caciA plataforma Caci reúne os registros dos 48 assassinatos sofrido pelos Guajajara nos últimos 20 anos. Crédito: reprodução

Guardiões da floresta e emboscada

Nos últimos anos, a TI Arariboia tem sofrido com a forte investida de madeireiros, e também de fazendeiros – no início de 2019, indígenas denunciaram a invasão e o loteamento de partes da terra indígena. Sem a fiscalização necessária, dificultada ainda mais pelos cortes orçamentários da Fundação Nacional do Índio (Funai), os indígenas vêm organizando grupos de Guardiões da Floresta para fiscalizar o território e repelir os invasores. No contexto de proteção territorial que os guardiões Paulino Guajajara e Laércio Souza Silva sofreram uma emboscada no início de novembro, quando partiram da aldeia Lagoa Comprida, norte da Terra Indígena, a 100 km do município de Amarante, para caçar. Já na mata, foram surpreendidos por cinco madeireiros armados.

Os homens, com as armas em punho, exigiram que Paulino e Laércio entregassem arcos e flechas, instrumentos tradicionais usados para caçar. Como Guardiões da Floresta, portanto conhecidos destes habituais invasores da TI Arariboia, os Guajajara não tiveram muita chance de defesa. Sem esperar qualquer reação, os madeireiros, em maior número, começaram a atirar contra os indígenas. Um dos disparos fatais atingiu Paulino no rosto. Laércio foi alvejado no braço e nas costas, conseguindo escapar pela mata para pedir socorro.

A prima de Paulino, a liderança indígena Sônia Guajajara, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), declarou à imprensa que “o racismo mata, e foi esse racismo que matou meu parente Paulo Paulino Guajajara, no Estado do Maranhão (…) Convidamos a todas e todos para lutarmos juntos contra esse genocídio programado”. A indígena estava percorrendo países europeus no dia do ataque. “Nossa agenda é de denúncia ao que vem ocorrendo contra os povos indígenas no Brasil. Liguei pros meus parentes e confirmei. Foi uma dor, mas aproveitamos para levar a notícia ao mundo”, disse.

De 2006 para cá, a TI Arariboia detém o segundo maior número de registros de invasão no estado do Maranhão, com 20 casos identificados no banco de violências do Cimi. As terras em que houve registro de assassinato de indígenas Guajajara neste período tiveram 44 casos de invasão possessória. Quase metade destes casos – um total de 20 – ocorreram nos últimos cinco anos. Foi nesse contexto que, em 2016, ocorreu uma sequência de quatro assassinatos de lideranças da TI Arariboia em apenas um mês.

Dos 130 casos de invasão registrados no Maranhão entre 2006 e 2019, 44 ocorreram em terras onde foram registrados assassinatos de indígenas Guajajara

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Terras indígenas Cana Brava e Bacurizinho: juntas, 15 assassinatos

Além da Arariboia, destacam-se nos casos de assassinatos de indígenas do povo Guajajara as TIs Caru, com 13 assassinatos, Cana Brava/Guajajara, que registrou oito homicídios, e Bacurizinho, que teve sete casos. Homicídios de indígenas do povo Guajajara também foram identificadas nas TIs Morro Branco (1) e Rio Pindaré (1). O recente assassinato de dois caciques da TI Cana Brava ilustra um modo muito comum de se eliminar lideranças Guajajara neste período de levantamento realizado pelo relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil.

Quando voltavam de uma reunião na aldeia Coquinho​, onde se encontraram com diretores da Eletronorte Energia, um grupo de indígenas do povo Guajajara foi atacado a tiros num sábado, 7 de dezembro, enquanto percorria em motocicletas um trecho da rodovia BR-226 próximo à aldeia El Betel, na TI Cana Brava, município de Jenipapo dos Vieiras. Firmino Prexede Guajajara, de 45 anos, da aldeia Silvino, TI Cana Brava, e Raimundo Benício Guajajara, de 38 anos, da aldeia Decente, TI Lagoa Comprida, morreram em razão dos disparos. Dois indígenas ficaram feridos. Na reunião, participaram 60 caciques e lideranças Guajajara.

O coordenador da Funai no Maranhão, Guaraci Mendes, declarou à Agência Amazônia Real que “apenas as principais lideranças Guajajara estavam reunidas para tratar dos recursos da compensação com a Eletronorte. Era toda a cúpula, caciques e lideranças, da Terra Indígena Cana Brava. Parece que foi ação planejada”.

Desde outubro de 2018, após o segundo turno das eleições presidenciais, as organizações indígenas e indigenistas denunciam o aumento da violência, invasões, emboscadas, atentados e ameaças. “Parece que se sentem autorizados, é como se dissessem: agora podemos barbarizar com os indígenas, chegamos ao poder”, declarou Dinamã Tuxá, da coordenação da Apib, durante o Acampamento Terra Livre (ATL) 2019.

Em 19 de dezembro, o governo federal havia liquidado apenas 59,7% dos 37 milhões de reais destinados neste ano à demarcação e fiscalização de terras indígenas

manifIndígenas do Pará e do Amapá protestam, em Brasília, contra a violência e os assassinatos de lideranças. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Pouca demarcação, muita violência

De 2006 para cá, incluindo dados preliminares de 2019, as terras indígenas localizadas no Maranhão registraram 130 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. Mais da metade destes casos – 72, no total – foram registrados nos últimos cinco anos. Embora a diferença possa assinalar uma possível subnotificação de casos no período, é mais um indicativo do avanço das pressões sobre os territórios indígenas no estado.

Mais de um terço destes casos – 44, no total – ocorreram em terras nas quais foram registrados assassinatos de indígenas do povo Guajajara. A TI Arariboia é a segunda com o maior número de registros de invasão no Maranhão de 2006 para cá, com 20 casos identificados no banco de violências do Cimi. A intensificação dos ataques e invasões, denunciada por diversos povos ao longo do primeiro ano do governo Bolsonaro, é agravada pela baixa execução do orçamento destinado à fiscalização das terras indígenas no Brasil.

Segundo dados do Siop, em 19 de dezembro o governo Bolsonaro havia liquidado apenas 59,7% dos 37 milhões de reais destinados neste ano à regularização, demarcação e fiscalização de terras indígenas e proteção dos povos indígenas isolados. A situação é ainda mais grave se levarmos em conta que, nos últimos cinco anos, o mesmo período que concentra a maior parte dos casos de invasão e violência, o orçamento destinado a esse conjunto de ações caiu quase pela metade.

“Estamos diante de um ataque programado, organizado, com a intenção de expulsar os povos indígenas de seus territórios. O aval tem sido periodicamente dado pelo presidente da República. O extermínio dos povos indígenas se tornou uma política de governo”, aponta Gilderlan Rodrigues, coordenador do Cimi Regional Maranhão. “Não é apenas um cenário de guerra, estamos num campo de batalha onde o ódio disseminado pelas forças políticas conservadoras, autoritárias, racistas são estimuladas pelo fascismo que já extrapolou todos os seus limites”, completa Sônia Guajajara.

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Este artigo foi originalmente publicado na página oficial do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) [Aqui!].

Ricardo Salles se recusa a participar de minuto de silêncio em prol de líderes indígenas mortos na Amazônia

ricardosalles-cop25Momento exato em que Ricardo Salles se recusa a participar de minuto de silêncio durante a COP25 em prol dos líderes indígenas assassinados na Amazônia

O ministro (ou seria anti-ministro?) do Meio Ambiente do governo Bolsonaro, Ricardo Salles, já passou várias vergonhas desde que saiu do Brasil para supostamente representar os interesses do Brasil na chamada COP25 que se realiza em Madri entre os dias    deste mês.

Entre os “feitos” amealhados por Ricardo Salles estão um desmentindo formal do governo da Alemanha em torno do que teria sido proposto sobre o Fundo Amazônia e um flagrante da ida à loja oficial do Real Madrid para compras em, digamos, horário de trabalho.

Mas agora está circulando o vídeo abaixo que mostra o momento em que Ricardo Salles se recusa a participar de um minuto de silêncio em prol dos dois caciques Guajajara que foram assassinados recentemente na Amazônia. 

Como essas imagens já se tornaram públicas para os conferencistas da COP25 a partir da publicação de matérias  jornalísticas sobre esta recusa de Salles,  o filme do Brasil que já estava queimada, agora não passar de cinzas. É que apesar de todas as diferenças políticas e interesses econômicos conflitantes, a boa etiqueta diplomática manda que, pelo menos, os representantes dos diferentes governos saibam manter um mínimo de compostura.  

O problema é que Ricardo Salles não consegue nem disfarçar a sua posição de facilitador do processo de desmanche da governança ambiental que mantinha a trancos e barrancos a situação sob um mínimo de controle na Amazônia brasileira.

 

Nota do Cimi sobre assassinatos de indígenas Guajajara, no Maranhão, e Tuiuca, no Amazonas

Tais crimes têm acontecido na esteira de discursos racistas e ações ditadas pelo governo federal, como o incentivo a invasões às terras indígenas

cimi logo

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vem a público para denunciar e repudiar mais um atentado com vítimas fatais contra o povo Guajajara, no estado do Maranhão, e contra um indígena Tuiuca, no Amazonas.

Neste sábado (7) um grupo de lideranças indígenas Guajajara retornava de uma reunião com a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Eletronorte quando foram atacados e atingidos por vários disparos de arma de fogo na BR 226, no município de Jenipapo dos Vieiras (MA).

Os dois indígenas assassinados são os caciques Firmino Praxede Guajajara, da Terra Indígena Cana Brava e Raimundo Belnício Guajajara, da Terra Indígena Lagoa Comprida; outros dois indígenas encontram-se gravemente feridos. Os disparos foram praticados por criminosos que estavam em um veículo Celta branco.

Lembramos que em 1º de novembro, a liderança Paulo Paulino Guajajara foi assassinada dentro da Terra Indígena Araribóia, também no Maranhão, atacado por invasores durante emboscada onde Laércio Souza Silva Guajajara acabou alvejado no braço e nas costas, mas felizmente sobreviveu. Até esta data o crime não foi solucionado e os criminosos seguem não identificados e presos.

Neste contexto, ressaltamos ainda que na última segunda feira, dia 2, foi vítima de espancamento e violência extrema o indígena Humberto Peixoto, do povo Tuiuca, do Amazonas, que trabalhava na Cáritas Arquidiocesana. O indígena veio a óbito também neste sábado (7).

Tais crimes, contanto ainda com atentados, ameaças, tortura e agressões ocorridas por todo país contra essas populações, têm acontecido na esteira de discursos racistas e ações ditadas pelo governo federal contra os direitos indígenas. O presidente Jair Bolsonaro tem dito e repetido, em vários espaços de repercussão nacional e internacional, que nenhum milímetro de terra indígena será demarcado em seu governo, que os povos indígenas teriam muita terra e que atrapalham o ”progresso” no Brasil.

Bolsonaro repetiu este discurso na abertura dos trabalhos das Nações Unidas em setembro deste ano, quando várias terras indígenas ardiam em fogo, principalmente na região Amazônica. Também no mês de setembro o ministro das Minas e Energia disse que estava preparando um Projeto de Lei para ser enviado ao Congresso com o objetivo de regulamentar a exploração de minérios e outras atividades da agropecuária nos territórios indígenas.

Protesto-Guajajara-DivulgaçãoApós o ataque, em protesto, indígenas Guajajara fecharam a BR-226. Crédito da foto: Divulgação

Os direitos dos povos indígenas têm sido negociados e entregues à bancada ruralista, que já tem o controle das ações da Funai em Brasília e nas regiões. Nestes últimos dias, o atual presidente da Funai, Marcelo Xavier, determinou que todos os servidores sejam obrigados a solicitar sua autorização para prestar assistência às comunidades indígenas, além de proibir o deslocamento de servidores a terras indígenas não homologadas e registradas.

Seguindo com o projeto de isolar as aldeias das políticas públicas estatais e de desvirtuar a Funai da missão de proteger e promover os direitos dos povos indígenas, Xavier manifestou desinteresse do órgão indigenista em ações judiciais que discutem demarcações de terras indígenas e substituiu antropólogos de larga experiência técnica em Grupos de Trabalho criados para proceder estudos de identificação e delimitação de terras indígenas por ‘pessoas de confiança’, sem competência para o trabalho.

O Ministério da Justiça, ao qual a Funai é subordinada, está omisso e o ministro Sérgio Moro se nega a receber os representantes indígenas que têm solicitado audiências para resolver pendências territoriais.

A ação propositada do governo federal de instrumentalização da política indigenista, em favor dos interesses econômicos dos ruralistas, mineradores e madeireiros, é grave e irresponsável, atenta contra a Constituição Federal e contra todos os acordos e convenções internacionais de proteção dos povos originários, dos direitos humanos e do meio ambiente.

O atentado contra lideranças indígenas Guajajara, neste sábado, é de responsabilidade das autoridades do governo federal, que têm negado os direitos indígenas, incitado o preconceito e o ódio na população e acobertado a invasão dos territórios e a violência física contra os povos.

Vimos, portanto, conclamar às autoridades a se submeterem à Constituição Federal de 1988, que concebe os povos indígenas como cidadãos brasileiros com seus direitos garantidos. Exigimos imediata e isenta apuração dessa onda de crimes contra os povos, que os criminosos sejam identificados e penalizados nos termos da legislação brasileira.  Que as autoridades não deixem mais esse crime contra as lideranças indígenas ficar na impunidade como sempre tem acontecido.

O Cimi se solidariza com os familiares das lideranças assassinadas e feridas, com os povos Guajajara e Tuiuca e com todos os povos indígenas do Brasil nesse momento de profunda dor e indignação.

Brasília, 7 de dezembro de 2019

Conselho Indigenista Missionário (Cimi)