Pesquisa mostra tendências processuais seletivas, que pesam em decisões e barram reparação na Justiça comum e do Trabalho. Há até aquelas que consideram as pessoas culpadas por terem “baixa tolerância” aos agrotóxicos
Pulverização próxima a moradias no Mato Grosso. Foto: Arquivo Brasileducom
Por Cida de Oliveira*
Resultados preliminares de uma pesquisa em andamento na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) indicam que os tribunais impõem dificuldades para que as pessoas expostas às pulverizações de agrotóxicos obtenham reparação. E a outra parte, diretamente envolvida na prática agrícola com potencial de causar impactos à saúde humana e ao meio ambiente, geralmente acaba levando a melhor.
Para se ter uma ideia, em um conjunto de 27 acórdãos (resultados de julgamento) proferidos em tribunais regionais do Trabalho de segunda instância em todo o país, 10 processos contém o chamado rigor ou viés processual, com seletividade da prova (35% do total). Ou seja, foi alegada uma suposta insuficiência de provas, que normalmente o trabalhador tem dificuldade de juntar.
“Em alguns casos colocam em dúvida filmes e fotos apresentados. É um contexto de dificuldades para o trabalhador comprovar o nexo causal em seus pedidos individuais. Em geral, o desafio é comprovar que os problemas de saúde foram causados pela exposição aos agrotóxicos. Uma das principais estratégias de defesa da indústria é justamente colocar em xeque o nexo causal, atribuindo outras causas às eventuais doenças”, disse o procurador do Trabalho Leomar Daroncho, que pesquisa o tema na Fiocruz de Brasília, onde faz mestrado em políticas públicas em saúde. Integrante do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, ele participou de debate no final da tarde desta quinta (13), na Casa Sustentabilidade Brasil. O espaço de discussão de iniciativas voltadas à ciência, inovação e ação climática foi instalado em Belém para atividades durante a COP30. Embora poucos se deem conta, os agrotóxicos estão entre as causas das mudanças climáticas principalmente devido ao seu processo produtivo, conforme este Blog já havia informado.
Como resumido no quadro a seguir, Daroncho identificou também quatro casos nos quais pesou contra as vítimas a alegada falta de frequência nas pulverizações de agrotóxicos. “Relativiza-se, então, o dano sofrido, alegando que não era algo tão frequente assim. Em três processos, o trabalhador foi responsabilizado por ter uma resistência muito baixa aos produtos, que não resistiria aos agrotóxicos. Ou seja, o problema seria do trabalhador, e não do agrotóxico”, disse.
Justiça comum
O levantamento encontrou ainda 9 acórdãos sobre o tema na justiça comum (Tribunal Regional Federal). Neles, as decisões foram motivadas por referências que desprotegem as vítimas, conforme mais adiante. É o caso da exigência de que o avião usado na pulverização deveria ter sobrevoado estritamente a propriedade afetada. E que não fosse ocasional nem intermitente. O magistrado não levou em conta a deriva, quando o vento leva partículas dos agrotóxicos para até 40 quilômetros do ponto de aplicação.
Mas não é só. “Tem outro que invoca a parcimônia no princípio da precaução, para não inviabilizar a atividade econômica. Um clássico do senso comum”, disse. “Ou seja, nós não podemos exigir demais porque não podemos inviabilizar a atividade econômica”. Ou seja, em nome do lucro de uns, a doença e morte de outros.
Isonomia do mal
“Chega a ser tragicamente engraçado o caso de uma propriedade vizinha de onde se fazia a pulverização aérea. O pedido foi negado com o argumento de que, como outros também pulverizavam, o réu seria prejudicado em relação aos demais proprietários, que poderiam continuar pulverizando. Então é a isonomia do mal. Já que um faz errado, por que o outro não pode fazer? Embora seja um acordão só, cheio de referências à relevância da vida, do meio ambiente, ainda nega a liminar com argumento bastante problemático”, criticou.
Segundo o procurador, a pesquisa não detectou nessas decisões de segundo grau o princípio da vedação ao retrocesso socioambiental-sanitário. “De forma compreensível ele normalmente é invocado para fazer frente a inovações normativas, para se evitar que se legisle ou se normatize de forma a retroceder àquela norma existente anteriormente. É mais provável encontrar esses princípios em decisões do STF”, disse. Tal princípio é um conceito jurídico que impede o Poder Público (Legislativo, Executivo e Judiciário) de abolir ou reduzir, de forma injustificada, o nível de proteção e concretização de direitos fundamentais já alcançados. Entre eles o direito à vida e ao meio ambiente equilibrado.
Mesmo assim, a avaliação é que os acórdãos selecionados pela pesquisa demonstram que há decisões em harmonia com o entendimento precaucionista do Supremo Tribunal Federal (STF). E que dessa maneira assumem a relevância dos princípios do direito ambiental, da prevenção e da precaução, como instrumentos de vigilância sanitária e proteção do direito à saúde no tema da pulverização de agrotóxicos. “Tanto é que o reconhecimento de risco, danos ou sequelas decorrentes da exposição às pulverizações está em mais de um terço das referências protetivas que motivaram a decisão em 27 acórdãos dos tribunais regionais do Trabalho”.
Tais conclusões foram permitidas pela análise do conteúdo de acórdãos que discutem a pulverização a partir da perspectiva precaucionista. E não aqueles que discutem exclusivamente o pecuniário, como disputa por adicional de insalubridade ou questões previdenciárias, que ocorrem com frequência na Justiça Federal. “Pesquisamos aqueles com busca do direito à saúde, de não ser exposto às pulverizações. E não a ressarcimento pecuniário, que no caso de adicional de insalubridade é muito baixo, e cuja base de cálculo faz com que o valor seja quase irrisório”, explicou Daroncho.
Ainda no debate, ele destacou que a dificuldade dos trabalhadores na Justiça é fortalecida também pelo afrouxamento do regime jurídico. A Lei nº 14.785 / 2023, mais conhecida como Pacote do Veneno, concentrou na Agricultura a decisão sobre agrotóxicos. A Saúde, por meio da Anvisa, e o Meio Ambiente, por meio do Ibama, que tinham voz quanto aos pedidos das indústrias, passaram a ter função secundária, “podendo vir a ser consultados”. Além disso, o critério do perigo, que vedava a análise de produtos causadores de câncer, aborto, malformação e desregulação hormonal, foi substituído pelo impreciso conceito de “risco inaceitável”. “Qual seria o percentual aceitável para malformação em crianças? Ou para o câncer?”, questionou o procurador.
Além disso, medidas protetivas aos trabalhadores também foram flexibilizadas com a adoção da Nova Norma Regulamentadora 31. E com a Lei nº 14.515 / 2022, do autocontrole dos agentes privados da defesa agropecuária.
Desigualdade jurídica
Enquanto as vítimas da exposição às pulverizações têm dificuldades na Justiça brasileira, a gigante do setor de agrotóxicos Bayer é alvo de 160 mil ações sobre o glifosato só nos Estados Unidos. No Brasil são apenas seis, segundo a organização Repórter Brasil. Por lá, a empresa de origem alemã, que comprou a Monsanto, já pagou US$ 11 bi, equivalente a R$ 59 bilhões, para colocar fim a cerca de 100 mil processos. Outras 61 mil ações aguardam julgamento.
A exposição às pulverizações no Brasil, que é o maior mercado consumidor mundial de agrotóxicos, é uma questão grave. Isso porque está associada ao desenvolvimento de diversas doenças, como câncer, linfomas, leucemia, hipotireoidismo, Parkinson e depressão, especialmente entre trabalhadores. E também à infertilidade, impotência, abortos, malformações congênitas, neurotoxicidade, neuropatia, desregulação hormonal e outros transtornos mentais. Não por acaso o Ministério da Saúde baixou portaria em novembro de 2024, atualizando a lista de doenças relacionadas ao trabalho para incluir males dos venenos agrícolas.
Para Leomar Daroncho, as pulverizações confrontam a defesa da Agenda 2030 da ONU, que remete à ideia da Terra como casa comum. “Isso está muito presente em agrotóxicos e muito mais em pulverização aérea, que não respeita limite, não respeita limite geográfico, administrativo. Tem casos inclusive passando de um país para outro, que virou contencioso internacional”, ressaltou. Em 2008, o Equador apresentou petição à Corte Internacional de Justiça contra as pulverizações da Colômbia em locais próximos à fronteira entre ambos os países. A queixa, motivada por sérios danos à saúde das pessoas, às plantações, animais e ao meio ambiente no lado equatoriano, foi retirada em 2013, após um acordo entre ambos fora do tribunal.
Embora o STF tenha declarado a constitucionalidade da lei estadual que proibiu a pulverização no Ceará, em maio de 2023, há ainda espaço para o aprimoramento dos processos decisórios, na busca por maior sintonia com o entendimento precaucionista do Supremo. Isso porque “reverencia e dá concretude aos princípios do direito ambiental”. “Essa evolução haverá por que o STF tem decido com firmeza nesse sentido. E o nosso papel, nós que atuamos no meio jurídico, na academia, cientistas, é acelerar esse processo, sintonizar as instâncias inferiores da Justiça com entendimento do STF.”
Passividade social
Mas não quer dizer que o Judiciário deve ter de resolver tudo. Estão no STF diversos questionamentos, como o do Pacote do Veneno, do uso de drones da agricultura, dos incentivos fiscais, do uso de venenos nas margens dos rios. Tem ainda a defesa da democracia, a pauta moral. “O STF fica muito pressionado. Há um problema, que é acharmos que o Supremo é o salvador da pátria, mas não é”, disse o procurador do Trabalho.
Para ele, é preocupante a passividade dos brasileiros diante da grave situação dos agrotóxicos no país. “A gente, como sociedade, aguarda tudo do STF. Como se pode permitir a contaminação da água potável por agrotóxicos? Não conheço se existe norma que determine percentual limite para agrotóxicos no leite materno. O fato é que, com ou sem uma norma sobre isso, é um absurdo pensar que o leite materno contenha resíduo de agrotóxico”. E mais: “A gente tem lei que registra agrotóxicos apesar de seu percentual de possibilidade para malformações em crianças e de casos de câncer. E mesmo assim autoriza o produto. A sociedade assiste a tudo passivamente, esperando tudo do STF, que por definição é lento porque tem de ser provocado, tem o contraditório; não é ‘just in time’. Mas sou otimista porque que já vi muitas batalhas e vitórias”.
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*Cida de Oliveira é jornalista



