Os riscos e impactos do “trash science”. Entrevista especial com o Professor Jeffrey Beall

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Em meio ao debate sobre os impactos da disseminação do lixo científico na ciência brasileira me deparei com a lista de editoras e revistas predatórias (o que eu chamo de “trash science” ou simplesmente “lixo científico” produzida pelo professor Jeffrey Beall, da University of Colorado-Denver (Aqui! ).  E a partir do conhecimento da Beall´s List (ou Lista de Beall) tenho identificado editoras e revistas predatórias, muitas das quais têm atraído muitos pesquisadores brasileiros.

No intuito de saber mais sobre as origens e objetivos da Beall´ List, enviei um e-mail para o professor Jeffrey Beall solicitando uma entrevista para aprendermos mais sobre a sua lista e ele gentilmente concordou em responder às minhas perguntas. A entrevista com o Professor Jeffrey Beall segue abaixo na íntegra, e creio que a leitura das respostas que ele ofereceu serão bastante úteis para todos aqueles pesquisadores – dos mais jovens aos mais experientes- que desejem evitar ter suas pesquisas publicadas em revistas predatórias a custos nem sempre baratos, apenas para serem confundidas com lixo científico. 

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BLOG DO PEDLOWSKI: Qual é a sua atual filiação institucional, e principais interesses de pesquisa e atividades profissionais?

Jeffrey Beall (JB): Eu sou professor associado com estabilidade (tenure track) na University of Colorado-Denver. Eu faço pesquisas sobre publicações acadêmicas, métricas de publicações científicas e a ética na publicação.  Eu trabalho na biblioteca da universidade onde eu sou o bibliotecário responsável pelas comunicações acadêmicas.

BLOG DO PEDLOWSKI: Por que o senhor decidiu iniciar uma lista de editoras e revistas predatórias?

(JB): Inicialmente eu criei a lista em um blog que eu mantinha e fiz isto apenas por curiosidade. Um ano depois de ter criado a primeira lista, no final de 2011, eu criei a lista atual e ela começou a atrair a atenção. Agora, o objetivo da lista é ajudar pesquisadores a evitarem revistas e editoras predatórias e de baixa qualidade.   

BLOG DO PEDLOWSKI: Muitos dos seus críticos sugerem que o seu nível de treinamento acadêmico e áreas de especialização não o habilitam a atuar como um juiz de integridade científica. Como o senhor responde aos seus críticos?

(JB): A questão parece implicar que para julgar um dado periódico, você deve ser um especialista no campo que o mesmo ocupa, como, por exemplo, Engenharia Elétrica. Mas eu analiso as editoras e as revistas em termos de sua ética e suas normas de publicação. Eu olho para o uso de mentiras, falta de transparência, e desvio dos padrões acadêmicos que prevalecem no ramo das publicações científicas. Eu uso critérios documentados que me guiam na análise dos periódicos.

Ainda assim, muitas revistas publicam lixo científico, e na maioria das vezes sou capaz de identificar quando isso ocorre. Por exemplo, eu vi recentemente um artigo que discutia as civilizações que teriam existido no planeta Marte, e eu não tive a necessidade de ser um especialista em ciência planetária para determinar que tanto o artigo como a revista eram lixo científico.

Editoras predatórias visam enganar pesquisadores honestos para pensar que suas revistas são legítimas. Infelizmente, às vezes eles são bem sucedidos. Então, ocasionalmente, nós vemos boas pesquisas publicadas em revistas ruins.

BLOG DO PEDLOWSKI: Em sua opinião, como o fenômeno das editoras predatórias pode afetar o desenvolvimento futuro de revistas de acesso aberto?

(JB): Editoras e revistas predatórias que estão usando o modelo de ouro (autor paga) do acesso aberto tem um conflito de interesse interno, pois quanto mais artigos eles aceitam, mais dinheiro elas fazem. Muitas pessoas estão promovendo a publicação de acesso aberto, e o modelo tem suas vantagens, mas os defensores do acesso aberto não estão contando a toda à história. O número de publicações acadêmicas de acesso aberto está crescendo rapidamente, mas também o número de revistas e editoras corruptas. O registro científico está sendo cada vez mais contaminado com pseudociência e por ciência de baixa qualidade que serve como “ruído” e torna mais difícil encontrar e acessar ciência de qualidade e outros tipos de pesquisas qualificadas.

BLOG DO PEDLOWSKI: Quais têm sido as principais respostas da comunidade científica à sua lista de editoras e revistas predatórias?

(JB): Estou honrado de ter recebido muitos e-mails me agradecendo por meu trabalho. Eu venho tendo a oportunidade de falar sobre a minha lista em conferências científicas e de conhecer novos colegas. Nem todo mundo gosta de mim, e está tudo bem com isso. Mas eu acho que até meus inimigos usam minhas listas.

BLOG DO PEDLOWSKI: O senhor tem alguma recomendação para cientistas interessados em evitar o risco de ser atraído e/ou enganado por editoras predatórias?

(JB): Sim. Por favor, consultem as minhas listas. Sejam muito cuidadosos com a aceitação de ofertas que cheguem via e-mails do tipo “spam”, incluindo as ofertas de revistas e conferências. Aprendam quais são as principais revistas em seus campos disciplinares, e as leiam. Leiam cada número das principais revistas, e aprendam o estilo delas. Em seguida, façam sua pesquisa, escrevam e submetam seus artigos às revistas que estejam no topo do ranking.

BLOG DO PEDLOWSKI: Existe alguma coisa que o senhor gostaria de acrescentar?

(JB): Sim, existem novas formas de fraude e aqui está uma: muitos periódicos agora afirmam que ganharam um fator de impacto, quando isto realmente não aconteceu Existem hoje novas empresas, principalmente da Índia, que vendem fatores de impacto falsos para as revistas predatórias. Verifique todos os fatores de impacto antes de submeter um manuscrito para uma dada revista.  

Editora trash e seus múltiplos convites para “pagar e publicar”

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Faz algum tempo que a minha caixa de mensagens eletrônicas no servidor da Uenf vem sofrendo uma enxurrada de convites de editoras predatórias (trash science) que invariavelmente anunciam facilidades para publicar a preços, ao menos inicialmente, módicos. Mas nesta segunda-feira (22/06) fui surpreendido com dois e-mails de uma mesma editora trash para revistas bastante díspares, conforme mostro abaixo, mas que possuem a semelhança de serem anunciadas pelo mesmo endereço eletrônico.

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O primeiro convite mostrado acima, que chegou às 6:53, se refere à revista Advances in Research, e o endereço de envio pertenceria a senhora Isita Sen, editora do ScienceDomain.org

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Como se vê, o segundo convite, que chegou às 9:08, já se refere a um tal de British Journal of Applied Science and Technology, e também foi enviado pela senhora Isita Sen.

Ao consultar a lista de editoras predatórias (trash science) preparada pelo professor Jeffrey Beall da University of Colorado-Denver pude verificar que a editora e as revistas anunciadas estão listadas. Essa inclusão aponta para o fato de que estou diante de mais um caso de convite para “pagar e publicar”. 

Uma coisa que me deixa curioso é sobre como meu endereço eletrônico foi obtido por essa editora, já que nunca tive qualquer contato com a mesma. E como tenho notícias que outros colegas também receberam a mesma mensagem fica demonstrado que a entrega na minha caixa postal não foi por acaso. Essa pode ser uma pergunta que se bem respondida poderia nos mostrar o caminho de um comércio bem valioso que é o da entrega de endereços eletrônicos de pesquisadores brasileiros a essas editoras.

E nunca é demais lembrar que tem muito CV Lattes recheado com esses “artigos” neste momento, inclusive por pesquisadores detentores das ambicionadas “Bolsas de Produtividade” do CNPq. Deve ser por isso que o mercado de artigos trash não para de crescer, o que explica essa chuva de e-mails dos editores predatórios.

Maurício Tuffani põe o dedo na ferida: lixo científico e o silêncio da academia

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O Qualis e o silêncio dos pesquisadores brasileiros

POR MAURÍCIO TUFFANI

Enquanto aqui no Brasil a comunidade científica praticamente ignora a presença de mais de 200 revistas acadêmicas de reputação suspeita que foram aceitas no Qualis Periódicos, fora do país já começaram discussões sobre essa base de dados serve para orientar pesquisadores, professores e pós-graduandos brasileiros a escolher publicações científicas para seus trabalhos.

Tudo começou na semana passada, quando o biblioteconomista Jeffrey Beall, professor da Universidade do Colorado em Denver, nos Estados Unidos, enviou para uma lista de discussão os links de alguns de meus recents posts sobre sobre a aceitação dessas publicações pela Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de  Pessoal de Nível Superior).

O Qualis abrange cerca de 30 mil títulos, segundo a Capes. Sua classificação nos níveis A1, A2, B1, B2, B3, B4, B5 e C é usada também em processos seletivos para contratações e promoções e em avaliações individuais e institucionais para concessões de bolsas e auxílios.

Para decepção do colega, eu expliquei a ele que o assunto certamente despertaria muita atenção, mas não geraria muitas discussões, pelo menos publicamente. A apuração que eu realizara até aquele momento já me permitia prever o que acabou acontecendo: o silêncio da quase totalidade dos pesquisadores brasileiros sobre o assunto, apesar de os posts terem .

Acesso livre

Os periódicos predatórios são revistas acadêmicas editadas por empresas que exploram sem rigor científico uma importante iniciativa de comunicação científica que surgiu com a internet. Trata-se do Open Access (acesso aberto), o modelo editorial de publicação de artigos em acesso livre, baseado na cobrança de taxas de autores.

Tanto no Open Access como no modelo tradicional mantido por assinaturas anuais ou pela cobrança por artigo baixado pela internet, os periódicos bem conceituados demoram meses e até mais de um ano para analisar e aceitar artigos, ou rejeitá-los.

Lixo acadêmico

Os publishers predatórios não só reduzem a poucas semanas o intervalo entre a apresentação e a aceitação de artigos, mas também são menos seletivos e rigorosos nesse processo.

É importante ressaltar que bons estudos também têm sido publicados em periódicos predatórios. Mas isso só agrava o problema, pois significa que salários de pesquisadores, seu tempo de trabalho e recursos para pesquisas acabaram se transformando em artigos largados em publicações desprestigiadas e até mesmo consideradas “lixo acadêmico” pela comunidade científica internacional. No caso do Brasil, quase todo o dinheiro envolvido nessa atividade vem de cofres públicos.

Avisos

Nas entrevistas que realizei, cientistas de alto prestígio nacional e internacional afirmaram que a inclusão dos chamados periódicos predatórios no Qualis era uma falha grave por parte da Capes. Mas quase todos eles pediram para não serem identificados.

No início dessa apuração, o que me deixou intrigado foi o fato de que eu havia selecionado pesquisadores não só com bons currículos, mas também que já haviam assumido posicionamentos autênticos, críticos e firmes sobre questões em torno da ciência no Brasil.

O total de periódicos que listei em meu post Pós-graduação brasileira aceita 201 revistas “predatórias’ (9.mar) corresponde a 0,67% do total de 30 mil títulos. Isso não seria motivo para tanta preocupação.

Maquiagem

O tamanho da encrenca, porém, começou a ficar claro logo depois. Apesar de esse percentual de predatórios no Qualis ser pequeno, ele mostra uma vulnerabilidade indesejável dessa base de dados. Além disso, esse problema começou a mostrar a conexão com outras aberrações, como a realização deeventos caça-níqueis, em condições até anedóticas e constrangedoras.

Outra distorção que constatei foi a maquiagem serial de trabalhos apresentados em conferências, como se eles fossem artigos aprovados por peer review de periódico. E isso aconteceu em um evento na Unicamp, uma das melhores universidades brasileiras, a única com a USP no ranking das melhores do mundo do Times Higher Education.

Disparidades

Para complicar, minha apuração dos periódicos predatórios do Qualis revelou uma outra esquisitice que atinge dessa base de dados que pode prejudicar publicações de boa reputação: uma mesma revista pode ser classificada em diversos níveis de qualidade. Essa variação não seria problemática se ela se restringisse a níveis de qualidade próximos e envolvesse áreas de especialidades muito distintas.

Acontece que há oscilações que vão desde o pior e mais baixo nível de classificação —aplicável somente a publicações com deficiências extremas— aos mais elevados, relativos a padrões de excelência. E, o que é pior, entre áreas muito próximas  (A avaliação ‘quântica’ de revistas científicas no Brasil, 16.mar)

Estagnação

Como vimos acima, a vulnerabilidade e a inconsistência dessa base de dados indicam que o problema é maior que a presença dos predatórios. Após a criação do Qualis em 1998, houve o crescimento da publicação de trabalhos acadêmicos brasileiros, que na prestigiada base de dados Web of Science quase quadruplicou de 2000 a 2013.

No entanto, os indicadores de qualidade dessas publicações mostraram estagnação nesse mesmo período. Pior: esses índices cresceram em poucas instituições de pesquisa de grande produção quantitativa. Isso matematicamente significa que o conjunto do restante da  produção nacional não estagnou, mas caiu em qualidade.

Iceberg

Nesse mesmo período, currículos têm sido recheados com base nesse crescimento quantitativo sem correspondência na qualidade. Isso influenciou não só contratações e promoções, inclusive salariais —tudo por meio de concursos públicos—, mas também avaliações de produtividade individuais e institucionais, concessões de bolsas e auxílios.

O silêncio quase absoluto dos pesquisadores brasileiros não é, portanto, devido aos predatórios, mas aos os buracos que eles revelam no Qualis. Esses buracos expõem uma parte importante de todo um sistema de avaliação de desempenho no qual carreiras e reputações acadêmicas foram sendo construídas nestes últimos anos.

Limpeza

Remover do Qualis os periódicos predatórios poderia certamente resultar em muitas reclamações e protestos. Isso levaria a Capes e outras instituições a deixarem de contabilizar os artigos publicados nessas revistas.

Mas acredito que de uma forma ou de outra é o que acabará acontecendo. E será muito mais rápido se a defesa da manutenção desses títulos depender dos próprios publishers. (Muitas vezes tenho dificuldades para usar os argumentos deles como defesa.)

Acredito que a eliminação dos predatórios acontecerá apesar do silêncio da quase totalidade dos pesquisadores brasileiros.  Muitos dos coordenadores e coordenadores adjuntos dos 48 comitês assessores da Capes são pesquisadores respeitados em termos de excelência acadêmica e reputação por seriedade. Conheço pessoalmente alguns que certamente não compactuarão com essa avacalhação.

Mas não acredito em uma reformulação que leve nosso sistema nacional de pós-graduação a combater a tolerância com revistas de baixa qualidade. É grande demais o contingente que nos últimos anos se formou, cresceu e adquiriu direitos, inclusive trabalhistas, fazendo uso de publicações fracas e desprestigiadas. E tudo isso aconteceu dentro de nossa tradição brasileira de apostar no crescimento da quantidade com a promessa de um posterior aumento da qualidade que nunca acontece.

Vespeiro

Com essas e outras, dá para entender muito bem o motivo pelo qual alguns célebres pesquisadores não estavam dispostos a dar entrevistas e arrumar mais um confronto na vida. O problema deles era “mexer com um vespeiro”. O célebre “Epitáfio para M.”, de Berthold Brecht (1898-1956), que em tradução livre transcrevo a seguir, ilustra bem o que poderia ser esse embate.

Dos tubarões eu escapei./Os tigres eu matei./Fui devorado pelos percevejos.
(Den Haien entrann ich./Die Tiger erlegte ich./Aufgefressen wurde ich von den Wanzen.)

Entendo eles. Eu mesmo muitas vezes tenho dito que o mais desgastante não é enfrentar leões, mas os bandos de hienas. Felizmente alguns pesquisadores brasileiros já estão passando da preocupação para a indignação.

FONTE: http://mauriciotuffani.blogfolha.uol.com.br/2015/04/01/o-qualis-e-o-silencio-dos-pesquisadores-brasileiros/

Lixo científico “made in Brazil”

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Venho faz algum tempo tratando aqui neste blog da difusão e banalização do que muitos chamam de “publicações predatórias”, e eu (seguindo o que disse o físico Rogério Cézar Cerqueira Leite num polêmico artigo no jornal Folha de São Paulo) denomino de “lixo científico”.  Os sucessivos casos de pesquisadores sendo pegos com artigos e outros tipos de publicações que mimetizam descobertas científicas em revistas onde o único requisito é pagar para publicar é um fenômeno global. As “editoras” estão espalhadas por diferentes partes do globo, ainda que países como China e Índia seja rotineiramente apontados como locais preferenciais para o estabelecimento de empresas especializadas em distribuir lixo científico a preços nem sempre módicos. 

O fenômeno não é novo, mas se espalhou como o vírus da peste negra após a emergência da internet que serviu para validar publicações que não necessariamente vão ser impressas.  Além disso, o surgimento da internet serviu para conectar prestadores de serviços (editoras predatórias) e fregueses (profissionais interessados em turbinar seus currículos sem as exigências da revisão por pares), o que contribuiu para criar um imenso mercado para personagens obscuros.  Esse fenômeno gerou até imensas listas de identificação de publicações predatórias como a criada pelo professor Jeffrey Beall, da University of Colorado-Denver, que se tornou uma referência mundial no esforço para conter o avanço do lixo científico (Aqui!).

Pois bem, se alguém pensou que o Brasil não possui o seu próprio estoque de publicações “trash”, pensou errado. Após me interessar pelo assunto, comecei a pesquisar (usando o Qualis Capes como ponto de partida) determinadas publicações que possuíam o que o jornalista Maurício Tuffani caracterizou em seu blog como  a “classificação quântica” do Qualis Capes (Aqui!). E o que eu acabei descobrindo é que, apesar de ainda faltar a mesma estrutura logística das editoras predatórias localizadas em outras partes do mundo, há sim no Brasil um mercado emergente de publicações onde determinados personagens são, ao mesmo tempo, dos corpos editorial e científico, exercem o papel de revisores e, sim, ainda publicam seus “artigos científicos”.  Em suma, são o policial, promotor de justiça, juiz, e carrasco! Além disso, essa rede de publicações junta personagens em instituições localizadas em diferentes partes do Brasil, de modo que fica difícil verificar num primeiro momento que são sempre os mesmos personagens envolvidos.

Esse fenômeno “editorial” tem graves implicações para a comunidade científica brasileira, na medida em que os órgãos de fomento como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) utilizem critérios que favorecem a quantidade e não a qualidade das publicações no momento em que concedem financiamentos (no caso do CNPq) ou certificam programas de pós-graduação (no caso da CAPES).  A existência e persistência desse sistema de medição é que está na origem do fenômeno das publicações predatórias em nível mundial, e não é diferente no Brasil. Mudar essa situação vai passar por uma urgente reestruturação dos sistemas de medição de mérito, visto que o que estamos vivendo no Brasil é apenas a primeira fase da invasão e colonização da ciência brasileira por revistas predatórias “made in Brazil”. 

Produção acadêmica e lixo científico no Brasil

Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo no dia 06/01/15, o físico Rogério Cerqueira Leite, professor emérito da Universidade de Campinas (UNICAMP), e membro  do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq) levantou uma lebre que há muito está sendo falada em voz baixa nos corredores das universidades brasileiras, mas que até agora era quase um tabu (Aqui!), qual seja, o baixo impacto da maioria das publicações produzidas pelas nossa comunidade científica.  Em seu arrazoado construído a partir de um levantamento feito pela revista britânica “Nature”, Cerqueira Leite apontou que o Brasil aporta 2,5% das publicações indexadas em revistas internacionalmente, atrás até do Chile. Além disso, Cerqueira Leite também notou que boa parte do que é incluído nos currículos dos pesquisadores brasileiros se dá na forma de jornais openscience (abertos), e que a maioria dos artigos não passa mesmo é de lixo científico.

O que Cerqueira Leite não disse é que essa situação se dá às barbas, e muitas vezes sob impulso das duas principais agências de fomento à produção científica no Brasil,  o CNPq e a CAPES. O fato é que essas agências foram tomadas pela lógica da quantidade para ocultar a falta de qualidade que decorre do contínuo sucateamento financeiro e intelectual das universidades brasileiras, especialmente em anos da vigência da máxima “Brasil grande, Estado pequeno” que se instalou após as reformas neoliberais impostas no governo de Fernando Collor de Melo.  

Esta realidade é hoje conhecida até do mais jovem pesquisador que está iniciando os seus estudos de Iniciação Científica, e foi elevada aos momentos quase sacralizados pelo Currículo Lattes, que se tornou a principal forma de se obter recursos, cada vez mais escassos diga-se de passagem, e que acabam ficando quase sempre nas mesmas mãos.  Além disso, qualquer avaliação que seja feita hoje pela CAPES e pelo CNPq irá utilizar o total de produções, seja o artigo publicado na Nature ou no “Journal of Applied Sciences da Universidade Federal de Atol das Rocas”.  Mas o pior é que dai decorre uma lógica cínica de que é preciso publicar, seja lá o que for, em nome da sobrevivência. E ai de quem quiser refletir ou criticar essa hegemonia quantitativa!

É dessa adesão quase irrefletida a princípios quantitativos para se aferir mérito que decorre a adesão a pseudo-revistas científicas publicadas em prédios localizados em algum bairro central em países como Romênia, Índia e China. E como, apesar da lembrança colocada no momento do envio do CV Lattes ao CNPq que falsidade ideológica é crime, punições por fraude científica são quase tão raras quanto prisão por crime do colarinho branco. Em função disso, o que se vê é uma inundação de pseudo-artigos que aparecem normalmente em revistas que são colocadas em listas internacionais como devendo ser evitadas por suspeitas de serem fajutas (Aqui!).

Sair dessa cultura de quantidade sobre qualidade não será fácil, pois se prende a uma lógica de mérito que está institucionalizada. Entretanto, se não houver a devida disposição para enfrentar o problema, a ciência brasileira continuará num processo de auto-enganação cujo resultado final é nos manter como um país periférico na produção acadêmica qualificada e, pior, imerso nas profundas desigualdades sociais e econômicas que se mantém intactas por causa dessa situação científica capenga.

Aproveitando a deixa, ainda digo que se alguém está surpreso no número de notas “zero” na prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), esta surpresa seria ainda maior se fossem lidas algumas dissertações e teses, e artigos científicos produzidos até nas melhores universidades brasileiras. A baixa proficiência no uso da língua portuguesa é de tal proporção que chega a ser assustador para uma pessoa que, como eu, teve pais cuja escolaridade não passou dos dois anos iniciais do antigo ensino primário. É que, em comparação, meus pais tinham melhor controle e garbo no tratamento da língua portuguesa!  

Agora, parafraseando Karl Marx, para evitar jogar a criança fora com a água suja do banho, eu diria que a saída para esta armadilha criada por quem quer destruir o nosso incipiente parque científico nacional será exigir que se reverta a lógica do mérito a partir de critérios que coloquem a importância e a necessidade de uma produção intelectual que sirva efetivamente para resolver os graves problemas que afligem o Brasil.  E aqui há que se valorizar sim a produção científica qualificada, e que esteja submetida a critérios de robustez, independente da disciplina em que estiver incluída. Do contrário, continuaremos a produzir lixo acadêmico e a sermos motivo de escárnio. E, o que é pior, afundados num ciclo social que mistura pobreza, segregação e violência.