Vivendo em tempos de “tempo raivoso”: uma saída pela esquerda, por favor

Já mencionei aqui neste espaço o interessantíssimo livro da filósofa e física alemã  Friederike Otto que se apresenta sob o título de “Angry Weather” (ou em portuguê “Tempo Raivoso”) onde somos apresentados à situação que está sendo escrita em letras garrafais pelo sistema climático da Terra.  Para quem vive no estado do Rio de Janeiro como eu, esse “tempo raivoso” está se apresentando sob a forma de temperaturas altíssimas e uma chegada igualmente fenomenal de raios ultra-violeta na parte inferior da atmosfera da Terra. 

Para muitos que estudam ou pelo menos se interessam pela situação climática da Terra, vivemos o que se pode chamar por vários nomes (crise climática, colapso climático) e nenhum deles soa legal.  E nem poderia porque a situação é realmente preocupante, pois como eu gosto de dizer, a temperatura alta é só um sinal de algo muito maior e mais amplo que está ocorrendo no nosso sistema climático, muito em função da continua emissão de gases estufa que resulta primariamente da queima de combustíveis fósseis.

Mas até aqui, diria algo com a minha idade, morreu o Neves. O problema me parece ser o que deve ser feito para que haja o início do necessário processo de adaptação a uma condição climática que não será revertida de um dia para outro, até porque quem está na raiz do problema acha que em vez de tirar o pé do acelerador, temos mais é que pisar fundo no pedal.

Em minha modesta opinião é preciso, e já disse isso antes, incorporar a questão climática na pauta da esquerda, até porque Karl Marx já deixou elementos suficientes em seus trabalhos para que nós pudéssemos enfrentar o que ele via como uma consequência inoxerável do sistema capitalista. Sim, quem der uma leve olhadela em livros de leitores minimamente esclarecidos de Marx (cito aqui para começo de conversa John Bellamy Foster, Kohei Saito e Michel Lowy), vai notar que o filósofo alemão já antecipava o que a volúpia perdulária e irresponsável do Capitalismo e dos capitalistas poderia gerar nos sistemas naturais da Terra. E agora, o que estamos vendo e vivenciando é apenas mais um dos muitos acertos analíticos de Marx.

Solving the climate crisis requires the end of capitalism | Salon.com

Luta climática = luta de classes diz o cartaz

Mas para que a questão climática seja uma pauta de esquerda há que se considerá-la como uma questão de classe, e não qualquer outra coisa que seja. É que se olharmos hoje para quem está carregando o ônus das altas temperaturas são os trabalhadores que são relegados a viver em áreas desprovidas das mínimas condições de serem habitadas, muitas vezes em áreas que deveriam estar condenadas para a ocupação humana. E não é preciso ir longe para verificar o que estou dizendo, baastante percorrer as áreas mais inóspitas das regiões metropolitanas de Rio de Janeiro e São Paulo, apenas para citar as maiores.

Os ultrarricos e ricos não terão que experimentar a crise climático e o colapso social que ela cria, pois estarão protegidos em seus palácios climatizados e que foram construídos dentro de vilas muradas que eles escolheram construir em regiões privilegiadas das cidades. Foram construídos ali porque eles sabem o que estão fazendo com os trabalhadores e os pobres em geral.

Para além da retórica é preciso reconhecer que ao colocar a crise climática como pauta de esquerda exige romper com a lógica do mal menor na política partidária, pois, do contrário, iremos continuar prisioneiros da premissa falaciosa que é preciso continuar explorando reservas de combustíveis fósseis para que tenhamos algum tipo de futuro menos indigno para a maioria da população mundial.  É só olhar a armadilha que nos está sendo posta pela pressão em torno da exploração do petróleo  na foz do Rio Amazonas (oportunisticamente rebatizada como “Margem Equatorial”).

A crise climática torna obsoleta a lógica do mal menor, mas o problema é que a extrema-direita é quem já entendeu isso e está com as mãos no volante da luta de classes.  A saída para a esquerda (e não a “exquerda”) é aceitar que precisamos radicalizar as formas de diálogo com a classe trabalhadora, em vez de ficarmos acocorados enquanto somos aplastados pelas forças que criaram a situação crítica em que estamos postos, seja social ou ambientalmente.  Mas vamos para isso, vamos ter que sair do conforto do ar condicionado e encarar o mesmo sol e as mesmas temperaturas que castigam os trabalhadores neste exato momento.

Na esquina do fim do capitalismo, o beco sem saída

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Por Douglas Barreto da Mata

Nenhum dos esforços ou promessas de desenvolvimento nacional se cumprirá, ao menos, não da forma como se imagina ou deseja. A riqueza resultante da produção industrial cai a cada ano desde 1980. A massa salarial dos trabalhadores, responsável pela manutenção dos níveis de consumo, que alimentam essa produção, caíram na mesma proporção, com alguns leves períodos de recuperação, que comparados à média da série histórica, acabam por representar mera estagnação.

É comum a maioria das pessoas, levadas ao erro por economistas de má fé, confundirem o sistema de crédito com o sistema financeiro. Enquanto crédito é a disponibilização de recursos para consecução de um objetivo específico, seja a compra de uma geladeira, ou bens de capital, o sistema financeiro se resume na remuneração do dinheiro pelo próprio dinheiro, atribuindo mais ou menos renda de acordo com um sistema de avaliação totalmente atípico, ou seja, baseado não em uma lógica de demanda (oferta ou necessidade do tomador), mas sim em variáveis que buscam, simplesmente, o aumento das rendas e a sua acumulação vertical.

O sistema de crédito capitalista é uma ferramenta de distribuição de capitais para equilibrar as assimetrias entre áreas deficientes de dinâmica econômica e as áreas mais prósperas, evitando que o acúmulo de poupança interna em países mais ricos pudesse emperrar suas economias, foi substituído por um modelo desregulado, que passou, de forma simplista, a replicar dinheiro pelo dinheiro, fenômeno chamado de alavancagem.

A crise de 2008 não foi uma crise de crédito, quando devedores de juros devidos pelos empréstimos pararam os pagamentos, nada disso. A quebra subprime se deu pelo entrelaçamento de uma rede infinita de títulos criados a partir de outros títulos, que geraram papéis que apostaram na quebra desses papéis, os CDS, e toda essa estrutura de sobreposição de papagaios não tinha nenhuma garantia em aumento de empregos ou renda do trabalhador, mas sim do seu endividamento. Como se sabe, a expansão do setor imobiliário dos EUA foi uma bolha criada por engenharias financeiras. Deu no que deu.

As nações ricas, ao invés de puxar o freio, e ao mesmo tempo, colocarem boa parte dos banqueiros na cadeia, preferiram emitir montanhas de dinheiro para salvar o modelo falido (Quantitative Easy).  Não mexeram nos marcos de regulação, e uma das razões, nos EUA, por exemplo, é que os bancos usaram esse dinheiro para pagar o lobby que evitou que os congressistas votassem leis mais duras. Crime perfeito.

As consequências para o resto do mundo são percebidas até hoje.  No lado mais pobre do mundo, a piora das diferenças cambiais e a exportação de déficits agravou a dependência financeira, criando enormes dúvidas públicas impagáveis, ao mesmo tempo que as privatizações e precarização constante de direitos sociais e trabalhistas pressionam a demanda por serviços públicos, cada vez piores por causa dos endividamentos dos erários.

O problema é que os países (os mais pobres primeiro) e seus orçamentos parecem ter esgotado suas capacidades de endividamento e supressão das condições de vida das suas sociedades. O crescimento inercial do PIB, até dos países ricos, confirma essa tendência.  Os EUA experimentaram, nos últimos anos, crescimento oscilante e inflação persistente. Desde 2008, muita coisa mudou, e para pior. A montanha de dinheiro do sistema financeiro também não se reverteu em mais produção capitalista, do mesmo modo que os burgueses e as expansões coloniais não sustentaram o feudalismo por muito tempo.

É certo que os Estados Nacionais, necessários à transição feudal para o modo de produção capitalista foram mantidos, inclusive com a manutenção de monarquias absolutas.  Até que essa (super) estrutura tornou-se desnecessária, e pior, antagônica à expansão do novo modo econômico de produção. 

Com a iminente transição capitalista para a sua fase posterior, apesar do convívio das estruturas capitalistas carcomidas com as formas institucionais conhecidas, partidos, parlamentos, sistemas representativos e etc, há uma nova ordem a caminho, e não significa que será um progresso em relação ao anterior.

Tudo indica que a conformação conhecida de Estado (de Direito) e suas derivações institucionais estão à beira do colapso, tão logo a nova ordem econômica de instalar, e estes arranjos sejam considerados obsoletos e antagônicos.

Parte desse fenômeno já se apresenta nas eleições ao redor do mundo, e nas formas de convívio social, ou seja, nesta percepção de volatilidade que temos em relação à realidade que aprendemos a reconhecer como tal.

O sistema financeiro e seus trilhões de dólares, que são muitas vezes maiores que o PIB da produção industrial mundial (não mais há relação entre um e outro), criou uma nova realidade tecnológica, comunicacional e social, conhecida como internet e, depois, os algoritmos das redes sociais e suas interações com a Inteligência Artificial.

A oposição de classes (luta de classes) é um dos vetores das mudanças de modos de produção, como sempre aconteceu, e parece que do atrito entre as classes proprietárias e as não-proprietárias nasceu uma nova, que não mais vive (apenas) da expropriação da mais valia, mas da replicação financeira das rendas acumuladas nesse processo de ultra exploração recente.

É o fim do capitalismo pelo esmagamento de sua força de trabalho pelo volume gigantesco de riqueza não produtiva alavancada e acumulada exponencialmente. Cada vez menos necessários, uma horda global de descartados se dedicará a uma condição sub humanizada na economia de serviços, onde o produto não é outro senão o próprio trabalhador.

No sistema capitalista, apesar da brutal desigualdade de condições entre os donos do capital e os trabalhadores, onde estes últimos tão somente aceitavam as condições para a venda de sua força de trabalho, sob pena de perecimento, houve a luta permanente para que esta relação desigual se ajustasse a algum tipo de amenização, a depender do processo histórico incidente a cada nação e sua sociedade.

De forma alguma, com raras e conhecidas exceções das revoluções anticapitalistas, estas posições relativas foram alteradas.  No entanto, é forçoso reconhecer que os ganhos foram somados às classes trabalhadoras, através daquilo que entendo ser um mercado representativo eleitoral e as lutas setoriais (sindicais).

A inovação tecnológica e financeira trazida à tona pela ultra digitalização subverte essas relações baseadas em produção de valor através da compra e venda de trabalho, e subtrai a utilidade das instituições conhecidas para mediar aquele conflito anterior, que se tornou obsoleto não por sua resolução, mas sim pela substituição (superação) de novas e mais modernas formas de exploração, reafirmando o que disse Karl Marx.

A ideologia central do capitalismo era fazer crer ao trabalhador que a ele era possível ascender socialmente pelo trabalho, e como correspondência política, incutiu a (falsa) noção de que um homem é igual a um voto, e o sistema representativo resolveria as demandas por direitos suprimidos por este próprio sistema econômico excludente.

Agora, os donos dos algoritmos e dos fundos de investimentos conseguiram criar um mundo onde as formas sociais do trabalho deixaram de ser vistas como relevantes, ou melhor dizendo, assumem uma relevância distinta, confinando estas relações em células individualizadas, que não acabam com o conceito de classe em si, mas as subordinam sob uma forma de alienação jamais vista, e que sempre foi perseguida pelos donos do capital, mas que lhes era impossível pelo próprio sistema de organização do trabalho para a geração dos produtos e dos lucros.  Essa barreira foi quebrada.

Não há mais necessidade de estabelecer uma lógica coletiva (social) do trabalho como requisito de inserção social, já que a nova ordem preconiza a individualização ou a atomização completa da vida econômica em mecanismos de recompensas cada vez mais relacionados com mecanização digital financeirizada, e menos com com resultados econômicos relacionados a algum tipo de transformação industrial conhecida.

Se houver futuro, não parece promissor.

Para uma crítica do identitarismo

No frigir dos ovos, ele atrela-se à dinâmica do “não há alternativas”, pois é reativo e nichado. O encontrar em-si de si trava os sentidos de pertencimento e da luta comum, o que convém ao capitalismo – em especial, no século XXI. Além disso suas bandeiras podem ser muito lucrativas…

Imagem publicada no site Disparada

Por Douglas Barros

É evidente que o colonialismo, enquanto constituição imaginária, se perpetuou nas formas que organizam a vida contemporânea. Durante o século XX, porém, inúmeras apostas se deram no sentido de que a modernização seria capaz de suplantar a desigualdade racial, ou de gênero, curando as feridas abertas pela tragédia colonial. Hoje, século XXI, já se pode dizer que essas promessas tornaram-se ilusões perdidas.

Com o desenvolvimento do capitalismo, o caráter excludente da máquina do mundo moderno só se tornou maior. Para legitimar a exclusão, a noção racial tornou-se o onipresente azeite a lubrificar a máquina de um inconsciente que naturalizou a separação humana entre raças. Basta olhar o levante de extrema direita no Reino Unido, ocorrido na semana passada, para entender como a noção racial é sempre a alavanca privilegiada dos fascismos.

Não bastasse isso, o capitalismo do século XXI aprendeu que, distante da tensão do senhor e do escravo, o trabalhador podia ser conduzido à colaboração. Para tanto, sequestrar sua demanda atrelando-a ao consumo seria fundamental ao passo que na gestão da vida social era preciso um reconhecimento unilateral das demandas de pertencimento de grupos que serviriam para encobrir a dimensão concreta das lutas.

Talvez para dar resposta a esse quadro seja importante lembrar uma crítica dialética, ocorrida desde pelo menos metade do século passado, na qual se percebia que racialismo e racismo formavam um todo dinâmico. O próprio racialismo não apenas gera a sua contraparte – como Stuart Hall dizia; é a raça que produz o racismo – como ele depende do racismo para garantir a manutenção de seu sentido. Foi assim, me parece, que o tema da identidade, sequestrado pela lógica neoliberal, sofreu uma deflação ao se adequar aos limites necessários dessa gestão. Aqui temos problemas centrais e não podemos fugir de discuti-los. Começo pelo seguinte:

  1. Se não podemos duvidar que a identidade, tomada como finalidade última do sujeito, é uma objetificação de si mesmo, não podemos também deixar de observar que o horizonte histórico da modernidade promoveu a identificação de diversos grupos humanos. Isso estabeleceu a noção racial no colonialismo.
  2. É nessa terrível contradição que a história moderna é constituída: numa dialética em que a afirmação singular, por ter sido excluída dos processos de organização do status quo, tem a potencialidade de destituir a lógica social que organiza a relação de reprodução da vida responsável por essa exclusão.

O problema atual é que os impactos da gestão neoliberal precisam ser observados, pois, a noção da identidade baseada na ideia de encontrar um em-si de si mesmo totalmente transparente é uma violência objetificadora que serve como uma luva numa sociedade nichada como se tornou a nossa. Nichada?

Não é absurdo afirmar que na forma de gestão do capitalismo do século XXI a identidade passou a ser referendada como algo privado; uma reserva de mercado na qual se impôs as formas corretas para se expressar. Podemos reclamar de nossas dores desde que ela não se globalize no tecido social, desde que ela permaneça algo de grupos específicos. E, assim, o outro é somente a identificação que há do eu consigo porque expressa de maneira fantasiosa aquilo que sou e esse encontro é mediado pela nossa relação no mercado e sua competição.

Tudo se reduz ao campo da jurisdição e assim a identidade é sequestrada no campo da gestão e reativada como modo de pertencimento organizado pelo mercado. Mas, o mais problemático é que a mobilização identitária se torna profundamente reativa porque elimina não só a necessária mutação subjetiva, cabível na experiencia humana, mas repõe o status quo ao organizar uma competição de todos contra todos delimitada pelo mercado.

Para ter uma dimensão desse processo basta observar o antirracismo identitário que não busca a superação definitiva da racialização. O curioso é que não faz isso por uma escolha consciente, mas porque o racismo tornou-se o motivo de sua sobrevivência. Quer dizer é aquilo que possibilita sua própria existência como sentido e ação – isso sem falar que a pauta racial se tornou bem lucrativa… Por isso, trata-se de um antirracismo racialista, totalmente atrelado à dinâmica do “não há alternativas”. Para ele resta tão somente a disputa da gestão interna aos pressupostos lógicos do capitalismo contemporâneo.

Como mostra Haider: a expressão “política identitária” partiu de um grupo de militantes negras e lésbicas que tinham como horizonte o socialismo revolucionário1. Na argumentação que o Combate River tece – coletivo negro e feminista – fica explícita a marcação da identidade como uma construção e não simplesmente como uma descoberta.

Nele se trata de identificações que, apesar de não evocarem nenhuma essência, nem por isso deixam de dar sentido à pratica política do coletivo: “não são apenas mulheres, não são unicamente negras, não são apenas lésbicas” se lê no manifesto que continua, “não são apenas da classe trabalhadora”. O que são? “pessoas que incorporam todas essas identidades2”. Se nenhuma identificação determina a essência de um sujeito, pois, aquilo que o sujeito é, reside na sua capacidade de transitar por todas as identificações3, o coletivo reivindica tais identificações para dar materialidade à transformação que propõe.

Como essa posição rica e complexa foi transfigurada no seu contrário? Como a transformação social do capitalismo tornou a noção de identidade um fim em si mesmo? Esse é um problema que não deixa de ser fundamental. Apesar de sua fantasia, a identidade designa um problema concreto cujas implicações na vida subjetiva são centrais. Na sociedade atual, porém, existe uma falsa percepção de que o racismo e o sexismo são problemas que remetem única e exclusivamente à identidade/diferença.

A conclusão, que se esconde nessa ideia, é a de que a resolução dos conflitos da diferença se dê na gestão do próprio capitalismo. Temos nessa crença a manutenção do imaginário que garante o status quo neoliberal; esquece-se que o problema do negro está na injustiça racial necessária à desigualdade social – ou seja, a raiz do seu problema repousa na radical exploração a que foi submetido – para atrelá-lo à negridão e as formas de reconhecimento estatal.

Contra essa perspectiva – uma resolução do “conflito social” no nível da identidade excluída dos processos sociais e históricos – está o paradigma fanoniano que não se reduz à ideia de uma analítica na qual a opressão gera a resistência. O martinicano vai além; a resistência é só um momento da reorganização simbólica do racializado que lhe fornece uma identidade evanescente, é a ponte que ele atravessa para superar de maneira radical a própria estrutura social que divide a humanidade em raças. A identidade é só uma passagem rápida que consolida a experiência da subjetividade e torna o indivíduo um sujeito capaz de dar sentido a suas ações.

No espaço ideológico atual, entretanto, o sofrimento, com causas materiais e simbólicas, é reduzido à noção narcísica individual. O identitarizado o experimenta como algo exclusivo e a gestão desse sofrimento opera uma estetização política ligada às noções de competência e meritocracia. Na engenharia social atual, é preciso que a identidade tenha um caráter essencialista. Ela é alardeada diuturnamente numa sociedade hiperconectada em que a imagem aparece imediatamente como a verdade. A voz que humaniza esse sofrimento passa então a ser objetificada e reduzida à defesa do seu lugar.

No interior da operacionalização do lugar, como um lugar protegido, espera-se passivamente a gestão do sofrimento encarnada no representante como um vencedor que se mostra como uma exceção. Trata-se de uma redução à ideologia da eficácia que abafa a obscenidade da violência que sustenta a ordem através de alguns negros que venceram. E assim se oferece à lógica da ideologia do capitalismo as ferramentas necessárias: a ideia de que o problema é da gestão e que, portanto, é preciso se criarem espaços e ferramentas para a absorção da diferença.

Criam-se espaços livres da hostilidade do contraditório, propaga-se uma transgressão, estatisticamente calculada, e se fornecem elementos para a satisfação de não se ver negado. O corpo se torna algo no qual se exprime uma fantasiada divindade e a gestão identitária se torna a neutralização de movimentos potencialmente revolucionários em nome da nomeação dos gestores e representantes do grupo específico.

Para compreender essa engenharia social é preciso voltar ao colonialismo. É nisso que o identitarismo, inventado pelos colonizadores, se balizou: o fechamento da identidade numa identificação externa para controlar o processo escravagista de colonização de vários territórios. Que esse fechamento seja necessário à gestão atual diz muito sobre aquilo que Mbembe chama, com muita razão, de neoescravismo. A novidade é que esse processo tem tanta sutileza que quase passa sem ser observado criticamente.

O fechamento da identidade, narcisicamente apoiada na identificação de si através de um grupo, sem a necessidade da diferença como mediação do eu, expressa de maneira radical como a ideologia identitária se apossou de formas de lutas que partiam da identidade para questionar o todo social. O identitarismo, portanto, mais do que uma opção, trata-se na verdade de um modelo de gestão, ele nos atravessa de cabo a rabo.

Assim, os grupos, historicamente subalternizados, tornam-se reféns dessa lógica que é, acima de tudo, uma lógica de sobrevivência dramática numa crise permanente e em meio à eterna vigilância de câmeras, algoritmos e ponto 40 do policial. A perversidade do processo é tornar parte dos identitarizados (negros, latinos, muçulmanos, LBGTQIA+, etc.,) não só engajados no processo de identificação como muitas vezes nas suas formas de controle.

Importa lembrar que o identitarismo é o assassinato da alteridade desde que a Europa construiu identidade para todas as populações de além-mundo no início da modernidade. Na contemporaneidade, o esvaziamento das potencialidades transformadoras da identidade foi se consolidando de maneira vagarosa com o capitalismo do século XXI ao reidentitarizar as identidades para geri-la. Apostar no identitarismo como saída dos problemas atuais, que envolvem o massacre em nome da raça, mais do que ingenuidade, trata-se de colaboração ao que está posto.

Contra essa posição está Fanon que nos impõe a necessidade de pensar sobre o negro, não para reduzi-lo àquele organizado pelo identitarismo colonial, mas para entender de maneira radical a fonte dos sofrimentos e das agruras mantidas pela herança colonial afim de superá-las ao superar a forma como reproduzimos nossa vida social. Essa posição só pode ser assumida pensando o que há de dialético na lógica da identidade tendo em vista que, além de uma fantasia, ela precisa ser ruida.

Felizmente, muitos antes de nós se debruçaram nessa questão, não é um problema novo. Asad Haider, por exemplo, demonstra uma singular conversa de Malcom X na qual ele teria dito em 1964: “não se pode ter capitalismo sem racismo”. O desnudamento da estrutura que organiza o racialismo como gestão da racialidade, propicia a Malcom se orientar para a saída da identidade ofertada pela reprodução social que organiza os espaços raciais.

Malcom X foi morto justamente porque queria ir além dos limites identitários. Retornar à sua resposta é mais do que necessário, é urgente num mundo no qual o futuro do capitalismo ameaça nos levar à extinção. Se o racismo será superado com uma nova forma de sociabilidade… Isso eu não sei. O que sei, com toda certeza, é que nessa forma que vivemos, ele nunca será porque é parte fundante do sistema e nesse momento ele tece um genocídio horripilante em Gaza. Aliás, esse é o local onde o identitarismo se mostra em toda sua potencialidade catastrófica.


Notas:

1 HAIDER, A. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. Tradução Leo Vinicius Liberato. São Paulo: Veneta, 2019, p.31

2 HAIDER, 2012, p.32

3 BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016

Douglas Barros é psicanalista e Doutor em Ética e Filosofia Política pela Unifesp

Entre a lei e o direito, a luta de classes

luta de classes

Por Douglas Barreto da Mata

Um importante texto veiculado pelo Blog do Pedlowski (Aqui!) me pareceu uma oportuna lembrança.  No entanto, leigo que sou, me aventuro a trazer lacunas importantes do debate.  A positivação de um regulamento (lei, norma administrativa, portaria, etc) não garante a pronta efetivação de um direito correspondente na esfera jurídica das pessoas. Simplificando: a lei por si não basta para o gozo de um direito.

A Lei 11.340/2006, como outras tantas, seja a Lei 8.069/90 (ECA), ou a Lei Ambiental, Lei 9.605/98, e etc, etc, apesar de trazerem em suas estruturas previsões legais e dispositivos e mecanismos administrativos para repressão de condutas, prevenção e proteção de bens jurídicos (direitos de crianças e adolescentes, mulheres e ambiente), e enfim, para garantia de implementação de ferramentas jurídicas capazes de acolher pessoas em risco, ou, no caso do ambiente, da prevenção/reparação dos danos, não refletem, na realidade, uma aplicação isonômica desses diplomas normativos.

Novamente simplificando: a lei não é igual para todos, e não no sentido constitucional de tratar de forma desigual os desiguais, mas no caso brasileiro (e talvez de todo mundo capitalista), a aplicação e execução dessas leis se mostra no sentido contrário: Aumenta a desigualdade ao tratar os desiguais de forma igual, ou pior dizendo, de dar tratamento pior aos que mais necessitam de proteção.

Na esfera ambiental, é mais ou menos desse jeito, seja no Brasil, seja no mundo: O que é meu é meu (ricos), o que é de vocês (pobres) é nosso.

Assim, depois de esgotarem todos os recursos ambientais para concentrar montanhas de riquezas, as elites chamam os pobres para arcarem com custos e responsabilidades ambientais.  Já no caso da violência pessoal, seja qual for sua natureza, e a de gênero contra mulheres não é diferente, ela se manifesta nas sociedades de formas distintas, obedecendo sempre um viés hierárquico de classes. Quanto mais pobre, maior a possibilidade de ser vítima.  Quanto mais pobre, pior será o socorro.

Desta forma, apesar de ser um dado estatístico que a violência contra mulher seja um fenômeno transclassista, a reparação, proteção, punição se dá de forma diferente.  Mulheres negras e pobres raramente conseguirão usufruir das raras casas de abrigo, ou poderão contar com auxílio financeiro para reconstruírem suas vidas, abandonando o agressor e a dependência econômica.

Mulheres brancas e ricas contam com advogados caros, e podem movimentar seus processos com muito mais rapidez que as mulheres pretas e pobres, e claro, para se abrigarem nas várias propriedades disponibilizadas pela condição social, além da rede de apoio social de classe (família e amigos). O não funcionamento das medidas de proteção, e da lei em si,  não se vincula apenas à leniência policial ou do judiciário, embora esses aparatos tratem, também, as mulheres por um filtro de classe e cor.

A questão está entranhada na gênese do próprio Estado capitalista.

Ora, se o Estado brasileiro sequer consegue cobrar tributos dos ricos para distribuir aos pobres, como imaginar que vá ter condições de acolher mulheres pobres e pretas vítimas de violência, alocar viaturas e dispositivos confiáveis de monitoramento em medidas protetivas.

Enfim, se o Estado já está alicerçado em bases desiguais, como imaginar que os serviços de proteção policial-judicial sejam isonômicos? Impossível.

Infelizmente, a maioria de nossa sociedade, e nela está inclusa uma parte da academia, não consegue escapar da armadilha ideológica das elites, e tende a atacar os aparatos policiais e jurídicos existentes, sem, no entanto, adentrar o núcleo do problema: a desigualdade.

Fazem coro com o cinismo dessas elites, que sabem o motivo e a razão da seletividade do Estado, que chamam de “ineficiência” para buscar nos servidores (e alguns deles merecem até essa culpa) a justificativa para o não funcionamento institucional, dando contornos “morais” às escolhas estatais.

Triste, porque sem esse questionamento, vai continuar tudo na mesma.

No terceiro mandato, Lula terá pouco espaço para seu “Brasil sem classes”, já que a luta entre elas não irá arrefecer

Luta-de-classes

Uma das principais características do período em que o presidente eleito, Luís Inácio Lula da Silva, governou o Brasil por dois mandatos foi a sua quase profissão de fé em torno da criação de um país “sem classes sociais”, pois supostamente o que buscava era cumprir uma fórmula onde todos ganhariam. Entretanto, o que se viu após o fim do último ciclo virtuoso das commodities que embalou Lula e seus governos foi não apenas o rompimento da aliança que deu sustentação aos governos do PT, mas uma opção das elites brasileiras por uma agudização dos ataques aos direitos dos trabalhadores, e que culminou na eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

A clara ação de segmentos das elites brasileiras não apenas para tentar eleger Jair Bolsonaro, mas também para promover um golpe militar em face de sua derrota aponta claramente para uma aposta no confronto direto com o novo governo Lula. Essa indisposição para o apaziguamento ficou evidente nos bloqueios das estradas onde a categoria dos caminhoneiros foi usada como bucha de canhão dos donos de transportadoras, estes sim interessados em reverter os resultados das urnas, como sugerem relatos surgidos na imprensa.

A essa indisposição de segmentos que se beneficiaram das regressões perpetradas pelos governos Temer e Bolsonaro de se apaziguarem com Lula é acrescida a movimentação de segmentos minoritários, porém claramente mobilizados, da população brasileira que se sentem contemplados pelo modelo de organização econômica ultraneoliberal. Esses segmentos, apesar de minoritários, certamente se manterão em movimento, mesmo porque não há ganho aparente em se retirarem calmamente da cena política, por mais bizarras que sejam suas posições.

Aos brasileiros que, como eu, votaram em Lula sem ter ilusões com seu futuro governo resta investir em esforços que retirem segmentos da classe trabalhadora das garras da extrema-direita. É que sem esses segmentos da classe trabalhadora, os elementos mais radicalizados da extrema-direita só terão a si mesmos para continuarem em cena, e sozinhos seu impacto na vida política será o que foi historicamente no Brasil, qual seja, praticamente nulo.

E para quem desejaria voltar a um cenário de hipotética harmonia (a qual realmente nunca existiu no Brasil), quanto mais rápido se reconhecer que a luta de classes está aqui para ficar melhor será.  Afinal, se tivemos o risco da manutenção da extrema-direita no poder, isto se deve em grande parte à falta de entendimento da dinâmica política que estamos vivendo não apenas em nosso país, mas em todo o mundo. E se eu aprendi algo na vida é que a luta de classes não perdoa os ingênuos e desorganizados.

França, Hungria… a luta de classes vive!

Há ainda quem queira viver o modelo de Capitalismo de luta de classes que o ex-presidente Lula elaborou ao chegar ao poder em 2003.  Mas mesmo que lá do cárcere em que foi metido em Curitiba,  Lula ainda possa estar pensando em como manter sua criação funcionando, os fatos que se desenrolam nas ruas da França e da Hungria mostram que os trabalhadores estão se colocando à frente de partidos e sindicatos que decidiram investir na via institucional para conseguir pequenas migalhas enquanto oferecem a bisnaga para as grandes corporações multinacionais.

O que estamos vendo em diferentes partes do mundo, com relevo na França e na Hungria, é uma série de revoltas que se organizam de forma horizontal e sem lideranças tradicionais, mas que apontam para elementos claramente vinculados aos direitos dos trabalhadores que governos controlados diretamente pelas corporações financeiras estão tentando remover.

Por isso, não é difícil prever que a lua de mel que reina (apesar das revelações em torno dos repasses de parte dos salários dos assessores do senador Flávio Bolsonaro para as mãos de uma espécie de gerente pessoal de recursos) com o presidente eleito não vá durar muito tempo.

É que enquanto se anunciam perdões bilionários para latifundiários e outros grupos capitalistas, o que está sendo alardeado para os trabalhadores brasileiros remonta a um retorno às condições trabalhistas que reinavam no Século XIX antes da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel). 

Diante deste descompasso, não me surpreenderei se logo de cara tivermos manifestações copiadas diretamente dos cadernos de ações utilizados pelos trabalhadores franceses e húngaros.

Aí veremos que não haverá mais espaço para a conversa de que a luta de classes é um conceito démodé, pois ela deverá se manifestar no Brasil com uma virulência que não se vê há décadas. Aliás, é melhor já ir se acostumando com isso, pois diante do tamanho do ataque que está se anunciando, não restará outro caminho para a classe trabalhadora. 

É a luta de classes, idiota!

Resultado de imagem para luta de classes

Quando o estrategista de campanhas eleitorais James Carville apareceu com o slong “It is the economy, stupid” para ser um dos 3 eixos orientadores da campanha presidencial de Bill Clinton houve um misto de aplauso e indignação dentro e fora do partido Democrata. 

Passadas as eleições com a vitória do ex-governador do Arkansas, a frase bolada por Carville virou um “snowclone” (ou seja, uma frase que passa a ser usada em vários contextos diferentes e mesmo assim assegurando ser reconhecida de imediato) nos Estados Unidos, sendo adaptada em várias ocasiões, como em “É o déficit, idiota!”, “É a corporação, idiota!”,  “É a matemática, idiota!”,  e “São os eleitores, idiota!”

Pois bem, eu proponho mais uma adaptação para a atual conjuntura brasileira: É a luta de classes, idiota!

É que diante de tantas marchas e contra-marchas dos diferentes candidatos que estão se apresentando (seja à diferente ou à esquerda), não se vê nenhum que coloque a situação como ela é no tocante ao fato de que vivemos um processo agudo de recolonização que não oferece nenhuma saída positiva para os milhões de brasileiros que sofrem todos os dias os efeitos de uma recessão brutal cujos únicos ganhadores são os donos dos bancos e uma minoria de ultrarricos que se servem da crise para ficarem ainda mais podres de ricos.

Enquanto isso, partidos que se dizem de esquerda evitam colocar o debate dentro do contexto em que a maioria da massa de trabalhadores (estejam eles na formalidade, na informalidade, ou na condição de exército de reserva destes dois segmentos da classe trabalhadora) está sendo brutalmente atacada em seus direitos básicos. 

Na esquerda institucional grassa uma ojeriza particular a apontar o fato de que o processo que vivemos hoje é a expressão mais pura da luta de classes que Karl Marx tão perfeitamente sinalizou como o motor perpétuo de uma guerra interminável entre patrões e trabalhadores (capital versus trabalho).  Aparentemente domesticados pelo discurso de oposição permitida, os partidos esquerda institucional não apenas aceita passivamente os limites determinados pelas classes dominantes sobre o que pode ser debatido e quem pode debater, mas se encaixa de forma mansa à lógica de que só se pode mexer na perfumaria, deixando o sistema funcionar como sempre funcionou.

Uma das consequências desta aceitação do status quo pela esquerda institucional é o sentimento de confusão em muitos militantes sinceros, e que resulta na perda de referenciais sobre o que é essencial nas disputas em curso, e que podem determinar a dinâmica social nas próximas décadas. 

Para reverter essa condição que beira a completa desorganização, eu sugiro que a primeira e importante medida que precisa ser adotada é retornar o eixo das análises para a dinâmica da luta de classes, e de quais seriam os papéis que deveriam ser cumpridos pela classe trabalhadora e pela juventude no Brasil para colocar um programa de transformação social que coloque os partidos que representam os ultrarricos sob pressão. Do contrário, os retrocessos serão mais profundos e graves dos que já foram aplicados pelo governo Temer.

Por isso, ao ouvir a imensa maioria dos candidatos presidenciais se lembrem que por detrás dos discursos existem programas que visam ampliar a extração da mais valia e o aprofundamento da exploração. E, diante isso, que se lembre do mote:  É a luta de classes, idiota!

TRF-4 serve Lula com justiça a la Rafael Braga

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A decisão unânime de três desembargadores do TRF-4 de não apenas manter a condenação do ex-presidente, mas também de aumentar sua pena e determinar sua prisão é um desses momentos muito úteis para que possamos ver o caráter de classe que vige na justiça brasileira. É que, ao contrário de tantos outros políticos que viram seus casos sumiram pelas frestas do decurso de prazo, como foi o caso recente do pedido de arquivamento de um processo movido contra o ainda senador José Serra, este processo de Lula transcorreu em uma velocidade inaudita e com resultado anunciado em rede nacional pela Band TV antes que os desembargadores o fizessem oficialmente. É aí que aparece o caráter de classe de uma justiça seletiva que pune com rigor os pobres, enquanto deixa que os “bem nascidos” cometam todo tipo de crime contra a maioria pobre do nosso povo. Em outras palavras, acaba de provar o gosto da justiça brasileira servida a la Rafael Braga, o único preso como resultado das manifestações políticas ocorridas em 2013 [1].

O fato é que, intencionalmente ou não, os três desembargadores estão nos dando uma chance singular de olharmos o interior do sistema de justiça e, por que não, do sistema prisional. É que já sabe que quando for encarcerado, o ex-presidente Lula terá de ser enviado para um presídio que normalmente é reservado apenas para os pobres. E lá ele terá, provavelmente, de escolher uma das duas principais facções que hoje controlam a maioria das prisões brasileiras, e disputar um espaço numa cela diminuta e super populada. Irá Lula optar por se juntar ao Primeiro Comando da Capital ou ao Comando Vermelho? Será a ele permitido se manter como preso independente ou terá de fazer a opção que a maioria dos presos é obrigada a fazer?

Não é preciso dizer que antevejo que se prisão de Lula for confirmada, ele terá de ser enviado para uma dessas prisões de segurança máxima, onde, novamente, será obrigado a optar por um dos grupos que também comandam o crime de dentro das masmorras federais. Aí a coisa ficaria ainda mais interessante, porque em vez de tratar com os bagrinhos do crime, Lula irá estar próximo dos chefes.

Eu me pergunto se os três desembargadores que aumentaram a pena e determinaram a prisão imediata de Lula se deram ao trabalho de vislumbrar o cenário político nacional com o ex-presidente dentro de uma prisão. É que conhecendo o pouco que conheço dele, Lula sentará calmamente em qualquer uma das unidades prisionais em que será colocado e começará a conversar primeiro com seus colegas de cela, e depois com um pavilhão inteiro e depois com todos os pavilhões juntos. E com ali estão muitos cujas famílias tiveram suas vidas melhoradas pelos governos de Lula, não é difícil imaginar que encontrará centenas e até milhares de aliados para expor as vergonhas e injustiças que grassam nas prisões para os quais os ultrarricos brasileiros enviam os membros da maioria pobre (e negra) da população brasileira. Em suma, Lula poderá se tornar muito mais perigoso como presidiário do que tem sido como um político negociador e sempre pronto para engolir sapos em nome da conciliação de classes.

Por essas e outras é que se enganam muito os que hoje festejam a sentença condenatória do TRF-4 contra Lula. É que ele não sumirá nas entranhas de uma prisão fétida e nem será tão fácil de ter penas aumentadas pela mera posse de um Pinho Sol como foi o caso de Rafael Braga.

Finalmente, no caso de Lula ser excluído da corrida presidencial, como parece que será, os “mercados” poderão até ficar felizes num primeiro momento. Mas o que essa exclusão deverá representar certamente irá causar muita tristeza e ranger de dentes até antes da posse do eleito. É que o Brasil ainda não encontrou um substituto para Lula no que ele tem de melhor que é ser um encantador de multidões. E sem uma figura como essa, a explosão social que hoje se encontra latente será inevitável. A ver!


[1] https://libertemrafaelbraga.wordpress.com/about/

A vitória da contra-reforma trabalhista do governo Temer e seus significados para a luta de classes no Brasil

senado

A aprovação por maioria folgada da contra-reforma trabalhista imposto pelo governo “de facto” de Michel Temer expressa a falência completa das relações de cooperação que alicerçaram a chamada Nova República, e também deverá abrir um período de forte recrudescimento na luta de classes no Brasil.  A verdade é que a classe trabalhadora rapidamente perceberá a gravidade dos ataques que foram desfechados contra direitos duramente acumulados ao longo de quase 100 anos, e que agora são retirados de forma até fácil pelos representantes do capital no congresso nacional.

O fato que a contra-reforma trabalhista passou por 50 votos favoráveis contra apenas 26 contrários não significa que não haverá resistência assim que todas as regressões que ela contém ficaram claras para os trabalhadores.  Nem mesmo o ambiente de profunda recessão que marca o Brasil neste momento deverá deter o agravamento dos conflitos entre capital e trabalho.  É que as regras aprovadas e que mutilam mais de 100 dispositivos de proteção aos trabalhadores estão colocando o Brasil em patamares similares ou até piores com o que é praticado em países onde as relações trabalhistas são consideradas as mais atrasadas do planeta.  

Mas é preciso que fique claro que os partidos que aprovaram com tamanha facilidade este profundo ataque aos trabalhadores e à juventude tiveram ajuda de setores que se apresentam como sendo de esquerda.  Como explicar de outra forma a apatia que marcou o dia de hoje entre as principais centrais brasileiras senão uma adesão muda aos ataques? Onde estavam as multidões de trabalhadores que poderiam ter pressionado os senadores a não consumarem este ataque tão profundo aos seus direitos? Provavelmente paralisadas em frente dos aparelhos de TV, enquanto suas direções se faziam de mortas para não terem que oferecer algum tipo de explicação sobre suas próprias responsabilidades sobre o que estava acontecendo.

Venhamos e convenhamos, o fato é que esta derrota foi desenhada desde o momento em que se deu o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff e os partidos, movimentos sociais e sindicatos simplesmente engoliram a seco a pilula amarga do respeito à ordem democrática, que nada tem de ordem ou ainda menos de democrática.

Além disso, ao invés de se preparar o enfrentamento político aos ataques montados por um presidente que chafurda na lama das denúncias de que é um corrupto contumaz, o que se viu foi a aposta numa agenda eleitoral centrada na figura do ex-presidente Lula que nos obriga a esperar por 2018, como se as regressões que estão ocorrendo sejam sanáveis pela via eleitoral.  Essa aposta numa saída eleitoral é provavelmente um dos muitos erros que foram cometidos pela chamada esquerda institucional, os quais desembocaram na aprovação dessa contra-reforma trabalhista de tons para lá de draconianos.

De toda forma,  essa derrota conjutural tem tudo para recolocar a luta de classes no Brasil num patamar muito avançado. E nessa conjuntura que se abre é quase certo que não haverá espaço para quem tente vender a ideia de que as coisas vão se ajeitar via políticas de colaboração de classe.  Se isto acontecer, pelo menos a derrota de hoje terá começado a valer a pena.  Mas uma coisa é certa: ao apostar na semeadura de ventos, a burguesia brasileira poderá colher imensas tempestades. A ver!

A “nova esquerda” e o complexo de avestruz frente à velha luta de classes

Podem me chamar de ortodoxo ou de qualquer outro adjetivo assemelhado, mas juro que não aguento mais esse papo de “nova esquerda” ou “novas esquerdas” como uma indicação de uma direção a ser adotada pela classe trabalhadora  e pela juventude para enfrentar a opressão e a violência gerada pela crise sistêmica em que o Capitalismo está enfiado.

É que a imensa maioria desses “novos esquerdistas” é formada por sujeitos que perderam a perspectiva de que o Capitalismo poderá superado enquanto forma de organizar a presença humana na Terra.  É esta ausência de perspectiva revolucionária (adotando aqui o sentido descrito por Karl Marx na Ideologia Alemã) que transforma todo essa conversa de novas formas de organização pela esquerda em mero reconhecimento tácito de uma suposta durabilidade “ad eternum” do Capitalismo.

A verdade é que se olharmos o que está ocorrendo na França neste exato momento poderemos notar que é pela mão dos sindicatos e das organizações políticas que recusam o ajuste neoliberal que está se dando uma gigantesca lição de como se enfrentar os planos de miséria e regressão de direitos sociais engendrados pelo Partido Socialista de François Hollande. 

O fato é que toda essa conversa de “nova esquerda” procura embaçar a necessidade da construção de uma organização mundial para alavancar as lutas da classe trabalhadora, esteja ela onde estiver. Ao isolar o problema que os trabalhadores enfrentam para avançar a sua luta ao dilema do novo contra o velho, o que se faz na prática é impedir que a necessária unidade seja forjada no processo de enfrentamento que já está ocorrendo no plano prático.

Por isso, é que essas “novas esquerdas” possuem um caráter intrinsecamente reacionário e conservador, apesar do palavrório supostamente modernizante.  O que essa “nova esquerda” adoraria é que todos os que resistem ao Capitalismo internalizem o mesmo complexo de avestruz em que seus ideólogos estão metidos. Por isso mesmo é que devemos ignorar esses chamados por um suposto novo que já nasceu decrépito. E que venha a luta de classes!