“Nós somos gente pobre e gente pobre não pode meter-se em guerra”: teatro e transformação social na experiência da peça Fuzis da Cia de Arte Persona

Por Luciane Soares da Silva
A arte pode embrulhar o estômago. Causar perplexidade, desconforto. Pode produzir engajamento e pode mesmo servir como estopim de levantes populares. Pode divertir e proporcionar a desejada distinção aos que a consomem em palácios de mármore e luzes intensas. Pode servir para tudo e para muito pouco.
Fazer arte em Campos dos Goytacazes, uma cidade que investe parcos recursos na área de cultura já devia ser motivo de respeito. Escolher o teatro para discutir regimes totalitários e as diferentes formas de violência e resistência no cotidiano é motivo de admiração. Afinal, nada causa mais repulsa a elite local do que a lembrança de seu passado escravista.
É possível encenar uma peça no palco pequeno de uma escola pública, no meio de uma plantação de algodão, para cortadores de cana, presos. São muitos os caminhos mas sabemos quais são visitados pela censura e quais são agraciados com premiações. O teatro pode ser fantasia, inquietação, experimento. Mas e quando ele possibilita ao homem comum, que reconheça seu lugar no mundo?
Cada leitura ganha a urgência de seu tempo. Recuperar a Guerra Civil Espanhola entrelaçando Brecht e nossas cotidianas lutas é desafiador. E encaminha uma das questões mais desconfortáveis de nosso século: é possível ser neutro diante do autoritarismo? É possível ser indiferente à morte de milhões nas guerras urbanas? É possível seguir em silêncio sob democracias que se parecem cada vez mais a Estados de Exceção?
A peça “Fuzis” da Cia de Arte Persona é ambientada em uma aldeia de pescadores, Nesta vila, a vida dos pobres segue a busca pela sobrevivência. Mas não sem conflitos! Já poderíamos criar o primeiro laço de aproximação com nossos pescadores no Farol, Atafona e na extensão do Paraíba. Acontece que a vida lá é interrompida pela guerra, pela morte. A vida aqui, é atravessada pelo Complexo Logístico Industrial do Porto do Açu. São tempos diferentes, são formas de resistência diferentes, muito material para pensar arte de forma crítica.

É possível manter a indiferença diante do desaparecimento forçado de pessoas? Diante da intolerância religiosa, da morte de mulheres, do racismo e da perseguição a comunidades Lgbtqiapn+? Diante da luta pela terra, pela água e por alimento, é preciso nesta cidade, que recuperemos as lições do Teatro do Oprimido, uma pedagogia crítica da passividade social por meio da arte. Campos dos Goytacazes teve seus palacetes e sua gente distinta, afeita ao bom gosto europeu. Mas vive há décadas sob o jugo da enxada e da fome.
Como animar o corpo daqueles que seguem passivos em ônibus lotados as seis da tarde e ouvem passivos a voz de sacerdotes tão pouco praticantes do Evangelho? Como lembrá-los de que esta terra pertence a quem nela trabalha?
Saudemos a coragem da Cia de Arte Persona por animar nosso espírito. E todos e todas que ousam fazer teatro em terra tão árida ao fomento concreto de políticas públicas favoráveis aos fazedores de cultura.








